MULTA
TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
REQUERIMENTO
INDEFERIMENTO
Sumário

1. Do art. 48º, nº 1 do CP resulta que ao condenado basta requerer a substituição da multa por prestação de trabalho comunitário, para que deva haver lugar a uma apreciação material do requerido, devendo o tribunal, ponderar então se, em concreto, essa “forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
2. Pressuposto da apreciação é o impulso processual tempestivo, por parte do condenado, mostrando-se injustificada a rejeição in limine do requerimento, com base em deficiências meramente formais e sem que haja lugar a convite ao aperfeiçoamento ou a suprimento oficioso das deficiências.
3. Tratando-se de normas que regem sobre penas, suas condições de aplicação e de execução, não pode o tribunal restringir-lhes o alcance numa aplicação contra reum.

Texto Integral



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Processo nº 341/08.9TAODM-A.E1

Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo nº 341/08.9TAODM-A da Comarca de B foi proferido despacho de indeferimento da substituição da pena de multa em que o arguido FRD foi condenado nos autos, por prestação de trabalho a favor da comunidade da pena.
Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:
“1.ª - O requerimento do arguido FRD para substituição da pena de multa por dias de trabalho, embora não fundamentado em conformidade com o disposto no artigo 490.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não deve ser liminarmente indeferido uma vez que pode ser complementado por via da factualidade provada no douto acórdão ou nos termos do n.º 2 do artigo 490.º do Código
2.ª - O douto despacho recorrido deve, assim, ser revogado e substituído por outro que aprecie aquele requerimento ou que solicite à DGRSP a elaboração do relatório previsto no artigo 490.º, n.º 2, parte final, do Código de Processo Penal.”
“1 - Por acórdão de 11 de Dezembro de 2013 foi o arguido condenado, em cúmulo jurídico, numa pena de 300 dias de multa à taxa diária de €6,00. 2 - No dia 06 de Janeiro de 2014, veio requerer que a pena de multa fosse totalmente substituída por dias de trabalho a favor da comunidade, nos termos e para os efeitos no preceituado nos artigos 48.°, n.? 1 do Código Penal e 496.° do Cód. Proc. Penal. 3 - No dia 15 de Dezembro de 2014, foi o condenado notificado do douto despacho com a Ref. 26288572, proferido em 12 de Dezembro de 2014, indeferindo o pedido de substituição da multa por trabalho a favor da comunidade, pelo facto de o condenado não ter fundamentado o seu pedido, limitando-se a requerer a substituição. 4 _ Para o efeito, o tribunal a quo baseou-se unicamente no ponto F) do dispositivo do acórdão onde se adverte o arguido para (. . .) caso não tenha possibilidades de efectuar o pagamento integral da multa em que foi condenado, poderá, no período de pagamento voluntário da mesma, requerer, fundamentadamente, o seu pagamento em prestações, ou requerer a sua substituição pela prestação de trabalho a favor da comunidade (. .. )", tendo sublinhado a expressão "fundamentadamente"
5 - Ao realçar-se a expressão "fundamentadamente" para fundamentar o indeferimento do pedido de substituição da multa por trabalho, levou a que o tribunal a quo interpretasse de forma incorrecta o ponto F) do dispositivo.
6 - Para o condenado recorrente a interpretação do ponto F) será a correta se a expressão a realçar for "ou" e não "fundamentadamente", visto estarem em causa duas opções: pagamento da multa em prestações ou substituição da mesma por trabalho a favor da comunidade.
7 - Assim, no entender do condenado recorrente o referido ponto F) deve ser interpretado da seguinte forma: "Advertir o arguido FRD que, caso não tenha possibilidades de efectuar o pagamento integral da multa em que foi condenado, poderá, no período de pagamento voluntário da mesma, requerer, fundamentadamente, o seu pagamento em prestações, "ou" requerer a sua substituição pela prestação de trabalho a favor da comunidade (. . .) ",
8 - Só a opção de pagamento da multa em prestações - artigo 47.°, nº 3 do Código Penal - exige uma justificação ou fundamentação para requerer o pagamento em prestações, fazendo sentido aqui a expressão "fundamentadamente" .
9 - A opção da substituição da multa por trabalho - artigo 48.°, nº 1 do Código Penal - parece conter apenas um elemento facultativo - (pode o tribunal ordenar), não se exigindo qualquer fundamentação por parte do condenado.
10 - Por força do disposto no artigo 48.°, nº 1 do Código Penal, o tribunal tem ainda a faculdade de decidir relativamente à substituição da multa por trabalho "(. .. ) quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."
11 - Porém, o tribunal limitou-se, pura e simplesmente, a indeferir o requerimento do condenado com base numa interpretação incorrecta, padecendo, ainda de falta de fundamentação no indeferimento por não invocar a violação de qualquer dispositivo legal, pelo que deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que permita ao condenado recorrente substituir a pena de 300 dias de multa por 300 horas de trabalho a favor da comunidade.”
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela procedência e concluindo:
“1.ª - O requerimento do arguido FRD para substituição da pena de multa por dias de trabalho, embora não fundamentado em conformidade com o disposto no artigo 490.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não deve ser liminarmente indeferido uma vez que pode ser complementado por via da factualidade provada no douto acórdão ou nos termos do n.º 2 do artigo 490.º do Código de Processo Penal.
2.ª - O douto despacho recorrido deve, assim, ser revogado e substituído por outro que aprecie aquele requerimento ou que solicite à DGRSP a elaboração do relatório previsto no artigo 490.º, n.º 2, parte final, do Código de Processo Penal.”
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer também no sentido da procedência do recurso.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. O despacho recorrido é o seguinte:
“Veio o condenado FRD requerer a substituição da pena única de multa em que foi condenado por prestação de trabalho a favor da comunidade. O MP não se opôs.
Apreciando, cumpre desde logo recordar ao condenado o que ficou expressamente lavrado no dispositivo do acórdão: «Advertir o arguido que, caso não tenha possibilidades de efectuar o pagamento integral da multa em que foi condenado, poderá, no período de pagamento voluntário da mesma, requerer, fundamentadamente, o seu pagamento em prestações, ou requerer a sua substituição pela prestação de trabalho a favor da comunidade e que, caso não proceda ao pagamento da multa, na totalidade ou nas prestações que lhe sejam permitidas, ou à prestação de trabalho, se procederá à execução patrimonial de bens para pagamento da multa ou, caso a mesma não se mostre viável, à conversão da multa em prisão subsidiária, pelo tempo correspondente, reduzido a dois terços, cujo cumprimento será efectivo, excepto se provar que a razão do não pagamento da multa ou da não prestação do trabalho não lhe é imputável - artigos 47º, 48° e 49° do Código Penal» - é nosso o destacado e o sublinhado.
Ora, o condenado não fundamenta o seu pedido, limita-se a requerer a substituição.
Donde, indefiro ao requerido.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), a questão a apreciar é a de saber se deve ser logo indeferido liminarmente por “falta de fundamentação”, o requerimento apresentado pelo arguido condenado em pena de multa em que se limita a solicitar a substituição dessa multa por dias de trabalho a favor da comunidade, “nos termos e para os efeitos do preceituado nos arts 48º, nº 1 do CP e 496º dom CPP”.
Por sentença proferida nos autos, o arguido fora condenado na pena única de 300 dias de multa a €6,00/dia (multa total de €1.800,00).
No prazo previsto nos arts 489º e 490º, nº 1 do CPP, veio requerer que a multa fixada lhe fosse substituída por dias de trabalho a favor da comunidade “nos termos e para os efeitos dos arts. 48º, nº1 do CP e 496º do CPP”.
Este requerimento, apresentado em tempo e por quem tinha legitimidade, foi liminarmente indeferido. O indeferimento (como se vê da transcrição do despacho recorrido, em 2.) ancorou-se no alegado desrespeito, por parte do requerente, ao comando constante do dispositivo da sentença condenatória.
Concretamente, consignara-se ali, na passagem que aqui releva: “… advertir o arguido que, caso não tenha possibilidades de efectuar o pagamento integral da multa em que foi condenado, poderá, no período de pagamento voluntário da mesma, requerer, fundamentadamente, o seu pagamento em prestações, ou requerer a sua substituição pela prestação de trabalho a favor da comunidade…”.
Aquilo que o arguido teria incumprido seria, pois, esse comando contido no vocábulo “fundamentadamente”. Pois, segundo o tribunal, o requerimento do arguido não conteria qualquer fundamentação. E ao ter “requerido sem fundamentar”, na interpretação do tribunal, o arguido comprometera irremediavelmente a possibilidade de apreciação da sua pretensão.
Defende agora o recorrente que o requerimento não deveria ter sido liminarmente indeferido, pois podia sempre “ser complementado por via da factualidade provada no acórdão ou nos termos do n.º 2 do artigo 490.º do CPP”. E que “o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que aprecie aquele requerimento ou que solicite à DGRSP a elaboração do relatório previsto no artigo 490.º, n.º 2, parte final, do CPP”, pois “o tribunal limitou-se, pura e simplesmente, a indeferir o requerimento do condenado com base numa interpretação incorrecta, padecendo ainda de falta de fundamentação no indeferimento por não invocar a violação de qualquer dispositivo legal”.
O MP pronunciou-se, nas duas instâncias, em sentido favorável à defesa.
E fê-lo acertadamente.
Na verdade, o indeferimento liminar que mereceu o requerimento formulado pelo arguido carece de suporte legal. Ele estriba-se numa pretensa violação de uma advertência contida no dispositivo da sentença. Mas a ilegalidade da decisão recorrida decorre de duas ordens de razões, que convergem no caso presente.
Desde logo, a advertência feita na sentença não é suficientemente clara, pois não se apresenta ali como inequívoco que o vocábulo “fundamentadamente” se refira à opção tomada pelo arguido e não à outra. Disse-se no dispositivo, quanto a uma eventual impossibilidade de pagamento da multa, poder o arguido “requerer, fundamentadamente, o seu pagamento em prestações, ou requerer a sua substituição pela prestação de trabalho a favor da comunidade”.
A fórmula utilizada admite como interpretação possível que o “fundamentadamente” se refira apenas à primeira opção, e não àquela que o arguido seguiu.
Mas serão sobretudo razões de legalidade e de tipicidade da pena que conduzem também ao repúdio da interpretação seguida no despacho.
As consequências jurídicas do crime encontram-se submetidas aos princípios da legalidade e da tipicidade (art. 29º, nºs 1 e 2 da CRP e art. 1º do Código Penal).
Estes princípios legais e constitucionais abrangem a definição das penas, as condições da sua aplicação, o controlo das fontes, a proibição da retroactividade, a proibição da analogia contra reo. Também os princípios constitucionais da necessidade, proporcionalidade e proibição do excesso se mantêm como referentes em todo o processo de decisão sobre as consequências do crime (arts. 18º, nº 2 e 30º, 1 a 3 da CRP). E a interpretação dos preceitos legais concretamente convocáveis para a decisão do caso deve sempre concretizar-se à luz dos referidos princípios.
Assim, o art. 48º nº 1 do CP preceitua que “a requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho… quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Depois, o art. 49º, nº 1 do CP refere que “se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntaria ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária…”.
O art. 490º do CP preceitua, no nº 1, que “o requerimento para substituição da multa por dias de trabalho é apresentado no prazo previsto nos nºs 2 e 3 do artigo anterior, devendo o condenado indicar as habilitações profissionais e literárias, a situação familiar e profissional e o tempo disponível, bem como se possível, mencionar alguma instituição em que pretenda prestar trabalho”. Nos termos do nº 2, “o tribunal pode solicitar informações complementares aos serviços de reinserção social, nomeadamente sobre o local e horário de trabalho e a remuneração”.
Do quadro de normas resulta que, para haver lugar a apreciação, tem de existir um impulso processual por parte do condenado. E apenas isso.
O pedido de substituição da multa por trabalho comunitário tem de ser da iniciativa do arguido, não competindo ao tribunal convidar o arguido a formular esse pedido (assim, P. P. Albuquerque, Comentário ao CPP, 3ª ed. p.1235). Desde logo porque, na filosofia do Código, a prestação de trabalho exigiria sempre a voluntariedade do condenado (assim também no 58º, nº 5 do CP, como pena substitutiva da prisão).
Mas uma coisa é o convite ao requerimento (este seria ilegal pois a lei não prescinde da iniciativa do arguido), outra, o convite ao aperfeiçoamento desse mesmo requerimento, nos casos em que apresente deficiências, ou seja, quando o tribunal entenda que ele não fornece os elementos necessários à decisão.
Do art. 48º, nº 1 do CP resulta que ao condenado basta requerer a substituição da multa por trabalho, para que haja lugar a uma apreciação material do requerido (“A requerimento do condenado…”). Competindo depois, ao tribunal, ponderar se essa “forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Tratando-se de norma que rege sobre penas, suas condições de aplicação e de execução, não pode o tribunal restringir-lhe o alcance, numa aplicação da norma contra reum.
Pressuposto da apreciação, no presente caso, é o impulso processual do condenado. Impulso esse que se mostra ter sido tempestivamente dado no processo.
É certo que a lei adjectiva, no art. 490º, nº 1 do CPP, preceitua que o condenado deve “indicar as habilitações profissionais e literárias, a situação familiar e profissional e o tempo disponível, bem como se possível, mencionar alguma instituição em que pretenda prestar trabalho”. E nos termos do nº 2 “o tribunal pode solicitar informações complementares aos serviços de reinserção social, nomeadamente sobre o local e horário de trabalho e a remuneração”.
Acontece que grande parte destas “indicações” integra já os factos provados da sentença, onde, em dez desenvolvidos pontos, o tribunal descreveu com minúcia o “enquadramento social e familiar do arguido”.
E também ao abrigo do art. 409º, nº 2 do CPP, sempre poderia o tribunal solicitar aos serviços de reinserção social as demais informações complementares que julgasse ainda necessárias à decisão. Ou obtê-las tão só do próprio arguido, visto que os autos contêm já uma perícia social elaborada por aqueles serviços.
O que nunca se justificaria seria a rejeição in limine que, no presente caso, traduz uma “penalização” desproporcionada e ilegal do arguido por eventuais deficiências menores do seu requerimento que, na essência, em nada o comprometem, na sua pretensão e no seu sentido.
O trabalho comunitário (a actividade laboral, a socialização pelo trabalho) é uma medida apta a reforçar os laços entre o condenado e a sociedade e a contribuir para a sua reintegração. Uma vez requerida a substituição da multa por trabalho, compete ao juiz pronunciar-se sobre a viabilidade dessa substituição, nos termos que se deixaram expostos e como resulta da lei.
Tem pois razão o MP quando refere que “o requerimento do arguido para substituição da pena de multa por dias de trabalho, embora não fundamentado em conformidade com o disposto no artigo 490.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não deve ser liminarmente indeferido uma vez que pode ser complementado por via da factualidade provada no douto acórdão ou nos termos do n.º 2 do artigo 490.º do Código de Processo Penal.”
Por tudo, há que concluir que falecem, de facto e de direito, os fundamentos que levaram à prolação do despacho de indeferimento do requerimento apresentado pelo arguido, que deve ser substituído por outro que aprecie aquele requerimento, solicitando previamente (ao próprio arguido ou à DGRSP) as informações eventualmente ainda em falta, se tal se revelar necessário

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que aprecie o requerimento apresentado pelo arguido, diligenciando-se previamente pela obtenção dos elementos eventualmente em falta, se necessário, nos termos explanados.
Sem custas.
Évora, 02.06.2015
(Ana Maria Barata de Brito)
(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)