RESPONSABILIDADE
PESSOA COLECTIVA
IRREGULARIDADE
Sumário

1. A responsabilidade contra-ordenacional da pessoa colectiva não depende da responsabilização cumulativa de pessoa física, bastando que a conduta seja praticada ou determinada em seu nome por pessoa juridicamente vinculante da vontade colectiva.
2. A omissão das menções impostas nos números 2 e 3 do artº 58º do D.L. 433/82, de 27/10, constitui mera irregularidade.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães


I. Relatório

[1] Por decisão administrativa da Câmara Municipal de Braga proferida em 24/03/2009, foi a V.... condenada na coima de 4.000,00€ (quatro mil euros) pela prática de contra-ordenação p. e p. pela al. a) do nº 1 do artº 14º do D.L. 11/2003, de 18/1.
[2] Inconformada, a acoimada interpôs impugnação judicial, invocando a nulidade da decisão condenatória e a inexistência da contra-ordenação, a qual veio a ser distribuída ao 3º Juízo Criminal de Braga, com o NUIPC 3130/09.0TBBRG. Por sentença proferida em 25/09/2009, foi julgada improcedente tal impugnação e confirmada a decisão recorrida.
[3] Irresignada, veio a acoimada interpor recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1ª - A responsabilização das pessoas colectivas, em sede de ilícito de mera ordenação social, pressupõe a prévia ou concomitante responsabilização dos agentes que, no exercício das suas funções, hajam perpetrado a infracção;
2ª - Compulsada, porém, a decisão condenatória, verifica-se, porém, não se elencar aí qualquer facto atinente aos elementos objectivos e subjectivos da infracção praticada, em primeira instância, por uma pessoa singular;
3ª - Do mesmo modo, não é feita qualquer referência ao órgão que, agindo no exercício das respectivas funções, haja praticado a contra-ordenação;
4ª - Tais omissões ferem de nulidade a decisão recorrida que, ademais, sempre padeceria de tal vício por omissão das menções a que se alude no artigo 58°, n.ºs 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro;
5ª - Ao decidir diferentemente e, em consequência, mantendo a decisão condenatória, a sentença prolatada pelo tribunal a quo violou os arts 7°, n.° 2, e 58° do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro e arts. 374°, n.° 2 e 379°, n.° 1, al. a), do Código do Processo Penal, estes aplicáveis ao caso dos autos ex vi do disposto no art. 41°, n.º 1 daquele Decreto-Lei.

[4] O Ministério Público junto do Tribunal recorrido apresentou resposta, na qual, e em síntese, considera que a decisão administrativa não carecia de identificar a pessoa ou o órgão que actuou por conta da arguida e que a responsabilidade da recorrente não depende dessa identificação. Termina pela improcedência do recurso.
[5] Neste Tribunal, o Ministério Público, através do Sr. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer, acrescentando ao que fora referido em 1ª instância que o artº 7º, nº2, do D.L.433/82 apenas contempla a extensão da responsabilidade à pessoa colectiva.
[6] Cumprido o disposto no artº 417º, nº2 do CPP, não houve resposta.
[7] Foram colhidos os vistos e procedeu-se a conferência.


II. Fundamentação
2.1. Delimitação do objecto do recurso

[8] É pacífica a doutrina e jurisprudência Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso Cfr., por exemplo, art.ºs 74.º, n.º 4, 75.º, n.º 2, alínea a), do DL 433/82, de 27/10 e 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.. O recorrente coloca apenas uma questão, a saber, a da nulidade da decisão administrativa, apresentando para tanto dois fundamentos distintos:

- Não ser feita referência, nem identificado, o titular de órgão que, agindo no exercício das respectivas funções, teria praticado a contra-ordenação;

- Omissão das menções impostas pelos nºs 2 e 3 do artº 58º do D.L. nº 433/82, de 27/10.

2.2. Da decisão recorrida

[9] Vejamos agora os termos em que a decisão recorrida conheceu da questão colocada Transcrição.:

Da nulidade da decisão administrativa
A recorrente V... invoca duas nulidades que afectariam a decisão administrativa, nomeadamente o facto de:
a) não constar qualquer referência ao órgão ou agente singular que, por conta da arguida, haja praticado os factos, pelo que a decisão administrativa não teria os factos atinentes aos elementos objectivos e subjectivos da infracção praticada pelos indivíduos que terão agido por conta da arguida.
b) a decisão administrativa ser omissa relativamente às menções a que aludem os nºs 2 e 3 do referido art° 58°.
Apreciando.
O que importa realçar, antes de mais, é que quando um arguido impugna judicialmente uma decisão administrativa, tal impugnação determina uma apreciação pelo tribunal de toda a questão fáctica, desaparecendo a decisão condenatória enquanto tal, antes assumindo as vestes de uma mera acusação.
Independentemente dos vícios da decisão recorrida, ao socorrer-se da instância judicial, o recorrente apela a que seja tomada uma nova decisão, com as garantias de imparcialidade e isenção que a autoridade judicial, independente do poder administrativo ou executivo, assegura.
Avancemos, no entanto, um pouco mais para concluirmos que não existe qualquer nulidade, nomeadamente as invocadas.
Como dispõe o artigo 7.°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27/10, "As pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.".
Como vem referido no acórdão do TRP de 24/01/2007, in www.dgsi.pt (no qual vêm citados Manuel António Lopes Rocha - A Responsabilidade Penal Das Pessoas Colectivas, Direito Penal Económico, ciclo de Estudos, Coimbra, 1985, p. 156 -, João Castro de Sousa - As Pessoas Colectivas em face do Direito Criminal e do chamado Direito de Mera Ordenação Social, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 223 - e Marcelo Caetano - Manual de Direito Administrativo, p. 154), "A responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas ou equiparadas não tem carácter objectivo, já que pressupõe a prática do facto típico pelos seus «órgãos» no exercício das suas funções, ou seja, «uma mens rea e esta só tem sentido quando referida a pessoas singulares. Daí que a expressão "órgãos" deva ser identificada com as pessoas físicas que, enquanto tais, actuam em nome do ente colectivo». No preenchimento do conceito, a generalidade da doutrina aponta para pessoas que estatutariamente ou de facto praticam actos imputáveis à pessoa colectiva ou, por outras palavras, que integrem a vontade da pessoa colectiva. Ou seja, as pessoas físicas que integram «os centros institucionalizados de poderes funcionais a exercer pelo indivíduo ou colégio de indivíduos que nele estiverem providos com o objectivo de exprimir a vontade juridicamente imputável a essa pessoa colectiva».".
Nas palavras de Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, I Volume, Coimbra 1970, págs. 143 e segs.), igualmente citado no aludido acórdão, "A vontade do órgão é referida ou imputada por lei à pessoa colectiva, constituindo, para o Direito, a própria vontade desta pessoa. Correspondentemente, os actos do órgão valem como actos da própria pessoa colectiva, que assim agirá mediante os seus órgãos jurídicos, do mesmo modo que a pessoa singular actua e procede através dos seus órgãos físicos Se os indivíduos encarregados de gestionar os interesses da pessoa colectiva são órgãos dela, os factos ilícitos que pratiquem no âmbito das suas funções serão actos da mesma pessoa; a culpa com que tenham procedido será igualmente culpa dessa pessoa; e sobre esta recairá a competente responsabilidade civil e criminal, que será, para o Direito, responsabilidade pelos próprios actos e pela própria culpa, que não por actos e por culpa de outrem. Mas, verdadeiros órgãos serão as pessoas físicas que têm a seu cargo decidir e actuar pelas pessoas colectivas. (..) dos órgãos há que distinguir os simples agentes ou auxiliares, que só executam por incumbência ou ainda sob a direcção dos órgãos deliberativos e principalmente dos representativos, determinadas operações materiais que interessam à pessoa colectiva. São simples agentes ou auxiliares os operários, os empregados (que podem ser técnicos de alta qualificação) e outros profissionais a cujos serviços a pessoa colectiva ocasionalmente recorra, como mandatários, os advogados constituídos para quaisquer litígios em que a sociedade seja pleiteada, etc.".
Ainda acerca da responsabilidade das pessoas colectivas, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República emitiu um parecer a 7/07/94, publicado no Diário da República, II Série de 28/04/95, em que se formulam, além do mais, as seguintes conclusões:
1ª As pessoas colectivas ou equiparadas actuam necessariamente através dos titulares dos seus órgãos ou dos seus representantes, pelo que os factos ilícitos que estes pratiquem, em seu nome e interesse, são tratados pelo direito como factos daquelas, nomeadamente quando deles advenha responsabilidade criminal, contra-ordenacional ou civil;
(...).
3° A responsabilidade da pessoa colectiva, qua tale, normalmente cumula-se com a responsabilidade individual dos agentes que levaram a cabo a prática concreta de cada infracção.
4ª Fica, porém, excluída essa responsabilidade se se demonstrar que o agente actuou contra ordens ou instruções expressas da pessoa colectiva ou que actuou exclusivamente no seu próprio interesse.
Contudo, nenhuma norma exige, contrariamente ao que parece pensar a arguida, que da decisão administrativa conste o órgão ou agente que por conta da pessoa colectiva actuou. O que se exige é que de tal decisão constem os factos respeitantes ao elemento objectivo e subjectivo da infracção praticada, o que sucede no caso vertente, se bem que se tivesse entendido que o elemento subjectivo se encontrava expresso de forma algo imperfeita, razão pela qual foi objecto de concretização em sede de audiência de julgamento.
Tal menção apenas seria necessária caso se pretendesse responsabilizar, além da pessoa colectiva, a pessoa singular que, por conta da mesma, agiu. Nesse caso, como é lógico, haveria que a identificar
De resto, não é isso que sucede na esmagadora maioria dos casos e, por vezes, (dada a diluição de responsabilidades no seio das sociedades, principalmente das sociedades anónimas como é o caso) a identificação do órgão ou agente que actuou é até tarefa praticamente impossível.
A exigência legal ficará, pois, satisfeita caso a descrição dos factos na decisão administrativa, nomeadamente em termos espácio-temporais, permita à pessoa colectiva a possibilidade de se defender sem dificuldades de maior.
Ela sempre poderá argumentar que não praticou os factos de que está acusada ou que o agente ou órgão actuou contra as suas instruções e ordens expressas, de modo a excluir a sua responsabilidade.
Também não é o que sucede no caso vertente. A arguida nunca (nem no âmbito do processo administrativo, nem no recurso interposto, nem em sede de audiência de julgamento) negou ter praticado os factos, admitindo até (pelo menos implicitamente) tê-los praticado. O que sustenta é que, na sua opinião, a prática de tais factos (a realização de obras de instalação de infra-estruturas de suporte de estação de radiocomunicações e respectivos acessórios no edifício "Z", do Centro Empresarial de Braga) não constituiria qualquer infracção, pois o pedido de autorização municipal formulado foi, posteriormente, objecto de despacho de deferimento.
Não assiste assim qualquer razão à arguida na nulidade invocada.
O outro argumento nuclear expendido pela recorrente para sustentar a nulidade da decisão administrativa assenta na circunstância da decisão condenatória da autoridade administrativa omitir as menções a que aludem os nºs 2 e 3 do art° 58° do DL n° 433/82, de 27/10.
A questão tem sido discutida relativamente à omissão das menções constantes do n°1 do art° 58° do DL n° 433/82, de 27/10 e nem mesmo neste caso é completamente pacífica a qualificação de tal vício como nulidade.
Na verdade, conforme escreve António Beça Pereira, em "Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas", 3ª edição, págs. 104 e ss, a inobservância pela autoridade administrativa do disposto no art° 58° do DL n° 433/82 de 27/10 não é sancionada com nulidade, não se afigurando correcto aplicar, subsidiariamente, o disposto no art° 379° do Código de Processo Penal (nulidades da sentença), uma vez que, se o arguido interpuser recurso da decisão condenatória, esta, nos termos do art° 62 n° 1, converte-se em acusação. Também não se afigura correcto aplicar, subsidiariamente, o disposto no art° 283° n° 3 do Código de Processo Penal (nulidades da acusação) uma vez que, se não for interposto recurso da decisão condenatória, esta não se converte em acusação.
Aliás, em abono do que fica exposto, note-se que nos termos do art° 118°/1 do CPP só existem nulidades expressamente previstas na lei, sendo que o DL 433/82 de 27/10 nada nos diz nesse sentido.
Decidiu-se no Ac RL de 5/2/97, proferido no recurso n° 5583: "A decisão administrativa proferida em processo contra-ordenacional deve ser fundamentada. Porém, a falta de fundamentação acarreta apenas a irregularidade processual que deve ser arguida nos termos do artigo 123° CPP, não sendo aplicável aqui, como direito subsidiário, o Código de Procedimento Administrativo."
No sentido de que a inobservância do disposto no art° 58° do DL n° 433/82 de 27/10 não é sancionada com nulidade, mas apenas com irregularidade e que o art° 379° do CPP não é aplicável à decisão administrativa podem ver-se os acs RP de 19/2/97, proferido no recurso n° 40009 e de 18/12/96, proferido no recurso 40656.
Reconhece-se, contudo, que a tendência actual é a de qualificar como nulidades e não como irregularidades certos vícios da decisão administrativa, mas isso reporta-se apenas à omissão das menções constantes do n° 1 do art° 58° do DL n° 433/82 de 27/10.
Contudo, no caso vertente está em causa apenas a omissão na decisão administrativa das menções constantes dos nºs 2 e 3 do art° 58° DL n° 433/82, de 27/10.
Neste caso, mesmo aqueles que defendem que a falta dos requisitos previstos no n°1 do art° 58° do mencionado diploma constitui uma nulidade são unânimes em considerar que a falta dos requisitos indicados nos nºs 2 e 3 do referido normativo constitui uma mera irregularidade, pois trata-se de meras informações que devem ser dadas ao arguido. É o caso, por exemplo, de Simas Santos, Contra-Ordenações, Anotação ao Regime Geral, págs. 325 e 326 e Sérgio Passos, Contra-Ordenações, Anotação ao Regime Geral, pág. 380.
No caso vertente, a irregularidade em causa é completamente inócua, pois não obstante não constarem da decisão administrativa as informações a que aludem os n°s 2 e 3 do art° 58° do DL n° 433/82, de 27/10, a verdade é que isso em nada prejudicou a arguida que interpôs atempadamente o recurso de impugnação.
Em face do exposto, julgam-se improcedentes as nulidades invocadas.

2.3. Apreciação

[10] A recorrente V... reitera em recurso para esta Relação uma das duas questões que colocou na impugnação judicial da decisão administrativa, a saber, a nulidade da decisão administrativa por não ser identificada e responsabilizada a pessoa singular – física - actuante e por omissão de menções impostas por lei, fazendo-o praticamente sem qualquer acrescento argumentativo ou contraponto à fundamentação exarada pelo Tribunal recorrido, com a qual, diga-se desde já, concordamos plenamente.
[11] Na verdade, o raciocínio do recorrente parte de um equívoco quanto ao sentido da expressão de que a responsabilidade contra-ordenacional da pessoa colectiva assume a natureza de «responsabilidade reflexa», decorrente da responsabilidade pela actuação de uma pessoa «física». Com efeito, esse tipo de responsabilidade, como qualquer outra, mormente as responsabilidades civil, administrativa ou criminal da pessoa colectiva são sempre «reflexas» na medida em que os entes colectivos constituem uma construção jurídica, não existem na natureza e não são, em si mesmos, capazes de acção: actuam sempre através de uma ou mais pessoas físicas.
[12] Porém, daí não decorre que a responsabilidade dos entes colectivos, a qualquer título, seja um mero reflexo da responsabilidade individual, pois constituem realidades sociais a se, dotados de consciência e vontade próprias Diz Germano Marques da Silva, Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus administradores e representantes, Verbo, 2009, pág. 161: «...graças à sua estrutura organizativa, as pessoas colectivas estão equipadas com as capacidades dos sujeitos de Direito e portanto dispõem das necessárias características para assumirem, como destinatárias das normas, os mandados de conduta». e, como tal, são directa e autonomamente destinatários das normas de protecção de bens jurídicos e de ordenação social, porque susceptíveis de culpa – seja culpa por deficiência da organização, seja culpa analógica da do ser humano Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, págs. 298-299. - pela respectiva violação. Como apontam Oliveira Mendes e Santos Cabral:

«Conquanto as pessoas colectivas sejam incapazes, por si mesmas, da actividade física que concretiza a sua vontade delitiva, a verdade é são elas as instigadoras dessa actividade material e é a esse título que devem ser perseguidas e reprimidas, pelo que lhe são aplicáveis sanções pela prática de contra-ordenações.

Prática que sendo necessariamente realizada por pessoa ou pessoas físicas, conduz a que a responsabilidade contra-ordenacional de qualquer ente colectivo não seja concebível independentemente da responsabilidade de uma ou mais pessoas físicas que actuem por ela, sendo a responsabilidade do ente colectivo, nesta perspectiva, uma responsabilidade reflexa, supondo um substrato humano» Notas ao Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas, Almedina, 2004, págs. 35 e 36. Sobre a culpabilidade dos entes colectivos, Germano Marques da Silva, Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas, Revista do CEJ, nº8, págs. 93-97 e op. cit., págs. 127-174..

[13] Então, assente a consciência própria e a capacidade de culpa, as questões relativas à responsabilização do ente colectivo deslocam-se para determinação do âmbito e forma que deve assumir o nexo entre o facto e a vontade actuada, ou seja, na escolha de um modelo de imputação adequado. Nas palavras lapidares de Figueiredo Dias, referindo-se à responsabilidade criminal dos entes colectivos, mas com aplicação também no domínio contra-ordenacional:

«Com efeito, não basta ao legislador consagrar a responsabilidade penal do ente colectivo, mas terá de dar à jurisprudência e à doutrina um princípio ou critério, ao menos geral, de como deve estabelecer-se para efeitos dogmáticos, teóricos e práticos, aquela responsabilidade. O aludido modelo analógico não deve servir para esconder que, na realidade do mundo psicofísico, os entes colectivos não agem por si mesmos (mas só através de “pessoas naturais”) nem são dotados de subjectividade. Por isso é preciso determinar antes de mais, também legislativamente, o âmbito e a forma que deve assumir o nexo de imputação, objectivo e subjectivo, do facto à responsabilidade do ente colectivo. Decidir, nomeadamente, a questão se saber se os entes colectivos são directamente responsáveis, apenas pelas acções levadas a cabo por pessoas naturais (e se sim, por quais e como); ou também enquanto garantes da não produção de resultados típicos, isto é, mais concretamente, quando a falta de vigilância ou controlo dos órgãos ou representantes do ente colectivo tenha tornado possível a prática do facto por uma pessoa sob a sua autoridade» Op. cit, págs. 302-303..

[14] A procura de um modelo de imputação que responda eficazmente à necessidade responsabilizar o ente colectivo mas, ao mesmo tempo, respeite a sua alteridade relativamente à conduta humana subjacente, conduziu basicamente a duas respostas distintas: uma primeira, de responsabilidade directa, em que a imputação é imediatamente dirigida ao comportamento da pessoa colectiva sem necessidade de intermediação de pessoas físicas; outra, de responsabilidade por substituição, na qual a responsabilidade da pessoa colectiva pressupõe a avaliação do comportamento de uma ou mais pessoas físicas e de seguida a atribuição deste comportamento, e da reprovação que suscita, à pessoa colectiva Sobre os modelos de responsabilidade dos entes colectivos, cfr. Germano Marques da Silva, Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus administradores e representantes, págs,. 174-196 e Jorge dos Reis Bravo, Direito Penal de Entes Colectivos, Coimbra Ed., 2008, págs. 108-113.. Estes constituem, por assim dizer, os dois extremos em que se pode colocar a resposta normativa, sem prejuízo, aqui e além, de sobreposições e regimes especiais Sobre a pluralidade de regimes especiais no direito penal secundário, em termos de colocar em questão a respectiva compatibilidade constitucional, cfr. Contra-ordenações: Responsabilidade de Entidades Colectivas, Teresa Serra, R.P.C.C., ano 9º, 2º, págs. 187-212..
[15] No plano contra-ordenacional, em que se situa o problema em apreço neste recurso, rege o artº 7º, nº1 do D.L. 433/82, de 22/10, no qual se estabelece que: «as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas colectivas, bem como às associações sem personalidades jurídicas». Encontra-se, pois, bem plasmado nesse normativo o princípio da responsabilidade contra-ordenacional dos entes colectivos, afastando o princípio societas delinquere non potest. Ao invés, no domínio da mera ordenação social, em sintonia com a neutralidade axiológica-social da sanção contra-ordenacional Cfr. Figueiredo Dias, Do directo penal administrativo ao direito de mera ordenação social: das contra-ordenações às contra-ordenacões, in Temas da Doutrina Penal. 2001, Coimbra Ed., págs. 135-154., o princípio acolhido pelo legislador foi exactamente o oposto: societas delinquere potest Sobre a função da responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas como «pórtico de entrada» e resposta inicial a pressão político-criminal, que em 2007 tomou «de assalto a normatividade jurídica propriamente dita», cfr. Faria e Costa, Noções Fundamentais de Direito Penal, Coimbra Ed., 2007, pág. 41. .
[16] Por seu turno, o modelo geral de imputação adoptado para a responsabilidade contra-ordenacional em geral encontra-se no nº 2 do preceito, de acordo com o qual «As pessoas colectivas ou equiparadas são responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções». Perante essa formulação, a regra consagrada acolhida foi a da responsabilidade directa da pessoa colectiva O que não se confunde com responsabilidade objectiva., por efeito da identificação das condutas – activas ou omissivas - dos seus órgãos e representantes juridicamente vinculantes, tal como definidos pelo ordenamento civil, como actos próprios do ente colectivo.
[17] Mas, por outro lado, verificado esse requisito – identificação -, o legislador do Regime Geral das Contra-Ordenações optou por responsabilizar apenas a pessoa colectiva, afastando o regime da responsabilidade cumulativa ou paralela Cfr. parecer do Conselho Consultivo da PGR de 07/07/94.. Não se encontra no ordenamento nacional qualquer norma que condicione a responsabilidade contra-ordenacional da pessoa colectiva a prévia ou concomitante responsabilização de pessoa singular, ou seja, que acolha o modelo de responsabilidade cumulativa necessária Sem prejuízo de existirem múltiplos exemplos de responsabilidade contra-ordenacional cumulativa ou paralela, ainda que autónoma, como, por exemplo, decorre do artº 2º do D.L. 28/84., como defende o recorrente. Não decorre da Lei, nem dos princípios, a necessidade do procedimento contra-ordenacional ser dirigido tanto contra o ente colectivo como contra o(s) agente(s) físico(s), antes subsistindo autónoma a responsabilidade daquele mesmo que se extinga, por exemplo por morte, a responsabilidade da pessoa singular. Como refere Germano Marques da Silva:

«É interessante anotar desde já que não obstante o Código Penal de 1982 não ter consagrado a responsabilidade criminal das pessoas colectivas, optando pela responsabilização dos titulares dos seus órgãos e dos seus representantes que actuassem em nome dela, nos termos do instituto da «actuação em nome de outrem» já o Decreto- Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, optou pela sua responsabilização e não daqueles que actuem em nome dela. Com efeito, o artº 7º, deste diploma admite a aplicação das coimas tanto às pessoas singulares como às pessoas colectivas, bem como às associações em personalidade jurídica, mas estabelece que só as pessoas colectivas respondem pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções (art. 7º, nº2)» Op. cit., pág. 27.

[18] Observe-se que problema coloca-se noutros termos, e com outros parâmetros normativos, quando se esteja perante responsabilidade criminal da pessoa colectiva, em que se acolheu o modelo da responsabilidade concorrente, mormente no precursor artº 3º do D.L. 28/84, prosseguido igualmente na crescente expansão da responsabilidade penal dos entes colectivos para direito penal principal, mormente na revisão operada pela Lei nº 59/2007, de 4/9. Mesmo nesse domínio, com densidade ético-social e desvalor acrescidos, o legislador afirma a autonomia da responsabilidade e responsabilização da pessoa singular e da pessoa colectiva. Diz o nº7 do artº 7º do Código Penal: A responsabilização das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes.
[19] Assim, e ao contrário do sustentado pelo recorrente, a infracção contra-ordenacional por que foi condenado não é também imputável a uma pessoa singular pelo que não existe qualquer omissão relevante na ausência de identificação dessa pessoa ou pessoas e de não ter sido alvo do processo administrativo. Trata-se de elemento de facto adicional, não indispensável à verificação do ilícito contra-ordenacional, o qual existe desde que seja determinado que a conduta executou a vontade de um – qualquer – titular de órgão ou representante do ente colectivo, neste caso da V..., e não por iniciativa individual e autónoma de mero agente ou auxiliar Veja-se, a este propósito, o ac. da Relação do Porto de 24-01-2007, Pº 0643899, relator Isabel Pais Martins, www.dgsi.pt. .
[20] Ora, ainda que de forma menos perfeita, esse requisito encontra-se suficientemente expresso, tanto na decisão administrativa, como na sentença, em termos de permitir a plena defesa da recorrente.
[21] Desde logo, a consideração de que a recorrente, enquanto pessoa colectiva, é ontologicamente incapaz de acção, significa que toda a imputação de uma conduta material, física, pode, e deve, de acordo com a regra do artº 236º, nº1, do CC, ser interpretada como incorporando a intermediação de uma ou mais pessoas humanas. Essa condição encontra-se perfeitamente sedimentada no discurso corrente, como acontece, aliás, com a própria argumentação constante do recurso. Quando alega que deduziu pedido de alvará ou, em geral, quando personifica em si própria uma qualquer actuação, como quando afirma que a instalação em questão constituiu «um investimento de vulto para a V... » (cfr. fls. 53), a recorrente acolhe implicitamente o sentido de incorporação de actos, sem necessidade de decompor a intervenção humana que conduziu à sua materialização, o que, em termos organizativos, corresponde a mais das vezes a uma pluralidade de intervenientes, distribuídos por uma cadeia decisória complexa e muito dificilmente discernível do seu exterior. É certo que assim se envolve na linguagem aspectos que relevam do Direito mas, em bom rigor, e como se disse, tudo o que se prende com um ente colectivo co-envolve ficção jurídica e não existe na natureza.
[22] Acresce que, tendo em atenção igualmente a tipologia da referida instalação - infra-estruturas de suporte de uma estação de radiocomunicação e call center, no qual a recorrente disse trabalharem 300 pessoas (fls. 53) – a afirmação de que «bem sabia que a instalação das infra-estruturas estava sujeita a autorização administrativa» e a consideração pela autoridade administrativa de que a V... agiu com «dolo», não pode deixar de comportar a imputação de que a concreta conduta subsumível à infracção contra-ordenacional e o sentido de havia sido decidida no seio da pessoa colectiva e conformada por um qualquer órgão ou representante, capaz de vincular a sua vontade.
[23] Aliás, porque esse conteúdo significante já se encontrava ínsito na decisão administrativa, decidiu o Tribunal a quo esclarecer o elemento subjectivo, deixando ainda mais claro que a conduta correspondia plenamente à expressão da vontade da pessoa colectiva, e não a actuação contra as suas instruções e ordens expressas, necessariamente modelada pelos titulares dos seus órgãos ou dos seus representantes, passando então a ser factos praticados pela V..., fazendo-o nos seguintes termos:

Ao proceder a obras de instalação das referidas infra-estruturas sem autorização administrativa, a arguida V... agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a instalação de tais infra-estruturas está sujeita a autorização administrativa e, consequentemente, do carácter ilícito da sua conduta.

[24] Diga-se, finalmente, que a circunstância de não se ter indicado o nome do titular do órgão ou representante, não afasta a indicação dessa intervenção, como, em geral, a indeterminação da identidade de um dos agentes de conduta não a torna inexistente ou afasta a responsabilidade daqueles que é possível identificar e trazer a juízo. Teve a recorrente, como bem se refere na decisão recorrida, plenas oportunidades de defesa, mormente de demonstrar em sede de impugnação judicial que a conduta imputada – perfeitamente delimitada - decorreu fora do exercício de funções dos respectivos decisor(es) e executor(es). O que não aconteceu.
[25] Face ao exposto, falece fundamento à evocação de ausência dos elementos objectivos e subjectivos da infracção contra-ordenacional na decisão administrativa e, por inerência, na decisão recorrida.
[26] Refira-se, ainda, que a existir a omissão apontada não estaríamos perante vício da decisão administrativa, elevado à condição de nulidade. Na realidade, não se trataria da falta da descrição de factos, com infracção do disposto no artº 58º, nº1, al. b) do Regime Geral das Contra-Ordenações, mas sim de ausência, na tese do recorrente, de alegação, e prova, de elemento essencial da infracção contra-ordenacional, o que conduziria ao afastamento da responsabilidade da recorrente e à sua absolvição.
[27] A segunda vertente em que o recorrente funda a arguição de nulidade prende-se com a violação do disposto nos nºs 2 e 3 do artº 58º do D.L. 433/82, de 27/10. Dizem esses normativos que a decisão administrativa deve conter, para além do dispositivo e dos fundamentos de facto e de direito, um conjunto de informações, nomeadamente: i) que a condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do artº 59º; ii) que em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso o arguido e o Ministério Público não se oponham, mediante simples despacho; iii) a ordem de pagamento da coima no prazo máxima de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão; iv) e, por fim, a indicação de que em caso de impossibilidade de pagamento tempestivo deve o acoimado comunicar o facto por escrito à autoridade que aplicou a coima.
[28] Considerou a decisão recorrida que essas indicações haviam sido omitidas mas que tal vício não era fundamento de nulidade, constituindo antes irregularidade, entendimento inteiramente correcto.
[29] Na verdade, tais indicações impostas pelo legislador colocam-se inteiramente para além do acto material decisório, o qual em nada conformam, não constituindo mais do que informações relativos aos termos da possível impugnação judicial e ao cumprimento da coima, o que veda em absoluto a pretendida aplicação subsidiária do regime constante do artº 379º, nº1, al. a) do CPP. Acresce que a nulidade estabelecida neste preceito não abrange todos os requisitos da sentença, mas apenas aqueles, substanciais, constantes do nº2 e 3, al. b) do artº 374º do CPP, permitindo-se a correcção, oficiosamente ou a requerimento, dos demais prescritos no preceito (artº 380º, nº1, al. a) do CPP). Então, e de forma manifesta, a falta da transcrição das informações consignadas nos nºs 2 e 3 do artº 58º do D.L. 433/82, de 27/10, na decisão administrativa dessas informações constitui mera irregularidade, sanada com o efectivo exercício da impugnação judicial, de acordo com o regime do artº 123º do CPP.
[30] Improcede o recurso também neste ponto.

III. Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:

A. Negar provimento ao recurso;
B. Condenar o recorrente, pelo decaimento no recurso, em 5 (cinco) Ucs.

Notifique.


Guimarães, 25/01/2010