I - Na nossa cultura de tradição judaico-cristã o direito de personalidade de manter uma relação espiritual com um familiar falecido comporta o direito à proximidade física com a sepultura do mesmo e o direito de aí colocar flores e velas.
II – O referido direito de personalidade prevalece, nos termos do art. 335º do C.C., sobre o direito de concessão sobre jazigo de modo que o titular deste último direito deve ceder a chave do jazigo a fim de aí poder ser exercido o mencionado direito de personalidade.
- que o Tribunal reconheça o direito de o autor o fazer sem necessidade de pedir autorização, nem depender de vontades, caprichos ou horários da ré e que esta seja condenada a reconhecer este direito do autor;
- que a ré seja condenada a ceder-lhe a chave do jazigo onde se encontra sepultado o pai do autor para que este possa exercer o seu direito livremente;
- a condenação da ré, a título de sanção pecuniária compulsória, no pagamento de quantia nunca inferior a € 150 por cada dia de atraso no cumprimento da entrega da chave.
Para tanto alegou em síntese que é filho e herdeiro de E. M., falecido em 26/07/2011, o qual se encontra sepultado no Jazigo nº … do cemitério da freguesia de …, concelho de Barcelos, jazigo esse que se encontra fechado sendo a ré a única possuidora de chaves que permitem o acesso ao mesmo. Sendo o autor residente no Canadá, sempre que se desloca ao nosso país, procura manter uma relação espiritual com o seu familiar falecido. A ré já foi contactada diversas vezes para facultar uma cópia da chave que permita o seu irmão exercer esse seu direito fundamental, o que não fez.
A ré contestou dizendo que o referido jazigo perpétuo foi propriedade de A. R., que faleceu em 20/08/2007, no estado de casado com a aqui ré no regime da comunhão de adquiridos. Assim, actualmente esse bem passou a integrar a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do mesmo. Ao falecer o pai da ré e do autor a viúva e mãe daqueles pediu que a urna com os restos mortais daquele fosse depositada no interior do referido jazigo, o que a ré e filhos aceitaram e autorizaram. Quer a ré, quer os seus filhos, quer a mãe da ré, nunca impediram o autor de entrar no cemitério, de se aproximar do jazigo, de junto ao mesmo rezar e até depositar flores no patamar de entrada.
- condena-se a Ré M. M. a reconhecer que o Autor é titular do aludido direito;
- absolve-se a Ré do demais peticionado.”.
III – O Tribunal “a quo” deu como não provado que a Ré já foi contactada diversas vezes para facultar ao Autor uma chave do jazigo onde se encontra sepultado o pai deste.
IV – Deve ser eliminado este facto da matéria dada como não provada e passar a constar nos Factos provados: “A Ré já foi contactada pelo menos por uma vez para facultar uma chave do Jazigo onde se encontra sepultado o pai do A. tendo ignorado esse contacto”.
V – Devem ser ainda adicionados os factos:
- Após terem sido depositados no Jazigo em causa os restos mortais do pai da R. e A., esta entregou uma chave a cada irmão e à sua mãe, viúva.
- Mais tarde, veio a R. a alterar a fechadura do jazigo.
- Os regulamentos do cemitério, não permitem a colocação de flores e outros objetos do lado de fora das portas do Jazigo.
VI – O que não faz sentido é dar como matéria provada (facto 5) que o A. enviou carta para a R. a solicitar a chave, e vir, posteriormente, na matéria dada como não provada, negar todo e qualquer contacto. Assim,
VII – Não restam dúvidas que quem “gere” o jazigo é a Ré.
VIII – Não restam dúvidas que a Ré alterou a fechadura do jazigo para evitar que o A. possa lá entrar.
IX – O A. solicitou a chave à R. e esta ignorou o pedido.
X – O A. sente necessidade de entrar no Jazigo para cumprir o seu direito de personalidade em pleno.
XI – Sendo o Homem também produto da cultura em que se insere, verificou-se que para estabelecer esta relação espiritual com familiar falecido sepultado em jazigo há a necessidade de entrar no mesmo para em recolhimento, rezando ou não rezando se “estar” com o familiar falecido, deixar um ramo de flores ou acender uma vela.
XII – Uma necessidade que é naturalmente mais intensa tratando-se de um pai.
III – Tanto assim é que a R. facultou uma chave do jazigo a cada um dos irmãos para visitar o pai e mesmo quando alterou a fechadura não se coibiu de entregar uma chave à mãe, viúva, para visitar o falecido marido sem necessidade de pedir autorização a ninguém.
XIV – O A. não só sente necessidade de entrar no jazigo para exercer em pleno o seu direito fundamental como há certas manifestações desse exercício que os regulamentos do cemitério não permitem executar de outra forma (colocação de flores e velas do lado de fora das portas).
XV – A comparação da Mma. Juiz “a quo” com o caso dos entes queridos sepultados em sepulturas térreas não faz qualquer sentido uma vez que é do senso comum que quanto mais possibilidade de proximidade do ente querido falecido, o Homem tiver, mais necessidade vai ter de o fazer. Aliás, é até consensual que essa é a principal razão para a construção de jazigos.
XVI – Tal raciocínio poderia ser extrapolado para qualquer situação o que levaria até ao não reconhecimento do direito de personalidade em causa.
XVII – Andou mal o Tribunal “a quo” ao desconsiderar que a Ré, ao alterar a fechadura da porta do jazigo e ignorar o pedido do A. na cedência de uma chave está, pelo menos, a limitar o exercício do direito fundamental do A. de se relacionar com o seu falecido pai.
XVIII – Ainda que esteja em causa um direito de concessão da Ré, é pacífico que o mesmo deverá ceder quando colida com um direito de personalidade como é o caso.
XIX - No entanto devem-se procurar soluções que distribuam de modo proporcional os custos do conflito.
XX – Daí que o A. não esteja a solicitar que o jazigo deixe as portas abertas ou destrancadas.
XXI – Mas tão somente concessão de uma chave que permita “visitar” o seu pai de forma livre e lhe permita colocar, ou mandar colocar em seu nome, umas flores ou acender uma vela em 4 datas especiais por ano.
XXII – Pelo que, o facto de o A. estar largos períodos no estrangeiro não deveria contribuir para ilibar a R., antes pelo contrário, neste juízo de proporcionalidade deveria funcionar em abono da pretensão do aqui Recorrente.
Pugna o recorrente pela procedência do recurso e consequente revogação da sentença recorrida e condenação da ré no peticionado pelo autor.
A) Incorrecta análise e apreciação da prova;
B) Reapreciação da decisão de mérito.
3 – O dito jazigo encontra-se fechado, possuindo a Ré uma das chaves que permitem a sua abertura.
4 – O Autor reside no Canadá, mas sempre que se desloca a Portugal procura manter uma relação espiritual com o seu falecido pai.
5 – O Autor, por intermédio do seu mandatário, remeteu à Ré uma missiva registada com aviso de recepção, datada de 6 de Setembro de 2016, com o seguinte teor:
“(…)
M/Constituinte: J. M.
Os meus melhores cumprimentos.
Estando os cemitérios integrados no domínio público, quem tem a seu favor a concessão de uma sepultura não pode impedir que outros, nomeadamente os filhos de pessoa aí sepultada, se aproximem dessa campa.
Ora, o meu constituinte, o Sr. J. M., seu irmão, pretende exercer esse direito em relação ao vosso falecido pai estando impedido de o fazer em virtude de V. Exa. manter o acesso ao jazigo encerrado.
Não está em causa a propriedade do jazigo (que é seu e ninguém coloca em causa) mas tão só o direito de personalidade constitucionalmente protegido de manter uma relação espiritual com familiares falecidos encontrando-se a exercer esse direito quem, junto à campa em recolhimento, rezando ou não rezando, está com o falecido e coloca um ramo de flores no seu túmulo.
A circunstância de haver uma concessão da sepultura a favor de outra pessoa não é impeditiva desse direito.
Como tal, concedo-lhe o prazo de quinze dias a contar da receção desta carta para, através dos meus serviços, proceder à entrega da cópia da chave do jazigo para que o m/ constituinte possa exercer o seu direito. (…)”.
6 – A Ré não entregou ao Autor uma cópia da chave do jazigo onde se encontra sepultado o falecido pai de ambos.
7 – O Autor vive no Canadá há mais de trinta anos, deslocando-se a Portugal, em média, de dois em dois anos.
8 - Por alvará datado de 18 de Outubro de 1999 e arquivado no livro de registos n.º .., folha 1, da Junta de Freguesia de …, concelho de Barcelos, foi concedido a A. R., casado, contribuinte …, então residente no lugar de … – Barcelos, o direito ao uso na aplicação a que é destinado e com sujeição às leis e regulamentos de polícia, de um terreno no cemitério Paroquial da Freguesia de …, medindo 9 m2, para jazigo perpétuo.
9 – Para o efeito, A. R. procedeu ao pagamento da sisa devida na secção de finanças, através do conhecimento nº …/1999, de 18 de Outubro de 1999.
10 - Posteriormente nesse terreno foi por ele e pela sua mulher, aqui Ré, construído um jazigo, que passou a ser designado e identificado por …, medindo 9 m2, destinado a jazigo perpétuo.
11 – O jazigo denominado … está vedado com quatro paredes, cobertura e porta que, por questões de segurança e preservação das urnas que lá se encontram, se acha fechada à chave.
12 - Em 2007, faleceu A. R., no estado de casado com a aqui Ré, sendo a urna com os seus restos mortais depositada no interior do referido jazigo.
13 - Desde a sua construção e em especial após o falecimento daquele A. R., marido da Ré e pai de dois filhos, foram sempre estes que conservaram e veneraram os restos mortais daquele e do jazigo em que se encontram depositados.
14 - Ao falecer o pai da Ré, E. M., a viúva e mãe da Ré e do Autor pediu que a urna com os restos mortais daquele seu pai fosse depositada no interior do referido jazigo, por ser essa a sua vontade, o que a Ré e filhos aceitaram e autorizaram prontamente.
15 – A Ré nunca impediu o Autor de entrar no cemitério, de se aproximar do jazigo, de junto ao mesmo rezar e até depositar flores no patamar de entrada.
E foram os seguintes os factos não provados:
a) A Ré é a única possuidora de chaves que permitem o acesso ao jazigo.
b) A Ré já foi contactada diversas vezes para facultar ao Autor uma chave do jazigo onde se encontra sepultado o pai deste.
c) O Autor alheou-se do destino dos restos mortais do seu falecido pai.
O Tribunal da 1ª Instância, ao proferir sentença, deve, em sede de fundamentação “(…) declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas de factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência” (art. 607º nº 4 do C.P.C.) e “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” (art. 607º nº 5 do C.P.C.).
Sendo certo que o julgador aprecia a prova de acordo com a sua livre convicção, salvo algumas limitações, a análise crítica da prova é da maior importância do ponto de vista da fundamentação de facto da decisão. Com efeito, esta deve ser elaborada por forma a que, através da sua leitura, qualquer pessoa possa perceber quais os concretos meios de prova em que o Tribunal se baseou para considerar determinado facto provado ou não provado e a razão pela qual tais meios de prova foram considerados credíveis e idóneos para sustentar tal facto. Esta justificação terá de obedecer a critérios de racionalidade, de lógica, objectivos e assentes nas regras da experiência. A este propósito refere Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 3ª ed., p. 256: “A exigência legal, para ser atacada, impõe que, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, se estabeleça o fio condutor entre a decisão de facto (resultado) e os meios de prova que foram usados na aquisição da convicção (fundamento), fazendo a respectiva apreciação crítica nos seus aspectos mais relevantes”.
Não tendo o julgador acesso aos factos tal como se verificaram, mas apenas aos factos que resultam da prova produzida, não deve aquele almejar à verdade material, mas apenas à denominada verdade processual.
É admissível recurso apenas sobre a matéria de direito e/ou pode ser impugnada a decisão relativa à matéria de facto desde que o recorrente cumpra os ónus previstos na lei processual (art. 639º nº 2 a) do C.P.C. e 640º do C.P.C. respectivamente).
A exigência de análise crítica da prova nos termos supra referidos permite à parte não convencida quanto à bondade da decisão de facto tomada pelo tribunal da 1ª instância interpor recurso contrapondo os seus argumentos e justificar as razões da sua discordância.
Caso seja requerida a reapreciação da matéria de facto incumbe, desde logo, ao Tribunal da Relação verificar se os ónus previstos no acima art. 640º do C.P.C. se mostram cumpridos, sob pena de rejeição.
Não havendo motivo de rejeição procede este tribunal à reapreciação da prova nos exactos termos requeridos. Incumbe a este Tribunal controlar a convicção do julgador da primeira instância verificando se esta se mostra contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos e sindicar a formação da sua convicção. i.e., o processo lógico. Assim sendo, nada impede que, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, o tribunal superior conclua de forma diversa da do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.
Tendo por base estas considerações, tendo-se produzido à gravação da prova produzida, passemos à apreciação da matéria de facto em causa a fim de averiguar se a mesma é de manter ou de alterar nos termos do art. 662º do C.P.C..
1)
Pretende o recorrente que o facto dado como não provado sob a alínea b) – “A Ré já foi contactada diversas vezes para facultar ao Autor uma chave do jazigo onde se encontra sepultado o pai deste” – deve ser eliminado e passe a constar dos factos provados o seguinte: “A Ré já foi contactada, pelo menos uma vez, para facultar ao Autor uma chave do jazigo onde se encontra sepultado o pai deste”.
Assiste razão ao recorrente. Com efeito, este facto resulta da conjugação do documento de fls. 7V a 8V (carta registada com aviso de recepção do mandatário do autor, dirigida à ré, datada de 06/09/16 e cujo aviso de recepção se mostra assinado pela destinatária) com o depoimento da testemunha T. R., filha da ré, que confirmou a recepção da mencionada carta e está em consonância com o facto provado sob o nº 5.
Pelo exposto, nos termos do art. 662º nº 1 do C.P.C., deve ser eliminado o facto não provado sob a al. b) e aditado aos factos provados o seguinte facto com a seguinte numeração:
“16 - A Ré já foi contactada, pelo menos, uma vez para facultar ao Autor uma chave do jazigo onde se encontra sepultado o pai deste”.
2)
Mais pretende o recorrente ver aditados os seguintes factos: “Após terem sido depositados no Jazigo em causa os restos mortais do pai da R. e A., esta entregou uma chave a cada irmão e à sua mãe, viúva”; “Mais tarde, veio a R. a alterar a fechadura do jazigo.” E “Os regulamentos do cemitério, não permitem a colocação de flores e outros objetos do lado de fora das portas do Jazigo.”.
Estriba-se no depoimento das testemunhas inquiridas.
Vejamos.
Antes de mais, verificamos que a matéria que se pretende aditar não foi alegada por qualquer das partes.
Contudo, nos termos do art. 5º nº 2 a) e b) do C.P.C. o juiz, além dos factos essenciais articulados pelas partes e que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as excepções invocadas, pode ainda considerar os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, bem como factos complementares ou concretizadores dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que tenham, quanto a estes últimos, tido a possibilidade de se pronunciar.
Do disposto no art. 607º nº 3 e 4 do C.P.C. resulta que, na sentença, o juiz deve discriminar os factos provados e não provados “analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais (…)”. Assim, apenas os factos concretizadores devem constar dos factos provados e não provados fixados na sentença, sendo que, quanto aos factos instrumentais, a estes pode o juiz aludir em sede de análise crítica da prova.
No caso em apreço, entendemos, desde logo, que os dois primeiros factos que se pretende ver aditados não têm interesse para a boa decisão da causa. Com efeito, a razão de ser dos presentes autos é exactamente a falta de acesso por parte do autor ao interior do jazigo onde se encontram os restos mortais do seu pai pelo que não é relevante o facto de, no passado, ter tido a chave e ter perdido o acesso na sequência de mudança da fechadura.
Quanto ao terceiro facto que se pretende ver aditado entendemos que o mesmo consubstancia um facto instrumental. Conforme distingue muito claramente Lopes do Rego, in Comentário ao Código de Processo Civil, p. 201), "factos instrumentais definem-se, por contraposição aos factos essenciais, como sendo aqueles que nada têm a ver com substanciação da acção e da defesa (…)”, enquanto que "factos essenciais, por sua vez, são aqueles de que depende a procedência da pretensão formulada pelo autor e da excepção ou da reconvenção deduzidas pelo réu". E na noção dada por Castro Mendes, in Direito Processual Civil, II, p. 208, são “os que interessam indirectamente à solução do pleito por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos actos pertinentes”.
Sendo o referido facto um facto instrumental puramente probatório, i.e., pode ser utilizado para a prova indiciária dos factos principais, não tem o mesmo que ser objecto de alegação pelas partes e emergindo da instrução da causa – como emergiu - cabe ao juiz atender ao mesmo e valorá-lo em sede de fundamentação da convicção nos termos do art. 607º nº 4 do C.P.C..
Pelo exposto, improcede a pretensão do apelante nesta parte.
1 – No dia 26 de Julho de 2011, faleceu E. M., tendo deixado como herdeiros a viúva R. S. e os filhos M. M., J. M. e C. M..
2 – O falecido E. M. encontra-se sepultado no jazigo nº … do cemitério da freguesia de …, concelho de Barcelos.
3 – O dito jazigo encontra-se fechado, possuindo a Ré uma das chaves que permitem a sua abertura.
4 – O Autor reside no Canadá, mas sempre que se desloca a Portugal procura manter uma relação espiritual com o seu falecido pai.
5 – O Autor, por intermédio do seu mandatário, remeteu à Ré uma missiva registada com aviso de recepção, datada de 6 de Setembro de 2016, com o seguinte teor:
“(…)
M/Constituinte: J. M.
Os meus melhores cumprimentos.
Estando os cemitérios integrados no domínio público, quem tem a seu favor a concessão de uma sepultura não pode impedir que outros, nomeadamente os filhos de pessoa aí sepultada, se aproximem dessa campa.
Ora, o meu constituinte, o Sr. J. M., seu irmão, pretende exercer esse direito em relação ao vosso falecido pai estando impedido de o fazer em virtude de V. Exa. manter o acesso ao jazigo encerrado.
Não está em causa a propriedade do jazigo (que é seu e ninguém coloca em causa) mas tão só o direito de personalidade constitucionalmente protegido de manter uma relação espiritual com familiares falecidos encontrando-se a exercer esse direito quem, junto à campa em recolhimento, rezando ou não rezando, está com o falecido e coloca um ramo de flores no seu túmulo.
A circunstância de haver uma concessão da sepultura a favor de outra pessoa não é impeditiva desse direito.
Como tal, concedo-lhe o prazo de quinze dias a contar da receção desta carta para, através dos meus serviços, proceder à entrega da cópia da chave do jazigo para que o m/ constituinte possa exercer o seu direito. (…)”.
6 – A Ré não entregou ao Autor uma cópia da chave do jazigo onde se encontra sepultado o falecido pai de ambos.
7 – O Autor vive no Canadá há mais de trinta anos, deslocando-se a Portugal, em média, de dois em dois anos.
8 - Por alvará datado de 18 de Outubro de 1999 e arquivado no livro de registos n.º …, folha 1, da Junta de Freguesia de …, concelho de Barcelos, foi concedido a A. R., casado, contribuinte …, então residente no lugar de … – Barcelos, o direito ao uso na aplicação a que é destinado e com sujeição às leis e regulamentos de polícia, de um terreno no cemitério Paroquial da Freguesia, medindo 9 m2, para jazigo perpétuo.
9 – Para o efeito, A. R. procedeu ao pagamento da sisa devida na secção de finanças de Barcelos, através do conhecimento nº …/1999, de 18 de Outubro de 1999.
10 - Posteriormente nesse terreno foi por ele e pela sua mulher, aqui Ré, construído um jazigo, que passou a ser designado e identificado por …, medindo 9 m2, destinado a jazigo perpétuo.
11 – O jazigo denominado … está vedado com quatro paredes, cobertura e porta que, por questões de segurança e preservação das urnas que lá se encontram, se acha fechada à chave.
12 - Em 2007, faleceu A. R., no estado de casado com a aqui Ré, sendo a urna com os seus restos mortais depositada no interior do referido jazigo.
13 - Desde a sua construção e em especial após o falecimento daquele A. R., marido da Ré e pai de dois filhos, foram sempre estes que conservaram e veneraram os restos mortais daquele e do jazigo em que se encontram depositados.
14 - Ao falecer o pai da Ré, E. M., a viúva e mãe da Ré e do Autor pediu que a urna com os restos mortais daquele seu pai fosse depositada no interior do referido jazigo, por ser essa a sua vontade, o que a Ré e filhos aceitaram e autorizaram prontamente.
15 – A Ré nunca impediu o Autor de entrar no cemitério, de se aproximar do jazigo, de junto ao mesmo rezar e até depositar flores no patamar de entrada.
16 - A Ré já foi contactada, pelo menos uma vez, para facultar ao Autor uma chave do jazigo onde se encontra sepultado o pai deste”.
E foram os seguintes os factos não provados:
a) A Ré é a única possuidora de chaves que permitem o acesso ao jazigo.
b) O Autor alheou-se do destino dos restos mortais do seu falecido pai.
O caso em apreço prende-se com a tutela dos direitos de personalidade, i. e., “um certo número de direitos absolutos (…), que se impõem ao respeito de todos os outros, incidindo sobre os vários modos de ser físicos ou morais da sua personalidade” (Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed, Coimbra Editora, pág. 208).
Os mesmos estão previstos no art. 26º nº1 da Constituição da República Portuguesa onde se lê: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”.
Em termos do direito civil o art. 70º nº 1 do C.C. corresponde à cláusula da tutela geral da personalidade enquanto os artigos seguintes prevêm apenas alguns direitos de personalidade.
O art. 71º do C.C., não obstante aludir à tutela das pessoas já falecidas, cujos direitos de personalidade gozam ainda de protecção, tem uma formulação infeliz uma vez que a tutela aí concedida incide sobre direitos e interesses das pessoas enumeradas no nº 2 do mesmo artigo e não sobre os direitos na tutularidade do falecido cuja personalidade cessou com a morte (art. 68º nº 1 do C.C.).
Um dos direitos de personalidade é o direito à inviolabilidade moral. Como refere Pedro Pais de Vasconcelos, in Direito de Personalidade, Almedina, pág. 72 “As pessoas são seres morais, que vivem num ambiente provoado de valores que são da maior importância, que integram a sua personalidade e que merecem tutela jurídica, designadamente civil. É neste campo que se inserem a autonomia moral, a liberdade religiosa de convicção e de culto, o respeito pelos mortos e pela sua memória, o respeito pela honra, pela privacidade e pelo pudor. São valores da maior dignidade cuja defesa não pode ser encarada com ligeireza.”.
Na nossa sociedade de tradição judaico-cristã é indiscutível a importância do culto dos mortos e da sua memória, a qual em regra está associada a um sítio. A este propósito lê-se no Ac. do S.T.J. de 11/12/2003, in www.dgsi.pt “a memória tem um sítio, sendo no local concreto onde se encontram os cadáveres ou as ossadas ou as cinzas daqueles que amámos que constitui o centro do culto dessa memória que é a nossa e da personalidade moral de que a morte do corpo da pessoa amada nos fez, apesar de nós, depositários.” e ainda a memória “é alguma coisa que se cultiva e que, como se disse, na nossa cultura se cultiva por referência a um sítio. É importante, pois, para a preservação dessa memória como suporte da personalidade moral que não morre, que o sítio onde repousa seja o mais abrangente possível e que tenha em conta também os usos e costumes com os quais esse culto se expressa”.
Assim, conclui-se que, além dos valores religiosos, éticos e morais ligados à memória de quem se encontre sepultado num determinado sítio, a sepultura assume-se como o local onde se procede à manifestação do culto pela memória do falecido e, por isso, também ela está ligada a valores imaterais significativos.