RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO
EXCESSO DE VELOCIDADE
CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
PRESUNÇÃO LEGAL
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I - Não tendo os agentes da autoridade identificado o autor da infração de circulação de veículo automóvel em excesso de velocidade e não tendo a pessoa em nome de quem o dito veículo está registado procedido, no prazo legal, à identificação do condutor, estabelece a lei uma presunção de responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo pela prática daquela infração.
II - O que está em causa é uma mera presunção, sempre ilidível, de responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo, e, neste sentido, tal presunção é inteiramente conforme à Constituição, não violando o princípio da culpa, pois a existência de presunções, mesmo em direito penal, não é constitucionalmente inadmissível, desde que ilidíveis.
III - O procedimento vinculado de identificação do condutor ou a demonstração do caráter abusivo da utilização do veículo, com vista à elisão da presunção e subsequente arquivamento do processo contraordenacional instaurado contra o titular do documento de identificação do veículo (cfr. nºs 3 e 4 do artigo 171º do Código da Estrada), impõe um ónus ao titular do documento de identificação do veículo, que não pode reputar-se excessivo em casos como o presente, nomeadamente em face do princípio da culpa e do princípio da proporcionalidade em sentido amplo a que se reporta o artigo 18º da Constituição da República Portuguesa.

Texto Integral



Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. JMGR impugnou judicialmente a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), que o condenou numa coima de 120,00 euros e na sanção acessória de proibição veículos com motor por 75 dias, pela prática de uma contra-ordenação estradal, p. e p. pelos artigos 28º n.º 1 b), 28º n.º 5, 27º n.º 2 a) e n.º 3, 138º, 145º n.º 1 b) e 147º n.º 2 do Código da Estrada (CE).

2. – Os serviços do MP na Instância local de Santiago do Cacém, secção de competência genérica, J1, da Comarca de Setúbal, a quem os autos foram enviados, remeteu os mesmos a juízo, tendo o recurso sido decidido por simples despacho nos termos do art. 64º nº2 e para efeitos do disposto no art. 62º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (doravante, RGCO), aprovado pelo Dec.lei 433/82 de 27 de Outubro, com as alterações subsequentes.

3. – Proferido despacho, sem que tivesse sido realizada de Audiência de Discussão e Julgamento, o tribunal negou provimento ao recurso de impugnação judicial, mantendo integralmente a decisão administrativa recorrida.

4. Inconformado, recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“ Os invocados artigos do CE [135º nº3 e 171º nº2] são inconstitucionais por violação do indicado preceito da CRP [30º nº3], ou seja, por violação do princípio constitucional da culpa. Termos em que deve o arguido ser absolvido.»

4. Notificado da interposição do presente recurso, o Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª Instância pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

5. -Nesta Relação, o senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.

6. - Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, o arguido e recorrente nada acrescentou.

7. Decisão recorrida (Transcrição parcial):

Factos Provados

Factos Provados (com relevo para a decisão)

1. No dia 31/12/2012, pelas 10h33m, no local IC-1, ao km 614,4, nesta Comarca, circulava o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula (….), à velocidade de, pelo menos, 133 km, correspondendo à velocidade registada de 108 km/h.
2. Naquele local apenas era permitido conduzir à velocidade de 70 km/h.
3. Ao conduzir a esta velocidade, o condutor do veículo agiu de forma desatenta e irreflectida, não agindo com o cuidado e a prudência que a condução de veículos obriga e a que estava obrigado.
4. Pelos factos mencionados em 1), foi levantado o auto de contra-ordenação n.º 911017410, inserto a fls. 5 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido.
5. O recorrente foi notificado, por via postal com aviso de recepção, recebido pelo próprio em 19/09/2013, por ser o titular do documento de identificação do veículo.
O recorrente não identificou uma terceira pessoa como sendo a autora da contra-ordenação.
6. O arguido tem averbado no seu registo de condutor duas contra- ordenações graves (autos n.º 901542164 e 264112717).

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Factos não provados (com relevo para a decisão)

Inexistem.
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Motivação

Os factos dados como provados encontram-se devidamente documentados nos autos, nomeadamente no auto de contra-ordenação, na reportagem fotográfica e nos documentos de fls. 7, 8 e 9, não tendo sido colocados em causa pelo recorrente.
No que tange ao averbamento no registo de contra-ordenações de infracções pregressas, cumpre referir que o tribunal valorou o teor de fls. 9.
Por último, a inexistência de identificação de uma terceira pessoa como sendo a autora da contra-ordenação resulta, desde logo, do alegado na impugnação judicial, inexistindo nos autos qualquer documento que infirme tal conclusão.

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Fundamentação de direito

O ilícito de mera ordenação social, ramo de direito sancionatório público, desponta, nas palavras de Jescheck , ao lado de crimes, delitos e contravenções como uma quarta categoria de violações, sendo cominadas com uma sanção estadual de carácter repressivo.
O mestre Eduardo Correia ensinava que o direito penal não tem como função a protecção de todos os valores, cabendo-lhe realizar, apenas, a tutela de um mínimo ético essencial a uma vida em comunidade.
Concluímos, portanto, que as duas realidades não se confundem, surgindo o direito contra-ordenacional como uma “contraposição” face ao direito penal.
No caso concreto, o recurso encontra-se balizado pelas questões concretamente colocadas pelo impugnante: a inexistência de identificação de uma terceira pessoa como sendo o condutor e a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 135º n.º 3 b) e do n.º 2 do artigo 171º do CE.
A questão central aqui em debate tem sido já, frequentes vezes, debatida na nossa jurisprudência.
Para os casos em que os senhores agentes de autoridade não tenham identificado o autor da infracção de circulação de veículo automóvel em excesso de velocidade, e em que a pessoa em nome de quem o veículo está registado não tenha procedido, no prazo legal, à identificação do condutor, a lei estatuiu uma presunção de responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo pela prática daquela infracção (cfr. artigo 135º b) do CE).
Tem sido amplamente discutida a questão de saber em que prazo e em que condições pode ser ilidida essa presunção, de maneira a afastar a responsabilidade do titular do documento de identificação.
Têm sido aventados dois entendimentos dominantes. Uma parte da jurisprudência dos nossos tribunais defende que se o titular do documento de identificação do veículo, notificado expressamente para os termos do artigo 171º do Código da Estrada, não tenha identificado o condutor no prazo que lhe foi fixado, já não o poderá fazer na fase de impugnação judicial da decisão administrativa. Segundo esta tese, defense-se que estamos diante de uma presunção juris tantum mas que apenas pode ser ilidida se for provada a utilização abusiva do veículo ou identificado um terceiro dentro do prazo legal concedido para defesa.
Existe igualmente na jurisprudência outro entendimento admitindo que a presunção seja ilidida na fase de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, mas sem se prescindir, todavia, da prova de que o autor da infracção é um determinado cidadão e não uma terceira pessoa em abstracto.
Ora, no caso vertente, compulsado a alegação do recorrente, verifica-se que o mesmo se limita a sustentar que o condutor era uma terceira pessoa, sem contudo identificar a mesma, de modo a que o tribunal (ou a entidade administrativa) possa aferir da veracidade de tal declaração.
Desta sorte, mesmo que se adoptasse o segundo dos entendimentos jurisprudenciais mencionados, nunca, no caso vertente, poderia ser afastada a presunção juris tantum que dimana do artigo 135º n.º 3 b) do CE, não podendo vingar a defesa apresentada pelo recorrente.
Por outro lado, cumpre salientar ainda que os artigos 135º n.º 3 b) e 171º n.º 2 b) do CE não enfermam de qualquer inconstitucionalidade, como de resto é comummente aceite pelos tribunais, não tendo qualquer similitude com este caso o acórdão citado pela defesa.
Sobre normativo similar (artigo 152º n.º1 do Código da Estrada, na versão anterior ao Decreto-Lei n.º44/2005, de 23 de Fevereiro) pronunciou-se o Tribunal Constitucional no sentido de dever ser interpretada como estabelecendo uma presunção ilidível, frisando que a existência de presunções, mesmo em direito penal (maxime, em direito contra-ordenacional, dir-se-á), não é desconforme à Constituição, desde que ilidíveis (cfr. acórdão n.º 276/04, de 20/04/2004 , apud acórdão do TRL de 28/09/2010, in www.dgsi.pt).
Naufragam, assim, todos os argumentos do recorrente inexistindo lídimos motivos para censurar a decisão administrativa.
(…)
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Decisão

Pelo exposto, julgo totalmente improcedente o recurso interposto por JMGR. »

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação

1. - Delimitação do objeto do recurso e poderes de cognição deste tribunal.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
O arguido e recorrente apenas vem arguir a inconstitucionalidade dos artigos 135º nº3 e 171º nº2, da CRP, por violação do princípio constitucional da culpa.
A questão a decidir é, pois, a de saber se este tribunal deve desaplicar as referidas normas do C. Estrada por inconstitucionalidade material, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo e se, em consequência, o arguido deve ser absolvido.
2. – Decidindo
Como vimos, o arguido e recorrente vem arguir a inconstitucionalidade dos arts 135º nº3 e 171º nº2, cujo teor é o seguinte:

« Artigo 135.º
Responsabilidade pelas infrações
(…)
3 - A responsabilidade pelas infrações previstas no Código da Estrada e legislação complementar recai no:
a) Condutor do veículo, relativamente às infrações que respeitem ao exercício da condução;
b) Titular do documento de identificação do veículo relativamente às infrações que respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, bem como pelas infrações referidas na alínea anterior quando não for possível identificar o condutor;
Artigo 171.º
Identificação do arguido
1 - …
2 - Quando se trate de contraordenação praticada no exercício da condução e o agente de autoridade não puder identificar o autor da infração, deve ser levantado o auto de contraordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo.
3 - Se, no prazo concedido para a defesa, o titular do documento de identificação do veículo identificar, com todos os elementos constantes do n.º 1, pessoa distinta como autora da contraordenação, o processo é suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infratora.
(…) »
2.1. Em primeiro lugar, importa precisar que o arguido recorrente nada disse quando foi notificado para apresentar a sua defesa e fazer a indicação a que se reporta o nº3 do art. 171º do C. Estrada.
Só na motivação do recurso de impugnação judicial, o arguido alegou, na qualidade de titular do documento de identificação do veículo, que não era ele quem conduzia o veículo e que não sabia quem o fazia no momento da prática da infração, pois empresta com frequência o seu veículo a várias pessoas, entre os quais os seus filhos, outros familiares ou amigos.
Significa isto que, tal como foi entendido pelo tribunal a quo, o recorrente se limitou a afirmar, já no recurso de impugnação judicial, não ser ele quem conduzia o veículo no momento da infração mas sim terceira pessoa, sem contudo identificar a mesma de modo a que o tribunal pudesse aferir da veracidade de tal declaração.
A questão de inconstitucionalidade que constitui o objeto do presente recurso respeita, pois, à interpretação daqueles preceitos do Código da Estrada segundo os quais o titular do documento de identificação do veículo é o responsável pela infração detetada se nada disser no prazo e demais termos previstos no nº 3 do artigo 171º do C. Estrada e se no recurso de impugnação judicial se limitar a negar ser ele o condutor do veículo, sem identificar o condutor ou alegar utilização abusiva do veículo, por ser esta a realidade de facto concretamente verificada e considerada pelo tribunal a quo.
2.2. Na motivação do recurso para este tribunal, o arguido e recorrente alega que as normas do C. Estrada supra transcritas são inconstitucionais, quando interpretadas no sentido de não se considerar ilidida a presunção estabelecida nos arts 135º e 171º do C. Estrada em face da mera declaração do titular do documento de identificação do veículo de que não era o condutor no momento da prática da infração ao Código da Estrada, mas sem indicar a pessoa concreta que conduzia por alegar não saber quem o fez, de entre uma pluralidade de pessoas que podem ter conduzido o veículo com a sua autorização.
Alega o arguido que não lhe compete fazer a investigação, mas sim à autoridade competente, pelo que a sua condenação pela contraordenação verificada com base em mera presunção, viola o princípio da culpa, pois no seu entender este princípio não permite que seja condenado em sanção penal alguém que não cometeu a infração e que até sabe indicar os presumíveis infratores.
2.3. Sem razão, porém.
Na verdade, conforme se diz no acórdão do Tribunal Constitucional nº 276/04, embora com referência ao art. 152º nº1 do Código da Estrada, na versão do Dec-lei 2/98 de 3 de janeiro, o que está em causa é uma mera presunção, sempre ilidível, de responsabilidade do efectivo proprietário ou possuidor [atualmente, do titular do documento de identificação do veículo], e este sentido é conforme à Constituição … não viola[ndo] o princípio da culpa, [pois] a existência de presunções, mesmo em direito penal, não é constitucionalmente inadmissível, desde que ilidíveis – no mesmo sentido o Ac STJ de 11.10.2005, relator João Bernardo, sumários do STJ (acedido em pgdlisboa.pt e Ac TRG de 3.10.2005 (relator Tomé Branco) e Ac RL de 28.09.2010, rel. Jorge Gonçalves, acessíveis em www.dgsi.pt.
Ora, por um lado, a presunção de responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo pela contraordenação estabelecida no art. 135º nº3 do C. Estrada é ilidível pela forma prevista no art. 171º do C. Estrada.
Por outro lado, o procedimento vinculado de identificação do condutor ou a demonstração do caráter abusivo da utilização do veículo com vista à elisão da presunção e subsequente arquivamento do processo contraordenacional instaurado contra o titular do documento (cfr nºs 3 e 4 do art. 171º do C. Estrada), impõe ao titular do documento de identificação do veículo ónus que não pode reputar-se excessivo em casos como o presente, nomeadamente em face do princípio da culpa e do princípio da proporcionalidade em sentido amplo a que se reporta o art. 18º da CRP. Quer por se tratar de informação de que o titular do documento de identificação (que se presume ser o titular do veículo) disporá, no âmbito dos deveres que lhe são impostos pelos riscos inerentes à circulação do veículo, em confronto com a dificuldade em identificar o condutor do veículo sem a colaboração do seu titular, quer por estar em causa mera contraordenação rodoviária e não a prática de crime, a colaboração exigida ao titular do documento de identificação do veículo é adequada e proporcional pelo menos em casos como o dos autos, em que o titular do documento continua a ser titular do correspondente direito sobre o veículo, exigindo-se-lhe apenas que saiba quem circula com ele na via pública no momento em que é praticada infração ao Código da Estrada.
Assim sendo, carece de fundamento a invocada inconstitucionalidade material dos arts 135º nº3 b) e 171º nº2, do C. Estrada, por pretensa violação do princípio da culpa ou outro, nomeadamente o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, pelo que improcede o presente recurso.

III. Dispositivo:

Em face do exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, JMGR, mantendo integralmente o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC. – Cfr arts.92º do RGCO, 513º do CPP, e art 8º nº5 do Regulamento das Custas Processuais (RCP) aprovado pelo citado Dec-lei 34/2008, conjugado com a tabela III a que se refere este último preceito.

Évora, 22 de setembro de 2015
(Processado e revisto pelo relator).

António João Latas

Carlos Jorge Berguete