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INQUÉRITO
NULIDADE
COMPETÊNCIA
MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário
Na fase de inquérito, a competência para declarar a nulidade do procedimento por falta/insuficiência de inquérito é do Ministério Público e não do Juiz de Instrução.
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO
Nos autos de Inquérito nº 300/13.0T3STC, da Comarca de Setúbal (Setúbal - Instância Central - Secção de Instrução Criminal - juiz 2), por despacho judicial, datado de 12 de maio de 2015, foi decidido não conhecer de nulidade suscitada na fase de inquérito, por tal conhecimento caber ao Ministério Público e não ao Juiz de Instrução.
Inconformado com essa decisão, dela recorreu o Ministério Público, terminando a motivação do recurso com as seguintes (transcritas) conclusões:
“1. O inquérito nº 300/13.0T3STC foi aberto por despacho de 9.9.13 e por despacho proferido em 26.9.13 foi arquivado, por insuficiência de indícios.
2. O despacho de arquivamento foi comunicado ao respectivo superior hierárquico no mesmo dia 26.9.13.
3. Tomando conhecimento do despacho de arquivamento, por via do acompanhamento que do inquérito o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas e Tratamentos Desumanos e Degradantes vinha fazendo, solicitou a Procuradoria-Geral da República análise hierárquica do processo.
4. Realizada essa análise em 7.5.15, concluiu-se que tinha ocorrido a preterição de diligências de inquérito de tal forma essenciais que a sua não realização importa na nulidade do procedimento, por falta de inquérito, de acordo com o disposto no art. 119º, al. d) do Código de Processo Penal, por referência ao art. 262º do mesmo Código.
5. Nulidade insanável, devendo ser declarada oficiosamente, a todo o tempo.
6. Foi o inquérito apresentado à Meritíssima Juiz de Instrução Criminal, para que declarasse a nulidade do procedimento, por falta de inquérito, com fundamento nas disposições conjugadas dos arts. 119º, al. d) e 122º do Código de Processo Penal.
7. A Meritíssima Juiz de Instrução Criminal, por despacho de 12.5.15, declinou a competência para apreciação da nulidade, por entender que pertence ao Ministério Público, despacho que é objecto deste recurso.
8. O despacho de arquivamento é uma decisão processualmente estável que o Ministério Público é obrigado a aceitar até que se verifiquem uma de duas circunstâncias que legalmente condicionam a sua estabilidade: intervenção hierárquica ou surgimento de factos novos - arts. 278º e 279º do Código de Processo Penal.
9. Não pode o Ministério Público declarar nulo o procedimento por inexistência de inquérito, após despacho de arquivamento, ultrapassados os prazos de intervenção hierárquica, sem que tenham surgido factos novos que invalidem o despacho de arquivamento, e proceder à sua (re)abertura.
10. Isto porque a reabertura material do inquérito põe em marcha um novo procedimento que, pela sua natureza de inquérito criminal, necessariamente colidirá com direitos, liberdades e garantias.
11. Esta colisão, entre as necessidades da investigação de um crime e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, é o fundamento da estabilidade do despacho de arquivamento e é suficiente para que se interponha uma declaração judicial.
12. Intervenção judicial que decidirá pelo início de novo procedimento, depois de julgada a inexistência do anterior, justificando o sacrifício de direitos em benefício da investigação.
13. A letra da lei aponta expressamente para a reserva de competência judicial nesta matéria.
14. Desde logo por usar o verbo declarar: a competência declarativa, visto todo o ordenamento jurídico, é exclusivamente judicial.
15. Por outro lado, a expressão escolhida no âmbito da fixação dos efeitos da declaração de nulidade: ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela – art. 122º, nº 3 do Código de Processo Penal.
16. Neste particular, os elementos sistemáticos forçam uma conclusão interpretativa no mesmo sentido: sempre que a lei pretende atribuir competências decisórias concorrentes ao Ministério Público, na fase de inquérito, escolhe a expressão autoridade judiciária.
17. Por outro lado, a regra processual de que a cada direito corresponde uma tutela jurisdicional conduz a fazer corresponder ao direito subjectivo de ver julgada/declarada a nulidade por inexistência de uma acção judicial.
18. Não compete ao Ministério Público julgar/decidir acções tutelares de direitos.
19. Pelo que a solução interpretativa que perfilhamos é ainda a única capaz de gerar uma norma – geral e abstracta – de atribuição da competência da declaração de nulidade por inexistência de inquérito, também para as situações em que a iniciativa do procedimento anulatório é de outro sujeito processual.
20. Pelo exposto, em nosso entendimento, o despacho sob recurso interpretou incorrectamente as normas constantes dos arts. 119º, nº 1, al. d) e 122º do Código de Processo Penal, ao declinar a competência para decidir sobre a nulidade de inexistência de inquérito, uma vez que tais normas atribuem essa competência ao juiz de instrução criminal.
Termos em que se requer que o despacho sob recurso seja substituído por outro em que se reconheça a competência do juiz de instrução criminal para declarar a nulidade do procedimento por inexistência de inquérito”.
*
Não foi apresentada resposta pelo arguido.
Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, pronunciando-se pela procedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1 - Delimitação do objeto do recurso.
Uma única questão é suscitada no presente recurso, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, que é a de saber se, na fase de inquérito, a competência para declarar a nulidade do procedimento por falta de inquérito é do Juiz de Instrução, ou se, pelo contrário, é do Ministério Público.
2 - A decisão recorrida.
O despacho revidendo é do seguinte teor:
“Na sequência da remessa pelo Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto Coordenador da Comarca de Setúbal para análise hierárquica do processo, veio a Exma. Coordenadora arguir e requerer a declaração de nulidade do procedimento por falta de inquérito, nulidade prevista nas disposições conjugadas dos art.ºs 119 d) e 122º do CPP, alegando para tal que não foram realizadas outras diligências que se tinham por pertinentes, designadamente, a inquirição dos três outros detidos, testemunhas dos factos ocorridos nem a junção de elementos clínicos do detido e realização de eventual perícia.
Mais alega que, a intervenção processual hierárquica do Ministério Público não contempla a declaração de nulidade do inquérito sendo que tal declaração é uma actividade jurisdicional.
Nos presentes autos declarou o Digno Magistrado do Ministério Público, em primeiro despacho de fls. 133 a 138, encerrado o inquérito por entender que o processo de averiguações que deu origem aos autos contém diligências probatórias suficientes que se afigurariam de inúteis e vem assim considerar inexistirem quaisquer outras diligências probatórias a realizar nos autos. Nessa sequência proferiu despacho de arquivamentos dos autos nos termos e para os efeitos do preceituado no art.º 277º nº 2 do CPP, por entender que não existem nos autos indícios suficientes para deduzir acusação. Apreciando e decidindo
Independente do mérito de tal arguição, que é todo, somos do entendimento que não é competência do juiz de instrução, nesta fase, apreciar a referida nulidade, como a seguir se verá.
Na verdade, a competência do Juiz de Instrução na fase de inquérito, e é nessa fase que os autos se encontram pois que não foi requerida a abertura da instrução nem os autos foram remetidos para julgamento (sendo que em qualquer uma dessas situações competiria ao Juiz apreciar e conhecer da nulidade) está delimitada por lei, nos arts. 17º, 268º e 269º, todos do Código de Processo Penal.
Tais actos encontram-se enumerados, de forma geral, nos citados artigos. Para além dos actos aí enumerados (de onde não consta a declaração de nulidade) há outros previstos no CPP, como sejam a título exemplificativo, a admissão da intervenção como assistente (art. 68º, nº 4), a concordância da suspensão provisória do processo (art. 281º, nº 1) ou a condenação em falta de pessoa regularmente notificada para comparecer em acto processual ou convocada para diligência.
Tem sido controvertida a questão de saber se, na fase do inquérito, a competência para declarar a nulidade dos actos inválidos é exclusiva do juiz de instrução criminal.
Ora, é nosso entendimento que nas funções atribuídas ao Juiz de Instrução pelo legislador, não se compreende a de apreciação, em sede de inquérito, da nulidade de actos levados a cabo pelo Ministério Público.
Assim, o juiz de instrução é competente para conhecer e declarar a nulidade, naturalmente, dos actos que são da sua competência e por si determinados nesse âmbito.
No âmbito do inquérito, o Ministério Público tem competência para decidir sobre os pressupostos processuais e, portanto, também competência para conhecer de nulidades e irregularidades processuais cometidas no âmbito do inquérito.
Aliás, tal entendimento advém logo da letra dos artigos 119º e 120º do CPP que não definem, à semelhança dos citados art.º 68º, 281º e 116º que devem ser declaradas pelo juiz as nulidades aí enumeradas.
Ademais da alínea c) do nº 3 do art. 120º do CPP também não decorre que o Ministério Público não possa, oficiosamente e em sede de inquérito, conhecer da insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios.
E, igualmente, tal não se pode retirar do art. 122º, nº 3 do CPP. Na verdade, tal preceito não proíbe que o Ministério Público em inquérito conheça das nulidades processuais, pois que de tal preceito apenas se retira que, quando a nulidade é conhecida e declarada pelo juiz (de instrução ou de julgamento), este deve aproveitar todos os actos que ainda possam ser salvos do efeito daquele vício – neste sentido vide acórdão do Tribunal da relação de Guimarães de 20/09/2010 consultado inwww.pgdlisboa.pt.
Na doutrina, esta é a opinião partilhada, entre outros autores, por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, 2ª edição, Universidade Católica Editora, 2009, pag.300 e 301, anotação 5. Ao art.º 118º do CPP, Maia Gonçalves e Costa Pimenta aí citados, onde se refere que há uma competência concorrente do Ministério Público e do Juiz de Instrução quanto à declaração de nulidades em fase de inquérito.
Igualmente, refere o mesmo autor, in ob cit. anotação 2. ao art.º 17º do CPP, o Juiz de Instrução apenas controla o resultado da actividade instrutória do Ministério Público quando para isso solicitado pelo arguido ou pelo assistente por via da abertura de instrução. Só quando estiverem em causa direitos fundamentais do arguido (por exemplo a liberdade) durante a fase do inquérito é lícita a intervenção do juiz de instrução, o que não é manifestamente o caso.
Não obstante não se desconhecer jurisprudência em sentido inverso, a verdade é que, se perfilha entendimento recente da jurisprudência que a este respeito se pronuncia no sentido de ser de competência do Ministério Público, enquanto titular do inquérito, em fase de inquérito, conhecer e decidir da existência/inexistência da nulidade respeitante a inquérito nos termos já expostos.
E, no caso de uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, a mesma pode ser conhecida a todo o tempo pelo próprio Ministério Público.
Neste sentido veja-se, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/5/2011, proc. 1566/08.2TACSC.L1-5,relator Jorge Gonçalves, que refere que: «a arguição de nulidades do inquérito deve ser suscitada perante o Ministério Público, entidade que preside a essa fase processual, com eventual reclamação para o superior hierárquico. Do despacho do Ministério Público (seja do inicial, seja do despacho do superior hierárquico) não cabe reclamação para o juiz, nem recurso para o tribunal superior. As nulidades do inquérito só podem ser conhecida pelo juiz de instrução se requerida a abertura da fase processual da instrução ou, na ausência de instrução, pelo juiz da causa no momento de recebimento dos autos (artigo 311.º,n.º1 do C.P.P.), pois, nessa fase, compete-lhe fazer o saneamento do processo e como tal conhecer das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito (e de que possa, então, conhecer, entenda-se)» – sublinhado nosso.
E, no mesmo sentido, Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 26/02/2014, consultado in www.dgsi.pt, que a este respeito adianta que: «É sabido que o inquérito, fase preliminar do processo, é da competência do Ministério Público (arts. 53º nº 2 al. b), 263º nº 1 e 267º, do C. Processo Penal) e compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e respectiva responsabilidade, bem como descobrir e recolher provas, tudo em ordem à decisão sobre a acusação (artº. 262º nº 1 do mesmo código).No entanto, certos atos do inquérito só podem ser praticados ou autorizados pelo juiz de instrução criminal. Compete ao juiz de instrução criminal, além do mais, praticar todos os atos que consubstanciem o exercício de funções jurisdicionais relativas ao inquérito (art. 17º, do C. Processo Penal). O Cons. Maia Gonçalves entende que a declaração de nulidade que afete ato processual durante o inquérito deve ser feita pelo Ministério Público, salvo se o ato afetado for da competência do juiz de instrução, devendo, em consequência, o nº 3 do art. 122º do C. Processo Penal ser interpretado extensivamente. Para o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, na fase do inquérito, o Ministério Público e o juiz de instrução criminal têm ambos competência para declarar a nulidade ou irregularidade de um ato processual, competência que é restrita à ilegalidade dos atos da respetiva competência. (…) Ac. Desta Relação de 15/02/2012, proferido no Proc. nº 36/09.6TAVNH.P1 e disponível em www.dgsi.pt (…)» – sublinhado nosso. «(…) Com efeito, tratando-se de ato respeitante ao inquérito, cuja direção cabe exclusivamente ao Mº Público (artº 219º da CRP), terá de ser este magistrado que decide se, nesta fase, um ato processual é ou não é inexistente, nulo ou irregular, e desse despacho caberá então reclamação para o respetivo superior hierárquico.A competência concorrente do Ministério Público e do juiz de instrução na fase de inquérito tem limites e eles resultam da estrutura acusatória do processo penal. “Esta estrutura implica uma separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito. Assim, durante o inquérito, o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade de atos da sua competência (…). A competência do juiz de instrução não deve constituir oportunidade para ele se alçar em senhor do inquérito, o que aconteceria se o juiz se colocasse numa posição de sindicante permanente da atividade do Ministério Público (…). Portanto, o juiz de instrução não pode declarar, durante o inquérito, a invalidade de atos processuais presididos pelo Ministério Público».
Em face do supra exposto, entendemos não ser de conhecer a nulidade suscitada por caber tal apreciação no caso em concreto dos autos, nesta fase, ao Ministério Público e não ao Juiz de Instrução, o que se decide.
Notifique”.
3 - Apreciação do mérito do recurso.
Entende a Mmª Juíza a quo que, na fase em que os autos se encontram (fase de inquérito), a competência para declarar a nulidade do procedimento por falta de inquérito é do Ministério Público.
Pelo contrário, a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente entende que tal competência é do Juiz de Instrução.
Cumpre apreciar e decidir.
Sob a epígrafe “nulidades insanáveis”, dispõe o artigo 119º do C. P. Penal: “constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: a) (…); b) (…); c) (…); d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade; e) (…); f) (…)”. In casu, é incontroverso que está verificada a nulidade insanável da insuficiência de inquérito (artigo 119º, al. d), do C. P. Penal, agora transcrito), e, por via dela, ocorre a invalidade do despacho de arquivamento do inquérito.
Sobre a verificação dessa nulidade insanável não restam quaisquer dúvidas, não existindo sequer dissídio, nessa matéria, entre a Mmª Juíza a quo e a Exmª Magistrada do Ministério Público recorrente.
O que é controvertido, e nos cumpre apreciar, é saber quem tem competência para declarar essa nulidade, com sanação do vício cometido.
Desde logo, o despacho de arquivamento do inquérito, proferido pelo Ministério Público, não constitui um despacho que transite em julgado (pois não é uma decisão judicial), e, por isso, a aludida nulidade insanável (insuficiência de inquérito) pode, a todo o tempo, ser suprida, invalidando-se o ato em que foi praticada.
Só com o trânsito em julgado de uma decisão (e a isso não corresponde um despacho de arquivamento de um inquérito) é que nunca mais podem ser invocadas, ou oficiosamente conhecidas, quaisquer nulidades, mesmo aquelas que a lei qualifica de insanáveis.
Em segundo lugar, tendo o Ministério Público proferido despacho de arquivamento sem proceder às diligências mínimas exigíveis, verificando-se, com isso, a nulidade insanável de falta/insuficiência de inquérito, e não tendo havido intervenção nos autos de qualquer outro sujeito processual, afigura-se-nos evidente que tem de ser o Ministério Público, sem mais, a corrigir o vício cometido.
Ou seja, sendo inválida a decisão (de arquivamento) anteriormente tomada, e não estando nos autos outros sujeitos processuais nem nunca tendo sido chamado ao processo o Juiz de Instrução, é ao Ministério Público que compete corrigir a decisão por si erradamente proferida.
A entender-se o contrário, e com o devido respeito, estaríamos até perante um absurdo lógico, pois seria o Ministério Púbico, em fase de inquérito, por si dirigida, a pedir a terceiro (ao juiz de Instrução) que viesse dar sem efeito uma decisão da sua própria autoria, decisão que, aliás, tomou sem ouvir quaisquer outros sujeitos processuais.
A esta luz, compete ao Ministério Público corrigir e declarar nula a decisão por si próprio tomada, dando sem efeito o despacho de encerramento do inquérito, com sanação do vício cometido e com reabertura do inquérito.
Por sua vez, e sobre os efeitos da declaração de nulidade, estabelece o artigo 122º do C. P. Penal:
“1 - As nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar. 2 - A declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade. 3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os atos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela”.
Ao contrário do que vem alegado na motivação do recurso, deste preceito legal não pode retirar-se a conclusão de que só ao Juiz compete declarar nulidades de atos processuais.
A reserva de competência judicial, nessa matéria, existe sim, necessariamente, quando o processo está em fase de instrução ou de julgamento (em fase judicial), e não ocorre, do mesmo modo, quando o processo se encontra ainda na fase de inquérito (fase não judicial - cuja titularidade é do Ministério Público).
Na situação ora em apreço está em causa a ausência de atos de inquérito, detetada e declarada pelo próprio titular do inquérito (o Ministério Público), por sua própria iniciativa (e não a requerimento de qualquer sujeito processual), pelo que a declaração anulatória do despacho de arquivamento do inquérito só pode provir do Ministério Público.
Na verdade, todo o processado dependeu funcionalmente, de modo único e exclusivo, da atividade do Ministério Público, e, além disso, o despacho a reverter (a anular) o arquivamento do inquérito não escapa também, nesta fase processual, às competências funcionais do Ministério Público.
O inquérito, de acordo com o disposto no artigo 262º, nº 1, do C. P. Penal, compreende “o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação”.
E, de harmonia com o preceituado no artigo 267º do mesmo diploma legal (sob a epígrafe “atos do Ministério Público”), “o Ministério Público pratica os atos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no nº 1 do artigo 262º, nos termos e com as restrições constantes dos artigos seguintes”.
Nesses artigos seguintes (artigos 268º e 269º) fixam-se quais são os atos a praticar, a ordenar ou a autorizar, na fase de inquérito, pelo juiz de instrução, nos seguintes termos:
“Artigo 268º - Atos a praticar pelo juiz de instrução 1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução: a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido; b) Proceder à aplicação de uma medida de coação ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público; c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos do nº 3 do artigo 177º, do nº 1 do artigo 180º e do artigo 181º; d) Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do nº 3 do artigo 179º; e) Declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277º, 280º e 282º; f) Praticar quaisquer outros atos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução”.
“Artigo 269º - Atos a ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução 1 - Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar: a) A efetivação de perícias, nos termos do nº 3 do artigo 154º; b) A efetivação de exames, nos termos do nº 2 do artigo 172º; c) Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do artigo 177º; d) Apreensões de correspondência, nos termos do nº 1 do artigo 179º; e) Interceção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187º e 189º; f) A prática de quaisquer outros atos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução”.
Daqui resulta, a nosso ver, que a verificação e a declaração da nulidade decorrente da insuficiência de inquérito, detetada e suscitada pelo próprio titular do inquérito (o Ministério Público) ainda na fase de inquérito (não foi requerida instrução), não são da competência do Juiz de Instrução.
É que, a direção do inquérito cabe ao Ministério Público, pelo que só haverá lugar à intervenção do Juiz de Instrução nos casos excecionais previstos na lei, casos que, no essencial, se prendem com a defesa dos direitos, liberdade e garantias dos cidadãos.
Nesta vertente, não se vislumbra (ao contrário do alegado na motivação do recurso) como é que reabrir um inquérito (indevidamente arquivado) pode colidir com quaisquer direitos ou garantias que importe acautelar.
Assim sendo, o Ministério Público, ao verificar existir nulidade no seu despacho de encerramento do inquérito, tem inteira competência para, ainda nessa fase de inquérito, determinar a sanação dessa nulidade, sobretudo quando, como sucede in casu, nem o Juiz de Instrução foi já chamado a aí tomar decisões, nem qualquer sujeito processual foi interveniente, enquanto tal, no inquérito em questão.
Como bem escreve Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, 2ª ed., 2008, pág. 300, nota nº 5 ao artigo 118º), “também a magistratura do Ministério Público está vinculada ao princípio da legalidade e, numa fase processual dirigida pelo Ministério Público, essa vinculação há-de traduzir-se precisamente no poder de controlar as invalidades nela cometidas. Outra solução, que vedasse ao Ministério Público esta competência numa fase processual por si dirigida, violaria a competência constitucional de fiscal da legalidade do Ministério Público”.
Em terceiro lugar, e com o devido respeito, carece de fundamento válido a alegação (constante das conclusões 8ª a 12ª extraídas da motivação do recurso) de que “o despacho de arquivamento é uma decisão processualmente estável que o Ministério Público é obrigado a aceitar até que se verifiquem uma de duas circunstâncias que legalmente condicionam a sua estabilidade: intervenção hierárquica ou surgimento de factos novos - arts. 278º e 279º do Código de Processo Penal”.
É que, o Ministério Público, ao declarar nulo o procedimento por falta/insuficiência de inquérito, obviamente dá sem efeito o despacho de arquivamento (que é inválido), e, assim, sendo inválido tal despacho de arquivamento, fica inelutavelmente ultrapassada a questão dos limites para a reabertura do inquérito.
Aliás, não vemos como é que a reabertura do inquérito, na situação em apreço, possa colidir com direitos, liberdades e garantias, quando é certo que nenhum sujeito processual, por sua iniciativa, teve qualquer intervenção nos autos.
Do mesmo modo, não vislumbramos como é que a reabertura do inquérito, numa tal situação, possa exigir, perante os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, uma intervenção judicial.
Por último, não podemos esquecer, para decidir a questão colocada no presente recurso, a arquitetura básica do nosso sistema processual penal.
Resumidamente, e sem grande rigor concetual, a nossa lei processual penal, em matéria de investigação, consagra duas fases distintas: a fase de inquérito, dirigida pelo Ministério Público, e a fase de instrução, dirigida por um Juiz.
Além disso, o nosso legislador optou, claramente, por converter o inquérito (realizado sob a titularidade e a direção do Ministério Público) na fase geral e normal para preparação da decisão de submeter ou não alguém a julgamento.
O Juiz de Instrução, no domínio do inquérito, é, sobretudo, um juiz de garantias e de liberdades, não tendo qualquer intervenção de tipo hierárquico ou de supervisão jurisdicional dos atos do Ministério Público, para além, obviamente, das competências expressamente consagradas nos artigos 268º e 269º do C. P. Penal (acima enunciadas).
Em consequência, e fora dos casos taxativamente previstos na lei, dos despachos do Ministério Público apenas poderá haver reclamação ou recurso hierárquicos, de harmonia com os princípios constitucionalmente consagrados para os atos de natureza administrativa e de acordo com as regras internas estabelecidas no estatuto do próprio Ministério Público.
Ora, perante esta arquitetura processual penal, dificilmente seria compreensível e aceitável que a nulidade em causa nestes autos pudesse (e, muito menos, devesse) ser conhecida pelo Juiz de Instrução sem ser na fase processual da instrução (ou em fase processual posterior à instrução).
A apreciação da referida nulidade (falta/insuficiência de inquérito), na fase em que o processo se encontra, e dada a não existência de hierarquia ou de superintendência dos atos do Ministério Público por parte do Juiz de Instrução (ressalvando os casos expressa e taxativamente previstos na lei), tem de caber, necessariamente, ao titular da fase processual em questão (o Ministério Público).
Conforme muito bem se assinala no Ac. do T.R.L. de 24-05-2011 (relator Jorge Gonçalves, inwww.dgsi.pt), “se é verdade que o juiz, em instrução, pode conhecer de vícios ocorridos a montante desta fase (nomeadamente decretando a nulidade por falta ou insuficiência de inquérito), não é menos certo que, em sede de inquérito, o juiz de instrução tem a sua competência reservada aos atos tipificados na lei, designadamente os constantes dos artigos 268º e seguintes do C.P.P., sendo gizada a sua intervenção, sempre provocada (por motivo da inoficiosidade da intervenção jurisdicional no inquérito), segundo o modelo garantista. Quer isto dizer que o inquérito, enquanto aberto, é da exclusiva titularidade do Ministério Público e só permite a intervenção pontual do juiz nos casos expressamente tipificados na lei. Por seu turno, encerrado o inquérito e aberta a instrução, abre-se uma fase autónoma do processado cuja direção cabe doravante ao juiz de instrução, que, com total autonomia, ordena as diligências que tenha por necessárias ao fim dessa fase eventual: proferir decisão instrutória. O juiz de instrução, no domínio do inquérito, é, sobretudo, um juiz de garantias e de liberdades, não tendo qualquer intervenção de tipo hierárquico ou de supervisão jurisdicional dos atos do Ministério Público, para além dos consagrados nos artigos 268º e 269º do C.P. P.. (…) A arguição de nulidades do inquérito deve ser suscitada perante o Ministério Público, entidade que preside a essa fase processual, com eventual reclamação para o superior hierárquico. Do despacho do Ministério Público (seja do inicial, seja do despacho do superior hierárquico) não cabe reclamação para o juiz, nem recurso para o tribunal superior. As nulidades do inquérito só podem ser conhecida pelo juiz de instrução se requerida a abertura da fase processual da instrução ou, na ausência de instrução, pelo juiz da causa no momento de recebimento dos autos (artigo 311º,nº 1, do C.P.P.), pois, nessa fase, compete-lhe fazer o saneamento do processo e como tal conhecer das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito (e de que possa, então, conhecer, entenda-se)”.
Em conclusão: na fase em que os autos se encontram (fase de inquérito), a competência para declarar a nulidade do procedimento por falta/insuficiência de inquérito é do Ministério Público e não do Juiz de Instrução.
Por conseguinte, é de improceder o recurso interposto pelo Ministério Público, sendo de manter o decidido no despacho revidendo.
III - DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.