ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO RÚSTICO
COMUNICAÇÃO
RENÚNCIA À PREFERÊNCIA
Sumário

I - Para provar que o destino do prédio rústico, com construções não autónomas, era um fim que não fosse a cultura, não basta provar que se pretendia habitar a construção existente no prédio, após obras ou que se ia fazer uma nova construção, mas também é preciso demonstrar a intenção de alterar o destino do prédio considerado na sua globalidade e não só em relação às construções não autónomas do prédio em questão a que se pretendeu dar destino de habitação.
II - A intenção de habitar a construção existente num prédio rústico não tem a virtualidade de alterar a destinação do prédio no seu conjunto, que, prevalecendo económica e funcionalmente como seu fim dominante a exploração agrícola, é, para efeitos civis, um prédio rústico.
III - A comunicação para preferir tem que ser feita pelo respectivo dono, tem que haver uma proposta concreta de contratar com indicação de todas as condições, sendo insuficiente um aviso vago ou genérico e essa comunicação deve ser feita a todos os titulares do direito de preferência e não apenas a um deles, como sucede no caso de esse direito se integrar no património conjugal comum
IV - Só perante uma concreta situação de preferência, já formada e perante todos os elementos essenciais da comunicação é possível falar na eventualidade de existir uma renúncia antecipada.
V - A renúncia pressupõe, em regra, que houve uma comunicação dos elementos essenciais do negócio pelo obrigado à preferência.
VI - A existência de abuso de direito só pode ser ponderada em função das circunstâncias do caso concreto e no caso do direito de preferência a sua existência implica necessariamente o conhecimento de todos os elementos essenciais através da comunicação válida para preferir.

Texto Integral



Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 - Relatório.

Em 29.05.2012, AA, BB e CC intentaram acção de preferência sob a forma sumária contra DD e EE, alegando que se trata de uma venda de prédio rústico de área inferior à da unidade de cultura, confinante com prédio seu, também de área inferior à unidade de cultura, sem que lhe tenham facultado o exercício de direito de preferência.
Os réus contestaram, alegando ter a segunda ré transmitido ao 1.º autor o preço e condições do negócio, dos quais os autores tiveram pleno conhecimento, encontrando-se caduco o respetivo direito, acrescentando ainda as rés que a 2ª ré destina o terreno a uma utilização urbana, visando no mesmo construir e ainda que os autores já não exercem agricultura nos imóveis que lhes pertencem. Mais alegaram estarem os autores em abuso de direito e concluíram pela improcedência da acção.
Os autores responderam, mantendo o alegado na petição inicial.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
Foi proferida sentença que julgou a exceção de caducidade improcedente e a acção procedente, reconhecendo aos autores o direito de preferência na compra do prédio identificado no art.º 3.º da petição inicial, ficando os mesmos a substituir a 2.ª ré na alienação realizada em 13/12/2011, com a transferência para os autores em comum e partes iguais dos direitos por ela ali adquiridos, contra o pagamento à 2ª ré do preço de € 5.000,00 e nas despesas decorrentes da transmissão, no montante de € 452,50, comunicando-se ao Registo Predial esta substituição, para ser averbada no registo e cancelados eventuais registos baseados na alienação à 2ª ré.
Inconformados com a sentença, os réus recorreram, formulando as seguintes conclusões:
“1. No que se refere à resposta dada, à matéria de facto nomeadamente quanto à matéria dos factos de 36 a 42 da contestação, a que corresponde o art 23 dos factos provados, os RR discordam da resposta dada, e só por erro de apreciação quer dos documentos quer dos depoimentos a resposta pode ser restritiva tal como dada.
2. O que se tem que dar como provado, é que “ a R. quando adquiriu o terreno, pretendia destiná-lo á construção e nele construir um habitação.”(o que deve ser considerado tendo em conta as declarações da R. e os depoimentos das testemunhas e EE.
O seu depoimento encontra-se gravado em cd, registado com o nº 331 do livro de registos de Cd´s deste juízo 00:16:16 a 00:30:12
FF, arquiteto.
O seu depoimento encontra-se gravado em cd, registado com o nº 331 do livro de registos de Cd´s deste juízo 00:59:25 a 01:05:13.
GG.
A testemunha foi confrontada com o documento de fls. 37.
O seu depoimento encontra-se gravado em cd, registado com o nº 331 do livro de registos de Cd´s deste juízo 01:06:01 a 01:18:32.
HH, topografo.
3. E ainda os documentos, dos documentos, de fls 136 aonde a R. pede a confirmação da inconveniência da ampliação da construção existente, fls 138 declaração de não inconveniência, fls 139 , fls 140, 141,142, 243, fls 248 a 277.
4. Os AA. tiveram conhecimento dos elementos essenciais da alienação em Maio de 2011.
5. A. Renunciou expressa e tacitamente a um eventual direito de preferência, pelo que nos termos do disposto no artº 1410 do C. Civil, o direito de acção deveria ter sido julgado caduco, dado que a caducidade foi invocada e acção deu entrada depois de terem decorrido mais de seis meses sobre o conhecimento sobre os elementos essenciais da alienação.
6. Ainda que assim não se entendesse e face ao provado em 23, aos depoimentos das testemunhas que reconduzem a considerar provado que a R. EE quando adquiriu o terreno, pretendia destiná-lo á construção e nele construir uma habitação., verifica-se a excepção a que se refere o artº 1381 alínea a) uma vez que se demonstrou que a R. pretendia destinar o terreno a um fim que não era a cultura.
7. Por outro lado, apesar de o terreno se encontrar em reserva agrícola existia a possibilidade legal de proceder á ampliação do já existente e mesmo destina-lo á habitação, o que resulta dos documentos juntos a fls 138 declaração de não inconveniência, fls 139 , fls 140, 141,142, 243, fls 248 a 277, e bem assim do artº 27 , do RPDM que permite a ampliação de construções existentes independentemente do seu uso anterior. Neste sentido, os Acórdãos do Tribunal da relação de Évora, disponíveis em DGSI.pt
8. Sempre seria de recuar o direito de preferência porque exercido com manifesto abuso de direito.
9. A acção deve improceder.
10. Fez-se incorrecta aplicação dos artº 416, 418,, 1410, 1381 alínea a) e 334 do C. Civil.
Termos em que deve o presente recurso sem julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida (…)”.
Não houve contra-alegações.
Factos dados como provados na 1ª instância:
“1. Os A.A. são donos do prédio rústico, composto de cultura arvense de regadio, pomar de citrinos e leito curso de água, sem descrição própria na competente Conservatória do Registo Predial, mas inscrito na respetiva matriz predial sob o Art. Nº 38, da Secção B, da referida freguesia.
2. Os A.A. são igualmente comproprietários possuidores do prédio rústico, , composto de pomar de citrinos, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 969/090389, e inscrito na respetiva matriz predial sob o Art. Nº 37, da Secção B da referida freguesia.
3. Por escritura pública de compra e venda, outorgada em 13/12/2011, na Conservatória do Registo Predial, foi vendido pela 1.ª Ré à 2.ª, pelo preço de € 5.000,00, o prédio rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º 187/19860410, e inscrito sob o Art. Nº 36, secção B, composto de terras de semear com laranjeiras ou pomar de citrinos.
4. Com despesas associadas à supra referida transmissão, despendeu a 2.ª Ré a quantia global de € 452,50, nomeadamente a título de emolumentos de Casa Pronta (Inclui escritura e registo - € 162,50), IMT (€ 250,00) e IS (€ 40,00).
5. O prédio transmitido entre as Rés, confina com ambos os prédios dos A.A., nomeadamente, a Norte e Sul com o prédio identificado em 1., e a Poente, com o prédio identificado em 2..
6. À data da supra referida transmissão, o A. AA e a sua esposa, II, entretanto falecida, eram os únicos proprietários dos prédios identificados em 1. e 2..
7. Em consequência do falecimento da referida II, sucederam-lhe, além do seu marido, AA, os dois Filhos de ambos, BB e CC, todos aqui A.A., a quem os referidos prédios foram transmitidos.
8. A referida vendedora, aqui 1.ª Ré, ao transmitir o supra mencionado prédio, não deu prévio conhecimento aos A.A., nem à falecida II, do projeto da venda, designadamente, de elementos da alienação, como sejam a identidade do comprador, preço, prazo e condições de pagamento, data da escritura de compra e venda e Cartório Notarial ou Conservatória, nem evidenciou a venda por qualquer meio.
9. O A. AA ao longo do tempo atravessou o terreno adquirido pela 2ª R. para chegar à zona sul do seu terreno.
10. O A. AA cultiva parte dos prédios referidos em 1 e 2.
11. No fim de Maio início de Junho de 2011, os RR. e nomeadamente a R. EE, começaram a ir ao terreno em causa nos presentes autos.
12. Nessa data e a partir dela, a R. falou por diversas vezes com o A. AA, a quem comunicou que ia comprar o terreno, tendo-lhe dito o preço e condições do pagamento.
13. O Sr. JJ da Imob tentou negociar com o A. AA a compra do terreno por este.
14. A R. EE chegou mesmo a dizer ao A. que o preço era de 5000,00 €.
15. Foi sempre dito pelo A. que nem ele nem os seus filhos queriam terras.
16. Desde Maio de 2011, que a R. EE, começou a limpar o terreno, que se encontrava inculto e com mato.
17. O A. presenciou e viu a limpeza do terreno e das árvores, por parte da R. compradora, logo em junho de 2011, tendo-se prontificado a prestar toda a colaboração, ao ponto de ter emprestado uma escada.
18. A R. procedeu à limpeza do terreno e começou a plantar algumas plantas, como couves, tomate, pimentos, alfaces.
19. A R. EE e o seu companheiro iam ao terreno.
20. Em Dezembro de 2011 a R. EE disse à filha do A. AA que já tinha feito a escritura.
21. Os AA. BB e CC vivem noutro concelho.
22. Quanto aos prédios dos AA. têm comunicação pela via pública, podendo os AA. aceder a qualquer um deles sem necessidade de passar pelo dos RR..
23. A 2ª R. visou, ao adquirir o terreno em causa nos autos transformar uma construção de apoio agrícola existente nesse terreno, com 12 m², num espaço habitável, ali construindo uma cozinha e uma casa de banho para utilização ocasional, tendo contratado um arquiteto para elaborar o respetivo projeto.
24. Os prédios dos AA. apresentam para o art. 38º ARV a área de (ha) 2,627000 e para o 37º ARV área de (ha) 0,066000.
25. O terreno da R. tem a área de 1,670 m².
26. A 2ª R. zangou-se com o A. AA por causa de rendeiros dos AA. que deixaram que cães seus invadissem o terreno desta R..
27. Os AA. comercializam as laranjas que produzem nos prédios referidos em 1. e 2..
30. A zona onde se situa o terreno da 2ª R. encontra-se em RAN.
31. A fls. 11 consta a caderneta predial referente ao prédio referido em 1., cujo teor se dá por reproduzido.
32. A fls. 14 consta a caderneta predial referente ao prédio referido em 2., cujo teor se dá por reproduzido.


2 – Objecto do recurso.

Questões a decidir, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações, nos termos do artigo 684º, nº 3 do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do mesmo diploma (significa isso que, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso):
I - Impugnação da matéria de facto / facto n.º 23;
II - Impugnação do direito:
A - Análise da excepção do art.º 1381.º, alínea a): saber se o destino do prédio era para fim diferente da cultura;
B - Saber se houve caducidade do direito de preferência;
C - Saber se há abuso de direito.


3 - Análise do recurso.

I - Impugnação da matéria de facto / facto n.º 23.
Os recorrentes pretendem a reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de ser alterado o facto provado n.º 23, cujo teor, como vimos, é o seguinte:
“23. A 2ª R. visou, ao adquirir o terreno em causa nos autos transformar uma construção de apoio agrícola existente nesse terreno, com 12 m², num espaço habitável, ali construindo uma cozinha e uma casa de banho para utilização ocasional, tendo contratado um arquiteto para elaborar o respetivo projeto.”
Pretendem os recorrentes que seja dado como provado o seguinte:
A R. quando adquiriu o terreno, pretendia destiná-lo à construção e nele construir um habitação.
E dizem que é isso que resulta das declarações da ré e dos depoimentos das testemunhas FF, GG, HH e dos documentos de fls. 136, onde a ré pede a confirmação da inconveniência da ampliação da construção existente, fls. 138 declaração de não inconveniência, fls. 139, 140, 141, 142, 243 e 248 a 277.
É a seguinte a fundamentação da convicção de facto da sentença neste aspecto:
“… no que concerne à sua intenção (nomeadamente de usar o terreno para construção), uma vez que estamos perante um elemento de natureza fundamentalmente subjetiva, não nos podemos bastar com o mesmo, devendo essas declarações ser complementadas por outros elementos de prova, com carácter essencialmente objetivo, que permitam chegar a um juízo seguro sobre a declarada intenção da R. e a efetiva viabilidade da mesma (já que essa mera intenção, só por si não basta, sendo necessário que legalmente se possa concretizá-la), como seria, por exemplo, a aprovação do projeto de construção. Aqui, algumas dúvidas se nos suscitaram, ficando patentes na resposta proferida aos arts. 36º a 42º da contestação, não se logrando esclarecê-las, mesmo com recurso à inspeção ao local (que, em nosso entender, não foi grandemente esclarecedora), permanecendo no final a dúvida sobre o projetado destino do terreno objeto da causa.
Foram ainda tidos em conta os documentos de fls. 11 a 40, 87, 111 a 128, 136 a 142, 147, 148, 243 a 277, 286 e 292 a 294.”
Cumpre decidir:
Os factos alegados pelos réus são os seguintes:
“A R. pretendia e pretende destinar o terreno à construção (art. 36º da contestação); … pretende nele construir uma habitação (art. 37º da contestação) … pretende legalizar e ampliar uma pequena construção que está implantada há mais de 50 anos (art. 39º da contestação).”
Ouvida a prova e analisados os documentos, verifica-se que a matéria dada como provado é, em rigor, o que resulta da prova.
Com efeito, dos depoimentos em causa não se extrai mais do que se consignou, pois apontam claramente (ao contrário do que dizem os recorrentes) para a intenção de melhoramento e ampliação da habitação já existente.
É isso que resulta da conjugação com os documentos juntos pela ré: fls. 136, 140, 151, 252, 259, 260, 261, 262, 264, 266, 267, 271, 272 onde se refere: “reconstrução e ampliação da edificação existente”;
Por outro lado, responde a ré à questão ”o objectivo era construir uma casa?”: “… Já tinha casa … legalizar, reconstruir e ampliar…”, diz que cultiva a terra.
A testemunha GG, companheiro da ré, refere que cultivaram a terra com diversos produtos hortícolas e diz “compramos aquilo para construir lá … fazer uma construção maior” (a expressão fazer lá uma moradia é do Exm.º Advogado).
Por sua vez, a testemunha HH, topógrafo, refere que lhe pediram para delimitar a propriedade … para reconstrução de um prédio pequeno que havia lá … ampliação”.
Finalmente, também o arquitecto diz que pretendiam a “reabilitação da edificação existente”.
Não há, assim, indícios de apontem para a intenção de construção de uma moradia NOVA.
Não há pois razão para alterar a matéria de facto, improcedendo nesta parte o recurso.

II - Impugnação do direito:
A - Análise da excepção do art.º 1381.º, alínea a): saber se o destino do prédio era para fim diferente da cultura.
Embora as alegações não sejam muito claras quanto às razões com que pretendem “atacar” a sentença recorrida, parece-nos que os recorrentes entendem que a alteração do facto provado 23 fará a diferença para o resultado da acção na medida em que tal facto conduziria à conclusão de que a ré pretendia destinar o terreno a um fim que não era a cultura, aplicando-se assim a excepção do art.º 1381.º alínea a) do CC, não existindo direito de preferência.
Vejamos:
Os autores pretendem que lhes seja reconhecido um direito real de preferência, na qualidade de proprietários, consagrado no artigo 1380.º do Código Civil, pelo que têm que alegar e provar os factos constitutivos do seu direito.
A ré pretende obviar que aos autores seja reconhecido o invocado direito de preferência, pelo que, têm de alegar e provar alguma das excepções indicadas no artigo 1381.º do Código Civil, como factos impeditivos.
Ora, a ré invoca uma das excepções contempladas no artigo 1381.º do Código Civil, nomeadamente a de que não gozam de direito de preferência os proprietários confinantes quando a venda de terreno de cultura seja feita a proprietário não confinante, destinada a algum fim que não seja a cultura - caso contemplado na alínea a), 2.ª parte.
Sabemos que o facto de o ónus de alegação e prova incumbir a uma das partes significa que será julgado o pleito contra si, se os não alegados forem indispensáveis à sua pretensão.

Artigo 1381º
(Casos em que não existe o direito de preferência)
Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes:
a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura;»
Ora, a ré não logrou provar que destinava o prédio a um fim que não fosse a cultura.
É que não basta provar que pretendiam habitar a construção existente no prédio, após obras ou que iam fazer uma nova construção (razão pela qual mesmo a alteração de facto pretendida – que não foi atendida - não determinava necessariamente outra posição jurídica), é preciso demonstrar o propósito sério de destinar o prédio adquirido a fim diferente da cultura, o que no caso de um prédio rústico (de acordo com o registo predial) implica provar a intenção de alterar o destino do prédio considerado na sua globalidade e não só em relação às construções não autónomas do prédio em questão a que se pretendeu dar destino de habitação – neste sentido Acórdão do STJ de 29.04.2004, proferido no processo nº 04B980 (e disponível em www.dgsi.pt), onde se pode ler a propósito de um caso semelhante:
“Encontra-se demonstrada em relação apenas ao edifício (…) Não está provado que tenha passado a ser essa a finalidade principal desse prédio - rústico, para efeitos civis -, e, nomeadamente, que os ora recorridos tenham pretendido dar outra afectação ao solo ou terreno de cultivo, parte dominante do mesmo no que respeita ao seu destino económico.
Não está, enfim, provado que os ora recorridos tenham tido a intenção de alterar o destino do prédio considerado na sua globalidade, nem que o destino tido em vista para a casa deva considerar-se objectivamente prevalecente sobre o antes predominante.
Com efeito, estamos perante um prédio rústico em que a parte agrícola tem predomínio funcional sobre a parte urbana, sendo a utilização desta dependente da afectação à actividade agrícola desenvolvida na parte rústica.
A intenção de habitar a construção existente num prédio rústico não tem a virtualidade de alterar a destinação do prédio no seu conjunto, que, prevalecendo económica e funcionalmente como seu fim dominante a exploração agrícola, é, para efeitos civis, um prédio rústico.
A essência do prédio não sofreu qualquer alteração, pelo que terá de continuar a qualificar-se como rústico".
No mesmo sentido, podem ver-se os Acórdãos do STJ de 26.06.1990 in BMJ n.º 398.º, página 521 e de 31.01.1991 in AJ 15º / 16º, página 24.
Aliás, nem a ré demonstrou que a afectação do prédio apenas a construção é permitida por lei (vide, a propósito, o Acórdão do STJ de 14.03.2002 in CJ/STJ 2002, 1.º tomo, página 133 e de 04.10.2007, proferido no processo 07B2739, disponível em www.dgsi.pt).
Em suma:
Não foram demonstrados os requisitos necessários à procedência da excepção.
*
B - Saber se houve caducidade do direito de preferência.
Os recorrentes defendem que deveria ter sido julgada procedente a excepção de caducidade, dado que os autores tiveram conhecimento dos elementos essenciais do negócio há mais de seis meses antes a interposição da acção, sendo que o autor Carrasquinho, logo em Maio de 2011, pela ré teve esse conhecimento, quer quanto ao preço quer quanto forma de pagamento (sendo irrelevante ter ou não ter sido realizada a escritura, uma vez que esta foi a concretização do negócio que havia sido transmitido em Maio) e o autor renunciou expressa e tacitamente a um eventual direito de preferência, pelo que, nos termos do disposto no art.º 1410.º do C. Civil, o direito de acção deveria ter sido julgado caduco, dado que a caducidade foi invocada e acção deu entrada depois de terem decorrido mais de seis meses sobre o conhecimento sobre os elementos essenciais da alienação.
A sentença afastou a caducidade, por entender que o conhecimento implica a comunicação completa, que habilite o preferente a, na posse de todos os elementos necessários (identidade do comprador, preço, modo de pagamento, momento da celebração do contrato), proferir uma resposta afirmativa ou negativa em relação à sua intervenção no negócio de compra e venda, não bastando um conhecimento ocasional, casual ou fragmentado do conteúdo do negócio, nem um conhecimento por intermédio de 3.º (salvo se esse terceiro agir como mandatário ou gestor de negócio do obrigado à preferência) e que, dos autos resultou que, embora os autores tenham acabado por ter conhecimento da celebração do negócio, da identidade do comprador e do preço pago, não ficou demonstrado em relação a todos eles quando ocorreu esse conhecimento, sendo exato que a 1ª ré não procedeu à comunicação aos mesmos nos termos do art.º 416.º, n.º 1 do C. Civil, concluindo a sentença que não começou propriamente a correr o prazo previsto no art.º 1410.º do Cód. Civil para a ocorrência de caducidade.
Quid juris?
Resulta da matéria provada que:
“8. A referida vendedora, aqui 1.ª Ré, ao transmitir o supra mencionado prédio, não deu prévio conhecimento aos A.A., nem à falecida II, do projeto da venda, designadamente, de elementos da alienação, como sejam a identidade do comprador, preço, prazo e condições de pagamento, data da escritura de compra e venda e Cartório Notarial ou Conservatória, nem evidenciou a venda por qualquer meio.
11. No fim de Maio início de Junho de 2011, os RR. e nomeadamente a R. EE, começaram a ir ao terreno em causa nos presentes autos.
12. Nessa data e a partir dela, a R. falou por diversas vezes com o A. AA, a quem comunicou que ia comprar o terreno, tendo-lhe dito o preço e condições do pagamento.
13. O Sr. JJ da Imob tentou negociar com o A. AA a compra do terreno por este.
14. A R. EE chegou mesmo a dizer ao A. que o preço era de 5000,00 €.
15. Foi sempre dito pelo A. que nem ele nem os seus filhos queriam terras.
16. Desde Maio de 2011, que a R. EE, começou a limpar o terreno, que se encontrava inculto e com mato.
17. O A. presenciou e viu a limpeza do terreno e das árvores, por parte da R. compradora, logo em junho de 2011, tendo-se prontificado a prestar toda a colaboração, ao ponto de ter emprestado uma escada.
18. A R. procedeu à limpeza do terreno e começou a plantar algumas plantas, como couves, tomate, pimentos, alfaces.
19. A R. EE e o seu companheiro iam ao terreno.
20. Em Dezembro de 2011 a R. EE disse à filha do A. AA que já tinha feito a escritura.
Entendemos correcta a conclusão da sentença recorrida de não se pode considerar válida para este efeito a comunicação circunstancial feita.
Com efeito:
Artigo 416.º
(Conhecimento do preferente)
1. Querendo vender a coisa que é objecto do pacto o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato.
2. Recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo.
Ora, no caso dos autos não se pode concordar que tenha sido cumprido o dever de comunicação, que, note-se é a comunicação para preferir, que implica mais do que o de contratar.
Estamos com aqueles que defendem que a comunicação ao preferente pode ser feita judicial ou extrajudicialmente, por qualquer meio idóneo, nomeadamente por simples declaração verbal. (neste sentido, Vaz Serra in RLJ, ano 112, página 350, Galvão Telles in Manual dos Contratos em Geral, 4.ª edição, Coimbra, página 237, Agostinho Guedes Cardoso in O Exercício do Direito de Preferência, Porto, página 455, João Redinha in Natureza Jurídica da Obrigação de Preferência e Consequências do seu Incumprimento, Separata de Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, página 610 e Acórdãos do STJ de 18.04.79 in RLJ, Ano 112, página 413, de 24.07.79, 08.04.86, 15.01.87 e de 08.11.94, BMJ números 289, página 311, 356, página 325, 363, página 508 e 441, página 250, respectivamente. (só Menezes Cordeiro – in Direito das Obrigações, vol. I, pág. 493, nota 275 - aceitando embora, como regra, o princípio da liberdade de forma, sustenta que, quando o contrato definitivo deva constar de documento, a comunicação deve ser feita, pelo menos, por escrito, por aplicação directa ou analógica do art.º 410.º, n.º 2 do Código Civil).
Mas, em primeiro lugar, entendemos que a comunicação em causa tem que ser feita pelo respectivo dono, o que não aconteceu – neste sentido Acórdão da Relação de Coimbra de 28.01.1992, in BMJ n.º 413, página 623.
Tem que haver uma proposta de contratar com indicação de todas as condições, pelo que é insuficiente um aviso vago ou genérico - neste sentido, Almeida Costa in Direito das Obrigações, páginas 294 e 298 e Antunes Varela in RLJ, ano 121, página 350 e ss.
Por outro lado, a comunicação deve ser feita a todos os titulares do direito de preferência e não apenas a um deles.
Com efeito, no caso de o direito de preferência pertencer a vários titulares, como sucederá na hipótese de contitularidade em sentido estrito, i.e., em que o mesmo direito de preferência cabe a várias pessoas ao mesmo tempo, como sucede no caso de esse direito se integrar no património conjugal comum, a notificação deve ser feita a ambos os cônjuges. Realmente, se nos casos de pluralidade de preferentes, a regra é a notificação de todos os contitulares, então pertencendo o direito de preferência a ambos os cônjuges, a solução não pode ser outra senão impor que a comunicação seja também dirigida a ambos os cônjuges – neste sentido no tocante aos cônjuges, Acórdãos do STJ de 11.06.81 in BMJ n.º 308, página 222 e de 04.11.86 in BMJ n.º 361, página 501 e Assento do STJ de 25.01.87, DR, 1ª Série de 10.10.88, bem como Carlos Lacerda Barata in Op. cit., páginas 135 e 136 e Agostinho Cardoso Guedes in Op. cit., págs. 499 e 500.
Finalmente, não nos parece aceitável a renúncia antecipada: apenas perante uma concreta situação de preferência, já formada e perante todos os elementos essenciais da comunicação é possível ao preferente renunciar, pelo que a renúncia só é eficaz quando referida a uma transacção concreta, quando ao preferente tiver sido dado conhecimento do projecto de venda e das cláusulas do contrato – Acórdãos do STJ de 24.04.91 in BMJ n.º 406, página 595, de 08.11.94 in BMJ nº 441, página 255 e de 13.02.96, in BMJ nº 454, página 706 e da Relação de Coimbra de 07.01.92 in BMJ n.º 413, página 624, bem como Carlos Lacerda Barata cit., pág. 141 e António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo II, 2010, Almedina, Coimbra, página 500.
Pelo exposto, temos que concluir que não ocorreu a caducidade do direito dos autores.
*
C - Saber se há abuso de direito.
Dispõe o art.º 334.º do CC que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, bons costumes ou pelo fim social desse direito.
Ora, como ultimo argumento, dizem os recorrentes que sempre existiria uma situação de abuso do direito, dada a atitude do autor António por ter dado a entender que não tinha interesse na compra.
Mas não têm razão.
A falta de cumprimento da comunicação legal para preferir impede desde logo que possa considerar que há abuso de direito.
É que não se pode considerar que o autor tinha conhecimento de todos os elementos do negócio, o que faz com que se tenha que entender que o preferente continua a estar na posse do seu direito, podendo exercê-lo em qualquer momento, não estando a abusar de um direito, porque verdadeiramente esse direito não está ainda constituído, por falta de adequada comunicação de elementos para o efeito, existindo apenas em termos genéricos, de acordo com o legalmente consagrado.
O abuso do direito, como “válvula de escape” que deve ser, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações clamorosas do direito. Deve, por isso, ser invocado com ponderação e equilíbrio, sem que constitua panaceia fácil para toda a situação de excessivo exercício; é que pode o respectivo excesso não ser manifesto e ilegítimo ou só se apresentar assim na aparência (cfr. Acórdão do STJ in BMJ, n.º 407, página 557).
Só há abuso de direito quando o direito é exercido num contexto de grave ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites resultantes da boa-fé, dos bons costumes ou do fim económico-social do direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do nosso comum sentimento de justiça, que repouse em bases éticas aceitáveis.
Importa por isso ponderar a existência do abuso de direito em função das circunstâncias do caso concreto.
E em abstracto, perante um comportamento contraditório de quem renuncia a um direito que depois pretende actuar, pode concluir-se que actua com abuso do direito, pois criou fundadas expectativas e determinou comportamentos naqueles que confiaram nas declarações do renunciante – vide Manuel Henrique Mesquita in “Obrigações e Ónus Reais”, 1997, página 207.
Mas implica necessariamente o tal conhecimento através da comunicação válida, que não existe no nosso caso.
Ainda como refere Henrique Mesquita “a renúncia a um direito subjectivo de opção, segundo a regulamentação legal, só pode ter lugar depois de o preferente conhecer os termos essenciais da alienação projectada ... Uma renúncia antecipada é, pois, contrária ao regime imperativamente fixado na lei e deve, por isso, considerar-se nula.
"No caso de renúncia antecipada a aplicação da figura do abuso do direito não actuará da mesma forma com que actuará nos casos de renúncia válida. Ali poderá ter havido uma precipitação e, por conseguinte, o tribunal apenas considerará aplicável a previsão do artigo 334º do CC se considerar, por exemplo, que as razões que levaram à renúncia antecipada permaneceriam inalteráveis se o preferente tivesse afinal renunciado posteriormente ao conhecimento do projecto de venda (Pense-se por exemplo numa renúncia antecipada por não estar disposto o preferente a dar pela coisa mais de 1000, declaração emitida seriamente, fosse qual fosse o comprador tendo, pouco tempo depois da renúncia (antecipada), sido alienada o referido bem por 2000)”.
Ou seja, como se pode ler no Acórdão da Relação de Lisboa de 01.07.2004, proferido no processo nº 727/2004-8 e disponível em www.dgsi.pt:
“A renúncia pressupõe, em regra, que houve uma comunicação dos elementos essenciais do negócio pelo obrigado à preferência (…) as declarações que foram efectuadas não eram de molde a criar uma tal convicção assim se dispensando o vendedor de observar o dever de comunicação que a lei impõe (…) Como salienta Vaz Serra “ se o direito de preferência de um dos comproprietários se extinguir, não acresce aos restantes: o que se verifica é que os restantes conservam o seu direito de preferência, com exclusão daquele que o perdeu” (Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 105º, pág. 160). E só nessa medida, de uma renúncia conjunta, é que se poderia falar na extinção da preferência (…) o reconhecimento do abuso do direito produz, sem dúvida, os mesmos efeitos que produziria uma renúncia antecipada, mas, para tal, impõe-se reconhecer que as condições de exercício concreto em que tal renúncia se efectivou assumiram uma tal dimensão que repugnaria ao direito não conceder tutela a comportamentos que excedem manifestamente os limites impostos pela boa-fé (artigo 334º do Código Civil).”
No nosso caso, sabemos que não foi feita a comunicação legal e, por isso, não pode haver uma renúncia válida antecipada, além de que o que foi dito pelo autor nem sequer foi dirigido a quem tinha o dever de dar preferência e também só foi dito por um dos preferentes, o que sempre impediria de reconhecer a renúncia à preferência quando esta não foi exercida conjuntamente por todos os preferentes.
Em suma, improcede totalmente o presente recurso.

3 – Dispositivo.
Pelo exposto acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Évora, 22.10.2015

Elisabete Valente

Maria Alexandra Afonso de Moura Santos

António Ribeiro Cardoso