CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
DESCONTO
Sumário


I - A proibição de condução de veículos motorizados cumprida a título de injunção na suspensão provisória do processo desconta-se no cumprimento da pena de proibição de condução aplicada na sentença, no mesmo processo e pelos mesmos factos.

Texto Integral


Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo nº 348/13.4PBSTB da Comarca de Setúbal foi proferida sentença em que se decidiu condenar o arguido J. como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez do art. 292º, nº 1 do CP, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €10,00 e na proibição de conduzir veículos com motor por um período de 6 meses, nos termos do disposto no art. 69.º, n.º 1, al. a), do CP.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“I. Do ponto 1 do douto aresto de que se recorre resultou provado que o arguido conduzia, no dia 8 de Março de 2013, um veículo ligeiro de passageiros (...), com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,7112g/l.

II. Com efeito, e como melhor resulta do certificado de registo criminal, o arguido não tinha quaisquer antecedentes criminais à data dos factos (8.03.2013) e, da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, não deveria o tribunal “a quo” ter dado como provados quaisquer antecedentes criminais à data da prática, pelo arguido, do crime de veículo em estado de embriaguez.

III. É de salientar que a prova da existência de antecedentes criminais tem de ser feita documentalmente, através do certificado de registo criminal, cfr. certificado de registo criminal junto a fls. 79-80.

IV. No caso presente, o esforço de individualização e de fundamentação da decisão condenatória reconduziu-se à alegação de anterior condenação (embora por factos posteriores àqueles pelos quais vai agora condenado (?)) sofrida pelo Recorrente. Procedimento não consentido pela lei.

V. Com efeito, dispõe o artigo 29º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, doravante (C.R.P.), "Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido."

VI. O Tribunal "a quo" com fundamento na reincidência do arguido (ainda que não especificamente alegada), condenou-o à pena de multa de 100 dias, a qual foi fixada próxima do limite máximo (120 dias) da pena aplicável ao crime em apreço. O que viola o disposto nos artigos 75º do Código Penal e o artigo 29º, n.º 4 da CRP.

VII. Para efeitos de reincidência exige-se a verificação de pressupostos formais, designadamente o cometimento de um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a seis meses e a condenação anterior, com trânsito em julgado, de um crime doloso, em pena de prisão superior a seis meses e o não decurso de mais de 5 anos entre o crime anterior e a prática do novo crime.

VIII. Desse modo, o tribunal "a quo" deveria ter dado como assente, por provado, que o Recorrente é um arguido primário e não, como fez, com antecedentes criminais. O registo criminal, cfr. Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto, na redacção dada pela Lei nº 114/2009, de 22/9, contém os antecedentes criminais dos cidadãos de forma a permitir o respectivo conhecimento, nos termos legais, ou a atestar a ausência de antecedentes criminais.

IX. O certificado de registo criminal junto aos autos atesta a ausência de antecedentes criminais do arguido à data da prática dos factos. Pelo que ocorreu um erro notório na apreciação da prova pelo tribunal "a quo" quando, ainda que de forma sui generis dá como assente a existência de antecedentes criminais do arguido e, mais à frente, em sede de fundamentação da escolha e determinação da medida da pena, consigne que "(embora por factos posteriores àqueles pelos quais vai agora condenado) ...
X. Condenar o arguido por facto diverso do descrito na acusação e conhecendo, o tribunal "a quo" de questões de que não podia tomar conhecimento, o douto aresto de que se recorre é nulo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPP.

XI. Se considerarmos os parâmetros legais que deverão ser considerados aquando da aplicação da sanção, a condenação do arguido na pena de multa fixada em 100 dias, à razão diária de € 10, 00 (dez euros), mostra-se de per si excessiva.

XII. Pese embora a douta sentença, ora sob censura, referir da necessidade da aplicação do disposto no artigo 71º do C.P. para a determinação da medida concreta da pena considerando o grau de ilicitude do agente, as necessidades de prevenção geral e especial no caso concreto e as circunstâncias que militam em favor do arguido aquando da aplicação da pena, não se compreende, salvo melhor opinião em sentido contrário, a ausência de qualquer referência no que concerne às circunstâncias atenuantes que militam a favor do arguido J.

XIII. Ora, a douta decisão recorrida, na parte que diz respeito à determinação da medida concreta da pena, fundou-se exclusivamente na medida da culpa do agente que, nos termos do nº 2 do artigo 40º do CP, deveria antes funcionar como mero limite. In casu podemos verificar que não está em causa a condução de veículos automóveis sob o efeito de álcool, reiteradamente, nem uma desobediência ou resistência aos agentes da autoridade.

XIV. Deste modo, todas circunstâncias atenuantes que militam a favor do arguido não terão sido, com o devido respeito, levadas em linha de conta aquando da aplicação da medida concreta da pena, designadamente: - o período de tempo da actividade delituosa que, no caso do recorrente, ocorreu em momento isolado e em dia de comemoração do dia da mulher (8.03.2013); o facto de o arguido ter confessado integralmente, e sem reservas, os factos de que vinha acusado e de forma relevante, revelando sincero arrependimento.

XV. O tribunal "a quo" consignou que "- Actualmente o arguido não ingere bebidas alcoólicas por razões de saúde"; e, por último, a circunstância atenuante de o arguido não ter quaisquer antecedentes criminais.

XVI. Logo, o “quantum” concreto de pena escolhido (€ 10, 00 X 100 dias) não deverá manter - se, até porque é muito superior ao que o Recorrente aufere mensalmente.

XVII. Atentas as supra expostas atenuantes justificar-se-ia ainda uma atenuação especial da pena, nos termos do disposto nos artigos 71º, 72º, nº2, al. c) e 73º do CP. A ausência de antecedentes criminais de qualquer natureza, o lapso de tempo de actividade delituosa (apenas o episódio dos autos), a sua integração profissional, familiar e social, lapso de tempo decorrido desde a prática dos factos e a boa conduta desde o final de 2013, permitiam assim a formulação de um juízo de prognose favorável à ressocialização do arguido.

XVIII. Por tudo o anteriormente exposto, o douto aresto recorrido deveria ter atenuado especialmente a pena de multa aplicada ao arguido. A ideia mestra é a de que a pena de multa, sendo por regra aplicada em dias, tem o propósito de impor ao condenado um sacrifício financeiro, que o reduza às necessidades económicas essenciais, aferidas diariamente.

XIX. Posto isto e aos rendimentos financeiros do Recorrente dado como provados no ponto 7 dos factos provados, nada obsta à aplicação da atenuação especial da pena pelo que na pena de multa a que o arguido foi condenado deveria funcionar a atenuação especial do art.º 73º do C.P.

XX. O arguido manifestou a sua não oposição às sanções propostas pelo Ministério Público e como melhor resulta de fls. 21 e 22 dos autos, foi no âmbito da suspensão provisória do processo objecto da aplicação da injunção de 5 (cinco) meses sem conduzir.

XXI. Compulsados os autos resulta inequívoco que o arguido, ora Recorrente, entregou a carta de condução e esteve, de facto, sem conduzir pelo período de 5 meses.

XXII. Em termos materiais, substantivos, de fundo, os efeitos decorrentes da injunção e da pena acessória são rigorosamente os mesmos, isto é, o arguido entrega a sua licença de condução e abstém-se de conduzir veículos motorizados. A distinta natureza jurídica das duas figuras tem, seguramente, um interesse doutrinário relevante mas não afasta a questão de fundo: caso uma e outra sejam cumpridas, são-no da mesma forma, exigindo do arguido a mesma conduta. A não ser efectuado o desconto, não irá o arguido cumprir duas vezes a mesma proibição de conduzir veículos motorizados?

XXIII. A condenação do arguido teve em vista um facto – condução de veículo em estado de embriaguez no dia 08/03/2013. E a injunção por si cumprida, teve em vista o mesmíssimo facto. E foi executada da mesma forma, como o seria a pena acessória em cujo cumprimento foi condenado o arguido.

XXIV. Que diferença existe, então, a impedir que se considere efectuado o cumprimento? A injunção de proibição de conduzir veículos com motor que consta do elenco das injunções aplicáveis é, exactamente, aquela que foi aplicada ao arguido, no âmbito da suspensão provisória do processo, que cumpriu na íntegra.

XXV. O Acórdão desta Relação de Évora, datado de 11-07-2013, in Processo 108/11.7PTSTB.E1, considerou que, "A injunção de proibição de conduzir veículos com motor, aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, deve ser objecto de desconto na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados".

XXVI. Ambas, de um ponto de vista material e prático, afectam de igual modo o direito de o arguido conduzir e, nessa medida, a aplicação ao arguido da proibição de conduzir duas vezes, pelos mesmos factos, concretizaria, no final, o cumprimento da mesma sanção duas vezes. Em termos gerais, acerca do instituto da suspensão provisória do processo, escreveu o Professor Costa Andrade que, “trata-se de uma figura de cariz acentuadamente processual, orientada para a concretização de programas de despenalização (processual) e de diversão na tentativa de viabilizar a ressocialização do delinquente.”

XXVII. Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto, de 14/10/2009, “A suspensão provisória do processo é pois um mecanismo processual que subtrai ao julgamento situações em que há indícios suficientes de o arguido haver praticado um crime punível, inicialmente, com pena de prisão até 3 anos e, actualmente, até 5, podendo aí findar o processo, com a imposição de injunções ou regras de conduta” que, e citando novamente Costa Andrade, que aderindo ao pensamento de Löwe/Rosemberg, escreve “«(…) as injunções e regras de conduta não são nenhuma pena no sentido do direito penal material. Nem configuram sequer uma sanção penal de natureza para - penal». Por outro lado, não pode esquecer-se que elas sempre representam, a inflicção de um mal que só tem lugar por causa da conduta do arguido e das consequências que ela desencadeou. O que equivale a afirmar que as injunções e regras de conduta figuram como “equivalentes funcionais” de uma sanção penal: só assim se explica que se espere delas a realização do mesmo interesse público, por via de regra e em alternativa, satisfeito através da aplicação de uma pena.”, in Ac. Tribunal Relação Porto, de 19-11-201 - Processo n.º 24/13.8GTBGC.P1. (...)

Assim, e sem pretender negar a diferente natureza jurídica da injunção da proibição de conduzir veículos com motor prevista no artº 281º, nº3, do CPP e da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista no artº 69º nº1 do CP, a verdade é que ambas impõem afinal o mesmo comportamento ao arguido, - a proibição de conduzir - e ambas acabam por ter um mesmo conteúdo pragmático e funcional.

Acresce que, e por paralelismo, a diferente natureza da suspensão do direito de conduzir imposta como medida de coacção, não constitui uma pena, e no entanto como refere Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação artº 499º do CPP, Nota 9, “No cumprimento das penas acessórias deve descontar-se o período da medida de coacção que lhe corresponda.”

Por outro lado, face à alteração legislativa introduzida pela Lei nº 20/2013, de 21 de Fevereiro o artº 281º nº3 do CPP passou agora a dispor que «Sem prejuízo do disposto no número anterior, tratando-se de crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, é obrigatoriamente oponível ao arguido a aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos como motor», o que retira peso ao argumento de que a injunção decorreu de um acordo, pois embora a suspensão provisória do processo tenha como pressuposto a concordância do arguido, artº 281º nº 1 a) do CPP, no que respeita à aplicação da injunção de proibição de conduzir veículos ao automóveis a mesma passou a ser uma imposição legal, caso o arguido pretenda beneficiar da suspensão provisória do processo."

XXVIII. Também e com o devido respeito por posição em sentido contrário, na mesma linha de pensamento entende o supra referido acórdão, "(...) que se de um ponto de vista formal inexiste violação principio ne bis in idem, de um ponto de vista material e substantivo podemos afirmar que o arguido teria de cumprir duas vezes uma imposição legal com um mesmíssimo conteúdo e contornos, vale dizer a proibição de conduzir veículos com motor, o que teria afinal como consequência ser duas vezes punido pelo mesmo facto ilícito e nessa medida haver afinal substantivamente uma violação da proibição do princípio ne bis in idem. Pois, se é certo que a CRP, no seu artigo 29.º, n.º 5, o que proíbe é que alguém seja julgado mais que uma vez pelo mesmo crime, como anotam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico - penais pela prática do «mesmo crime» ”.

XXIX. Igualmente a decisão recorrida deveria ter procedido ao desconto na pena acessória a aplicar, do período da injunção de conduzir que foi aplicado ao arguido, e por ele integralmente cumprido no âmbito da suspensão provisória do processo.

XXX. Assim e com o devido respeito, o douto Aresto, ora sob censura, violou os preceitos legais insertos nos artigos 29º da CRP e nºs. 40º, n.º 2, 71º, 72º, 73º e 75º, todos do Código Penal, devendo ser declarada nula a sentença, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 379º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPP.”

O Ministério Público não respondeu ao recurso.

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se no sentido de que as “reduzidas necessidades de prevenção especial” demandam uma “diminuição da pena de multa, a fixar próximo do meio”, que também “na fixação da pena acessória se deverá atender aos mesmos critérios seguidos para a determinação da pena principal” e que “igualmente se afigura que a taxa de € 10 por dia de multa é exagerada face ao rendimento mensal” do condenado. Já quanto ao pretendido desconto da injunção na pena acessória, o Sr. Procurador-geral Adjunto manifestou-se contra a pretensão, face a um alegado concreto incumprimento da injunção imposta.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:

“No dia 08/03/2013, pelas 03h28, na Estrada dos Ciprestes, em Setúbal, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ---MR, com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,7112g/l.

2. O arguido sabia que a quantidade de álcool que havia ingerido lhe determinaria necessariamente uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2g/l.

3. Tal como sabia que essa quantidade de álcool que ingerira lhe reduzia consideravelmente as faculdades psicológicas absolutamente necessárias à condução automóvel, designadamente no que respeita à coordenação das funções da percepção e da coordenação motora.

4. Não obstante não se absteve de conduzir o seu veículo depois da ingestão de álcool.

5. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente.

6. Actualmente o arguido não ingere bebidas alcoólicas por razões de saúde.

7. O arguido trabalha como planeador de produção para ----., auferindo uma remuneração líquida de cerca de €800,00;
8. Reside com os pais, em casa destes;

9. É proprietário de um veículo ligeiro de passageiros, marca Mini, modelo Mini-N, e um motociclo, marca Honda, modelo P.C. 36 (CB600F Hornet);

10. É licenciado em Gestão de Distribuição e Logística;

11. Tem os seguintes antecedentes criminais:

A) Por sentença do Tribunal Judicial de Setúbal, datada de 17/12/2013, transitada em julgado em 29/01/2014, foi condenado pela prática, em 01/12/2013, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de €6,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motos pelo período de 5 meses e 15 dias.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são (a) a medida das penas principal e acessória, e (b) o desconto da injunção “proibição de condução”, decretada no âmbito da suspensão provisória do processo, no cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizado.

(a) Da medida das penas principal e acessória
O recorrente pugna pela atenuação especial da pena, defendendo que são excessivas e desproporcionadas as penas principal e acessória fixadas na sentença.

Para tanto, argumenta que foi considerada, indevidamente, pelo tribunal uma reincidência não especificamente alegada, que se deveria ter dado como provado que o recorrente é primário e, não, com antecedentes criminais, que o seu certificado de registo criminal atesta a ausência desses à data da prática dos factos, que ocorreu um erro notório na apreciação da prova ao considerar a existência de antecedentes criminais, que ao consigná-los na fundamentação da pena se condenou o arguido por facto diverso do descrito na acusação e se conheceu de questão de que não se podia ter conhecido.

Procedendo à leitura da sentença, constata-se com clareza que o arguido não foi tratado como “reincidente” nem se encontra condenado como tal. Não foram convocados nem aplicados os preceitos legais que disciplinam a reincidência, circunstância agravante modificativa especial tratada nos arts 75º e 76º do CP, que, por se repercutir na pena abstracta, operando aliás ope judicis, deveria constar logo, “de facto” e “de direito”, da acusação

Fora dos casos em que o passado judiciário do acusado seja susceptível de integrar essa circunstância agravante modificativa especial (da reincidência), os antecedentes criminais do condenado podem ser incluídos nos factos da sentença sem que se encontrem previamente referidos nos factos da acusação.

A decisão sobre a pena assenta num juízo de prognose, configura “necessariamente uma estrutura probabilística”, não pode “senão concretizar-se por aproximações” e os juízos de prognose, que não devem resultar de uma mera “intuição” assente na “experiência da profissão”, pressupõem “um trabalho teórico-prático de recolha e valoração de dados e informações acerca das pessoas e dos factos em causa”, o que implica um “alargamento da base da decisão” de modo a incluir os factos relativos à pessoa do condenado e aos seus antecedentes criminais (assim, Anabela Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, p. 27 a 30).

O juízo sobre a pena envolve uma identificação casuística das exigências de prevenção geral e especial e na aferição destas últimas releva necessariamente o comportamento delituoso do condenado.

Do que se tratou, no presente caso, não foi de condenar o arguido como reincidente sem se encontrar acusado como tal, mas de incluir os seus antecedentes criminais no processo de ponderação sobre a pena. Como se impunha.

As invocadas nulidades de sentença (do art. 379º, n.º 1, als b) e c) do CPP) não ocorrem pois, já que o arguido não se encontra condenado “por facto diverso do descrito na acusação”, nem o tribunal conheceu “de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Inexiste também o invocado erro notório na apreciação da prova – que teria de consistir em considerar-se provado algo notoriamente errado, que não poderia ter acontecido, algo de ilógico, arbitrário ou notoriamente violador das regras da experiência comum – pois o que se enumerou na sentença como facto provado foi apenas que o arguido “11. Tem os seguintes antecedentes criminais: A) Por sentença do Tribunal Judicial de Setúbal, datada de 17/12/2013, transitada em julgado em 29/01/2014, foi condenado pela prática, em 01/12/2013, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de €6,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motos pelo período de 5 meses e 15 dias”

Este facto especificado na sentença corresponde ao que resulta da prova documental, ou seja, do CRC junto aos autos.

A fundamentação “de facto” da pena envolve, e envolveu no presente caso, para além da enunciação dos factos pessoais do agente (presentes na sentença) a descrição completa dos seus antecedentes criminais (também correctamente especificados nos factos).

A sentença é uma peça processual autónoma que se pretende auto-suficiente, devendo dispensar remissões ou consultas de outras folhas do processo para sua integral compreensão, e deve conter, também por isso, a especificação das condenações anteriores sofridas pelo condenado. Também aqui, o procedimento adoptado pelo tribunal se revela correcto

Acresce que “antecedente criminal” é uma condenação anterior sofrida pelo arguido. “Anterior”, no sentido de “precedente” ao julgamento e à sentença, tendo em conta o momento da condenação e da aplicação da pena. Na determinação da pena releva o que o arguido fez (ele é julgado não pelo que é enquanto pessoa, mas pelo que fez de penalmente relevante). Interessa apurar o que o arguido fez, incluindo o que fez antes e o que fez depois do crime (vide art. 71º, nº 2-al.e do CP).

Á data do julgamento e da presente condenação, o arguido não era primário, pois contava já com a inscrição de uma outra condenação no seu CRC. E foi apenas isso que se especificou (e devidamente, repete-se) nos factos provados da sentença.

Se essa condenação anterior à sentença é, no entanto, posterior aos factos em apreciação na sentença, isso mesmo resulta da matéria de facto provada, bastando proceder ao cotejo de todas as datas – dos factos e das condenações - em confronto.

Não se detecta qualquer incorrecção e inexiste, por tudo, o erro na apreciação da prova invocado. Se na sentença, na determinação da pena, foi ou não, depois, impropriamente valorado o teor do CRC do arguido, é já um problema de aplicação do direito e, não, de apreciação da prova e de definição da matéria de facto.

Vejamos, então, agora, como se fundamentou a sanção, na sentença:

“B) ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
“A aplicação de penas e de medidas de segurança visam a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” sendo que “em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (artigo 40.º, n.º 1 e 2, do Código Penal).

Assim, importa agora concretizar a medida da pena a aplicar no caso sub judice.

Nos termos do disposto no artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, a moldura abstracta aplicável ao crime pelo qual o arguido deverá ser condenado é de pena de prisão até um ano ou pena de multa até 120 dias, e de pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos (cfr. artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal).

Tendo em atenção que serão, acima de tudo, os critérios de prevenção especial que devem estar na base da escolha e determinação da medida da pena, assumem relevância no caso concreto, as seguintes circunstâncias:

- As exigências de prevenção geral são elevadas, atento o ainda muito elevado número de acidentes de viação registado em Portugal, muitas das vezes com feridos graves e mortos, causados por condutores influenciados pela ingestão de bebidas alcoólicas;

- A ilicitude é em grau médio, atendendo à TAS registada de 1,7112g/l (mais de três vezes o mínimo legal para que a conduta constitua ilícito contra-ordenacional, e ao veículo conduzido pelo arguido (veículo automóvel, de maior perigosidade em relação a outros veículos com motor – motociclos e ciclomotores – e aos veículos sem motor);

- O arguido cometeu o crime com a forma mais grave de dolo – dolo directo;

- Confessou integralmente e sem reservas os factos de que vinha acusado;

- Está profissional e familiarmente inserido;

- Tem um antecedente criminal pela prática do mesmo tipo legal de crime (embora por factos posteriores àqueles pelos quais vai agora condenado), mas actualmente haverá menos probabilidades (querendo, sempre o poderá fazer) de ingerir bebidas alcoólicas e conduzir de seguida por razões de saúde.

Assim, atentas as molduras penais abstractas atrás referidas, e consideradas todas as circunstâncias atrás descritas, considera-se que ainda deve ser dada ao arguido uma derradeira oportunidade de, em liberdade, alterar o seu comportamento, pelo que ainda será adequada e suficiente a aplicação de uma pena de multa, mas fixada já próxima dos seus limites máximos: 100 (cem) dias de multa.

No atinente ao quantum diário, dispõe o artigo 47.º, n.º 2 do Código Penal que o mesmo é fixado pelo tribunal em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, pelo que, face às condições socioeconómicas dadas como provadas, julga-se adequada a fixação do mesmo em €10,00 (dez euros).

No atinente à determinação da medida da pena acessória da proibição de conduzir veículos com motor, igualmente neste caso a determinação da medida da pena deve obedecer ao preceituado no artigo 71.º do Código Penal, tendo-se particularmente em conta a taxa de álcool no sangue apresentada, pois trata-se de elemento fundamental para aferir da perigosidade do agente, perigosidade essa que esta pena visa essencialmente prevenir. Assim, julga-se adequado e suficiente face às exigências de prevenção, a condenação na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado em 6 (seis) meses.”

Os recursos (quer em matéria de facto, quer em matéria de direito) não são (re)julgamentos da causa, mas sempre “remédios jurídicos”. E também em matéria de pena, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico.

Daqui resulta que a Relação deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação ou aplicação das normas e princípios legais e constitucionais que regem a pena, abstendo-se de decidir como se o fizesse ex novo, como se inexistisse decisão de 1ª instância.

O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal a quo enquanto componente individual do acto de julgar.

A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na detecção de desrespeitos a princípios que norteiam a pena, de desvios nas operações de determinação impostas por lei. Não abrange, insiste-se, a determinação/fiscalização do quantum exacto de pena que, decorrendo duma correcta aplicação da lei e de princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionado.

Dentro desta margem de actuação, há que reconhecer o acerto no processo aplicativo da pena patente na sentença e aceitar que as penas proferidas ainda se revelam proporcionadas, por satisfazerem as concretas exigências de prevenção geral e especial, contendo-se nos limites da culpa.

Assim, não só o recorrente não invocou, em recurso, argumentos que, em concreto, se mostrassem aptos a prosseguir o resultado pretendido – que era, recorde-se, a atenuação especial da pena - como a fundamentação da sentença se revela correcta.

O processo de determinação da pena é uma actividade judicialmente vinculada. Perante pena abstracta compósita alternativa, num quadro legal de preferência abstracta por pena não privativa da liberdade, o tribunal deu preferência à multa. Graduou-a em dias num ponto que se revela ainda aceitável, tendo em conta, designadamente, a concreta taxa de alcoolémia, o tipo de veículo conduzido, a sua perigosidade potencial e o comportamento posterior do arguido.

Na verdade, ao dizer-se na fundamentação da pena que o arguido “tem um antecedente criminal pela prática do mesmo tipo legal de crime embora por factos posteriores àqueles pelos quais vai agora condenado”, o tribunal está apenas a valorar o comportamento global do arguido.

Ou seja, não está a considerar que os factos sub judice traduzem um desrespeito por uma condenação anterior e devem ser sancionados como tal – não traduzem, pois essa condenação anterior não existia (o arguido era primário à data dos factos) – mas também não está a considerar o arguido como não tendo sofrido nunca qualquer condenação em tribunal, pois sofreu-a (cometeu outro crime no decurso do prazo da suspensão provisória do presente processo).

Nada revela, pois, ter-se procedido a uma avaliação incorrecta do comportamento do condenado.

Refira-se, por último, que a atenuação especial de pena, nos termos do art. 72º do CP, dever-se-á fundar em circunstâncias excepcionais que imponham extraordinariamente a descida da pena abstracta abaixo do seu mínimo, por essa pena se apresentar perante elas (ou seja, concretamente) como singularmente gravosa.

Dito de outro modo, a atenuação especial está prevista para casos em que a concreta situação de vida a enquadrar juridicamente configure uma ilicitude, uma culpa ou uma necessidade de pena que não atinjam a gravidade pressuposta ou equacionada no tipo incriminador. Fora desse quadro de diminuição acentuada, essas circunstâncias favoráveis ao arguido relevam sempre, mas como atenuantes gerais, não interferindo na pena abstracta prevista para o crime.

No presente caso, nem essas circunstâncias excepcionais foram referidas pelo recorrente, nem oficiosamente se conseguem vislumbrar.

Nenhum reparo merece também o quantum diário da multa, fixado em € 10, tendo em conta a situação económica do arguido e uma margem legal abstracta de € 5 a € 500 (art. 47º, nº2 do CP).

(b) Do desconto da injunção proibição de condução, decretada no âmbito da suspensão provisória do processo, no cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizado

O recorrente pugna pelo desconto da injunção de 5 meses de proibição de condução, imposta na decisão que decretara a suspensão provisória do processo, no cumprimento da pena acessória.

Não houve resposta ao recurso, mas o MP nesta Relação manifestou-se contra a pretensão formulada pelo arguido.

Sem se pronunciar sobre uma (in)viabilidade em abstracto, defendeu o Senhor Procurador-geral Adjunto que, no caso presente, não deveria haver lugar a desconto face a um incumprimento de injunção que diz ter-se verificado.

Com todo o respeito, esse incumprimento, do modo como é configurado no parecer, não resulta demonstrado do processo.

Na verdade, em 11.03.2013, foi decidida a suspensão provisória do processo por um ano, com as injunções constantes de fls. 24, nomeadamente a de o arguido “entregar a sua carta de imediato e não conduzir durante 5 meses”.

A fs. 25, já em 13.08.2013, consta o termo de entrega da carta de condução, ou seja, a sua devolução ao arguido.

A fls. 56, o MP promoveu o prosseguimento dos autos “com remessa ao MP para dedução da acusação”, em virtude do arguido “ter cometido crime da mesma natureza no decurso da suspensão”. Na mesma promoção fez-se consignar também que “o arguido cumpriu as injunções” impostas.

As injunções impostas são, assim, de considerar cumpridas, tanto mais que o “crime da mesma natureza” veio a ser cometido pelo arguido já após devolução da carta de condução, ou seja, uma vez decorrido o período da proibição de condução.

A situação de facto (processual) a enquadrar agora juridicamente, em recurso, é então a de saber se, uma vez cumprida integralmente a proibição do exercício de condução imposta na suspensão provisória do processo, tal período (a injunção) deverá ser descontado no cumprimento da pena acessória de proibição de condução, posteriormente aplicada ao arguido na sentença condenatória proferida no mesmo processo. Fora do objecto do recurso fica a hipótese de incumprimento (total ou parcial) da injunção decretada em suspensão provisória de processo, pois essa não é a situação sub judice.

Na defesa da sua pretensão, o recorrente invocou violação do ne bis in idem.

O art. 29º, nº 5 da CRP preceitua que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Assim se impede que uma mesma questão seja de novo apreciada.

O arguido não foi julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. Ele beneficiou da suspensão provisória do processo, medida de diversão processual que pretende precisamente evitar o julgamento. Assim, neste sentido, não ocorreu violação do princípio. O arguido foi julgado por uma só vez pelo mesmo facto, e foi-o porque incumpriu as condições da suspensão provisória do processo.

Mas do ne bis in idem resulta também que o mesmo facto não possa ser valorado por duas vezes, isto é, que uma mesma conduta ilícita seja apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.

Como tem referido o tribunal constitucional, a esta aplicação subjaz a ideia segundo a qual a cada infracção corresponde uma só punição, não devendo o agente ser sujeito a uma repetição do exercício do poder punitivo do Estado.

Desenvolveu-se no acórdão do TC nº 319/2012 (Rel. Carlos Pamplona de Oliveira):

“A referida norma constitucional –“ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime” – dá dignidade constitucional expressa ao clássico princípio de ne bis in idem. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição, Coimbra, 2007, p. 497), fazem notar que o referido princípio comporta duas dimensões: a dimensão de direito subjectivo, que garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, e a dimensão de princípio objectivo, que obriga o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto. Está aqui em causa a dimensão subjectiva do princípio, na vertente que proíbe a imposição plural de consequências jurídicas sancionatórias sobre a mesma infracção. O Tribunal Constitucional tem afirmado que o referido princípio impede que o mesmo facto seja valorado duas vezes, isto é, que uma mesma conduta ilícita seja apreciada com vista à aplicação da sanção mais do que uma vez. A esta aplicação subjaz a ideia segundo a qual a cada infração corresponde uma só punição, não devendo o agente ser sujeito a uma repetição do exercício do poder punitivo do Estado.”

No presente caso, processualmente o arguido não respondeu mais do que uma vez pelos mesmos factos. Mas, também materialmente, não se pode fazer corresponder à sua conduta a mesma punição, por mais do que uma vez.
É certo que inexiste identidade jurídica entre uma pena acessória (no caso, de proibição de condução) e uma injunção (no caso, de proibição de conduzir).

Sob o ponto de vista formal, não se trata de uma aplicação duplicada da mesma punição, nada existindo, nem legal nem constitucionalmente, que impeça, nestas circunstâncias, a condenação na pena acessória. A sua aplicação decorre da lei e mostra-se correcta, como também legal e obrigatória foi a aplicação da injunção referida.

Na verdade, o MP encontra-se legalmente obrigado (desde a publicação da Lei da nº 20/2013, que alterou o art. 281º do CPP) a aplicar a injunção de proibição de condução de veículos a motor sempre que determinar a suspensão provisória do processo por determinados crimes, incluindo o dos autos.

Refere Cláudia Matias (in A suspensão provisória do processo: o regime legal presente e perspectivado, pp24/5, https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/.pdf): “O n.º 3 do artigo 281.º do CPP prevê que o Ministério Público tem obrigatoriamente de aplicar a injunção de proibição de condução de veículos a motor sempre que determinar a suspensão provisória do processo por crimes para os quais esteja “legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor”, ou seja, para os crimes previstos no n.º 1 do artigo 69.º do CP. Assim, sempre que tenha sido promovida a aplicação da suspensão provisória do processo num inquérito em que esteja em causa (…) um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (…) o Ministério Público terá obrigatoriamente de aplicar a injunção de proibição de conduzir veículos com motor, singular ou cumulativamente com outras injunções.

(…) Esta previsão legal surgiu porque o Ministério Público, não sendo competente para aplicar penas, nem principais, nem acessórias, não podia aplicar a pena acessória de proibição de conduzir quando entendesse ser de aplicar o instituto da suspensão provisória do processo a crimes como o do artigo 292.º do CP. Assim, se o Ministério Público aplicasse a suspensão provisória do processo, via-se o arguido livre da pena acessória de proibição de conduzir. Mas se a sua conduta constituísse uma mera contra-ordenação, porque a taxa de álcool no sangue não era igual ou superior a 1.2g/l, o arguido teria de suportar uma coima e a inibição de conduzir. Desta contradição de regimes resultava que o arguido era mais penalizado por uma contra-ordenação do que por um crime.”

No âmbito da consulta que feita pelo Parlamento aquando da elaboração da Lei da 20/2013, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (em parecer assinado por Fernanda Palma, Sousa Mendes, Gouveia Caires, Matos Viana e Vânia Costa Ramos) pronunciou-se no sentido da compatibilidade da cominação legal de penas acessórias, mesmo no caso de inibição de condução de veículo a motor, com a suspensão provisória do processo.

Disse-se aí: “Se esta for a medida adequada, o julgamento apenas agravará a situação. É bom recordar que a suspensão provisória do processo é uma medida de diversão processual que apenas constitui um desvio à tramitação normal que conduziria ao julgamento. O que se evita com a suspensão provisória do processo é o julgamento, mas não a sanção acessória quando esta possa equivaler, materialmente, à imposição de uma injunção ou regra de conduta. Em tese, a inibição de condução, enquanto sanção acessória, também pode consistir numa injunção aplicada através de suspensão provisória do processo, aliás tornada efectiva mais prontamente do que se fosse aplicada como resultado de uma condenação transitada em julgado”.

A cumulação, no mesmo processo e na sequência da mesma conduta, da injunção e da pena acessória, não coloca, pois, problemas de legalidade nem de constitucionalidade. Essa cumulação “acidental” surge até na decorrência de um comportamento processual do arguido.

Mas para evitar que da vicissitude em causa decorra, se bem que indirectamente, uma preterição ou uma compressão material do ne bis in idem, há que impedir que o condenado “cumpra” por duas vezes, a “proibição de condução”.

Do que se trata é de assegurar que “qualquer efeito já sofrido pelo delinquente deve ser considerado na sentença posterior” (Eduardo Correia, Actas das Sessões da Comissão Revisora do CP, II, p. 166).

Daí que o princípio penal geral do “desconto” encontre previsão nos arts. 80º a 82º do CP. Este “princípio fundamental” abrange “não apenas a prisão preventiva mas outros efeitos já sofridos pelo mesmo facto” (Eduardo Correia, loc. cit.). O que, no presente caso, se prossegue procedendo ao desconto da injunção já cumprida na pena acessória posteriormente aplicada na sentença.

Como se disse no acórdão TRE de 11.07.2013 (Rel. Sénio Alves):

Na verdade, só há duas semelhanças entre a injunção e a pena acessória: em ambas, a arguida tem de entregar a carta e abster-se do exercício da condução”. Que, bem vistas as coisas, é o mesmo que dizer: as duas figuras são distintas, à excepção do facto de serem iguais…

Em termos materiais, substantivos, de fundo, os efeitos decorrentes de uma e outra medida são rigorosamente os mesmos: o arguido entrega a sua licença de condução e abstém-se de conduzir veículos motorizados. A distinta natureza jurídica das duas figuras tem, seguramente, um interesse doutrinário relevante mas não afasta a questão de fundo: caso uma e outra sejam cumpridas, são-no da mesma forma, exigindo do arguido a mesma conduta.

O que nos leva à questão aqui em discussão: vingando a posição sustentada na decisão recorrida, a arguida não irá cumprir duas vezes a mesma proibição de conduzir veículos motorizados? É bem certo que se dispõe no artº 282º, nº 4 do CPP que em caso de incumprimento das injunções e regras de conduta “o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas”.(…)

E assim vistas as coisas, obviamente que a “prestação” em causa nestes autos não é repetível. Como restituir à arguida os 3 meses em que esteve privada de conduzir veículo automóvel?

A questão é outra e consiste em saber se tendo a arguida cumprido a obrigação de entregar a sua carta de condução e de se abster de conduzir veículos motorizados por 3 meses, deve ser considerada cumprida a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 3 meses em que veio a ser condenada, na sequência da revogação da suspensão provisória do processo. (…)

A injunção cumprida pela arguida teve em vista o mesmíssimo facto. E foi cumprida da mesmíssima forma como o seria a pena acessória em cujo cumprimento foi condenada. Que diferença existe, então, a impedir que se considere efectuado o cumprimento?

E ainda que se continue a insistir na diferente natureza jurídica das duas figuras, permita-se-nos a questão: porventura não têm a prisão preventiva e a pena de prisão natureza (e finalidades, já agora) distintas? E, contudo, não é a primeira objecto de desconto na segunda?

Que dificuldade dogmática existe, então, em proceder de igual modo na situação dos autos?

(…) A questão não se coloca ao nível da condenação, antes relativamente ao cumprimento da pena (acessória).

Sendo totalmente descabido que alguém possa ser obrigado a cumprir a mesma pena duas vezes, a pretensão da recorrente há-de proceder. Com efeito, a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor mostra-se extinta, pelo cumprimento ocorrido entre 12/8/2011 e 14/11/2011.

Em conclusão: a injunção de proibição de conduzir veículos com motor, aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo, deve ser objecto de desconto na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, aplicada em sentença proferida na sequência da revogação daquela suspensão.”

Também Jescheck e Weigend se pronunciam neste sentido.

Dizem os autores, no seu Tratado de Derecho Penal, a pág. 845: “Si durante el processo penal el autor fue privado provisionalmente del permisso de conducir (…), entonces el tiempo transcorrido sin el mismo se abona por completo a la duración de la prohibición de conducir”

Concorda-se, por último, com P. Pinto de Albuquerque quando refere, em anotação ao art. 80º do CP, que “o desconto é uma operação que compete ao tribunal de julgamento, na sentença condenatória” e que “a omissão da decisão sobre o desconto na sentença constitui uma nulidade do art. 379º, nº 1- al. c) do CPP, na medida em que a operação implica uma valoração do tribunal (neste sentido, Eduardo Correia in Actas CP/Eduardo Correia, 1965, 166 e 167, e Figueiredo Dias, 1993: 298 e 299, que entende que mesmo quando legalmente predeterminado, o desconto deve ser sempre mencionado na sentença) ” (in P. Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, 2ª ed. p. 293).

Estando a Relação em condições de suprir a nulidade, pois reconhece-se nesta parte a razão do recorrente, determina-se que os 5 meses de proibição de condução de veículos motorizados cumpridos a título de injunção, sejam descontados na pena de 6 meses de proibição de condução aplicada na sentença.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar parcialmente procedente o recurso, ordenando-se o desconto dos 5 meses de proibição de condução de veículos motorizados cumpridos pelo arguido a título de injunção, no cumprimento da pena acessória, mantendo-se a sentença na parte restante.

Sem custas.

Évora, 03.11.2015

Ana Maria Barata de Brito
Maria Leonor Vasconcelos Esteves