1) O interesse em agir ou interesse processual consiste na necessidade justificada, razoável, em prosseguir a acção;
2) Nas acções de simples apreciação, que se destinam a obter a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto, o interesse em agir traduz-se numa situação de incerteza ou de dúvida grave e objectiva.
Apelação (N)
2.ª Secção Cível
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
A)
1. [A] e marido [B],
2. [C] e esposa [D],
3. [E] e esposa [F] e
4. [G],
vieram intentar acção com processo comum, na forma sumária contra:
1. [H],
2. [I] e esposa [J],
3. [K],
4. [L] e esposa [M],
5. [N] e marido [O], e
6. [P] e marido [Q],
onde concluem pedindo que o Tribunal declare que:
a) O prédio identificado deste articulado se encontra dividido, por usucapião, em cinco lotes, pela forma supra descrita, que correspondem a cinco novos prédios autónomos e distintos;
b) Os autores [A] e marido são donos, em propriedade plena, do lote C, por o haverem adquirido por usucapião;
c) Os autores [C] e esposa são donos, em propriedade plena, do lote B, por o haverem adquirido por usucapião;
d) O autor [E] é dono, em propriedade plena, do lote E, por o haver adquirido por usucapião;
e) A autora [G] é dona, em propriedade plena, do lote D, por o haver adquirido por usucapião;
2. Condene os réus a reconhecer o que acima se pede seja declarado.
Apesar de citados, os réus não apresentaram contestação.
Nas alegações de recurso dos autores, são formuladas as seguintes conclusões:
1. Os autores têm interesse em agir.
2. Citados para a acção os réus não contestaram, pelo que todos os factos alegados na petição inicial estão provados por reconhecidos.
3. Com interesse para a decisão do presente recurso, está provado que:
- No lugar de Carvalhal, da freguesia de Vitorino das Donas, concelho de Ponte de Lima, existe o prédio rústico, composto de leira de cultivo, a confrontar, actualmente, no seu todo, do norte com caminho público e [R], do sul com estrada nacional 203, do nascente com [S] e do poente com caminho público e [R], inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1 021.º, com o valor patrimonial de € 97,79 (artigo 1.º da petição inicial);
- O prédio referido no artigo anterior acha-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima sob o n.º 00672/970117-freguesia de Vitorino das Donas (artigo 2.º da petição inicial);
- O prédio foi dividido em seis lotes (artigo 1.º da petição inicial);
- Os autores são donos dos lotes que, respectivamente, lhes são atribuídos na petição inicial, por os terem adquirido por usucapião (artigos 12.º a 26.º, inclusive, da petição inicial).
4. Não existe nenhum documento ou título que reconheça a divisão do prédio nem a aquisição das partes dela resultantes.
5. Apenas a sentença judicial pode reconhecer a divisão do prédio por usucapião e as consequentes aquisições.
6. Face aos pedidos formulados pelos autores e à respectiva causa de pedir, estamos perante uma acção declarativa de condenação, para cujo conhecimento e julgamento é competente o Tribunal recorrido.
7. A presente situação não preenche os requisitos da justificação notarial ou no registo predial, pois não existe harmonização com a matriz nem é possível obtê-la, por inexistência de título comprovativo do fraccionamento do prédio por usucapião (cf. artigos 28.º e 117.º-A do Código do Registo Predial).
8. Os réus são parte legítima.
9. Sendo comproprietários do prédio do qual se pede o reconhecimento da divisão por usucapião, os réus têm interesse em contradizer (direito de contestação que podem ou não exercer).
10. A douta sentença recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos artigos 2.º, n.º 2, 4.º e 26.º do Código de Processo Civil.
Concluem os apelantes entendendo dever ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, com as legais consequências.
E) Foram colhidos os vistos legais.
A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
Sobre o que seja o interesse em agir - designação esta que teve origem na doutrina italiana – e que alguns autores preferem chamar interesse processual pode dizer-se que consiste na necessidade de usar o processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção (Prof. Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, página 179).
Trata-se de um pressuposto processual inominado que avulta essencialmente do lado activo da lide, da parte do autor, embora também possa existir da parte do réu.
O interesse em agir ou interesse processual pressupõe uma necessidade justificada, razoável, em prosseguir a acção, não tem de ser absoluta, mas também não deverá constituir um mero capricho ou um puro interesse subjectivo em obter uma decisão judicial (ibidem, 180/181).
Se atendermos aos pedidos formulados na acção verifica-se que estamos perante uma acção de simples apreciação, que o artigo 4.º n.º 1 alínea a) do Código de Processo Civil qualifica como tendo por fim obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
Isto é, trata-se daquelas acções que visam reagir contra uma situação de incerteza e pressupõe a declaração de um facto juridicamente relevante.
A propósito da determinação do interesse processual ou interesse em agir nas acções de simples apreciação diz-se (ibidem, 186 e segs.) que “destinando-se essas acções a «obter unicamente a declaração da existência ou inexistência dum direito ou dum facto», tem-se entendido que não basta qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na acção”, tendo-se sustentado que “nas acções de simples apreciação, a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objectiva e grave.
Será objectiva a incerteza que brota de factos exteriores, de circunstâncias externas e não apenas da mente ou dos serviços internos do autor.
As circunstâncias exteriores geradora da incerteza podem ser da mais variada natureza, desde a afirmação ou negação dum facto, o acto material de contestação dum direito, a existência de um documento falso até a um acto jurídico, etc.
A gravidade da dúvida medir-se-á pelo prejuízo (material ou moral) que a situação de incerteza possa criar ao autor…
Só quando a situação de incerteza, contra a qual o autor pretende reagir, através da acção de simples apreciação, reunir os dois requisitos postos em destaque – a objectividade, de um lado; a gravidade, do outro – se pode afirmar que há interesse processual.”
Conforme se refere no Acórdão do STJ de 25/11/2008, de que foi relator o Conselheiro Azevedo Ramos, disponível em www.dgsi.pt, “o autor que intenta uma acção de simples apreciação tem de demonstrar o seu interesse em propor a acção, a sua necessidade em obter a declaração judicial da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.
Tendo as acções de simples apreciação por único objectivo pôr termo a uma situação de incerteza, só é legítimo o recurso a este tipo de acções quando o autor estiver perante uma incerteza real, séria e objectiva, de que lhe possa resultar um dano.
O facto cuja existência se pretende ver declarado não pode ser um facto qualquer, mas apenas um facto jurídico, ou seja, um facto de que promanem efeitos jurídicos.”
No caso dos autos, como se referiu, os autores pretendem que o Tribunal declare que:
a) O prédio identificado deste articulado se encontra dividido, por usucapião, em cinco lotes, pela forma supra descrita, que correspondem a cinco novos prédios autónomos e distintos;
b) Os autores [A] e marido são donos, em propriedade plena, do lote C, por o haverem adquirido por usucapião;
c) Os autores [C] e esposa são donos, em propriedade plena, do lote B, por o haverem adquirido por usucapião;
d) O autor [E] é dono, em propriedade plena, do lote E, por o haver adquirido por usucapião;
e) A autora [G] é dona, em propriedade plena, do lote D, por o haver adquirido por usucapião.
Importa ter em conta que, de acordo com o alegado na petição inicial, está em causa um prédio um prédio rústico que, num inventário obrigatório que correu termos no Tribunal Judicial de Ponte de Lima, que terá sido adjudicado:
- à autora [A], em raiz ou nua propriedade, na proporção de 1/6;
- ao autor [C], em raiz ou nua propriedade, na proporção de 1/6;
- ao autor [E], em raiz ou nua propriedade, na proporção de 1/6;
- à autora [G], em raiz ou nua propriedade, na proporção de 1/6;
- aos réus [H], [I], [K], [L], [N] e [P], em raiz ou nua propriedade, na proporção de 1/36 para cada;
- a [T], casada com [U] sob o regime da comunhão geral de bens, em raiz ou nua propriedade, na proporção de 1/6.
Trata-se – repete-se – de matéria alegada pelos autores.
Não resulta nem da matéria alegada, nem dos autos que exista essa situação de incerteza ou dúvida grave e objectiva quanto ao direito invocado pelos autores, isto é, que tenha havido qualquer actividade, afirmação ou negação de factos que permitam afirmar a existência de uma situação de dúvida ou incerteza quanto ao invocado direito dos autores, que justifique o recurso aos meios judiciais e, como tal, não se pode afirmar a existência do interesse em agir, por parte dos autores (neste mesmo sentido cfr., ainda, a título exemplificativo, o Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 05/05/2004, de que foi relator o Desembargador Espinheira Baltar, disponível na Base de Dados do Ministério da Justiça no endereço www.dgsi.pt).
Nem se diga, como o fazem os autores, que não podem recorrer ao processo de justificação previsto no artigo 116.º do Código de Registo Predial.
Com efeito, o que os autores pretendem é que se declare que os autores terão adquirido os lotes que pertenceram ao prédio, que identificam, por usucapião – importa esclarecer que o instituto da usucapião não serve para dividir prédios, mas para adquirir direitos, nos termos legais (artigo 1287.º do Código Civil), embora possa ter como consequência a divisão de prédios.
E, como muito bem se refere no acórdão citado, “para tal, necessitarão duma decisão, para reatarem o trato sucessivo.
Porém, para obterem esse título, o legislador colocou meios processuais próprios ao dispor dos cidadãos, com a eficácia duma sentença, mas em que se exige um processualismo menos solene.
Após 22 de Agosto de 1984, consagrou, no Decreto-Lei n.º 284/84, a acção de justificação judicial, que tinha essa finalidade.
Acontece que, com o Decreto-Lei n.º 273/01, de 13 de Outubro, e numa “estratégia de desjudicialização de matérias que não consubstanciam um verdadeiro litígio”, foi transferido para os conservadores do registo predial, o conhecimento desta matéria.
Assim, nos termos do artigo 8.º n.º 2 do referido diploma, foi revogado expressamente o decreto-lei 284/84 de 22 de Agosto, e foi alterado o Código de Registo Predial, consagrado no decreto-lei 553/99 de 11 de Dezembro, de molde a que os conservadores do registo predial assumissem as competências, nesta matéria, que, anteriormente, estavam conferidas aos tribunais.
Daí que houvesse uma adaptação do Código de Registo Predial, mais concretamente a redacção dos artigos 116.º, 118.º, 120.º a 131.º e o aditamento dos artigos 117.º-A a 117.º-P e 132.º-A a 132.º-D.
Assim, face a esta nova legislação, quem tem competência para conhecer da matéria que os autores pretendem, são os conservadores do registo predial…”
Do exposto resulta prejudicada a apreciação da excepção de ilegitimidade passiva dos réus.
1) O interesse em agir ou interesse processual consiste na necessidade justificada, razoável em prosseguir a acção;
2) Nas acções de simples apreciação, que se destinam a obter a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto, o interesse em agir traduz-se numa situação de incerteza ou de dúvida grave e objectiva.
Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, Acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos apelantes.
Notifique.
Guimarães, 23/02/2010