MINISTÉRIO PÚBLICO
REPRESENTAÇÃO
PODERES DO JUIZ
Sumário

I - As normas que disciplinam a organização do serviço do Ministério Público têm natureza essencialmente ordenatória e técnica, não lhes cabendo tutelar qualquer princípio jurídico de relevo comparável ao do “juiz natural”.
II - Não existe qualquer interesse jurídico relevante que justifique que um juiz tenha o poder de invalidar ou rejeitar atos processuais praticados pelo Ministério Público, por razões que decorram, exclusivamente, da organização do serviço deste.
III - A representação do Ministério Público, no decurso de um mesmo ato processual, é intermutável entre os respetivos Magistrados.

Texto Integral




ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


I. Relatório
No processo comum nº 91/11.9GJBJA, que corre termo no Tribunal da Comarca de Beja, Instância Central, Secção Criminal, a Exmª Juiz desse Tribunal proferiu, em 9/2/15, um despacho com o seguinte teor:
«Conforme já foi referido, a reclamação contra o despacho que não admitiu o recurso foi subscrita pela Sra. Procuradora Adjunta que não exerce funções junto desta Instância Central.
Notificado o Ministério Público na pessoa do Sr. Procurador da República que exerce funções junto desta Instância Central para requerer o que tivesse por conveniente, nada foi dito.
Foi junto aos autos a comunicação constante de fls. 504 e seguintes contendo a posição do Sr. Procurador Coordenador relativamente a esta questão.
Ora não obstante a Magistratura do Ministério Público ser una e indivisível, tal não significa que todo e qualquer Magistrado do Ministério Público possa intervir em todos os processos, inclusivamente naqueles que se encontram a correr termos em Instâncias nas quais não se encontram a exercer funções.
Tal resulta claro, em nosso entender, do disposto no referido art. 101 º n.º 1 al. g) da Lei 62/2013, ao permitir que o Magistrado Coordenador, no exercício dos seus poderes de gestão, possa afectar determinados processos a outros magistrados que não o seu titular. Se é necessária tal decisão por parte do Magistrado Coordenador, então a intervenção por quem não é o titular do processo não pode ser feita na ausência da mesma.
E resulta igualmente do disposto nos art.s 87º nº s 1 e 3 e 101 º al. h) do mesmo diploma legal, ao consagrar a possibilidade de um Magistrado do Ministério Público exercer funções em mais de uma secção da mesma comarca, por determinação do Conselho Superior respectivo sob proposta do Magistrado Coordenador, significando que na ausência de tal determinação o Magistrado apenas exerce as suas funções numa secção da mesma comarca.
No caso concreto não resulta do expediente constante de fls. 504 e seguintes nem foi dada a conhecer a esta Instância Central qualquer decisão no sentido de os presentes autos terem sido afectos a outro Magistrado que não o Sr. Procurador da Republica que exerce funções junto desta Instância Central ou que tenha sido determinado que a Sr. Procuradora Adjunta que subscreveu o requerimento de recurso apresentado tenha passado a exercer também funções junto desta Instância Central, pelo que a mesma não pode intervir no âmbito dos presentes autos.
Em face do exposto e ao abrigo dos supra citados preceitos legais, não admito a reclamação apresentada.
Notifique».
Do despacho transcrito o MP interpôs recurso, devidamente motivado, tendo formulado as seguintes conclusões:
1 - O Ministério Público vem recorrer do despacho judicial proferido a fls. 522 e 523, pelo qual a Mm.ª Juiz da Instância Central da Comarca de Beja rejeitou a reclamação de despacho de não admissão de recurso que interpusera de decisão que deferira o pedido de pagamento do custo de relatório elaborado pela Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais para determinação de sanção;
2 - Para tanto, a Mm.ª Juiz invocou exclusivamente a incompetência da Magistrada (com a categoria de Procuradora-Adjunta) que subscreveu a referida reclamação para intervir no processo que lhe foi distribuído enquanto Juiz da Instância Central;
3 – No âmbito do Processo Penal (à semelhança do que sucede no Processo Civil – cfr. art. 643º do Cód. Proc. Civil) não compete Juiz recorrido julgar inadmissível, ou não, a reclamação apresentada perante o presidente de tribunal superior;
4 – A reclamação, sendo apresentada perante o tribunal recorrido, é dirigida ao presidente do tribunal para onde se recorre, competindo a este qualquer decisão a incidir sobre a mesma, desde a inadmissibilidade até á procedência ou improcedência;
5 - Se a Mm.ª Juiz da Instância Central praticou um acto da exclusiva competência do presidente do tribunal ad quem será admissível considerar que tenha incorrido na nulidade insanável prevista no art. 119º, n.º 1, al. e) do Cód. Proc. Penal, que aqui também se argui nos termos do art. 410º, n.º 3 do Cód. Proc. Penal;
6 - Por que motivo um magistrado do Ministério Público em plenitude de funções em certa Comarca estará legalmente impedido, em razão da sua categoria, de intervir processualmente em processo de qualquer natureza que nela corra termos, no qual até já interveio de fundo?
7 - É inequívoco que não existe qualquer norma legal que fixe uma capitis diminutio funcional aos magistrados do Ministério Público em razão da categoria. As regras que definem níveis de intervenção por categoria e em razão da natureza do processo ou do órgão jurisdicional onde ela deva ocorrer, filiam-se exclusivamente em razões organizacionais, de representação e prestígio institucional;
8 - As intervenções processuais dos Procuradores-Adjuntos em processos que corram termos nas Instâncias Centrais não são inválidas por incompetência funcional, para além de que a posição preconizada no despacho reclamado viola o princípio da independência e unidade do Ministério Público em relação à Magistratura Judicial, na qual esta não se pode imiscuir, muito menos quanto à definição das suas competências e atribuições.
9 – O despacho recorrido vai longe demais, violando o preceituado no art. 219º da C.R.P., ao não respeitar o princípio da unidade e autonomia do Ministério Público, bem como a letra e o espírito do próprio Estatuto do Ministério Público e ainda o art. 119º, n.º 1, al. e) do Cód. Proc. Penal, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que receba a reclamação apresentada.
O recurso interposto foi admitido com subida imediata, em separado, e efeito devolutivo.
Não foram apresentadas respostas à motivação do recurso.
A Exª Juiz «a quo» sustentou a decisão recorrida, sem acrescentar à respectiva fundamentação.
Pela Digna Procuradora-Geral Adjunta junto desta Relação foi emitido parecer favorável à concessão de provimento ao recurso.
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.
II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.
A sindicância da decisão recorrida pretendida pela Digna Recorrente dirige-se exclusivamente a reverter o juízo de rejeição formulado pelo Tribunal «a quo» de uma reclamação apresentada pelo MP de um despacho judicial, que não admitiu um recurso interposto por esta entidade de um outro despacho, que havia determinado o pagamento de uma quantia monetária à DGRSP.
O art. 405º do CPP estatui:
1 - Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 - A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo de 10 dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 - No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 - A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.
A reclamação prevista no normativo acabado de transcrever visa proporcionar ao recorrente um meio processual contra a decisão do Juiz «a quo» que tenha rejeitado o recurso ou tenha determinado a subida deste apenas a final (retenção), mediante a intervenção do Presidente do Tribunal «ad quem».
Por essa razão, não incumbe ao Juiz recorrido, em princípio, o poder de controlar a admissibilidade da reclamação, devendo limitar-se a encaminhar esta, devidamente instruída, para o Presidente do Tribunal de recurso.
No limite, admite-se a eventualidade de o Juiz «a quo» poder não determinar a subida da reclamação, por exemplo, em casos de grosseira ilegitimidade do reclamante, como seria na hipótese de a reclamação ter sido apresentada por pessoa ou entidade diversa daquela que interpôs o recurso mandado reter ou rejeitado.
Todavia, tal hipótese não se verifica no caso em apreço, porquanto tanto a reclamação rejeitada pelo despacho agora recorrido, como o recurso contra cuja rejeição foi dirigida foram encabeçados pela mesma entidade, o MP.
A rejeição decidida no despacho sob recurso baseou-se, em síntese, em que a Digna Magistrada que a subscrevia não exercia então funções junto da Instância Central onde o processo principal corre termos, nem tinha sido dada a conhecer ao Tribunal qualquer determinação hierárquica nesse sentido.
O nº 1 do art. 76º do Estatuto do MP, aprovado pela Lei nº 47/86 de 15/10, sucessivamente alterado até à Lei nº 9/11 de 12/4, estabelece que os Magistrado do MP constituem um corpo responsável e hierarquizado, ao invés dos Magistrados Judiciais que são irresponsáveis e independentes.
De acordo com uma expressão consagrada, a Magistratura do MP é «una e indivisível», pela que a representação da entidade, no decurso de um mesmo acto processual, é intermutável entre os respectivos Magistrados.
Nesta conformidade, as normas que disciplinam a organização do serviço do MP têm natureza essencialmente ordenatória e técnica, não lhes cabendo tutelar, se bem compreendemos qualquer princípio jurídico de relevo comparável ao do Juiz natural, consagrado no nº 9 do art. 32º da CRP:
Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
É por força deste princípio do Juiz Natural que nenhum processo concreto pode ser encaminhado para um Juiz concreto ou ser dele afastado, a não ser por força das normas legais que definem a competência dos Tribunais e da distribuição aleatória.
Semelhantes postulados não valem, manifestamente, para a Magistratura do MP.
Consequentemente, não existe qualquer interesse jurídico relevante que justifique que um Juiz tenha o poder de invalidar ou rejeitar actos processuais praticados pelo MP, por razões que relevem exclusivamente da organização do serviço deste.
Diferentemente, a admitir-se o contrário, estar-se-á pôr em cheque o princípio da auton0omia do MP, que tem também assento constitucional, no nº 2 do art. 219º da CRP.
É certo que os princípios de colaboração, cortesia e urbanidade que devem pautar as relações entre as Magistraturas aconselham a que as alterações na distribuição do serviço do MP sejam oportunamente comunicadas aos Tribunais ou Juízes interessados.
Contudo, se tal imperativo não for observado, não fica legitimada, por isso, a rejeição pelo Juiz de actos processuais do MP, praticados ao abrigo da alteração não comunicada.
Em última análise, aceita-se que o Juiz não admita um acto processual praticado em nome do MP se tiver suspeitas fundadas de uma usurpação de funções, ou seja, que a pessoa que o pratica não seja sequer Magistrado do MP, mas, claramente, não é isso que está em causa no despacho sob recurso.
Como tal, e sem necessidade de mais considerações, terá o presente recurso de proceder.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, determinando a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento da tramitação da reclamação rejeitada.
Sem custas.
Notifique.

Évora 19-11-2015

(processado e revisto pelo relator)

Sérgio Bruno Póvoas Corvacho

João Manuel Monteiro Amaro