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DESOBEDIÊNCIA
DELEGAÇÃO DE PODERES
Sumário
I - No que se refere à competência da Câmara Municipal e do seu Presidente, o Dec.-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei nº 177/2001, de 4 de Junho, em nada contende com o regime da delegação e subdelegação de competências daqueles órgãos autárquicos, constante da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro II - Pode, pois, concluir-se que existe lei habilitante (artigo 69º, n.º2 do Lei n.º 169/99) que permite a delegação de competência própria do Presidente da Câmara no que respeita à concessão de licenças ou autorizações de utilização de edifícios, embargo, demolições, despejos sumários, isto é, às matérias previstas nas alíneas l) a n) do n.º2 do artigo 68º da Lei n.º 169/99. III - Quanto à medida de tutela da legalidade urbanística prevista no artigo 109º do RJUE (cessação da utilização) não existe lei habilitante. Com efeito, nem o RJUE prevê a possibilidade de o Presidente da Câmara poder delegar num vereador a competência para ordenar a cessação de utilização, nem essa possibilidade lhe é outorgada por qualquer outra lei, nomeadamente a citada Lei n.º 169/99. IV- Deste modo, por não existir lei habilitante, não comete o crime de desobediência o agente que não acata a ordem contida no despacho de um vereador, em quem o Presidente de Câmara havia delegado tal competência, no sentido de cessar a utilização de uma pavilhão.
Texto Integral
No 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, no âmbito do Processo Comum Singular nº 132/ 06. 1ATAGMR, por despacho de 28 de Outubro de 2009, foi rejeitada a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos Carlos R..., Miguel O..., Rui M... e Avelino S..., todos com os demais sinais dos autos, na qual lhes imputava, a cada um deles, a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 348º, nº 1, alínea a), do Código Penal, 100º, nº 1, 106º e 109º,n.º1, do Dec.-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º nº 177/2001, de 4 de Junho. *
Inconformado com tal despacho, o Ministério Público dele interpôs recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
«1ª- Em conformidade com o art.º 69º, n.º2 da Lei n.º 169/99, de 18.9, os poderes do presidente de câmara municipal, designadamente os previstos no art. 53º, n.º1,alínea m) da referida lei “embargar e ordenar a demolição de quaisquer obras, construções ou edificações”) podem ser objecto de delegação;
2ª -Improcede a conclusão de que a entidade que proferiu a ordem de cessação de utilização não tinha competência para o efeito, devendo prevalecer a regra geral contida no aludido art. 69º, n.º2 da Lei n.º 169/99.
3ª - O legislador na Lei n.º 169/99 pretendeu claramente atribuir ao Presidente da Câmara Municipal a decisão de delegar quaisquer das suas competências, sem impor limites, ao contrário do que sucede com as competências da própria câmara municipal, titular de competências indelegáveis.
5ª- A Lei n.º 169/99 constitui lei de valor reforçado (artigo 112.°, n.º3 da Constituição da República Portuguesa); ainda que a Lei n.º 169/99 não pudesse ser considerada como lei de valor reforçado nos termos do artigo 112.°, n.º3 da Constituição da República Portuguesa, por ser uma lei que define a base do regime jurídico em causa sempre gozaria da tutela que também é reforçada no n.º2 do art.º 122º Constituição da República Portuguesa, que estabelece que as leis e decretos-lei têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-lei…que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos
6ª - O DL 555/99, de 16/12, com as alterações introduzidas pelo DL 177/2001, de 04/06 nunca poderá limitar os poderes de delegação e subdelegação previstos na Lei n.º 169/99.
7ª - A delegação de competência do presidente da câmara municipal de Guimarães a favor do vereador é juridicamente relevante e produz os seus efeitos legais (:o legislador da Lei n.º 169/99 pretendeu claramente atribuir ao Presidente da Câmara Municipal a decisão de delegar quaisquer das suas competências, sem impor limites, ao contrário do que sucede com as competências da própria câmara municipal).
8ª - Estando assim previstas no artigo 68º, n.º2, al. m) da lei n.º 169/99, lei-quadro de competências e regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias que define a base do regime jurídico em causa, aquelas mesmas competências definidas no RJUE e no artigo 69º, n.º2 da lei n.º 169/99 a possibilidade de delegação, o RJUE não precisa de prever expressamente a delegação de competência, pelo que a delegação é plenamente válida.
9ª - Uma vez que os arguidos, devidamente notificados para o efeito, não cumpriu as ordens que determinavam a cessação de utilização do aludido pavilhão ou parte dele, na sequência dos despachos proferidos pelo Exmo Vereador da Câmara Municipal de Guimarães, cometeram o crime de desobediência que lhe é imputado nos presentes autos, pelo qual devem ser julgados.
10ª A acusação só pode ser rejeitada por manifestamente infundada, desde que, por forma clara e evidente, seja desprovida de fundamento, por ausência de factos que a alicercem ou porque os dela constantes não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal e nenhuma destas situações se verifica no caso em apreço; os autos contêm todos os elementos suficientes que permitem fundamentar a prolação de um despacho que receba a acusação pública deduzida na sua totalidade; a acusação está alicerçada em indícios suficientes e é manifestamente fundada.
11ª - No despacho recorrido fez-se um pré-julgamento, o qual que não se coaduna nem com a natureza nem com as finalidades da face processual em causa e do despacho impugnado, previsto no artigo 311º Código de Processo Penal, sem as exigências que caracterizam a audiência de julgamento e os vários princípios que o enformam; nesse Despacho recorrido tomou-se posição final sobre o mérito da questão da verificação ou inverificação da prática do crime de desobediência e procedeu-se ainda um controle sobre a existência ou inexistência de indícios do crime, o que não lhe é permitido face à nova redacção do artigo 311º Código de Processo Penal.
12ª - O vocábulo "manifestamente" (art 311°. CPP) é a chave para a interpretação/resolução do problema em apreço, sobressaindo a impressão que o despacho impugnado não se estriba na completa ausência de descrição de factos essencialmente constitutivos do tipo, mas numa discordância com uma questão de interpretação do Direito muito longe de ser pacífica.
13ª - O despacho recorrido violou o artigo 311°. Código de Processo Penal e os arts 106°, 100° e 109°. N°. 1 do DL 555/91 e DL 177/2001 de 04/06; 68°, n.º2 e 69° da Lei 169/99 de 18/09 e art.º 348° do Código Penal e tais normas conjugadas entre si devem ser interpretadas no sentido de que os arguidos devem ser julgados pelo crime que lhes foi imputado.»
Termina pedindo que “o despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que receba a acusação.”
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Os arguidos não responderam ao recurso.
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O recurso foi admitido, para o Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho constante de fls. 507.
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Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º2, do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais vieram os autos à conferência, pelo que cumpre conhecer.
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II- Fundamentação 1. Conforme é sabido, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (artigos 402º, 403º, 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e, v.g., Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ n.º 458, pág. 98)
Neste recurso, a única questão a apreciar e decidir consiste em saber se o Presidente da Câmara pode ou não delegar num vereador a competência para ordenar e fixar prazo para a cessação da utilização a que se refere o artigo 109º do Dec.Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro (Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação).
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2. A fundamentação da decisão recorrida
É a seguinte a fundamentação da decisão recorrida (transcrição):
«O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal. Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
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II - Registe e autue como processo comum com intervenção do tribunal singular.
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III - Rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos Carlos R...; Miguel O...; Rui M... e Avelino S... pelas razões que se passam a expor:
Nos presentes autos de processo comum singular, vem imputada a cada arguido a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348°, n.º1, a!. a), Cód. Penal, com referência aos arts. 100°, n.º 1, 106° e 109°, n.º 1, do DL n.º 555/99, de 16.12, na redacção dada pelo DL n.º 177/2001, de 4.6.
Nos termos do art. 348°, n.º 1, a), do C. Penal, comete o crime de desobediência quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
São elementos objectivos do crime de desobediência: - a ordem ou mandado; - a legalidade substancial e formal da ordem ou mandado; - a competência da autoridade ou funcionário para a emissão da ordem ou mandado; e - a regularidade da sua transmissão ao destinatário.
A ordem ou mandado têm de se revestir de legalidade substancial (têm de se basear numa disposição legal que autorize a sua emissão ou decorrer dos poderes discricionários do funcionário ou autoridade emitente) e formal (a sua emissão deve conformar-se com as formalidades estipuladas pela lei para o efeito)
É ainda indispensável que a autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado tenham competência para o fazer, ou seja, que aquilo que pretendem impor esteja compreendido na esfera das suas atribuições.
Por fim, exige-se que a ordem ou mandado sejam transmitidas aos seus destinatários de uma forma que lhes permita tomar efectivo conhecimento daquilo que lhes é imposto ou exigido.
Para que se considere preenchido este tipo legal de crime, aos elementos objectivos descritos há-de acrescer o dolo do agente (elemento subjectivo), nos termos dos arts. 13° e 14° do CP.
Segundo o enunciado fáctico contido na acusação pública, "Em data não concretamente apurada, mas anterior a 1998, no Lugar de Sabroso, em 5. Lourenço, em área desta comarca de Guimarães, foi construído um pavilhão pela firma "V..., Lda. ", descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n. ° 202/Sande S. Lourenço.
Ora, tal obra foi embargada, pois encontra-se na zona de protecção ao Castro Sabroso e na Reserva Ecológica Nacional, sendo Zona não Urbanizável por despacho do Sr. Vereador, com competência delegada, datado de 28 de Janeiro de 1998 e posteriormente, foi mesmo ordenada a sua demolição por despacho datado de 07 de Agosto de 1998.
Entretanto, em data não concretamente apurada, tal pavilhão passou a pertencer à firma "Imobiliária P..., SA", a qual, por sua vez e igualmente em data não concretamente apurada, permitiu mediante compensação monetária que a firma "R..., Lda" ocupasse parte do referido pavilhão e a outra parte foi cedida à oficina de automóveis "Auto S...".
Sucedendo que, no dia 01 de Abril de 2003, em cumprimento do despacho de 02 de Dezembro de 2002, do Sr. Vereador, com competência delegada, Domingos B..., o fiscal municipal ordenou ao arguido Rui , administrador da firma "Imobiliária P..." que procedesse, no prazo de 60 dias úteis, à cessação da utilização do aludido pavilhão.
O arguido Rui foi notificado pessoalmente dessa decisão no dia 04 de Dezembro de 2002, sendo-lhe comunicada a ordem de despejo e que caso assim não procedesse voluntariamente, incorreria na prática do crime de desobediência.
Além disso, no dia 19 de Novembro de 2003, em cumprimento do despacho datado de 13 de Outubro de 2003, do Sr. Vereador, com competência delegada, Domingos B..., através do qual manteve o seu despacho datado de 02 de Dezembro de 2002, o fiscal municipal Ricardo M... ordenou agora ao arguido Avelino , enquanto representante da firma "Imobiliária P..." que procedesse, no prazo de 30 dias, à cessação da utilização do aludido pavilhão.
O arguido Avelino foi notificado pessoalmente dessa decisão, sendo-lhe comunicado a ordem para desocupar o pavilhão e que caso a sim não procedesse voluntariamente, incorreria na prática do crime de desobediência.
Por sua vez, no dia 04 de Dezembro de 2002, igualmente em cumprimento do despacho de 02 de Dezembro de 2002, do Sr. Vereado, com competência delegada, Domingos B..., o fiscal municipal ordenou ao arguido Carlos, gerente da firma "R..., Lda" que procedesse, no prazo de 60 dias úteis, à cessação da utilização do aludido pavilhão.
O arguido Carlos foi notificado pessoalmente dessa decisão, no dia 04 de Dezembro de 2002, sendo-lhe comunicada a ordem de despejo e caso assim não procedesse voluntariamente, incorreria na prática do crime de desobediência.
No entanto, no dia 30 de Março de 2004, quando os fiscais municipais da Câmara Municipal de Guimarães ai se dirigiram, verificaram que o arguido não tinha acatado à ordem de desocupação do pavilhão.
Por ser turno, o arguido Miguel, proprietário da oficina de automóveis "Auto S...", foi notificado pessoalmente do despacho que ordenou a cessação de utilização do aludido pavilhão em 2 de Junho de 2004.
Este despacho concedia o prazo de 15 dias úteis para a desocupação, porém, no dia 29 de Junho de 2004, quando os fiscais Municipais aí se dirigiram verificaram que o arguido não tinha acatado o que lhe foi ordenado, não tendo desocupado o pavilhão aí continuando a ter uma oficina de automóveis denominada "Auto S...".
A isto acresce, que em Janeiro de 2006, o pavilhão em apreço ainda continuava ocupado.
Os arguidos agiram de forma deliberada, livre e consciente, cientes de que deviam proceder à desocupação do aludido pavilhão conforme foram notificados na sua pessoa e da responsabilidade que sobre eles impendia caso não acatassem aquela ordem. Todavia, não procederam a tal desocupação, com o propósito de faltarem à obediência devida, não cumprindo a sua obrigação, apesar de saberem que o seu comportamento era proibido e punido por Lei.".
Resulta, pois, dos factos descritos na acusação que cada um dos aludidos arguidos, na qualidade ali descrita e nas datas também ali referidas, foi notificado do despacho que ordenava a cessação da utilização daquele (ou parte daquele) aludido pavilhão, despacho, esse, proferido pelo vereador da Câmara Municipal de Guimarães.
Ora, estabelece o art. 109°, n.º 1, do DL n.º 555/99 de 16/12 (RJ.U.E.) que "Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 20º do Decreto-Lei n.º 281/99, de 26 de Julho, o presidente da câmara municipal é competente para ordenar e fixar prazo para a cessação da utilização de edifícios ou de suas fracções autónomas quando sejam ocupados sem a necessária licença ou autorização de utilização ou quando estejam a ser afectos a fim diverso do previsto no respectivo alvará."
Por seu turno, estabelece-se no art. 100°, n.º 1, do referido Dec.- Lei que "o desrespeito dos actos administrativos que determinem qualquer das medidas de tutela da legalidade urbanística previstas no presente diploma constitui crime de desobediência, nos termos do artigo 348° do Código Penal."
Estabelece o art. 266°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (e também o art. 3.° n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo), que "Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à constituição e à lei" ou seja, todos e quaisquer actos da administração estão subordinados ao principio da legalidade.
Assim, no caso sub judicio a questão coloca-se ab initio relativamente a uma ordem ou mandado derivado ou emergente directamente de um acto que lhe subjaz (pois que se trata efectiva ente de um acto administrativo tal como o define o artigo 120.º do Código de Procedimento Administrativo pois provém de uma decisão de um órgão da administração, in casu a Câmara Municipal de Guimarães)
Ora, nos termos do disposto nos artigos l.º e 2.º do Código de Procedimento Administrativo, a decisão ou despacho que determinou a cessação da utilização está necessariamente sujeita aos procedimentos previstos neste código salvo se lei especial expressamente os afastar.
Tratando-se de uma autarquia local, como é o caso, as atribuições e competências vêm definidas na Lei n,º 169/99, de 18/09,
A Câmara Municipal é o órgão executivo colegial do município (art. 56°, n.º 1, da Lei n.º 169/99 de 18/09)
Dispõe o artigo 68.°, n.º 2, alínea l), desta lei que a competência para "conceder, nos casos e nos termos previstos na lei, licenças ou autorizações de utilização de edifícios" é uma competência própria do Presidente da Câmara Municipal, sendo certo que, não está expressamente prevista a competência para deliberar a cessação dessa utilização.
O artigo 69.°, n.º 2, da mesma lei dispõe que o Presidente da Câmara Municipal pode delegar o exercício da sua competência própria nos vereadores da Câmara Municipal, como aliás, diga-se, o prescreve igualmente o artigo 102.°, n. ° 1 do referido RJUE.
Ora, certo é que o art. 109°, n.º1 do DL n.º 555/99 de 16/12, decreto lei posterior à Lei n.°169/99 de 18/09, veio estabelecer a competência do presidente da câmara municipal para ordenar e fixar prazo para a cessação da utilização de edifícios ou de suas fracções autónomas quando sejam ocupados sem a necessária licença ou autorização de utilização ou quando estejam a ser afectos a fim diverso do previsto no respectivo alvará, sem do mesmo passo prever expressamente a possibilidade de delegação ou subdelegação de poderes, quando é certo que a prevê expressamente a respeito de muitas outras (cfr. arts 5°, 8°, 11 ° n.º9, 19° n.º12 e 75°).
Parece assim que o legislador, ao não fazer idêntica previsão nesta matéria, deliberadamente não a quis prever.
Neste mesmo sentido, pode ler-se Ac. da Relação do Porto de 6/12/2006, de que "o legislador, ao não fazer idêntica previsão nesta matéria, pretendeu vedar quanto a ela a possibilidade de delegação ou subdelegação de poderes, reservando para a competência exclusiva do presidente da câmara a decisão sobre a aplicação daquelas medidas, O que a bem se compreende se tivermos em conta o alcance e a gravidade das medidas em causa".
No mesmo sentido decidiram os Ac. de 9.7.2007, proferido no Rec. N.º 1211 - 07 (Relator: Juiz Desembargador José Maria Tomé Branco); Ac. de 30.6.2008, proferido no Rec. 741/08 - 1 (Relator: Juiz Desembargador Estelita Mendonça).
Destarte, "in casu", forçoso é concluir, que o vereador que emitiu a ordem não obedecida, de cessação da utilização, não tinha competência para emitir, por impossibilidade de delegação dos poderes do presidente da câmara.
Assim, e desde logo, não está, in casu, preenchido um dos referidos elementos objectivos do tipo legal em apreço.
Ora, nos termos do disposto no art.º 311°, n.º 2, al. a) do C.P.P., se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
Para efeitos do disposto naquele preceito, considera-se a acusação manifestamente infundada se, entre outras circunstâncias, os factos nela descritos não constituírem crime (art.º 311°, n.º 3, al. d) do C.P.P.).
E, porque entendemos que os factos descritos na acusação não integram a prática de qualquer ilícito criminal, nos termos do disposto no art.° 311º, n.º 2, al. a) do C.P.P. decide-se rejeitar a acusação deduzida nos presentes autos contra os arguidos.
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IV - Face ao exposto, decido rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos acima identificados e, em consequência, determinar o arquivamento dos autos.
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Notifique.»
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3. Em matéria de desobediência a algumas medidas de tutela da legalidade urbanística, a jurisprudência desta Relação no ano de 2008 dividiu-se quanto à existência de lei habilitante que possibilite a delegação de poderes.
Assim, em 25-1-2009, era o seguinte o panorama jurisprudencial: 1) Em matéria de demolição de obra:
a) No sentido de que não comete o crime de desobediência aquele que não acata ordem de demolição de obra determinada por vereador a quem o presidente da Câmara municipal tinha delegado tal poder, por se considerar não existir lei habilitante, podem citar-se os seguintes arestos:
- Ac. de 25-5-2008, proc.º n.º 6276/08-2ª, rel. Tomé Branco;
- Ac. de 15-9-2008, proc.º n.º 678/08-2, rel. Anselmo Lopes;
b) Pelo contrário, considerando existir lei habilitante:
- Ac. 23-6-2008, proc.º n.º 815/08-1ª, rel. Estelita de Mendonça;
- Ac. 8-9-2008, proc.º n.º 1060/08-2ª, rel. Cruz Bucho;
- Ac. de 25-1-2009, proc.º n.º 1301/08, rel. Filipe Melo.
2) Em matéria de embargo:
a) No sentido de não existir lei habilitante:
- Ac. de 23-6-2008, proc.º n.º 119108-1, rel. Nazaré Saraiva
b) Considerando existir lei habilitante :
- Ac. 8-9-2008, proc.º n.º 1060/08-2ª, rel. Cruz Bucho;
- Ac. 22-9-2008, proc.º n.º 63/08-1ª, rel. Ricardo Silva.
Pode ver-se uma resenha dos sumários destes arestos, in António Ribeiro e José António Barreto Nunes, Crónica do Tribunal da Relação de Guimarães, in Scientia Iuridica, Julho-Setembro 2008, tomo LVII, n.º 315, págs. 552-559, onde se informa que “a breve prazo, logo que se verifique identidade fáctica, o Ministério Público interporá o competente recurso para o STJ para fixação de jurisprudência”(pág. 556).
O referido recurso para fixação de jurisprudência veio a ser rejeitado por razões de índole processual.
A questão já foi por nós analisada nos Acs. de 8-9-2008, proc.º n.º 1060/08-
2ª, de 9-3-2009, proc.º n,º Proc.º n.º 266/07.5TAGMR e de 9-7-2009, proc.º
n.º 2396/06.1TAGMR.G1 pelo que não se estranhará que deles se reproduz-
am longos excertos.
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4. O crime de desobediência
§1. Os arguidos vinham acusados, cada um deles, da prática de um crime de desobediência p. e p. pelo n° 1 do art. 348° do C. Penal, o qual dispõe que "Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.".
São, pois, elementos objectivos do crime de desobediência:
- a ordem ou mandado;
- a legalidade substancial e formal da ordem ou mandado;
- a competência da autoridade ou funcionário para a emissão da ordem ou mandado; e
- a regularidade da sua transmissão ao destinatário.
A ordem ou mandado têm de se revestir de legalidade substancial (têm de se basear numa disposição legal que autorize a sua emissão ou decorrer dos poderes discricionários do funcionário ou autoridade emitente) e formal (a sua emissão deve conformar-se com as formalidades estipuladas pela lei para o efeito).
É ainda indispensável que a autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado tenham competência para o fazer, ou seja, que aquilo que pretendem impor esteja compreendido na esfera das suas atribuições.
Por fim, exige-se que a ordem ou mandado sejam transmitidas aos seus destinatários de uma forma que lhes permita tomar efectivo conhecimento daquilo que lhes é imposto ou exigido.
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§2. Conforme resulta da acusação os arguidos foram notificados do despacho que ordenava a cessação da utilização de um pavilhão que fora construído na zona de protecção ao Castro Sabroso e na Reserva Ecológica Nacional, sendo Zona não Urbanizável, despacho esse proferido pelo vereador do pelouro do urbanismo da Câmara Municipal de Guimarães.
Nos termos da alínea d) do n.º1 do artigo 98º do do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação aprovado pelo Dec.-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro (RJUE), “Sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou disciplinar, são puníveis como contra-ordenação: d) A ocupação de edifícios ou suas fracções autónomas sem autorização de utilização ou em desacordo com o uso fixado no respectivo alvará ou na admissão de comunicação prévia, salvo se estes não tiverem sido emitidos no prazo legal por razões exclusivamente imputáveis à câmara municipal”
De acordo com o n.º1 do artigo 109º do citado RJUE, o Presidente da Câmara Municipal é competente para ordenar e fixar prazo para a cessação da utilização de edifícios ou de suas fracções autónomas quando sejam ocupadas sem a necessária autorização ou quando estejam afectos a fim diverso do previsto no respectivo alvará.
Finalmente, segundo o artigo 100º, nº1 do RJUE o desrespeito dos actos administrativos que determinem qualquer das medidas de tutela urbanística previstas no DL n° 559/99 (entre elas a cessação de utilização - cfr. a epígrafe "Medidas de tutela da legalidade urbanística" da subsecção III da secção V do capítulo III, em que o art. 109° está inserido) constitui crime de desobediência, nos termos do artigo 348° do Código Penal.
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§3. Nestes autos não se discute a existência da ordem nem tão-pouco que ela tenha sido transmitida de forma regular.
O que se questiona é saber se a autoridade que emitiu a ordem tinha ou não competência para o efeito, o que de seguida vamos indagar.
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5. A delegação de poderes.
§1. O artigo 29°, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo dispõe que a «competência é definida por lei ou por regulamento, e é irrenunciável e inalienável, sem prejuízo do disposto quanto à delegação de poderes (...)”.
As regras da irrenunciabilidade e da inalienabilidade reportam-se, pois, exclusivamente à titularidade da competência, nada obstando a que, em certos casos, a competência possa ser delegada.
A matéria vem regulado na SECÇÃO IV sob a epígrafe “Da delegação de poderes e da substituição”, nos seguintes termos:
Artigo 35.º
Da delegação de poderes
1 - Os órgãos administrativos normalmente competentes para decidir em determinada matéria podem, sempre que para tal estejam habilitados por lei, permitir, através de um acto de delegação de poderes, que outro órgão ou agente pratique actos administrativos sobre a mesma matéria.
2 - Mediante um acto de delegação de poderes, os órgãos competentes para decidir em determinada matéria podem sempre permitir que o seu imediato inferior hierárquico, adjunto ou substituto pratiquem actos de administração ordinária nessa matéria.
3 - O disposto no número anterior vale igualmente para a delegação de poderes dos órgãos colegiais nos respectivos presidentes, salvo havendo lei de habilitação específica que estabeleça uma particular repartição de competências entre os diversos órgãos.
Artigo 36.º
Da subdelegação de poderes
1 - Salvo disposição legal em contrário, o delegante pode autorizar o delegado a subdelegar.
2 - O subdelegado pode subdelegar as competências que lhe tenham sido subdelegadas, salvo disposição legal em contrário ou reserva expressa do delegante ou subdelegante.
Artigo 37.º
Requisitos do acto de delegação
1 - No acto de delegação ou subdelegação, deve o órgão delegante ou subdelegante especificar os poderes que são delegados ou subdelegados ou quais os actos que o delegado ou subdelegado pode praticar.
2 - Os actos de delegação e subdelegação de poderes estão sujeitos a publicação no Diário da República ou, tratando-se da administração local, no boletim da autarquia, e devem ser afixados nos lugares do estilo quando tal boletim não exista.
Artigo 38.º
Menção da qualidade de delegado ou subdelegado
O órgão delegado ou subdelegado deve mencionar essa qualidade no uso da delegação ou subdelegação.
Artigo 39.º
Poderes do delegante ou subdelegante
1 - O órgão delegante ou subdelegante pode emitir directivas ou instruções vinculativas para o delegado ou subdelegado sobre o modo como devem ser exercidos os poderes delegados ou subdelegados.
2 - O órgão delegante ou subdelegante tem o poder de avocar, bem como o poder de revogar os actos praticados pelo delegado ou subdelegado ao abrigo da delegação ou subdelegação.
Artigo 40.º
Extinção da delegação ou subdelegação
A delegação e a subdelegação de poderes extinguem-se:
Por revogação do acto de delegação ou subdelegação;
Por caducidade, resultante de se terem esgotado os seus efeitos ou da mudança dos titulares dos órgãos delegante ou delegado, subdelegante ou subdelegado.
Artigo 41.º
Substituição
1 - Nos casos de ausência, falta ou impedimento do titular do cargo, a sua substituição cabe ao substituto designado na lei.
2 - Na falta de designação pela lei, a substituição cabe ao inferior hierárquico imediato, mais antigo, do titular a substituir.
3 - O exercício de funções em substituição abrange os poderes delegados ou subdelegados no substituído.
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§2. O Código do Procedimento Administrativo é largamente tributário da lição do Prof. Freitas do Amaral.
Segundo Freitas do Amaral “a "delegação de poderes" (ou "delegação de competência") é o acto pelo qual um órgão da administração, normalmente competente para decidir em determinada matéria, permite, de acordo com a lei, que outro órgão ou agente pratiquem actos administrativos sobre a mesma matéria”.
Ainda segundo o mesmo autor, são três os requisitos da delegação de poderes:
«a) Em primeiro lugar, é necessário uma lei que preveja expressamente a faculdade de um órgão delegar poderes noutro: é a chamada lei de habilitação.
«Porque a competência é irrenunciável e inalienável, só pode haver delegação de poderes com base na lei: por isso, a própria Constituição declara que nenhum "órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei" (CRP, art. 114°, n.º 2). Mas o artigo 29° do Código do Procedimento Administrativo acentua bem que os princípios da irrenunciabilidade e da inalienabilidade da competência não impedem a figura da delegação de poderes (n.ºs 1 e 2);
b) Em segundo lugar, é necessária a existência de dois órgãos, ou de um órgão e um agente, da mesma pessoa colectiva pública, ou de dois órgãos de pessoas colectivas públicas distintas, dos quais um seja o órgão normalmente competente (o delegante) e outro, o órgão eventualmente competente (o delegado);
c) por último, é necessária a prática do acto de delegação propriamente dito, isto é, o acto pelo qual o delegante concretiza a delegação dos seus poderes no delegado, permitindo-lhe a prática de certos actos na matéria sobre a qual é normalmente competente» (Curso de Direito Administrativo, vol. 1, 2ª ed., Coimbra, 2003, págs. 661-664. No mesmo sentido, cfr., v.g. os Acs do STA de 10-10-2000, proc.º n.º 045589, rel. Pires Esteves e de 22-09-1998, proc.º n.º 043105, rel. Pires Esteves, ambos in www.dgsi.pt. Sobre o instituto da delegação de poderes é já muito vasta a bibliografia disponível, como pode ver-se em António Furtado dos Santos, “Acto administrativo” do Dicionário jurídico da Administração, vol. I, Lisboa, 2ªed., 1990, págs. 136-138, e Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1980, págs. 268-278, Paulo Otero, A competência delegada no direito administrativo português: conceito, natureza e regime, Lisboa, 1987, João Caupers, Direito Administrativo, Lisboa, 1995, págs. 74-81, Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, vol. I, Lisboa, 1999, págs. 193- 210).
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6. O Presidente da Câmara e a “Lei das Autarquias Locais”.
A Constituição da República Portuguesa dispõe no seu artigo 235°, sob a epígrafe «Autarquias locais», que a organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais (n.º 1) e que as autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (n.º 2).
Por sua vez, o artigo 236°, sob a epígrafe «Categorias de autarquias locais e divisão administrativa», dispõe no seu n.º1 que no continente as autarquias locais são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas.
Finalmente, o artigo 237°, sob a epígrafe «Descentralização administrativa», estatui no seu n.º1 que as atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei, de harmonia com o princípio da descentralização administrativa.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira “ a descentralização administrativa postula a difusão das tarefas públicas, mediante a devolução de atribuições e de poderes a entidades públicas autónomas situadas abaixo do Estado. Ela consiste essencialmente numa divisão vertical de poderes entre o Estado e entes públicos autónomos infraestaduais, nomeadamente os de carácter territorial, justamente as autarquias locais” Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ªed. Coimbra, 1992, pág. 886).
Acresce que «[a] descentralização administrativa implica a autonomia administrativa, em sentido estrito, isto é, a competência para a prática de actos administrativos definitivos e executórios e a não sujeição das autarquias e dos seus órgãos a uma dependência hierárquica, em relação ao Estado ou autarquias de grau superior, sem prejuízo da tutela (art. 243°)
O artigo 237° da Constituição remete para a lei (reserva de lei) a matéria das competências dos órgãos autárquicos, embora esta assuma a natureza de reserva relativa de competência legislativa, já que a própria Lei Fundamental, no n.º1 do artigo 165°, dispõe que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre diversas matérias, salvo autorização ao Governo, v. g., quanto ao «estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais», de harmonia com a sua alínea q).
Na vertente da densificação infra-constitucional, enquanto corolário da descentralização administrativa, foi publicada a Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, que estabeleceu o quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais e, logo em seguida, numa primeira fase dessa transferência, a Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, que estabeleceu o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias.
Por sua vez, a Lei n.º 169/99, dispõe no n.º 2 do artigo 2° que os órgãos representativos do município são a assembleia municipal e a câmara municipal.
De harmonia com o artigo 41° da Lei n.º 169/99, que tem por epígrafe «Natureza», a assembleia municipal é o órgão deliberativo do município, funcionando «como um autêntico parlamento municipal», não desempenhando funções executivas, nem funções de gestão.
Por sua vez, o artigo 56° da mesma Lei, sob a epígrafe «Natureza e constituição», diz-nos que «1 - A câmara municipal é constituída por um presidente e por vereadores, um dos quais designado vice-presidente, e é o órgão executivo colegial do município, eleito pelos cidadãos recenseados na sua área».
À câmara municipal chama-se corpo administrativo, sendo que «no direito português, esta expressão designa todo o órgão colegial executivo encarregado da gestão permanente dos assuntos de uma autarquia local», sendo, por isso, «o corpo administrativo do município» .
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, «[o] órgão executivo do município é a câmara e não o seu presidente. Embora a Constituição tenha expressamente previsto a figura do presidente da câmara, ele não é um órgão autónomo da administração municipal. O órgão executivo do município é a câmara como órgão colegial (v. também, art. 241 ° - 1). Não é, portanto possível conferir ao presidente, por via legal, competência originária para o exercício de atribuições municipais, podendo contudo a câmara delegar-lhe uma parte das suas competências, nos casos previstos na lei. Por isso, a atribuição directa de poderes ao presidente - ainda que sob a figura de «delegação tácita», operada directamente pela lei, independentemente de qualquer acto de delegação da CM (Decreto-Lei n.º 100/84, art. 52°) - não tem fundamento constitucional, mesmo quando se admite que a CM possa fazer cessar a delegação, ou reapreciar as decisões do presidente, em via de recurso. A abertura legal veio permitir, na prática, transições silenciosas de um regime de colegial idade para um regime de presidencialismo municipal, com violação do «princípio da conformidade funcional», relativamente aos órgãos autárquicos. A composição pluripartidária do executivo impõe a colegialidade municipal na tomada de decisões, pelo que a «presidencialização» se traduz na monopolização e na expropriação monopartidária das decisões”(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ªed. Coimbra, 1992, págs. 907-908).
No entanto, hoje em dia, a doutrina vem-se inclinando maioritariamente em sentido contrário, na linha do que Freitas do Amaral tem defendido. Segundo este autor, “não é pelo facto de a Constituição ou as leis qualificarem o Presidente da Câmara como órgão, ou não, que ele efectivamente é ou deixa de ser órgão do município: ele será órgão ou não, conforme os poderes que a lei lhe atribuir no quadro do estatuto jurídico do município”.
E prossegue o mesmo autor:
“Hoje isso é ainda mais patente à luz da nova redacção dada pela Lei n.º 18/91, de 12 de Junho, aos artigos 52° e 53° da LAL: com esta alteração, não só aumentaram substancialmente os casos de competência própria como foi eliminada a figura fictícia da delegação tácita, transformando a maior parte dos casos em que essa figura se aplicava em casos de pura e simples competência própria.
O Presidente da Câmara é hoje um órgão de vasta competência executiva, a figura emblemática do município, e o verdadeiro chefe da administração municipal: pretender negá-lo é contraditório com o sistema de eleição directa do Presidente da Câmara estabelecido na legislação portuguesa” (Curso de Direito Administrativo, vol. 1, cit. págs 496-497).
E se assim era à luz da Lei n.º 100/84, de 29 de Março, presentemente o artigo 68° da Lei n.º 169/99 consagra um leque ainda mais alargado de competências próprias do presidente da câmara (cfr. neste sentido o Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 107/2003, relatado pelo Exmo Sr. Dr. Barreto Nunes, ex PGA coordenador junto desta Relação, aqui seguido de muito perto, António Cândido de Oliveira, Direito das Autarquias Locais, Coimbra, 1993, págs. 315-316, e Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, vol. I, Coimbra, 2001, págs. 181-182).
Na Lei n.º 169/99, no leque de competências do presidente da câmara, previsto no artigo 68°, merecem destaque as seguintes
«I) Conceder, nos casos e nos termos previstos na lei, licenças ou autorizações de utilização de edifícios;
m) Embargar e ordenar a demolição de quaisquer obras, construções ou edificações efectuadas por particulares ou pessoas colectivas, sem licença ou com inobservância das condições dela constantes, dos regulamentos, das posturas municipais ou de medidas preventivas, de normas provisórias, de áreas de construção prioritária, de áreas de desenvolvimento urbano prioritário e de planos municipais de ordenamento do território plenamente eficazes;
n) Ordenar o despejo sumário dos prédios cuja expropriação por utilidade pública tenha sido declarada ou cuja demolição ou beneficiação tenha sido deliberada, nos termos da alínea anterior e da alínea c) do n.º 5 do artigo 64.°, mas, nesta última hipótese, só quando na vistoria se verificar a existência de risco eminente de desmoronamento ou a impossibilidade de realização das obras sem grave prejuízo para os moradores dos prédios; »
A mesma lei regulamenta pormenorizadamente a matéria da distribuição de funções (artigo 69º) e da delegação de competências no pessoal dirigente (artigo 70º).
É o seguinte o teor da primeira daquelas normas:
Artigo 69.º
Distribuição de funções
1 - O presidente da câmara é coadjuvado pelos vereadores no exercício da sua competência e no da própria câmara, podendo incumbi-los de tarefas específicas.
2 - O presidente da câmara pode delegar ou subdelegar nos vereadores o exercício da sua competência própria ou delegada.
3 - Nos casos previstos nos números anteriores os vereadores dão ao presidente informação detalhada sobre o desempenho das tarefas de que tenham sido incumbidos ou sobre o exercício da competência que neles tenha sido delegada ou subdelegada.
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7. O pretenso valor reforçado da Lei n.º 169/99 §1. Segundo o recorrente o DL 555/99, de 16/12, com as alterações introduzidas pelo DL 177/2001, de 04/06 nunca poderá limitar os poderes de delegação e subdelegação previstos na Lei n.º 169/99 por esta constituir lei de valor reforçado prevista no artigo 112.°, n.º3 da Constituição da República Portuguesa.
Não justifica, porém, o recorrente, conforme lhe competia, por que razão o primeiro daqueles diplomas legais assume a natureza de lei com valor reforçado.
O n.º 3 do citado artigo 112º limita-se a afirmar que “têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas.”
A Constituição não fornece uma definição com carácter genérico do que seja uma “lei com valor reforçado”, por forma a poder constituir um critério diferenciador das leis integráveis em tal conceito.
Na síntese do Tribunal constitucional “As leis com valor reforçado, para além de deverem satisfazer certas exigências procedimentais na sua aprovação, independentemente da sua caracterização dogmática, dispõem de uma “superioridade relativa” em face de outros actos legislativos, derivada do seu conteúdo, que é condicionante material da normação a estabelecer pelos diplomas a publicar na sua directa dependência”(Ac. n.º 356/96).
Nesta perspectiva, a Lei n.º 169/99 não reveste as características identificadoras que permitam considerá-la como uma lei de valor reforçado.
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8. A pretensa especialidade e revogação da Lei n.º 169/99 pelo Dec.-Lei n.º 555/99
§1. Já se sustentou que o DL nº 555/99 de 16 de Dezembro é uma lei especial e posterior que veio, assim, restringir a Lei nº 169/99 de 18/09, na parte em que confere ao presidente da câmara o poder de delegar ou subdelegar nos vereadores o exercício da sua competência própria ou delegada.
Não subscrevemos, porém, tal tipo de argumentação.
Quanto à posteridade do Dec.-Lei nº 555/99 de 16 de Dezembro, como ensina Oliveira Ascenção, a lei especial nunca pode revogar a lei geral: referindo-se a um ponto particular, deixa intocada a ordenação geral da matéria - O Direito-Introdução e Teoria Geral, Lisboa, 1978, pág. 259.
Depois, como bem observa António Baião do Nascimento, “a especialidade consiste numa relação construtiva entre normas abstractamente consideradas, que só leva ao afastamento da norma geral pela norma especial, na medida em que indicia uma consunção total unilateral daquela por esta. O regime geral não consumido é, porém, atendível, ao lado do regime especial, para a regulamentação do caso (Do Concurso de Normas, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 97, Lisboa, 1971, pág. 50).
É precisamente o que acontece no caso em apreço.
O Dec.-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei nº 177/2001, de 4 de Junho, no que se refere à competência da Câmara Municipal e do seu Presidente, em nada contende com o regime da delegação e subdelegação de competências daqueles órgãos autárquicos, constantes da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro
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§2. A este respeito importa salientar que perante casos análogos, o STA já por diversas vezes salientou que o Dec.-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, ao referir-se à competência da Câmara Municipal e do seu Presidente quanto à aludida matéria urbanística em nada contende com o regime da delegação e sub delegação de competências daqueles órgãos autárquicos constante dos citados DL 100/84 e 169/99,
Neste sentido, podem ver-se, entre outros, os seguintes acórdãos do STA: de 04/02/1997 (rec. 39021), de 29/09/1998 (rec. 43429) de 30/10/2001 (rec. 47319), de 12/12/2001 (rec.45493), de 26-9-2002, proc.º n.º 0485/02, rel. João Belchior, in www.dgsi.pt onde se lê:
“Efectivamente, relativamente à matéria (urbanística) que regula, o DL 445/91 (ou o RGEU, embora o recorrente apenas refira aquele DL), prevendo competências da câmara e do seu presidente, nada estatuíram quanto à matéria de delegação de competências. Mas isso não pode interpretar-se como afastamento das normas que a regulam, ou, se se preferir, que constituam lei especial, quer relativamente ao CPA ou à LAL. Efectivamente, o DL 445/91 de 20 de Novembro (ou o RGEU), ao referirem-se à competência da Câmara Municipal e do seu Presidente quanto à aludida matéria urbanística, em nada contenderam com o regime da delegação e subdelegação de competências daqueles órgãos autárquicos, constantes do DL 100/84, depois alterado pela Lei 18/91 de 12 de Junho.”
Por isso mesmo não pode aceitar-se a argumentação genérica do citado Ac. da Rel. do Porto de 6-12-2006, segundo a qual em matéria de medidas de tutela da legalidade urbanística inexiste lei de habilitação por virtude de o RGEU não prever “a possibilidade de delegação ou subdelegação de poderes, quando é certo que a prevê expressamente a respeito de muitas outras (cfr. arts. 5º, 8º, 11º nº 9, 19º nº 12 e 75º).”
Aliás, os citados artigos 5º, 8º, n.º1, 11º, 19º e 75º reportam-se, respectivamente à concessão de autorização prevista no n.º3 do artigo 4º à gestão do procedimento do controlo prévio das operações urbanísticas, aos poderes de saneamento e apreciação liminar, às consultas a entidades que devem emitir pareceres, autorização ou aprovação relativamente as operações urbanísticas sujeitas a licenciamento e à emissão de licenças ou autorização para realização das operações urbanísticas.
Quer isto dizer que nenhuma daquelas normas respeita directamente às medidas de tutela da legalidade urbanística previstas nos artigos 102º a 109º e são conhecidos os perigos da argumentação a “contrario sensu”
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9. A existência de lei habilitante no que concerne à generalidade das medidas de Tutela da legalidade urbanística.
Pode, pois, concluir-se que existe lei habilitante que permite a delegação de competência própria do presidente da Câmara no que respeita à concessão de licenças, ou autorizações de utilização de edifícios, embargo, demolições, despejos sumários, isto é às matérias previstas nas acima transcritas alíneas l) a n) do n.º2 do artigo 68º da Lei n.º 169/99.
Essa norma é precisamente o artigo 69º, n.º2 do Lei n.º 169/99.
Neste sentido:
- Ac. do STA de 13-1-2004, proc.º n.º 05404/03, rel. Fernanda Xavier in www.dgsi.pt;
- Ac. do STA de 20-11-2002, proc.º n.º 0787/02, rel. João Cordeiro, in www.dgsi.pt (ambos a propósito do poder do Presidente da Câmara ordenar a demolição e o despejo sumário de construção efectuada por particulares sem prévio licenciamento municipal);
- Ac. do STA de 26-9-2002, proc.º n.º 0485/02, rel. João Belchior, in www.dgsi.pt;
- Ac. da Rel. de Coimbra de 19-9-2007, proc.º n.º 726/05, rel. Jorge Dias, in www.dgsi.pt, a propósito da competência para embargar obras
- Ac. da Rel. de Guimarães de 23 -6-2008, proc.º n.º 815/08-1, rel. Estelita de Mendonça, a propósito da demolição dois anexos sem alvará de licença de construção.
- Ac. da Rel. de Guimarães de 8-9-2008, proc.º n.º 1060/08-2ª, rel. Cruz Bucho,
- Ac. da Rel. de Guimarães de 22-9-2008, proc.º n.º 63/08-1ª, rel. Ricardo Silva, em matéria de embargo.
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10. A cessação de utilização
§1. Simplesmente, no caso dos autos não está em causa a concessão de licenças, ou autorizações de utilização de edifícios, embargos, demolições, ou despejos sumários, mas antes a medida de cessação da utilização prevista no artigo 109º do RJUE.
Trata-se de um novo tipo de medida de tutela da legalidade urbanística apenas consagrada em 1999, por via do Dec.- Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, alterado pelo Dec.- Lei n.º 177/2001, de 4 de Junho.
Em caso de utilização /ocupação de edifícios ou fracções autónomas, sem a necessária licença ou autorização, ou em desconformidade com os fins nelas previstos, o presidente da câmara municipal tem o poder dever de ordenar que cesse a actividade ou utilização em causa e, caso aquela ordem não seja voluntariamente acatada, no prazo para o efeito fixado, propor à câmara municipal que delibere o despejo administrativo do imóvel (edifício ou sua fracção autónoma) - sobre esta medida cfr., v.g., João Pereira Reis e Margarida Loureiro, Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, Anotado, Coimbra, 2002, págs. 246-247 e André Folque, Curso de Direito da Urbanização e da Edificação, Coimbra, 2007, págs. 282-284.
Quanto a esta concreta medida de tutela da legalidade urbanística não existe, efectivamente, lei habilitante.
Com efeito nem o RJUE prevê a possibilidade de o Presidente da Câmara poder delegar num vereador a competência para ordenar a cessação de utilização, nem essa possibilidade lhe é outorgada por qualquer outra lei, nomeadamente a citada Lei n.º 169/99.
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§2. Salvo o devido respeito, para o efeito não faz qualquer sentido fazer apelo às transcritas normas dos artigos da LAL (Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro) uma vez que estas apenas aludem às medidas de embargo, demolição, ou despejo sumário.
Por outro lado, o RJUE nada prevê a respeito desta medida de cessação de utilização.
A construção do Ministério Público recorrente, embora laboriosa, incorre numa erro flagrante: o artigo 69º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro não contém um cheque em branco permitindo que qualquer competência que em legislação avulsa viesse a ser atribuída ao Presidente da Câmara pudesse, sem mais, ser delegada nos vereadores.
O que aquele artigo 69º permite é tão somente que a competência própria do Presidente da Câmara (isto é, aquela que lhe é atribuída pelo citada Lei n.º 169/99) e que a competência delegada (isto é, a competência prevista no mesmo diploma para outro órgão autárquico delegada no Presidente da Câmara), possa por este ser delegada e subdelegada nos vereadores.
Poderá questionar-se da bondade da solução legislativa, tanto mais que a tendência verificada na legislação aponta claramente para a possibilidade de delegação de competências e que se prevê expressamente essa possibilidade em matérias bem mais gravosas do que a simples cessação de utilização.
Essa é, porém, uma opção do poder legislativo que aos tribunais nada mais resta do que acatar.
Como impressivamente sintetizava o nosso maior administrativista, A competência vem sempre da lei (Marcello Caetano, Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, 1ªreimp.port., Coimbra, 1996, pág. 116).
Relembra-se que, de acordo com a lei, a competência não se presume, resulta sempre da lei, salvo em relação à competência implícita, e que a delegação tem de estar expressamente prevista na lei (artigo 111º, n.º2 da Constituição da República e 35º, n.º1 do Código de Procedimento Administrativo).
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§4. Conclui-se, deste modo, que por não existir lei habilitante não comete o crime de desobediência o agente que não acata a ordem contida no despacho de um vereador em quem o Presidente de Câmara havia delegado tal competência, no sentido de cessar a utilização de uma pavilhão (neste sentido, embora com fundamentação não totalmente coincidente cfr. Ac da Rel. do Porto de 6-12-2006, Col de Jur. ano XXXI, tomo 5, pág. 221, Acs da Rel. de Guimarães de 9-7-2007, proc.º n.º 1211/07, rel. Tomé Branco, de 30-6-2008, proc.º n.º 741/08, rel. Estelita de Mendonça e de 8-9-2008, proc.º n.º 1060/08-2ª, rel. Cruz Bucho, in www.dgsi.pt).
A decisão recorrida deve, pois, manter-se.
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III- Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a douta decisão recorrida.
Sem custas.