AMEAÇA
EXECUÇÃO
Sumário

I - Para o preenchimento do conceito de ameaça, perante uma expressão verbal anunciadora de um mal, não acompanhada de qualquer ato de execução, é futuro o tempo em que o agente permanece inativo, não obstante lhe ser possível a concretização do referido mal.
II - O critério determinante, para aferição da incriminação autónoma da ameaça, é, pois, que da conduta global do agente, praticada em dado momento, resulte que o desvalor contido na ameaça não se esgota no desvalor do ilícito típico executado na mesma ocasião, aferida esta pelo critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito-global.
III - As expressões proferidas pelo arguido «e agora, queres o quê?» e «vá agora, vá agora», no contexto em que foram vozeadas, apontando uma arma à cabeça do ofendido, retiram iminência ao mal prometido.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I


1 – Nos autos de processo comum em referência, o arguido, MT, foi acusado, pelo Ministério Público, da prática de factos consubstanciadores da autoria material: (i) de um crime de ameaça agravada, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto nos artigos 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 alínea a), do Código Penal (CP); (ii) de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 86.º n.º 1 alínea c), 2.º n.º 1 alínea p), e 3.º n.os 3 e 5, do Regime Jurídico de Armas e Munições (RJAM), aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

2 – De par, o arguido foi demandado, pelo ofendido JP, pela quantia indemnizatória de € 3.500,00 e juros.

3 – O arguido não apresentou contestação.

4 – Precedendo audiência de julgamento, o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido, por sentença de 9 de Dezembro de 2014, decidiu nos seguintes termos:

«Pelos fundamentos de facto e de direito supra expostos, decido:

I. Julgar a acusação parcialmente procedente e, em consequência:

a) Absolver o arguido MT da prática, como autor material, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.°, n.º 1, alínea a) do Código Penal;

b) Condenar o arguido MT enquanto autor material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts, 86º, n.º 1, al. c), por referência aos arts, 2º, n.º 1 al. p) e 32, n.º 3 e 5º do RJAM (Lei n.º 5/2006, de 23.02, na sua redacção actual) na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de €10,OO (dez euros), o que perfaz o montante € 2.000,00 (dois mil euros) ou em 133 (cento e trinta e três) dias de prisão subsidiária;

c) Mais condeno o arguido no pagamento, a título de custas judiciais, de três unidades de conta de taxa de justiça, nos termos do artigo 513.º, n.º 1 e 514.º, do Código de Processo Penal.

d) Declaro perdida a favor do estado, nos termos do artigo 109.º, n.º 1 do Código Penal, a pistola "Savage" 7,65mm, depositada à ordem da Polícia de Segurança Pública, nos termos do artigo 78.º da Lei n.2 5/2006 de 23/02, entidade que deverá diligenciar pelo seu ulterior destino.

II. Julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido por JP e, em consequência, absolver do pedido o arguido MT.

Condeno o demandante nas custas do pedido civil, nos termos do artigo 527.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 523.º do Código de Processo Penal, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.»

5 – A Ex.ma Magistrada do Ministério Público no Tribunal recorrido interpôs recurso da sentença.

Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:

«1. Por sentença proferida nos autos de Processo Comum Singular n.º 89/12.0 GGBJA, da Instância Local de Beja – Secção Criminal, foi o arguido MT absolvido da prática de 1 (um) crime de Ameaça Agravada, p. e p. pelos arts. 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal [cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2013, publicado no D.R. I.ª Série de 20.03.2013].

2. Entendeu o Mmo. Juiz a quo que na situação dos autos, o acto efectuado pelo arguido, de empunhar a pistola semiautomática de calibre 7,65mm, devidamente municiada, acto esse acompanhado das expressões que proferiu “e agora queres o quê?” e “Vá agora, vá agora”, traduz um mal iminente e, por isso, conforma um “acto de execução” do crime de que, afinal, o arguido não prosseguiu na sua execução, porque impedido, o mesmo é dizer que não traduz a ameaça de um mal futuro, razão pela qual não se verifica sequer o crime de Ameaça, por falta do seu elemento típico objectivo.

3. O Mmo. Juiz a quo interpretou erradamente os factos que considerou provados. Estamos convictos que a acção do arguido é suficiente para preencher o tipo objectivo do crime de Ameaça Agravada que a acusação pública lhe imputa.

4. Com efeito, a conduta adoptada pelo arguido [o ter reagido à repreensão verbal que o ofendido previamente lhe fez, abordando-o pelas costas e apontando-lhe uma pistola ao pescoço municiada com 5 (cinco) munições, ao ponto do mesmo ter sentido o frio da arma, conforme o Tribunal refere em sede de fundamentação, quando concretiza o depoimento que o ofendido prestou em julgamento], acompanhada das palavras: “e agora queres o quê? e “Vá agora, vá agora”, não se esgota num anúncio de um mal presente e iminente.

5. Estas expressões [“e agora queres o quê? e “Vá agora, vá agora”], que foram dadas como provadas, proferidas simultaneamente ao acto de apontar e encostar uma arma municiada ao pescoço de outra pessoa, pese embora tenham sido usadas no presente do indicativo, não deixam também de ter uma projecção de futuro, em linguagem corrente.

6. As aludidas expressões, acompanhadas daquele acto em concreto de apontar e encostar a arma ao pescoço de outra pessoa, como reacção a uma chamada de atenção que não foi do agrado do arguido, comportam necessariamente um anúncio de um mal futuro, na medida em que não indica o momento exacto da acção, podendo ser substituída, ou ser sinónimo de «hei-de matar-te» ou «hei-de fazer-te mal». Ainda que as expressões proferidas tenham sido usadas no presente, é inequívoco, atendendo ao contexto em que foram proferidas e à concreta atitude de quem as proferiu, que traduzem uma ideia de mal futuro adequada a provocar medo.

7. Atendendo às circunstâncias em que as expressões foram proferidas – em clima de conflituosidade decorrente da atitude do arguido de urinar em público, junto à roulotte de venda de bifanas próximo da qual ele e o ofendido se encontravam a comer e a beber, que depois veio a motivar a chamada da Guarda Nacional Republicana ao local -, aliadas à própria personalidade do agente - manifestada quando, no decurso de uma festividade popular e depois de ter sido repreendido em público, apontou a arma municiada com 5 (cinco) munições ao pescoço do ofendido -, tudo aponta no sentido de se considerar o comportamento do arguido como susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa na situação do visado.

8. Acresce que também pelo lado individual deste, no contexto referido e com a motivação do mesmo conhecida, estava potenciado o fundado receio da prática do facto anunciado. Aqui teremos de relembrar que o legislador penal tem em conta pessoas normais, com padrão médio de comportamento, sendo a estabilidade emocional e a tranquilidade, relacionadas com a liberdade de determinação, dos pontos mais sensíveis do ser humano.

9. A concreta atitude do arguido e as expressões que dirigiu ao ofendido são objectivamente configuradoras de um mal futuro, ainda que não tenham sido seguidas de qualquer acção configuradora de execução imediata ou iminente do mal ameaçado.

10. Mesmo que assim não se considere, sempre teria de se repensar que se estaria perante uma situação de recorte de vida que se aproxima da tentativa de ofensa à integridade física, pois, naquele contexto, em termos de juízo de causalidade adequada, o arguido podia agredir/ofender o ofendido se tivesse disparado a arma que empunhava devidamente municiada. Nessa conformidade, sempre o arguido teria de ser condenado pela tentativa do crime de Ofensa à Integridade Física Qualificada (arts. 22º, n.ºs 1 e 2, 23º, 72º, 73º, 143º, n.º 1 e 145º, n.ºs 1, al. a) e 2 com referência ao art. 132º, n.º 2, al. i) do Cód. Penal).

11. Não o fez, pelo que ficamos pelo acto intimidatório de execução do crime de homicídio ou de ofensa à integridade física passível de integrar o crime de Ameaça Agravada.

12. Finalmente, quanto ao elemento subjectivo necessário (a conduta dolosa), também se acha sobejamente demonstrado no caso em apreço. As palavras e a concreta atitude do arguido não só são adequadas a provocar receio, medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do visado, como se pode dizer que têm mesmo essa finalidade, estando o arguido plenamente ciente dessa realidade quando as proferiu.

13. Por último, sempre se dirá que a circunstância agravante do art. 155º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal verifica-se igualmente preenchida com a conduta levada a cabo pelo arguido, uma vez que tinha o significado explícito de ameaça de morte (ou de ofensa à integridade física qualificada) – é que a referência a crime contra a vida tem um sentido amplo que pode englobar diferentes procedimentos que põem em risco a vida, na certeza de que os crimes contra a vida não se esgotam no homicídio.

14. Verificam-se, assim, preenchidos – na conduta levada a cabo pelo arguido e que ficou provada em sede de julgamento – todos os elementos constitutivos do tipo legal de crime de Ameaça Agravada, p. e p. pelos arts. 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, alínea a) do Cód. Penal [cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2013 publicado no DR, n.º 56, I Série, de 20-3-2013], razão pela qual o segmento da sentença que absolveu o arguido MT do crime de Ameaça Agravada deve ser revogado, por ter violado o disposto nos arts. 153º, n.º 1 e 155º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal e, em consequência, substituído por outro que o condene pela prática desse ilícito penal.»

6 – O recurso foi admitido, por despacho de 16 de Março de 2015.

7 – O demandante civil manifestou adesão ao recurso, concluindo a respectiva minuta nos seguintes termos:

«1 - O demandante cível adere in totum às alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público;

2 - Entendemos que o tribunal a quo fez uma interpretação errada dos factos que considerou provados;

3 - Que tal prova é suficiente para preencher o tipo objetivo do crime de ameaça agravada;

4 - Procedendo a acusação, deve o pedido cível proceder na íntegra, por se verificarem os necessários pressupostos: a violação do direito do demandado; o nexo de imputação do facto ao agente; o dano; e o nexo causal entre o facto e o dano.»

8 – Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, aderindo ao argumentário recursivo, é de parecer que o recurso merece provimento.

9 – O objecto do recurso reporta-se ao exame da questão de saber se o Mm.º Juiz do Tribunal a quo incorreu em erro de jure no ponto em que deixou de subsumir os factos apurados no tipo-de-ilícito correspondente ao crime de ameaça.


II

10 – Em primeira instância, julgou-se a matéria de facto nos seguintes termos:

«2. Fundamentação

2.1. Da discussão resultaram provados os seguintes factos:

2.1.1. No dia 06 de Outubro de 2012, no período compreendido entre as 00h00 e as 02h00, decorreu uma festividade popular, em (....), área da comarca de Beja, onde se encontravam o arguido e JP, entre outras pessoas.

2.1.2. Depois de JP ter repreendido o arguido por ter urinado junto à "roulotte" de venda de bifanas próximo da qual ambos se encontravam a comer e beber, este último abordou o primeiro pelas costas e apontou-lhe ao pescoço a pistola semiautomática, com carregador amovível, de calibre 7,65 mm, marca "Savage", com o número 156819, que detinha consigo, municiada com 5 (cinco) munições do mesmo calibre.

2.1.3. Ao mesmo tempo dirigiu-lhe as seguintes palavras: “e agora queres o quê?” e “Vá agora, vá agora”.

2.1.4. O arguido não tem licença de uso e porte de arma de fogo válida, nem de detenção no domicílio.

2.1.5. A arma não está registada nem manifestada em seu nome.

2.1.6. O arguido sabia que apontava uma arma de fogo a MT, acompanhando esse gesto de palavras em que transmitiu o propósito de lhe vir a fazer mal, ciente de que a sua conduta era apta para o efeito.

2.1.7. Sabia ainda que detinha uma arma de fogo em seu poder, consciente de que a mesma estava indocumentada e que não estava habilitado a detê-la, por não ser titular de licença de uso e porte de arma válida, nem de autorização para a sua detenção no domicílio.

2.1.8. O arguido actuou de forma voluntária e consciente, bem sabendo as suas condutas proibidas e puníveis por Lei.

Mais se provou que:

2.1.9. JP sentiu medo e inquietação e receio pela vida no momento em o arguido agiu do modo descrito em 2.1.2. e 2.1.3.

2.1.10. O arguido exerce a actividade profissional de agricultor, designadamente com produção de azeitona.

2.1.11. Reside em casa própria.

2.1.12. Invocou ter dívidas à segurança social e a instituições bancárias no montante de 200.000,00 euros.

2.1.13. Tem registado a seu favor a propriedade dos tractores de matrícula 63-31-TM, AI-33-55, LQ-20-98 e do pesado de mercadorias GT-21-87, melhor descritos de fls. 242 a 246 dos autos.

2.1.14. Encontra-se igualmente registado a favor do arguido o imóvel inscrito na matriz predial urbana 1380, da freguesia de (….), concelho de (….), com valor patrimonial para efeitos de IMI fixado em € 88.930,00 - cfr. informação da Autoridade Tributária de fls, 247/248.

2.1.15. Nos anos de 2010, 2011 e 2013 arguido entregou as declarações de rendimento para IRS cujas cópias se encontram de fls. 248 a 257 - com rendimentos declarados de € 6.500, 00 em 2011 e de € 4.541,25 em 2013,

2.1.16. Tem como habilitações literárias o 10.º ano de escolaridade.

2.1.17. Não tem antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal.

2.2. Inexistem factos não provados com relevo para a decisão da causa.

c) Motivação

Saliente-se, em primeiro lugar, que toda a prova produzida na audiência de discussão e julgamento encontra-se integralmente gravada em suporte digital, o que permite a ulterior reprodução de toda a referida prova e um rigoroso controlo do modo como o Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto. Nessa medida, proceder-se-à a uma mais sucinta fundamentação desta convicção, sendo dado maior destaque aos aspectos essenciais em matéria de prova, tornando desnecessário tudo o que vá para além disso.

Fechado este parêntesis inicial cumpre, pois, expor os meios de prova produzidos em julgamento ou submetidos à sua discussão nessa sede em que a convicção do tribunal foi alicerçada.

Em primeiro lugar, temos o relato produzido pelo demandante JP, que referiu que há sensivelmente dois anos atrás, deslocou-se juntamente com alguns amigos a uma festa popular na localidade de (....), que ocorre todos os anos, por altura do inverno. Na noite em causa, encontrava-se com, pelo menos dois amigos, a beber cervejas e a confraternizar junto a uma "roulotte" de venda de bifanas, quando se apercebeu da presença do arguido, que se aproximou daquele local e começou a urinar em público, no recinto, a pouquíssima distância de si e dos seus amigos. Após o grupo ter-lhe chamado a atenção para o acto pouco cívico, o arguido ter-lhe-á dito "mas queres alguma coisa comigo?': tendo respondido negativamente. Pouco tempo após (que o depoente situou entre cinco a dez minutos), o arguido regressou, pela sua retaguarda, tendo sentido um objecto frio encostado ao seu pescoço que, de imediato, apercebeu tratar-se de uma pistola, reagindo prontamente desviando a mão do arguido de modo a retirar-lhe a arma que este empunhava, resultado que logrou obter. Mais disse que após o sucedido, gerou-se uma confusão em que veio a entregar a arma a alguém (que julgou tratar-se de um militar da GNR). Garantiu ter sentido medo que o arguido viesse a disparar contra si naquele exacto momento, não se recordando se este lhe dirigiu qualquer palavra enquanto empunhava a referida arma. Acrescentou ainda que após tal evento, nunca mais se sentiu à vontade em frequentar festividades populares, por receio de ser alvo de factos semelhantes.

A testemunha JL, militar da GNR, a desempenhar funções no Posto Territorial da Salvada, referiu ter sido solicitada a intervenção das forças policiais devido a uma "eventual discussão no baile da Azeda". Ao chegar ao local, embora não tenha visto qualquer "confusão" ou "discussão", apercebeu-se que os ânimos encontravam-se exaltados e foi-lhe mencionado por populares que um indivíduo teria exibido uma arma. Referiu que, perante o quadro com que se deparou, a sua preocupação consistiu em desarmar o indivíduo em causa (que identificou como sendo o aqui arguido) e retirá-lo do local. Mais disse que o arguido, ao ser abordado, e uma vez pedida a entrega da arma veio a fazê-lo, tratando-se de uma pistola semíautomátíca, de calibre 7,65 mm, com uma bala câmara, que o arguido tinha acondicionada no bolso.

RV e DB (amigos do demandante) e que compunham o grupo no qual JP estava inserido, corroboraram o testemunho que este prestou e que acima se faz alusão, havendo unicamente a registar a desconformidade entre as expressões que o arguido teria referido no momento em que empunhou a pistola, já que RV referiu ter ouvido "Agora queres o quê, o que é que queres?" e DB "Então agora, então agora ...?".

Todavia, ainda que não se verifique uma total coincidência entre todas as testemunhas quanto às expressões que o arguido terá proferido, os respectivos depoimentos, conjugados entre si, levam a concluir que terão ouvido de forma fraccionada as expressões proferidas pelo arguido ou procedido à reprodução das que se assemelhavam às que ouviram na noite dos factos, sendo que à ligeira disparidade das exactas expressões não será alheio o hiato temporal decorrido (dado que os factos remontam a 6/10/2012), sendo de prever que com o decorrer do tempo, ambos tenham retido na sua memória, em traços mais essenciais, o conteúdo da mensagem propalada pelo arguido.

Já no que tange ao depoimento de EC, o mesmo mostrou-se desprovido de qualquer relevo para a descoberta da verdade dos factos, não só por se duvidar se a testemunha em causa se encontrava, na noite em causa, no local onde aqueles ocorreram, como igualmente pela forma comprometida como depôs, com clara preocupação de nada relatar quanto à conduta do arguido, repetindo insistem ente que se dirigiu à "confusão" e "desapertou" os indivíduos envolvidos, onde se encontrava o aqui arguido, seu ex-patrão, dizendo nada mais ter visto, tão pouco qualquer arma.

O tribunal valorou igualmente o teor do relatório pericial de fls. 44 a 45, o certificado de registo criminal de fls. 232, bem como os elementos resultantes da pesquisa efectuada na base de dados informáticas e informações provindas da Autoridade Tributária de fls. 242 a 257.

No que concerne ao elemento subjectivo, traduzido nos factos descritos em 2.1.6., 2.1.7.,2.1.8., tratando-se de um elemento interno, qual seja o conhecimento e a vontade de praticar o facto ilícito, a sua imputação há-de resultar das circunstâncias exteriores que de qualquer modo possam ser expressão da relação psicológica do agente com o facto, inferindo unicamente de tais circunstâncias a existência dos elementos representativos e volitivos, na base das comuns regras da experiência, que constituem o princípio básico do processo penal em matéria de apreciação da prova, plasmado no artigo 127.Q, do Código do Processo Penal.

Na situação dos presentes autos, não obstante não ter o arguido prestado declarações quanto aos factos de que era acusado, em sede de audiência de julgamento, é possível fazer uma imputação do dolo directo, atenta as regras da experiência e do normal suceder, é de crer que qualquer pessoa medianamente diligente saiba que a actuação do arguido é susceptível de causar inquietação e medo no ofendido e que o fez pretendo atingir tal resultado, sabendo igualmente que lhe era legalmente vedada a detenção da arma em causa, resultado que prefigurou e quis que se realizasse.»

11 – No Tribunal a quo ponderou-se a matéria de direito nos seguintes termos:

«3 - Enquadramento Jurídico-Criminal

Pelo libelo acusatório de fls. 167 a 169 o Ministério Público imputa ao arguido a prática de 1 (um) crime de Ameaça Agravada, p. e p. pelos arts. 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2013, publicado no D.R. I.ª Série de 20 de Março de 2013], e 1 (um) crime de Detenção de Arma Proibida, p. e p. pelos arts. 86º, n.º 1, al. c), por referência aos arts. 2º, n.º 1 al. p) e 3º, n.º 3 e 5º do R.JAM. (Lei n.º 5/2006, de 23.02, na sua redacção actual).

A) Do crime de Ameaça Agravada:

Dispõe o artigo 153.º n.º 1 do Código Penal que: «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias».

Tal ilícito apresenta como agravante da sua moldura penal para o dobro (pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias), o comportamento aludido no artigo 155.°, n.º 1, alínea a) do Código Penal.

Após a revisão de 1995 do CP, o crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano e passou a ser um crime de mera acção e de perigo. Deste modo, já não é exigido que a ameaça cause efectiva perturbação na liberdade do ameaçado ou que lhe cause medo ou inquietação, pois, como resulta do estatuído no art 153.º, passou a bastar que a ameaça seja adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

Assim, enquanto no artº 155.º n.º 1 do CP/1982 se exigia que o agente tivesse provocado no sujeito passivo receio, medo, inquietação ou lhe tivesse prejudicado a sua liberdade de determinação, agora basta que o agente se tenha servido de expediente adequado a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação.

É ainda necessário que a ocorrência do mal futuro dependa da vontade do agente, ou seja, que o mal possa resultar da actuação deste.

Para se estabelecer a diferença entre o que pode ser uma verdadeira ameaça ou um simples aviso ou advertência é necessário buscar um critério seguro, e para isso não podemos deixar de seguir o defendido pelo Ac. da Relação do Porto, proc. nº 0346292, de 14/07/2004, www.dgsi.pt "0 critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do «homem comum»); individuol, no sentido de que devem revelar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçado".

Do ponto de vista dos elementos subjectivos, há que atender que o crime é doloso.

Assim, o agente tem de agir com a consciência da adequação da ameaça para provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.

Como supra se aludiu para que se preencham os pressupostos objectivos, necessário se torna que a ameaça seja futura.

No caso vertente, salvo melhor entendimento, o acto ameaçador efectuado pelo arguido (empunhar a arma e apontá-la ao seu pescoço) ao ofendido foi iminente, porquanto o mal anunciado era presente.

Neste sentido, vide os seguintes acórdãos:

Ac. RP. n.º 0645320, 20/12/2006, www.dgsi.pt: Não comete o crime de ameaça o agente que, empunhando uma espingarda caçadeira na direcção do ofendido diz a este: "anda cá para baixo, que te quero matar".

(…) O arguido foi condenado como autor material de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153º nºs 1 e 2 do C. Penal, porque: - no dia 13 de Agosto de 2005, a hora não concretamente apurada, mas cerca das 21h00, … - empunhou uma arma em direcção ao ofendido e disse "anda para baixo que te quero matar':

(…) Isto porque sendo o crime de ameaça "um crime contra a liberdade pessoal (liberdade de decisão e de acção)... a conduta típica deve gerar insegurança, intranquilidade ou medo no visado, de modo a condicionar as suas decisões e movimentos dali em diante...

E isso não acontecerá se a ameaça for de um mal a consumar no momento, porque ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objecto da ameaça, sendo nesse caso a conduta punível como tentativa desse crime, se a tentativa for punível, ou não entra e, então, a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ficar o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali para a frente" ¬ acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-11-2004, processo 0414654.

Ac. R.P. nº0712156, 28/11/2007, in www.dgsi.pt:

"Não se preenche o crime de ameaça se o mal anunciado é iminente" (negrito e itálico do ora signatário)

"O mal ameaçado tem de ser futuro. Isso significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal". '

Sendo o crime de ameaça um crime contra a liberdade pessoal (liberdade de decisão e de acção)... a conduta típica deve gerar insegurança, intranquilidade ou medo no visado, de modo a condicionar as suas decisões e movimentos dali em diante. E isso não acontecerá se a ameaça for de um mal a consumar no momento, porque ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objecto da ameaça, sendo nesse caso a conduta punível como tentativa desse crime, se a tentativa for punível, ou não entra e, então, a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ficar o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali para a frente - neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17-11-2004, processo 0414654, citado no Acórdão de 20-12¬2006, proferido no processo 0645320;

"Ora, para que se dê por preenchido o tipo objectivo do crime de ameaça, é necessário, desde logo, que o mal ameaçado seja futuro. O mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal". - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25-01-2006, proferido no processo 0544124.

Torna-se, pois, necessário que a ameaça anuncie um mal futuro que, objectiva e subjectivamente, seja idóneo a provocar medo ou inquietação na pessoa do ameaçado e que a sua concretização apareça como apenas dependente da vontade do agente que a profere [cfr. acs, da Relação do Porto de 25-01-2006 e 21-06-2006, em www.dgsí.pt/jtrp.nsf/ procs. nº 0544124 e 0612040). É precisamente esta característica temporal do mal ameaçado, visando um momento futuro, que serve de critério para distinguir a acção como crime de ameaça da tentativa de execução do respectivo acto violento (TAIPA DE CARVALHO, ob. cit. p. 343).

Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Haverá ameaça, quando alguém afirma "hei-de-te matar"; já se tratará de violência, quando alguém afirma: "vou-te matar já". Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa [cf Art. 22.º-2-c)] [neste sentido, Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, p. 348J.

Ora, na situação dos autos, o acto efectuado pelo arguido, de empunhar a pistola semiautomática de calibre 7,65mm, devidamente municiada, acto esse acompanhado das expressões que proferiu “e agora queres o quê?” e “Vá agora, vá agora” traduz um mal iminente e, por isso, conforma um "acto de execução" do crime de que, afinal, o arguido não prosseguiu na sua execução, porque impedido.

Em termos muito simplistas a diferença está entre a ameaça presente que é concretizada ou não nesse momento, e de uma maneira ou de outra extingue-se, ou se é futura, mantém-se comprimindo a liberdade pessoal do visado. Só esta é punível.

Por isso se entende que os factos dados como provados não integram a prática do crime de ameaça agravada, pelo qual o arguido vinha acusado, impondo-se consequentemente a sua absolvição.»

12 – Importa, antes de tudo, de ofício, dar nota de que, no texto e na economia da sentença revidenda, se não verifica qualquer dos vícios in procedendo prevenidos no n.º 2 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal (CPP).

13 – Com efeito, investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, não se vê que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos julgados provados ou entre estes e os factos julgados não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e, de igual modo, não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras da experiência comum, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.

14 – De par, não se reconhece nos autos qualquer nulidade que, ex officio, cumpra suprir, nos termos do disposto no artigo 410.º n.º 3, do CPP.

15 – A questão trazida pela Ex.ma recorrente ao exame deste Tribunal ad quem está em saber se o Mm.º Juiz do Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento no ponto em que deixou de subsumir a factualidade que julgou provada, e como tal arrolou no § 2.1.2 e 2.1.3 dos factos apreciados, na previsão típica do crime de ameaça, contida no n.º 1 do artigo 153.º, do CP.

16 – O Mm.º Juiz do Tribunal a quo julgou provada a seguinte materialidade fáctica:

«2.1.2. Depois de JP ter repreendido o arguido por ter urinado junto à “roulotte” de venda de bifanas próximo da qual ambos se encontravam a comer e beber, este último abordou o primeiro pelas costas e apontou-lhe ao pescoço a pistola semiautomática, com carregador amovível, de calibre 7,65 mm, marca “Savage”, com o número 156819, que detinha consigo, municiada com 5 (cinco) munições do mesmo calibre.

2.1.3. Ao mesmo tempo dirigiu-lhe as seguintes palavras: “e agora queres o quê?” e “vá agora, vá agora”.

17 – Em sequência de tal deciso, veio a absolver-se o arguido do crime de ameaça agravada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 alínea a), do CP, por que vinha acusado.

18 – E assim, na tese do Mm.º Juiz do Tribunal recorrido (abonado de pertinente jurisprudência), na medida em que tal agir não configura uma ameaça futura, antes iminente, configurando já um acto de execução do crime ameaçado.

19 – Já a Ex.ma recorrente é de entender que as referidas expressões, de par com o acto de apontar a pistola ao pescoço do ofendido, não se esgotam no anúncio de um mal presente e iminente e não deixam de, em linguagem corrente, ter uma projecção de futuro, e, na medida em que se não indica o momento exacto da acção, podem ter-se como equivalentes de «hei-de matar-te» ou «hei-de fazer-te mal».

20 – O n.º 1 do artigo 153.º do CP (epigrafado de ameaça, no proémio do capitulo relativo aos crimes contra a liberdade pessoal) persegue «quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação».

21 – No plano do tipo objectivo do ilícito, o conceito de ameaça comporta três fundacionais características: (i) mal, (ii) futuro, e (iii) cuja ocorrência dependa da vontade do agente – cfr., a respeito, por todos, Américo Taipa de Carvalho, no «Comentário Conimbricense do Código Penal», Parte Especial, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2012, pp. 550-567.

22 – No dizer do Professor Américo Taipa de Carvalho (ob. cit., pág. 553, § 8):

«O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser de execução iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no acmpo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. […] Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante […], Necessário é só […] que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cfr. artigo 22.º-2 c)).»

23 – Como se refere, com incontornável acuidade, no acórdão, do Tribunal da Relação de Guimarães, de 05/18/2009 (processo349/07.1PBVCT, disponível, como os demais citados, em www.dgsi.pt), aquele segmento da lição do Professor Américo Taipa de Carvalho

«[…] tem de ser cuidadosamente e aquelas palavras não podem ser aplicadas acriticamente, sob pena de intoleráveis atropelos à legalidade democrática, criando áreas de impunidade criminal onde o legislador as não autoriza, para além de se atraiçoar o pensamento daquele Mestre.

Antes do mais, é manifesto que o mal objecto da ameaça tem de ser um mal futuro.

Ameaçar “é anunciar a alguém um grave e injusto dano, necessariamente futuro” (Ac. da Rel. do Porto de 17-1-1996, proc.º n.º 9540886, rel. Fernando Fróis, in www.dgsi.pt).

Mal futuro que se contrapõe a um mal passado.

O anúncio de um mal que se projectaria no passado não constitui ameaça. Assim, a expressão “eu já no dia 24 deste mês era para o matar com uma carrinha”dirigido pelo arguido ao ofendido, por ser uma ameaça de acção em tempo passado não tem objectivamente, de forma inequívoca, o sentido de uma ameaça para o futuro, pelo que não integra o crime de ameaça”(Ac. da Rel. do Porto de 6-7-2000, proc.º n.º 0010392, rel. Marques Pereira, in www.dgsi.pt)

Mas o futuro é o tempo que há-de vir, aquilo que vai ser ou acontecer num tempo depois do presente (Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário da língua Portuguesa Contemporânea, I vol., 2001, pág. 1846), o tempo que se segue ao presente, o que está por vir, que há-de ser, que deverá estar, que há-de acontecer, suceder (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, 2003, tomo IV, pág. 1828), aquilo que há-de ser (Cândido de Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 25ªed, vol. II, 1996, pág.1225), que há-de vir (José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Lisboa, 1991, vol. III, pág. 170), que está para ser, que está por acontecer (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 2004, pág. 803).

Que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o este seja curto ou longo é irrelevante (Taipa de Carvalho, cit, §7, pág. 343).

O mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer.

Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há-de ser, que há-de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer.

É claro que sendo o mal iminente poderemos estar perante uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é do respectivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, actos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico.

Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.

Quando alguém afirma que “vou-te matar”, poderemos estar perante uma tentativa de homicídio, de tentativa de coacção, que consomem naturalmente a ameaça, ou perante um crime de ameaças.

Tudo depende da intenção do agente.

É que, para haver tentativa não basta a prática de actos de execução é necessário que esses actos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º1).

Aliás, algumas linhas à frente do excerto acima citado e que tantas incompreensões tem gerado, o próprio Prof. Taipa de Carvalho esclareceu que “Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cf. art. 22º-2-c) – op. cit. § 7, pág. 343 (itálico nosso).

Se, por exemplo, o agente não tem intenção de matar, aquela expressão, não integra um acto de execução de um crime de homicídio, mas integra claramente um crime de ameaças, verificados os demais pressupostos deste tipo de crime, nomeadamente a consciência do agente da susceptibilidade de provocação de medo ou intranquilidade [cfr. neste sentido, v.g., o Ac. da Rel. de Lisboa de 17-6-2004,proc.º n.º 3525/04, rel. Almeida Cabral “(…) o agente que no calor de uma discussão, de natureza familiar, diz para a vítima em tom sério ‘mato-te’, comete o crime de ameaças previsto no art.º153º do Cód. Penal)”,in www.pgdlisboa.pt), o Ac. da Rel. do Porto de 5-1-2000, proc.º n.º 0040533, rel. Pinto Monteiro, em que estavam em causa as expressões “sua filha da puta, eu rebento-te os cornos” e “mato-vos a todos, seus filhos da puta” dirigidas pela arguida à assistente, o Ac. da Rel. do Porto de 25-8-1999, proc.º n.º 9910861 em que estava em causa a conduta da arguida que intimidou a assistente, encostando à cabeça desta uma pistola que sabia não estar municiada, ao mesmo tempo que disse que a matava e que já tinha sete palmos à conta dela de sepultura”, ambos in www.dgsi.pt,], sendo certo que a motivação da ameaça como crime autónomo é irrelevante [neste último sentido cfr. Taipa de Carvalho, cit., §5, pág. 342 e §26, pág. 351, e o Ac. da Rel. do Porto de 18-9-2002, proc.º n.º 0110489, rel. Baião Papão (“Para integrar o elemento subjectivo deste ilícito o que releva é a consciência do agente da susceptibilidade de provocação de medo ou intranquilidade, sendo irrelevante que o agente tenha ou não a intenção de concretizar a ameaça”)].

Nem se diga, como já vimos escrito, que a expressão “eu mato-te” traduz um mal iminente e por isso conforma um acto de execução do crime de que afinal o agente desistiu, não prosseguindo a sua conduta.

É que, aquela desistência tem por efeito que a tentativa deixa de ser punível. Mas o que deixa de ser punível é a tentativa de homicídio, sendo o agente punido por ameaça, ofensa à integridade física, coacção etc, se, em determinadas circunstâncias, os actos de execução integrarem a prática de tais ilícitos [assim, no confronto com os crimes de coacção (artigos 154º, 155º, 156º, 163º, 347º) e de extorsão, o Prof. Taipa de Carvalho assinala que o crime de ameaça cede perante os crimes de coacção e de extorsão, “salvo se em relação a estes se verificar uma desistência relevante da tentativa, e aquele se tiver consumado (isto é a ameaça tiver chegado ao conhecimento do destinatário)”, op. cit., §29, pág. 351].

Nem se diga, ainda, que se o mal for iminente a ameaça do mal ou entra no

campo da tentativa ou, não entrando, logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ter ficado o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali por diante.

A circunstância de o espaço temporal que medeia entre o mal anunciado e a certeza da sua não consumação ser maior ou menor pode ser relevante para efeitos de determinação da medida da pena, mas é indiferente para efeitos de incriminação.

O que se exige é tão somente que a ameaça, o anúncio do mal futuro, seja susceptível de afectar a paz individual ou a liberdade de determinação

Se essa susceptibilidade se prolonga mais ou menos no tempo é irrelevante para efeitos de incriminação.»

24 – Em consonância, decidiu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 05/06/2015 (processo 151/12.9GCAVR.C1):

«Para o preenchimento do conceito de ameaça, perante uma expressão verbal anunciadora de um mal, não acompanhada de qualquer acto de execução, é futuro o tempo [em] que o agente permanece inactivo, não obstante lhe ser possível a concretização do referido mal.»

25 – De par, no acórdão, deste Tribunal da Relação de Évora, de 03/17/2015 (processo n.º 1857/11.5PCSTB.E1), adrede acompanhado pelo decidido no acórdão, também deste Tribunal da Relação de Évora, de 07/14/2015 (processo 18/12.0GDMMN.E1), decidiu-se questão simétrica nos seguintes termos:

«I - Para efeitos do preenchimento do tipo legal previsto no artigo 153º do Código Penal, a ameaça com a prática de um dos crimes de referência do artigo 153º não é típica se ocorrer em simultâneo com a sua execução, sob a forma tentada ou consumada, ou se a execução do crime prometido ainda não se iniciou mas está iminente, pois em ambas as situações (ou seja, quando se verifique identidade do crime prometido com o crime concretamente executado) o desvalor inerente à ameaça é desconsiderado pelo legislador, por estar abrangido pela incriminação do crime prometido.

II - A desconsideração do desvalor da ameaça pressuposta pelo legislador só se verifica nos casos em que a ameaça é seguida ou acompanhada da execução do crime prometido ou por ele consumido - e não outro -, tanto na forma consumada como tentada, isto é, quando se verifique identidade do crime prometido com o crime concretamente executado.

III - Assim, a punição pela ameaça não é excluída (desde que preenchidos os demais elementos de ordem objetiva e subjetiva) pela simples circunstância de ser proferida num contexto de execução iminente do crime prometido ou do crime por ele consumido, ou seja, quando, objetiva e subjetivamente, o agente promete a prática de um dos crimes de referência reportando-se ao momento imediato ou presente e não a uma hipotética situação futura, nas duas situações seguintes:

- Quando a execução do crime prometido não chegue a ter lugar ou quando a mesma execução não for punível, como sucede no caso de tentativa não punível de crime contra a integridade física;

- Quando o agente pratica um outro crime (quer preencha o mesmo ou diferente tipo legal), tentado ou consumado, e não o crime prometido.

IV - O critério determinante para aferição da incriminação autónoma da “ameaça” é, pois, que da conduta global do agente, praticada em dado momento, resulte que o desvalor contido na ameaça não se esgota no desvalor do ilícito típico executado na mesma ocasião, aferida esta pelo critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito-global.»

26 – Tal jurisprudência merece, data venia, inteira adesão.

27 – Revertendo à questão sub inde nestes autos, sem qualquer desdouro para a tese sufragada pelo Mm.º Juiz do Tribunal recorrido (nem para a jurisprudência que transcreve), figura-se que a mesma incorre em interpretação equívoca do conceito de ameaça reportado ao n.º 1 do artigo 153.º, do CP, no ponto em que desconsidera que a dimensão do hiato temporal entre o mal anunciado e a sua não consumação é indiferente para efeitos da incriminação pelo crime de ameaça.

28 – A ameaça com a prática de um dos crimes catalogados no n.º 1 do artigo 153.º, do CP não pode subsumir-se à previsão típica do crime de ameaça se ocorrer de par com a prática de um dos crimes ali catalogados ou se a execução do crime prometido estiver iminente.

29 – O desvalor da ameaça suposta naquele tipo-de-ilícito só pode ter-se por irrelevante nos casos em que o crime prometido configura sequela ou consome a própria ameaça.

30 – É o critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito global (cfr., a respeito, Professor Jorge de Figueiredo Dias, em «Direito Penal, Parte Geral», Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007, pp. 1016-1018) que há-de determinar a resposta à questão da autonomização, ou não, da ameaça, vale por dizer, de saber se da conduta global do agente levada em contexto determinado resulta que o desvalor contido na ameaça se esgota, ou não, no desvalor do ilícito típico executado em coincidência.

31 – No caso, do passo que o arguido, reagindo à repreensão do ofendido por (o arguido) estar a urinar junto à roulotte onde, entre mais, ambos se encontravam a comer, o arguido, tomando o ofendido pelas costas, lhe aponta ao pescoço uma pistola municiada, dizendo-lhe «e agora, queres o quê», e «vá agora, vá agora», não pode ter-se pela iminente execução do acto delitivo (ofensas corporais, homicídio) prometido, do passo em que, mesmo por momentos breves, o anúncio daquele mal, foi susceptível de afectar a paz individual e a liberdade de determinação do ofendido.

32 – Ademais, no caso, as expressões utilizadas, do passo em que reportam a uma atitude do próprio ofendido (queres o quê? vá agora…), acuado este pela pistola que o arguido lhe apontava ao pescoço, anunciando uma sobrepujança de aleivosa cobardice, sempre retirariam iminência ao mal prometido.

33 – Assim, as expressões proferidas pelo arguido «e agora, queres o quê?» e «vá agora, vá agora», no contexto em que foram vozeadas, apontando uma arma à cabeça do ofendido, de acordo com o juízo objectivo-individual acima referido, é adequada a provocar medo ou inquietação.

34 – Ademais, tendo o arguido agido voluntária e conscientemente, com o propósito de causar temor no ofendido e sabendo que a sua conduta era proibida por lei, afigura-se-nos inequívoca a prática do crime de ameaça acusado.

35 – Isto posto, na procedência do recurso, a sentença revidenda, neste segmento, não pode deixar de ser revogada, impondo-se que os autos sejam continuados ao Tribunal recorrido para que, de preferência pela mão do Mm.º Juiz que a subscreveu e, sendo caso, precedendo reabertura da audiência (nos termos e para os efeitos prevenidos no artigo 371.º, do CPP), seja concretizada a pena aplicável ao crime de ameaça, p. e p. pelos artigos 153.º n.º 1 e 155.° n.º 1 alínea a), do CP, por que o arguido vai condenado (garantindo-se, neste particular, cabalmente, o duplo grau de jurisdição), e seja ponderado, em consonância, o pedido de indemnização civil formulado pelo ofendido demandante.

36 – Não cabe tributação, seja em vista da procedência do recurso, seja por dela estar isento o Ministério Público – artigos 513.º n.º 1 e 522.º n.º 1, do CPP.


III

37 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se: (a) julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público; (b) revogar a sentença recorrida, no segmento relativo à absolvição do arguido pelo crime de ameaça e à não pronúncia sobre o pedido de indemnização civil; (c) condenar o arguido, MT, pela prática de factos consubstanciadores da autoria material de um crime de ameaça, previsto e punível nos termos do disposto nos artigos 153.º n.º 1 e 155.° n.º 1 alínea a), do CP; (d) determinar que, no Tribunal a quo, se concretize a pena aplicável ao referido crime, se proceda ao devido cúmulo jurídico com a pena já aplicada pelo crime de detenção de arma proibida e se aprecie o pedido de indemnização civil formulado pelo ofendido.

Évora, 15 de Dezembro de 2015

António Manuel Clemente Lima (relator)

Alberto João Borges (adjunto)