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TRIBUNAL COMPETENTE
ACIDENTE EM AUTO-ESTRADA
Sumário
São os tribunais administrativos e não os tribunais comuns os competentes para julgar uma acção na qual se pede a condenação da sociedade concessionária da exploração e conservação de uma auto-estrada em determinada quantia, por danos patrimoniais resultantes de um acidente de viação ocorrido nessa via, alegadamente provocado pela existência de uma chapa de metal na faixa de rodagem, resultante de omissão de cumprimento das regras de manutenção, vigilância e segurança que incumbiam à cessionária nos termos do contrato de concessão com o Estado.
Texto Integral
Proc. n° 1377/14.6TBSTR.E1
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO AA, S.A. instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra BB, S.A. e CC, S.A., pedindo que as rés sejam condenadas a pagar-lhe a quantia de € 1.350,54, acrescida de juros de mora vencidos no valor de € 55,35, contabilizados à taxa legal de 4%, desde a data dos respectivos pagamentos até 28.07.2014, no total de € 1.405,89 e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Alega, em suma, que no dia 05.07.2013, o veículo de matrícula 00-XX-00, seguro na autora, conduzido por DD, circulava na A1, sentido Norte/Sul, a velocidade não superior a 120 Km/hora, quando, ao quilómetro 60,5, foi surpreendido por uma chapa de metal em plena via de trânsito, tendo sido impossível ao condutor do veículo evitar o embate na referida chapa, do qual resultaram danos materiais na viatura, que a autora pagou, tendo igualmente suportado despesas com a realização de peritagem, averiguação do sinistro e gestão do processo, estando legalmente sub-rogada nos direitos do seu segurado.
Atribui a culpa do acidente à ré BB, S.A (1ª ré) enquanto concessionária da A1, a qual tinha transferido para a ré CC, S.A (2ª ré), por meio de contrato de seguro, a responsabilidade pelos danos provocados a terceiros na circulação de veículos nas vias concessionadas por si, nomeadamente, na A1.
As rés contestaram, pugnando pela improcedência da acção.
Foi proferido despacho saneador, no qual se identificou o objecto do litígio e se enunciaram os temas da prova.
Designada data para a audiência de julgamento, não veio a mesma a realizar-se, porquanto foi proferido despacho a ordenar a notificação das partes para se pronunciarem sobre a eventual verificação da excepção de incompetência material do Tribunal a quo para conhecer da presente acção, por serem competentes para tal os tribunais administrativos.
A 1ª ré pronunciou-se pela improcedência de tal excepção, entendendo estar em causa uma relação jurídico-privada, à qual é aplicável o regime previsto no artigo 483º do Código Civil, sendo a ré uma entidade de direito privado, que não actuou no âmbito da gestão pública, não integrando o litígio nenhuma das situações do artigo 4.º, nº 1, do ETAF, sendo-lhe inaplicável o regime constante do Decreto-Lei nº 48051, de 21/11/1967.
A autora veio pronunciar-se no sentido de se estar perante uma situação de responsabilidade contratual da 1ª ré, pelo que são os tribunais comuns os competentes para conhecer da presente causa.
Seguidamente foi proferido despacho a julgar o Tribunal da Comarca de Santarém – Instância Local – Secção Cível incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto da presente acção e, em consequência, absolveu as rés da instância.
Inconformada, a autora apelou do assim decidido, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«A) A questão da competência material suscitada nos presentes autos, vem recuperar a querela doutrinária e jurisprudencial, a respeito da natureza jurídica da responsabilidade da concessionária - contratual ou extracontratual;
B) Se se entender estar em causa nos autos, responsabilidade extracontratual, a responsabilidade para o conhecimento das questões suscitadas nos autos caberá aos Tribunais Administrativos em face do que resulta do ETAF e do anexo à Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro; caso contrário, a competência será dos Tribunais Comuns, atento o que resulta do artigo 211°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa e do artigo 18°, nº 1, da Lei 3/99, de 13 de Janeiro;
C) A violação de deveres que a Autora imputa à Ré relacionam-se com a sua qualidade de concessionária e com o contrato de concessão a que se mostra vinculada para com o Estado Português;
D) De acordo com o artigo 1º da Lei 24/2007, de 18 de Julho, esta tem como escopo definir os “direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares (…)”, preceituando o seu artigo 2° nº 1 “o disposto na presente lei aplica-se às auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares”;
E) No que à questão concreta em discussão importa, veio o legislador no artigo 12° do citado diploma legal, sob a epígrafe “Responsabilidade”, consagrar que: “1. Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a: a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem; b) Atravessamento de animais; c) Líquidos na via, quando não resultante de condições climatéricas anormais.(…)”;
F) Poderá ser considerado que a responsabilidade das concessionárias de auto-estradas corresponde a responsabilidade civil extracontratual) já que o terceiro (lesado) não é detentor de qualquer direito de crédito sobre a concessionária, uma vez que o único contrato celebrado foi-o entre o Estado e a Concessionária, ao qual o utilizador da auto-estrada é alheio, pelo que esta responderá perante aquele se, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios) nos termos do disposto no artigo 483º, nº 1, do Código Civil;
G) Poderá ser ainda entendido que a responsabilidade das concessionárias de auto-estradas corresponde a responsabilidade contratual, por violação de obrigações contratualmente assumidas, razão pela qual recai sobre aquelas a presunção legal de culpa ínsita no artigo 799º do Código Civil;
H) No entanto, com vista ao esclarecimento dos diversos entendimentos em causa, em 18 de Julho de 2007, veio a ser publicada a Lei 24/2007, a qual visou definir “direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionárias, itinerários principais e itinerários complementares e estabelece, nomeadamente, as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis, sem prejuízo de regimes mais favoráveis aos utentes estabelecidos ou a estabelecer.”, conforme artigo 1º daquela Lei, sem prejuízo da aplicação deste regime igualmente às auto-estradas sem custos directos para o utilizador, conforme expressamente consagrado no nº 2, do artigo 2º, daquela Lei 24/2007;
I) De qualquer forma, vem o artigo 12º, daquela Lei estabelecer o seguinte:
“1 - Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a: a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem,' b) Atravessamento de animais,' c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais. 2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança. 3 - São excluídos do número anterior os casos de força maior, que directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de: a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos; b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio; c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra. ";
J) Resulta, pois, do disposto no nº 1, do artigo 12º, daquela Lei, que veio a colocar sobre a concessionária o ónus de provar que cumpriu as obrigações de segurança que sobre si recaem por força do contrato de concessão a fim de afastar a sua responsabilidade civil;
K) A corrente que defende a responsabilidade aquiliana da concessionária com aplicação do disposto no artigo 493, nº 1, do Código Civil, entende ser tal regime aplicável quer as auto-estradas tenham, ou não, custos para o utilizador;
L) Assim, a alusão expressa no nº 2, do artigo 2º, da Lei 24/2007, apenas fará sentido se se entender que a génese da responsabilidade da concessionária é a da celebração, mesmo tácita, de um contrato inominado entre aquela e o utente. É que, unicamente nesta situação, fará sentido salvaguardar expressamente as situações ocorridas em auto-estradas sem custos para o utilizador, pois que apenas perspectivando deste modo a génese da obrigação da concessionária se poderá concluir que, não fora o disposto no nº 2, do artigo 2º, daquela Lei, e qualquer acidente ocorrido naquele género de via não se encontraria abrangido pela regulamentação deste diploma;
M) Desta forma, através do contrato, mesmo que inominado, celebrado entre o utente que pretende aceder à auto-estrada ou itinerários previstos no artigo 1º da Lei 24/2007, e a concessionária, esta obriga-se a ceder a utilização da referida via com comodidade e segurança;
N) Resulta evidente que a concessionária cumpre com pontualidade a sua prestação proporcionando ao utilizador uma circulação cómoda e segura até findar o contrato, até ao momento em que o utilizador sai daquela via, sendo certo que, nesta medida, o utilizador só pode exigir da concessionária o dever de proporcionar-lhe uma circulação cómoda e segura na decorrência do contrato;
O) Pelo que, quando o devedor não realiza a prestação a que se encontra adstrito sem que entretanto se verifique qualquer outra causa extintiva da relação obrigacional, diz-se que há uma situação de incumprimento;
P) Pelo exposto, considera a ora recorrente que estamos verdadeiramente perante uma situação de responsabilidade contratual da Ré, devendo, nessa medida, o Tribunal a quo ser considerado competente para apreciar o evento dos autos e, em consequência, deverá a sentença proferida ser revogada, com as legais consequências.
Termos em que, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deve a sentença recorrida ser revogada e, em consequência, ser o Tribunal a quo ser considerado competente para apreciar a matéria dos autos, com o que se fará sã e serena JUSTIÇA.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - ÂMBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608°, n° 2, 635°, nº 4 e 639°, n° 1, do CPC), coloca como única questão a decidir, saber qual o tribunal materialmente competente (tribunal comum ou tribunal administrativo) para apreciar a responsabilidade civil de uma concessionária de auto-estradas pelos danos causados aos utentes por desrespeito das normas de segurança.
III - FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS
Os factos e a dinâmica processual a considerar para a decisão do recurso são os que constam do relatório.
O DIREITO
A questão a decidir no presente recurso tem sido objecto de várias decisões das Relações, do STJ e do Tribunal de Conflitos, que, por larga maioria, têm seguido o entendimento que foi perfilhado na decisão recorrida, de considerar os tribunais administrativos competentes, em razão da matéria, para preparação e decisão das acções destinadas a exigir a responsabilidade civil das empresas concessionárias de auto-estradas, emergentes de acidentes de viação nestas ocorridos depois da entrada em vigor da Lei nº 67/2007, de 31/12, ou seja, depois de 30.01.2008, quando a causa de pedir assente na omissão do cumprimento dos deveres de manutenção, vigilância e segurança de tais vias rodoviárias[1].
A exemplo do que acontece com o pressuposto da legitimidade processual, a competência em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal qual o autor a apresenta na petição inicial. É entendimento há muito firmado no STJ, no STA e no Tribunal de Conflitos[2], que a questão da competência material deve ser resolvida tendo em conta a relação jurídica a discutir na acção, mas à luz do “retrato”, da estruturação concreta apresentada pelo autor, e, logicamente, dando especial atenção à natureza intrínseca e aos fundamentos da pretensão deduzida, embora, sem avaliar o seu mérito, isto é, sem logo apreciar se o lesado tem ou não razão face ao direito substantivo.
Não existem dúvidas que a presente acção se destina a exigir a responsabilidade civil extracontratual das rés, emergente de acidente de viação ocorrido em auto-estrada em data posterior a 30/01/2008, mais concretamente em 15.07.2013, que a 1ª ré é demandada na qualidade de empresa concessionária de tal via rodoviária e que a autora imputa o sinistro ao embate do veículo seguro na autora à existência de uma chapa de metal na faixa de rodagem por onde circulava, devido, na sua óptica (cfr. arts. 9º a 21º da petição inicial), à omissão, por aquela, dos deveres de conservação, segurança e vigilância a que, legal e contratualmente - neste caso por força do contrato de concessão que celebrou -, estava vinculada.
«Por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjetivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjetiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intra-administrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter-orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa coletiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado, as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (…). Por outro lado, não está excluída a ocorrência de litígios interprivados, não só por efeito do apontado alargamento da competência dos tribunais administrativos no âmbito da impugnação de actos pré-contratuais e da acção de contratos e da acção de responsabilidade civil extracontratual (artigo 4.º, n.º 1, alíneas g) e i), do ETAF)»[3].
Como se escreveu no recente Acórdão do STJ de 08.10.2015[4], «com a reforma do contencioso administrativo, a pedra de toque para a atribuição da competência em razão da matéria aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais deixou de ser a distinção entre actos de gestão pública e de gestão privada, para passar a ser o conceito de relação jurídica administrativa, considerado um conceito-quadro muito mais amplo do que o de gestão pública. A jurisdição administrativa para além de abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado, passou também a abarcar a responsabilidade das pessoas coletivas de direito privado às quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público».
A adopção, na reforma de 2002 do ETAF, deste critério de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais, como pedra de toque da determinação da competência material dos tribunais administrativos e fiscais, afastou o que até ali constava do anterior ETAF, aprovado pelo DL 129/84, de 27.04, designadamente da al. h) do seu art. 51º, que delimitava a competência material de tais tribunais em função da natureza pública ou privada do acto de gestão gerador do pedido.
Tal alteração de paradigma determinou um sensível alargamento das competências daqueles tribunais, como resulta da amplitude das várias alíneas do nº 1 do art. 4º do ETAF.
De acordo com as traves mestras do novo ETAF, estabelece o art. 1º, nº 1, do anexo à Lei nº 67/2007, de 31.12 - que aprovou o “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas” -, que «a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial», acrescentando, por sua vez, o nº 5 que «as disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.»
Escreveu-se no supra referenciado Acórdão do STJ de 08.10.2015:
«Resulta desta nova lei, que a jurisdição administrativa pode conhecer, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, de litígios entre particulares. Necessário será que as ações ou omissões geradoras de responsabilidade sejam levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público», ou que sejam «reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo», isto é, desde que as pessoas coletivas de direito privado atuem em moldes de direito público deve aplicar-se às suas ações e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Como diz Fernandes Cadilha, nestas situações “a jurisdição administrativa intervém por via da extensão a pessoas colectivas de direito privado do regime substantivo de responsabilidade civil do direito público, o que sucede (...) quando actuem no exercício de prerrogativas de autoridade de poder público ou segundo um regime de direito administrativo. O que releva, nesse caso, é já a natureza jurídica pública da situação de responsabilidade e, por isso, a circunstância de as entidades em causa praticarem actos que possam integrar o conceito de gestão pública”.
(…).
Efectivamente, nos termos do artigo 1.º, nº 5, da Lei nº 67/2007, são dois os factores determinativos do conceito de actividade administrativa: 1- o exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade; 2 – tratar-se de actividades reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo».
Ora, a 1ª ré, empresa privada concessionária da A1, onde, segundo a autora, ocorreu o sinistro rodoviário em discussão nos autos, reúne em si os dois factores determinantes do conceito de actividade administrativa exigidos pelo nº 5 do art. 1º da Lei nº 67/2007, atrás enunciados.
Com efeito, «as entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público) têm a sua atividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo. Na verdade, a construção de uma auto-estrada, a sua exploração, manutenção, vigilância e segurança, nomeadamente do tráfego, são tarefas próprias da administração do Estado. A concessão dessas obras e serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respetivas atividades percam a sua natureza pública administrativa, pois o Estado não pode abrir mão dessa responsabilidade. Antes a outorga, por determinado período, a terceiro da esfera privada, a quem permite obter lucros económicos (através, nomeadamente, das portagens, estas também regulamentadas pelo Estado), mas regulando-a e fiscalizando-a, ao abrigo de normas jurídicas de natureza administrativa que ficam inscritas no contrato de concessão»[5].
Por sua vez, no contrato de concessão celebrado com o Estado Português foi atribuído à 1ª ré, Brisa – Auto-Estradas de Portugal, S.A. a “concessão da construção, conservação e exploração de auto-estradas” nos termos das bases anexas ao Decreto-Lei 467/72, de 22 de Novembro, com as modificações constantes do Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro e do Decreto-Lei nº 247-C/2008, de 30 de Dezembro.
No nº 1 da Base II da concessão, estipula-se que “A concessão para construção, conservação e exploração das auto-estradas referidas na base I é de obras públicas”.
A Base XXXIII, sob a epígrafe “Conservação das auto-estradas” estabelece o seguinte:
«1. A concessionária deverá manter as auto-estradas que constituem o objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, nas devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente.
2. As disposições constantes do número anterior aplicam-se igualmente aos ramais e nós de ligação e às áreas de repouso e de serviço, com observância do nº 3 da base v.
3. O estado de conservação e as condições de utilização das auto-estradas, ramais e nós de ligação e áreas de serviço são verificados pelos agentes de fiscalização do concedente, competindo à concessionária, dentro dos prazos que lhe sejam por este fixados, proceder às reparações e beneficiações julgadas necessárias para os fins referidos no nº 1 da presente base.
(…).
8. A concessionária é responsável pela manutenção, em bom estado de conservação e perfeitas condições de funcionamento, do equipamento.»
Na Base XXXVI estipula-se que:
«1. A circulação pelas auto-estradas obedecerá ao determinado no Código da Estrada e demais disposições legais ou regulamentares aplicáveis.
2. A concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construídas quer lhe tenham sido entregues para conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem.
3. A concessionária deverá estudar e implementar os mecanismos necessários para garantir a monitorização do tráfego, a detecção de acidentes e a consequente e sistemática informação de alerta ao utente, no âmbito da rede concessionada e em articulação com as acções a levar a cabo na restante rede nacional e com particular atenção às áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.
4. Deverá também a concessionária observar, sem direito a qualquer indemnização, todas as medidas adoptadas pelas autoridades com poderes de disciplina de tráfego, em ocasiões de tráfego excepcionalmente intenso, com o fim de obter o melhor aproveitamento para todas as categorias de utentes do conjunto da rede viária.»
E na Base XXXVII “Assistência aos utentes” estabelece-se que:
«1. A concessionária é obrigada a assegurar a assistência aos utentes das auto-estradas que constituem o objecto da concessão, nela se incluindo a vigilância das condições de circulação, nomeadamente no que respeita à sua fiscalização.
2. A assistência a prestar aos utentes nos termos do número anterior inclui igualmente o auxílio sanitário e mecânico, devendo a concessionária, para o efeito, instalar uma rede de telecomunicações ao longo de todo o traçado das auto-estradas, rede de emergência SOS, organizar um serviço destinado a chamar do exterior os meios de socorro sanitário em caso de acidente e promover a prestação de assistência mecânica a veículos.»
Estas - e outras – cláusulas do contrato de concessão a que a 1ª ré está vinculada, permitem concluir que a mesma, «enquanto entidade a quem foram atribuídos pelo Estado poderes para explorar auto-estradas e deveres de vigilância e de fiscalização das mesmas com vista à prevenção de acidentes, não atua no âmbito de poderes regulados por normas de direito privado mas previstos ou implícitos no contrato de concessão e/ou das respectivas “Bases”. E, estes contratos de concessão, chamando entidades privadas a colaborar com o Estado, no exercício de funções administrativas ou de poderes/deveres públicos, sujeitam-nas a normas de direito público»[6].
O presente caso é assim subsumível ao Regime de Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas, nos termos do disposto no art. 1º, nº 5, da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro que estabelece a aplicação deste regime a «pessoas colectivas de direito privado (…) por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo».
Acompanhamos assim a decisão recorrida, sendo os tribunais comuns incompetentes, em razão da matéria, para o julgamento da presente acção, cabendo aquela competência aos tribunais administrativos.
Improcedem assim todas as conclusões em sentido contrário da recorrente, sendo de manter a decisão recorrida. IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
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Évora, 17 de Dezembro de 2015
Manuel Bargado
Elisabete Valente
Alexandra Moura Santos
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[1] No Acórdão da Relação do Porto de 10.03.2015, proc. 528/10.4TBVPA.P1, disponível in www.dgsi.pt - como os demais que venham a ser citados sem outra indicação -, fez-se uma apurada resenha da jurisprudência que tem decidido no sentido exposto.
[2] Cfr., inter alia, o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 23.09.2004, proc. 05/04, com largas referências doutrinais e jurisprudenciais sobre a matéria.
[3] Fernandes Cadilha, in Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, 2006, pp. 117-118, citado no Acórdão do STJ de 14.01.2013, proc. 871/05.4TBMFRE.L1.S1.
[4] Proc. 1085/14.8TBCTB-A.C1.S1.
[5] Acórdão do Tribunal de Conflitos de 30.05.2013, proc. 017/13.
[6] Cfr. Ac. do STJ de 18.10.2015 supra referenciado. No mesmo sentido, os acórdãos do Tribunal de Conflitos de 20.01.2010, proc. 025/09, de 30.05.2013 supra referenciado e de 27.02.2014, proc. nº 048/13.