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FALSIFICAÇÃO DE NOTAÇÃO TÉCNICA
Sumário
I - O carácter restritivo da definição de notação técnica enquanto se destina à prova de facto juridicamente relevante (art. 255.º, alínea b), do Código Penal), tem de ser visto como assumindo-se como condicionante, em si mesma, ainda que combinada com outros factores, das relações jurídicas que visa tutelar, com o rigor e a segurança exigíveis, por um lado, à intervenção do Direito Penal, merecedora da sua tutela e, por outro, à delimitação da tipicidade do crime do art. 258.º do Código Penal.
II – A redução do valor dos quilómetros registados pelo conta-quilómetros de um veículo usado, ainda que com o intuito de potenciar a sua valorização no mercado, não integra a prática do crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo art. 258.º, n.º1, al. b) com referência ao art. 255.º, al. b), ambos do Código Penal.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
1. RELATÓRIO
Nos presentes autos, findo o inquérito, que correu termos no Departamento de Investigação e Acção Penal de Évora, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos, entre outros, A. e B., imputando-lhes, em co-autoria, a prática de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo art. 258, n.º 1, alínea b), em articulação com o art. 255.º, alínea b), ambos do Código Penal (CP).
O arguido A. veio requerer instrução, nos termos e para os efeitos do art. 287.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP).
Realizada a instrução, foi proferida decisão instrutória denão pronúncia dos referidos arguidos pela prática desse crime.
Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso, formulando as conclusões:
1. A decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos baseou-se no entendimento da irrelevância da alteração do registo de quilómetros no aparelho de odómetro de um veículo automóvel, por falta de aptidão probatória de facto juridicamente relevante, para efeitos do conceito legal de notação técnica constante do art.º 255º, al.ª b) do Código Penal, ou seja, porque a lei não faz depender deste registo qualquer dever jurídico, comportamento estradal imputável e exigível ao condutor ou proprietário da viatura, nem qualquer obrigação juridicamente tutelável, que não seja no âmbito de uma atuação enganosa inserida num eventual esquema de burla.
2. Ao invés, sustenta-se em recurso que o registo de quilómetros percorridos por uma viatura é capaz de introduzir variantes e tem reflexos no tráfico jurídico comercial, devendo suscitar idêntica tutela atribuída aos sinais identificativos das viaturas automóveis, tais como o número de matrícula, de motor, chassis e cor.
3. Desde logo este facto tem relevo para efeitos de aferir os limites da cobertura legal da garantia dos fabricantes das viaturas em relação às peças que a compõem, para efeitos de controle de qualidade.
4. Na prática comercial é usual os fabricantes fazerem depender o “terminus” da garantia do veículo do número de quilómetros percorridos (ou do período de tempo decorrido desde a venda), sendo este registo considerado um critério seguro e sério, indicativo do que seja uma normal e razoável utilização.
5. Temos assim um indício seguro de que o registo de quilómetros percorridos num veículo automóvel é passível de projetar efeitos ao nível da determinação da responsabilidade pelo bom funcionamento de um bem, da garantia do fabricante, portanto é passível de alterar, comprimir ou fomentar responsabilidades no tráfico jurídico, fazendo por exemplo cessar ou limitar essa mesma garantia.
6. E o mesmo vale, com as devidas adaptações, no âmbito da execução de eventuais contratos de compra/venda de viaturas usadas, em que o vendedor condiciona o limite desta garantia aos quilómetros percorridos no período (a este propósito constitui interessante referência o Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 21.04.2010, Proc. n.º 1157/06.2TBFAR-EI, relativo ao condicionamento da responsabilidade do fabricante precisamente por intervenção subsequente no número de quilómetros totais percorridos pela viatura), bem como ainda para efeitos de aferição dos prazos de revisão e substituição de peças.
7. Outra situação que, em nosso entender, motiva o reconhecimento da relevância jurídica do registo de quilómetros percorridos nos aparelhos de odómetros dos veículos automóveis tem a ver com a sua relevância para efeitos de cumprimento de figuras contratuais tais como o renting (também chamado de aluguer operacional de viaturas), solução de financiamento automóvel para empresas e particulares, em que o cliente usufrui de uma oferta integrada de prestação de serviços relacionados com o uso de uma viatura, por um período e quilometragem pré-determinado, mediante o pagamento de uma renda mensal fixa.
8.Nestes contratos, em regra, a fixação de um limite de quilómetros máximos anuais a percorrer pelo cliente constitui um elemento essencial da relação, uma vez que a sua violação se reflete e tem efeitos designadamente no acionamento da denominada “cláusula de desvio de quilómetros”, podendo levar ao recalculo dos valores mensais do aluguer através de aditamento ao contrato individual inicialmente celebrado, assim revogado nessa parte.
9.De onde se extrai que a alteração (redução) da quilometragem realmente percorrida por um locatário com um veículo objeto de um contrato de renting tem efetivos reflexos na respetiva relação contratual, levando a condicionar os termos e a forma de execução do mesmo, culminando na adaptação e revogação da versão original, interferindo na relação jurídica estabelecida entre o locador e locatário e consequentemente com relevância para o direito.
10.Deve-se assim entender que a prova do “facto juridicamente relevante” que se visa tutelar neste crime abrange igualmente as relações privadas, de cariz obrigacional, e não apenas a defesa daquilo que o Estado entende sancionar ou punir por referência ao valor resultante do registo efetuado, sendo que nem o legislador, nem a jurisprudência, nem a M.ª Juiz fizeram semelhante restrição.
11.Facto juridicamente relevante para estes efeitos será assim todo aquele que possui potencialidades para, a partir de então, se constituírem novas relações jurídicas, incluindo também as de natureza jurídico-privada, obrigacionais (decorrentes do efeito ou significado que as partes convencionem e entendam atribuir a tal valor de registo), sejam elas o pagamento de uma indemnização, a alteração de um contrato, a extinção de responsabilidade ou similar.
12.Se assim não fosse, a estabilidade e a confiança das relações negociais ficariam seriamente afetadas, fora da tutela que ao Estado compete assegurar, defraudando as expetativas comunitárias na credibilização negocial, que assim admitiria como correntes fatores de perturbação e subversão comercial.
13.Também a tutela da confiança do mercado de veículos usados e o maior efeito atrativo que uma viatura com menos quilómetros percorridos suscita comercialmente, indica que esta alteração releva juridicamente, atraindo a atenção dos potenciais interessados que desta forma passam a assentar a sua decisão num facto falso, passível de induzir em erro na sua formação de vontade aquisitiva.
14.O crime de falsificação de notação técnica é um crime de perigo abstrato, sendo suficiente para a sua verificação que exista uma possibilidade séria ou uma probabilidade de a confiança e certeza que a comunidade atribui ao valor/registo técnico adveniente do funcionamento desses aparelhos (intervenção no quadrante com reflexo no valor de registo do odómetro) sejam afetadas.
15.Ao invés do que também entendeu a M.ª Juiz de Instrução, resulta dos autos que os arguidos sabiam e quiseram reduzir o registo de quilómetros percorridos pela viatura de matrícula --BR---, sabendo que perpetuavam uma falsa representação da realidade, no intuito de darem uma indicação melhorada da viatura, que assim passou a apresentar-se com uma quilometragem dentro daquilo que, de acordo com as regras de experiência comum, constitui uma utilização normal, potenciando o seu valor futuro de venda no mercado de usados.
16.Esta conclusão resulta da análise da globalidade dos factos, realçando desde logo as diversas desculpas que o arguido A. foi apresentando para justificar a intervenção no quadrante da viatura (avaria no aparelho, valorização da viatura e para não ser gozado pelos seus amigos), aferindo-se que o seu intuito verdadeiro não poderia deixar de ser a melhoria de apresentação da viatura perante terceiros, incrementando o potencial de venda futura.
17.Acresce que a encapotada redução dos quilómetros terá ocorrido pouco depois da aquisição do veículo em leilão, inexistindo qualquer justificação mecânica para o efeito, tudo sustentando a conclusão de que aquele arguido terá aproveitado uma oportunidade de poder vir a fazer um bom negócio futuro, estando ciente que perpetuaria uma falsa representação da realidade.
18.Tal intencionalidade, de valorização da viatura no mercado de usados, resulta de um processo assente em juízos lógicos e de razoabilidade, à luz de regras da experiência comum, como sendo a razoável consequência dos factos conhecidos, assumindo uma forma de alcançar a prova (ainda que indiciária), mediante um raciocínio indutivo.
19.O mesmo vale para o arguido B., mecânico com conhecimento na matéria, que se dedicava a realizar este tipo de intervenções semiclandestinas, numa garagem transformada em oficina, possuindo maquinaria própria para estas operações, à margem do conhecimento dos fabricantes e concessionários das marcas, fazendo disso rotina de trabalho, estando obviamente ciente da intenção que motivava o grosso dos seus clientes, incluindo o arguido A., de passar a apresentar uma viatura com registo de quilómetros dentro da normalidade de uso, potenciando o seu valor no mercado.
20.Por isso se considera estar indiciado suficientemente, para submeter os arguidos a julgamento, a sua específica intenção de capacitar o veículo com quilometragem alterada no mercado de usados, levando os potenciais interessados a formarem a sua vontade aquisitiva com base num facto falso, numa falsa representação da realidade, beneficiando correspondentemente o vendedor que alcançaria maior lucro no negócio.
21.Ao não pronunciar os arguidos A. e B. pela prática, em coautoria, de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo art.º 258º, n.º 1, al.ª b), em articulação com o art.º 255º, al.ª b), ambos do Código Penal (conforme imputado na acusação exarada nos autos), o despacho ora em recurso violou disposto no art.º 308º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em articulação com o art.º 283º, n.º 2 do mesmo diploma legal aqui aplicável «ex vi» o n.º 2 daquela disposição legal, porquanto resulta e existem elementos nos autos que, em termos indiciários, razoavelmente fazem antever a aplicação, em julgamento, de uma pena, pela sua prática.
Termos em que deve tal despacho de não pronúncia ser revogado e substituído por outro que pronuncie os arguidos A. e B. pela prática do referido crime de falsificação de notação técnica.
O recurso foi admitido.
O arguido A.apresentou resposta, concluindo:
I.Determina a lei que a «notação técnica», serve para proteger a incriminação, a segurança e credibilidade na informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos, visando proteger o registo, desde que este constitua meio de prova de facto juridicamente relevante.
ii.Devendo entender-se por facto juridicamente relevante um facto “que seja apto a construir, modificar ou extinguir uma relação jurídica”, como vem definido no despacho de não pronúncia.
iii.O que não pode ser o caso do conta-quilómetros e do número de quilómetros percorridos ali registados, que nenhuma relevância por si só detém do ponto de vista jurídico, não integrando crime de falsificação de notação técnica os factos que vieram vertidos na acusação e agora no recurso interposto.
iv.no caso em apreço a alteração dos quilómetros, não se destinou a potenciar o preço de venda do veículo automóvel, aumentando-o, mas tão só a permitir ao arguido a aparência de que detinha um carro com uma quilometragem inferior à efetivamente registada, para sua satisfação própria e pessoal, tanto é assim que o requerente ainda hoje mantém na sua posse o referido carro.
v.inexistindo qualquer indício passível de comprovar o benefício ilegítimo pretendido pelo arguido, não tendo sido demonstrando qualquer comportamento objetivo passível de demonstrar a sua intenção de proceder à venda da viatura, obtendo desse modo e em seu proveito algum benefício económico
vi.Não colhendo as exposições constantes nas páginas 6, 7, 8 e início da 9, do recurso interposto, por falta de relevância e conteúdo indiciário para o caso em apreço.
vii.Sucedendo apenas que o arguido Miguel agiu desta forma por ter sido confrontado com várias opiniões de amigos e de conhecidos que lhe manifestavam admiração pelo número elevado de quilómetros que a viatura que acabava de adquirir, marcava.
viii.De facto, o arguido atuou sem culpa, na medida em que estava longe de imaginar que a alteração ao registo de quilómetros percorridos no seu veículo automóvel, que realizou por razões exclusivamente pessoais, consubstanciasse a prática de um ilícito criminal. Sendo manifesto, no caso dos autos, que o requerente não sabia da ilicitude ou ilegitimidade da prática do facto, tão pouco quis obter qualquer vantagem para si ou para terceiro.
Nestes termos e nos melhores de direito, requeremos que V. Exa se digne, muito respeitosamente, julgar o recurso interposto improcedente, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida, assim se fazendo a costumada justiça.
Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, apenas referindo nada obstar ao conhecimento do recurso.
Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP, nada foi apresentado.
Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso define-se, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as previstas no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo Código.
Traduz-se, então, em apreciar se, em face dos elementos probatórios recolhidos, deveriam os arguidos ter sido pronunciados pela prática do crime de falsificação de notação técnica por que haviam sido acusados.
A instrução, como referido, teve lugar a requerimento do arguido A., ao abrigo do art. 287.º, n.º 1, alínea a), do CPP, por não concordar com a acusação contra si deduzida.
Visando, pois, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação(art. 286.º, n.º 1, do CPP), assentou, conforme respectivo requerimento, na falta de indícios suficientes e consequente não integração no ilícito imputado.
Na instrução, procedeu-se às requeridas diligências de prova (inquirição de três testemunhas), às quais se seguiu, com observância do legal formalismo, a realização do debate instrutório.
Na decisão instrutória ora recorrida, consignou-se, no que ora releva:
(…)
Mais discorda o arguido do entendimento sufragado pelo Digno Magistrado do Ministério Público, alegando que os factos vertidos na acusação não integram o crime de falsificação de notação técnica, na medida em que a alteração do número de quilómetros percorridos e registados no conta-quilómetros de uma viatura não assume, só por si, relevância jurídica.
O arguido nunca teve intenção de proceder à venda da viatura, tanto mais que a mantém na sua posse.
Anda que assim não se entendesse, o arguido atuou sem culpa, estando longe de imaginar que a alteração do registo de quilómetros percorridos pelo seu veículo automóvel, que realizou por razões exclusivamente pessoais, consubstanciasse a prática de um ato ilícito.
O arguido não sabia da ilicitude ou ilegitimidade da prática do ato e tão pouco quis obter para si ou para terceiro qualquer vantagem.
Pugna, por isso, pela respetiva não pronúncia.
(…)
III. DA SUFICIÊNCIA DOS INDÍCIOS RECOLHIDOS
Conforme estatui o artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Dispõe o artigo 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que o juiz deverá pronunciar o arguido se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos dos quais depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Caso assim não aconteça, deverá ser proferido despacho de não pronúncia.
Na instrução bastará a mera prova indiciária, não se exigindo ainda a certeza quanto ao mérito da questão. Tal como sustenta Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, III, Verbo, pág. 179, “a lei não exige (…) a prova no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido. Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido”.
Importa, assim, averiguar se o processo contém indícios suficientes, isto é, elementos de facto aportados pelos meios legais probatórios, que conjugados e relacionados criam a convicção da séria probabilidade da condenação dos arguidos pelo crime que lhes é atribuído, a manter-se aquele acervo probatório em sede de julgamento.
Escreve a este propósito o Prof. Figueiredo Dias que: “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição” e ”(...) a alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação tem de referir-se no plano fáctico e não no plano jurídico”(in “Direito Processual Penal”, 1.º, 1974, página 133).
Os indícios serão suficientes quando, das diligências efetuadas durante o inquérito e instrução, resultarem vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e este é imputável ao arguido (cfr. Código Processo Penal, Comentários e notas práticas, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, pág. 715).
“A instrução e inquérito devem pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação” (cfr. Noronha da Silveira, in O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, p. 171) funcionando a suficiência indiciária como garantia de que o cidadão não será sujeito a julgamento por mero capricho do titular da ação penal; a lei não se basta, porém, com um mero juízo subjetivo, mas antes exige um juízo objetivo fundamentado nas provas dos autos (cfr. Ac. do STJ de 20/06/2012, Proc. n.º 36/10.3TREVR.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Apreciando a situação concreta, pretende o M.º P.º submeter os arguidos a julgamento pela prática, em coautoria, de um crime de falsificação de notação técnica p. e p. pelo art. 258.º, n.º 1, al. b) em articulação com o artigo 255.º, al. b), ambos do Cód. Penal.
Comete o crime em apreço quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, falsificar ou alterar notação técnica.
Contém o art. 255.º, al. b) do Código Penal a definição legal de notação técnica: “a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que atua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas os seus resultados e se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua realização quer posteriormente”.
“Tal como no documento, não é o suporte material onde se realiza aquele registo o relevante: o que importa para efeitos do crime de falsificação de notação técnica (…) é a interferência em qualquer processo automático de notação que acabe por dar origem a um registo de notação falsa de um valor, de um peso, de uma medida, de um decurso de acontecimento, e por conseguinte de uma notação falsa. Aquela notação constitui a prova de um facto juridicamente relevante que devido à manipulação do processo automático está desvirtuada. Constitui requisito básico a notação ser destinada à prova de facto juridicamente relevante (mais uma vez está assegurada a função probatória) …” (Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, T. II, p. 671).
Protege a incriminação a segurança e credibilidade na informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos (de acordo com a referida autora). É o registo que se pretende proteger, desde que este constitua meio de prova de facto juridicamente relevante.
Trata-se de um crime de perigo abstrato, não se revelando necessária a utilização da notação técnica alterada, bastando que a conduta seja passível de lesão do bem jurídico protegido com a incriminação.
De igual forma não se revela necessária a produção de qualquer resultado, pelo que estamos perante um crime formal ou de mera atividade – a consumação ocorre após a produção da notação através da manipulação do mecanismo.
Este registo assim falsificado terá, não obstante, que se destinar à prova de facto juridicamente relevante, sem o que a conduta não é típica.
E, como tem sido entendimento jurisprudencial com o qual nos identificamos, e tal como o arguido sustenta, o conta-quilómetros de uma viatura automóvel não se destina à prova de facto juridicamente relevante.
Facto juridicamente relevante é aquele que seja apto a construir, modificar ou extinguir uma relação jurídica, virtualidade que o registo de quilómetros percorridos por uma viatura automóvel não tem.
”Facto juridicamente relevante” é aquele que, por si só, tem relevância para o direito, por a lei lhe atribuir efeitos ou utilidades. É o caso, no veículo automóvel, dos números de matrícula, da carroçaria e do motor ou, até, da cor. A todos estes elementos a lei atribui a virtualidade de permitirem a identificação do veículo (…) o número de quilómetros já percorridos por um automóvel nenhuma relevância tem, por si só, para o direito. Não há norma que puna o facto de um automóvel circular com o conta-quilómetros avariado ou indicando um número diferente dos quilómetros efectivamente percorridos.” (Ac. T.R.G. de 21/11/2015, Proc. n.º 1965/05.1, disponível em www.dgsi.pt).
No mesmo sentido já se pronunciara anteriormente o mesmo Tribunal Superior, no Ac. de 19/01/2004, Proc. 1241/03-1, também disponível em www.dgsi.pt: “Tendo sido dado como provado que os arguidos procederam à alteração do totalizador de quilómetros da viatura com o intuito de defraudar os interesses do Estado na genuinidade e precisão de tais elementos, e não com a intenção de causar prejuízo a quem quer que fosse, nomeadamente ao comprador do veículo em questão, tal adulteração não pode preencher o ilícito do art. 258.º, n.º 1, do C. Penal na vertente do prejuízo para o Estado, à míngua de norma que especificadamente determine, ou de onde se possa deduzir o interesse do Estado na fiabilidade, como notação técnica, da indicação fidedigna dos quilómetros percorridos por uma viatura. (…) … da obrigatoriedade de os veículos estarem equipados com o velocímetro e totalizador de quilómetros, (o qual não constitui, no entanto, elemento identificador do veículo), não resulta a conclusão de que as alteração dos valores registados deva tipificar o tipo de crime em questão, uma vez que, a referida fidedignidade da indicação da totalidade dos quilómetros percorridos pelo veículo, não deve, a se, ser considerada como um facto juridicamente relevante”.
E também o TRP, em 18/03/2009 (Proc. n.º 0818031, disponível em www.dgsi.pt), sustentou que “A quilometragem constante do conta-quilómetros de um veículo automóvel usado, por si só, não tem nenhuma relevância para o direito, sendo que o seu não funcionamento, ou mesmo a sua ausência não tem qualquer cominação legal.”
De facto, assim é, não fazendo a lei sequer depender o pagamento do IUC ou a realização das inspeções periódicas obrigatórias dos quilómetros percorridos.
É certo que um veículo que aparente ter percorrido menos quilómetros poderá ser valorizado numa potencial compra, assim como as intervenções em oficina são, por vezes, associadas ao número de quilómetros percorridos. Não obstante, estes efeitos não têm, só por si, a virtualidade de alterar qualquer relação jurídica, pelo que não temos dúvidas que falta aqui um dos elementos do tipo de crime por que se acusa – o da alteração se reportar a facto juridicamente relevante. Como se refere, a respeito de situação similar, no Ac. do TRP, em 18/03/2009, acima mencionado: “Dir-se-á que no caso da compra de um veículo usado, o número de quilómetros percorridos pela viatura poderia ser relevante para a sua aquisição. Sem dúvida que sim, mas não no sentido de notação técnica que acima se referiu, relevante criminalmente como artifício fraudulento, e susceptível de integrar o crime de burla.”
Por outro lado, queda por explicar nos autos qual o benefício ilegítimo pretendido pelos arguidos, pois que nenhum indício existe de que o arguido, que sempre manteve o veículo na sua posse, tenha tido qualquer comportamento objetivo do qual se possa inferir a intenção de proceder à venda da viatura.
Assim, ponderando estes elementos probatórios, temos de concluir que não se encontram reunidos indícios suficientes da prática pelos arguidos do crime por que vêm acusados.
Tendo em conta os elementos probatórios carreados para o processo (prova documental dos registos da viatura e declarações dos próprios arguidos) e a ponderação que a respeito dos mesmos fazemos, e acima indicada, resultam suficientemente indiciados apenas os seguintes factos de entre os vertidos na acusação e com relevância para a apreciação indiciária da responsabilidade criminal dos arguidos:
- O arguido A. é funcionário da “Brisa – Autoestradas de Portugal, SA”, facto que já acontecia em 2009.
- Por força desta situação, o arguido tem a possibilidade de adquirir viaturas que a “Brisa” disponha para venda, e nomeadamente as que tenham estado ao serviço de Destacamentos de Trânsito da GNR nas vias por si exploradas, através de propostas diretas às empresas de leilões encarregues da sua comercialização.
- Foi assim que no início de 2009 o arguido teve conhecimento que se encontrava para venda o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, matrícula --BR---, marca Toyota, modelo Corolla, cor branco, o qual havia estado ao serviço do Sub-Destacamento de Trânsito da GNR n.º 332 (Estremoz) em autoestradas exploradas pela “Brisa”.
- Em março de 2009 este arguido adquiriu tal veículo automóvel pelo preço de 8.100,00 euros, tendo o mesmo já percorrido cerca de 200.200 quilómetros em uso de serviço pela GNR, conforme registo verificado no conta-quilómetros respetivo ao cessar tal afetação.
- Em data não concretamente apurada mas situada entre abril de 2009 e até 25 de maio de 2010, o arguido decidiu interferir no aparelho automático de conta-quilómetros para reduzir o respetivo valor registado;
- Assim, nesse período de tempo, foi ter com o arguido B, que possui uma oficina de eletricidade-auto na Rua …, em Beja, e combinaram reduzir a quilometragem daquele veículo através de uma intervenção eletrónica no respetivo quadrante;
- Em execução do combinado, o arguido B. retirou o quadrante do veículo e através de programa informático adequado reprogramou o sistema eletrónico de registo de quilómetros percorridos, retirando-lhe entre 90.000 a 100.000 quilómetros, voltando depois a recolocá-lo no seu lugar.
- Em consequência da intervenção acima mencionada aquele automóvel passou a assinalar no conta-quilómetros um registo não correspondente à realidade e ao seu nível de desgaste.
- Em troca deste serviço, o arguido António Baião recebeu 150,00 euros do arguido A..
- Quando o veículo foi sujeito a inspeção periódica obrigatória, em 26 de maio de 2010, registava 101.642 km percorridos, o que não correspondia à realidade.
- Os arguidos A. e B. visaram interferir no sistema automático de registo dos quilómetros percorridos pelo veículo matricula BR-- de molde a reduzi-los.
Não se consideram suficientemente indiciados os demais factos vertidos na acusação, nomeadamente que:
- O arguido tenha decidido reduzir o valor dos quilómetros registados no intuito de potenciar a sua valorização no mercado e depois vendê-lo a preço mais vantajoso.
- O arguido A. destinava o veículo à venda futura a terceiros no intuito de obter maior vantagem em negócio.
- Cada um dos arguidos agiu sempre de modo voluntário, livre e consciente.
- Os arguidos atuaram em conjugação de vontades e de esforços, sabendo que o veículo tinha percorrido mais 90.000 a 100.000 km., tendo um desgaste superior àquele que passou a aparentar no registo de conta-quilómetros, e que assim iriam pôr em risco a confiança que a generalidade das pessoas e possíveis compradores depositam na informação fornecida por tais aparelhos.
- Com tal conduta, ambos os arguidos quiseram alcançar uma vantagem, a que sabiam não ter direito, potenciando a sua venda por valor superior ao devido segundo o seu desgaste correspondente aos quilómetros realmente percorridos, gerando uma vantagem indevida em prejuízo dos futuros compradores do veículo.
- Cada um dos arguidos sabia que praticava factos proibidos e punidos por lei.
Consequentemente, e considerando o disposto no art. 308.º, n.º 1, do C.P.P., deverá ser proferido despacho de não pronúncia dos arguidos, impondo a imputação em coautoria e o disposto no art. 307.º, n.º 4 do Cód. Proc. Penal o conhecimento também da responsabilidade criminal do arguido B.
IV. DISPOSITIVO:
Pelos fundamentos de facto e de direito supra expostos, o Tribunal não pronuncia os arguidos A. e B. pela prática, em coautoria, de um crime de falsificação de notação técnica p. e p. pelo art. 258.º, n.º 1, al. b) e 255.º, al. b) do Cód. Penal.
(…).
Analisando:
A existência de indícios suficientes, necessária à pretendida pronúncia dos arguidos, implica que resulte uma possibilidade razoável de lhes vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (art. 283.º, n.º 2, ex vi art. 308.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPP).
Não se impõe, é certo, uma verdade requerida pelo julgamento, mas apenas uma possibilidade razoável de aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, objectivamente analisada, com o sentido de que os arguidos só deverão ser pronunciados quando os elementos probatórios se apresentem tendencialmente mais propensos a uma condenação que a uma absolvição.
Conforme Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, pág. 183, Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.
De todo o modo, não significa que essa possibilidade deva ser apenas mínima, mas sim que se afigure como particularmente sustentada e forte, levando à séria convicção de que a futura condenação será, em julgamento, o resultado que já então se adivinha, sendo que Não apenas por ser esta a solução que melhor se adapta à particular estrutura do processo penal, como também por ser a única que consegue a imprescindível harmonização entre o critério normativo presente no juízo de afirmação da suficiência dos indícios e as exigências do princípio da presunção de inocência do arguido (Jorge Noronha e Silveira, in “O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português”, em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. Fernanda Palma, Almedina, 2004, pág. 171).
Ainda, como acentua Carlos Adérito, in “Indícios Suficientes: parâmetros de racionalidade e instância de legitimação”, Revista CEJ, 2.º Semestre de 2004, n.º 1, Almedina, pág. 180, apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou da possibilidade elevada de condenação, a integrar no segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção da inocência de que ele beneficia e com o “in dubio pro reo”.
Considerações em sintonia foram, aliás, carreadas à decisão recorrida, pelo que, nesta parte, acrescidos desenvolvimentos são desnecessários.
Seguindo a cronologia seguida nessa decisão, o recorrente suscita a discordância relativamente aos factos entendidos por não indiciados apenas após, também discordando, da irrelevância jurídica que os factos indiciados mereceram.
No entanto, respeitando lógica abordagem, começar-se-á por apreciar as questões atinentes aos indícios recolhidos, suporte da indiciação estabelecida, porque reportada a matéria que deve ser conhecida em momento prévio à temática jurídica em apreço.
Deste modo, o recorrente põe em crise o fundamentado na decisão na parte em que se consignou que queda por explicar nos autos qual o benefício ilegítimo pretendido pelos arguidos, pois que nenhum indício existe de que o arguido, que sempre manteve o veículo na sua posse, tenha tido qualquer comportamento objetivo do qual se possa inferir a intenção de proceder à venda da viatura.
Para tanto, alega, no essencial, que:
- este crime de falsificação de notação técnica é um crime de perigo abstrato, sendo suficiente para a sua verificação que exista uma possibilidade séria ou uma probabilidade de a confiança e certeza que a comunidade atribui ao registo técnico adveniente do funcionamento desses aparelhos (intervenção no quadrante com reflexo no valor de registo do odómetro) sejam afetadas. No caso dos autos, verificamos que a possibilidade de lesão deste valor é incontornável;
- o arguido A., ao longo do processo, foi apresentando versões diferenciadas relativamente às motivações desta intervenção no registo de quilometragem percorrida pela viatura;
- Assim, numa primeira fase apresentou como fundamento uma suposta avaria no aparelho do quadrante, o que teria motivado a sua reparação e consequente alteração do registo de quilómetros marcados; numa segunda fase já admitiu que retirou os quilómetros como forma de também valorizar a viatura: por fim, em sede de Instrução, veio justificar dizendo que a verdadeira causa para tal redução de quilómetros foi pessoal, ou seja, uma forma de os seus amigos não fazerem troça de si nem insinuações jocosas pelo facto de o carro marcar um elevado número de quilómetros percorridos (vide art.º 57 RAI);
- A diferença entre o desejável/o desiderato e o acto, sendo aquele primeiro estádio de vontade suficiente para a consumação do crime, como vimos, joga-se na apreciação da factualidade globalmente apurada. E o que realmente se apurou foi que o arguido terá aproveitado a oportunidade de poder vir a fazer um bom negócio, pelo que reduziu o registo de quilómetros da viatura, cristalizando a inveracidade, estando ciente que perpetuaria uma falsa representação da realidade;
- O que não disse, nem admitiu expressamente, foi que tinha planos concretos para a vender a terceiro. Todavia, logo chegaremos a diversa conclusão se atentarmos a que o arguido A. adquiriu a viatura matricula --BR-- em março de 2009 para logo depois lhe reduzir os quilómetros; fê-lo de forma encapotada, com foros de clandestinidade, numa oficina de garagem, sem qualquer justificação mecânica (inexistência de avarias), acrescendo que possuía outra viatura para seu uso pessoal, tratando-se aquele de um veículo com boa aparência, recente no fabrico mas com quilometragem real muito elevada;
- Porém, no caso concreto, toda a factualidade conhecida desde o momento em que o arguido se propôs adquirir o veículo em condições vantajosas, passando pela rápida intervenção de redução do registo de quilómetros percorridos, até às desculpas por si apresentadas para justificar este ato permite que, através de um procedimento assente em juízos lógicos e de razoabilidade, à luz de regras da experiência comum, se preencha esse vazio de intencionalidade, para se concluir que o intuito desta alteração tenha sido a valorização da viatura no mercado de usados;
- Em relação ao arguido B. considerando que se tratava de um mecânico, com conhecimentos técnicos específicos, e que se dedicava a realizar este tipo de intervenções numa garagem transformada em oficina, possuindo maquinaria própria para estas operações, fazendo disso rotina de trabalho, sendo esse o seu modo de vida, com facilidade se conclui estar ciente da intenção que motivava o grosso dos seus clientes, incluindo o arguido A.;
- Na verdade, o arguido B. era, por força destas circunstâncias, pessoa conhecedora do mercado, do interesse que no negócio de compra/venda assume também a apresentação de uma viatura com quilómetros dentro da normalidade de uso, como potencial do seu valor em 2ª mão;
- Em suma (…) se entende estar indiciado suficientemente, para submeter os arguidos a julgamento, a sua específica intenção de este veículo alterado vir a ser colocado no mercado de venda de usados, em prejuízo dos potenciais adquirentes, que assim formariam a sua vontade aquisitiva com base num facto falso, numa falsa representação da realidade, e correspondente benefício do vendedor.
Ora, não se discutindo o elenco dos factos indiciados constante da decisão recorrida, porque pacífico perante o conjunto dos elementos de prova recolhido, caberá analisar do acerto do fundamentado na decisão, nessa vertente da roupagem característica do dolo específico dos arguidos, ou seja, se, indiciariamente actuaram com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, situação a que se reconduz a problemática suscitada.
Não se descura que os aspectos em questão, por se reconduzirem àquele âmbito da consciência e da vontade de decisão dos arguidos, assumem a particularidade de, normalmente, não resultarem de prova directa, já que comportam factores psíquicos, relacionados com a representação e fixação dos fins do crime, com a selecção dos meios e com a aceitação dos resultados da acção.
Estando-se, pois, no domínio de factos atinentes a uma realidade que escapa a uma directa observação, a prova respectiva assentará em inferências extraídas de factos materiais, analisados à luz da globalidade da prova produzida e das regras de experiência comum, através de ilação ou injunção e, neste sentido, é uma prova indirecta, reconhecida e aceite, não contendendo com o previsto nos arts. 124.º a 126.º do CPP, nem com os limites definidos para a livre apreciação consagrada no art. 127.º do CPP.
Conforme Germano Marques da Silva, ob. cit., Editorial Verbo, 1993, vol. II, pág. 82, É clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se imediatamente aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova. Assim,se o facto probatório (meio de prova) se refere imediatamente ao facto probando, fala-se de prova directa, se se refere a outro do qual se infere o facto probando, fala-se em prova indirecta ou indiciária.
Já Cavaleiro de Ferreira referia, in “Curso de Processo Penal II”, Reimpressão da Universidade Católica, 1981, pág. 289, que A prova indiciária tem suma importância no processo penal; são mais frequentes os casos em que a prova é essencialmente indirecta do que aqueles em que se mostra possível uma prova directa (…) Duma maneira geral, os indícios correspondem às presunções naturais em matéria civil.
Segundo, entre outros, o acórdão do STJ de 21.10.2004, in CJ Acs. STJ ano XII, tomo III, pág. 199, as presunções simples ou naturais (…) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz através desta espécie de presunções.
Assinale-se, também, o que expressivamente se escreveu no acórdão da Relação de Coimbra de 23.04.2003, in CJ ano XXVIII, tomo II, pág. 50 - citando Ramos i Vallés, “El dolo e su prueba en el processo penal”, págs. 239 e segs. - «Importa precisar que o meio probatório por excelência ao qual se recorre na prática para determinar a concorrência dos processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo não são as ciências empíricas nem tão pouco a confissão auto inculpatória do sujeito activo. As enormes dúvidas que suscita a primeira e a escassa incidência prática da segunda levam a que a maioria das situações se resolva através de um terceiro meio de prova: a chamada prova indiciária ou circunstancial plasmada nos denominados juízos de inferência. Exceptuando uma manifestação espontânea do autor só um acertado juízo de inferência por parte dos juízes pode enquadrar o pensamento íntimo mais profundo do ser humano “o arcano escondido da sua consciência”».
Isso não significa, contudo, que, em concreto, os elementos probatórios directamente produzidos não devam ser considerados para tanto, mas tão só que se impõe uma ponderação lógica e sustentada acrescida, sob pena da realidade se perder de vista na sua objectividade e se enveredar por uma análise crítica incongruente, enquanto baseada apenas em afirmações que não podem prescindir do crivo da sua valoração, ainda que, no caso presente, simplesmente como prova indiciária.
É dentro deste quadro que as reservas do recorrente se afiguram, nesse âmbito, pertinentes.
Na verdade, assentes os aspectos objectivos da acção dos arguidos, traduzida em intervirem no aparelho automático de conta-quilómetros, reduzindo os que estavam originariamente aí registados, dificilmente se aceita que, em função das regras da experiência, essa operação não tivesse por finalidade a valorização do veículo, independentemente do arguido A. pretender então, ou depois, vendê-lo e do arguido B. disso ter tido, ou não, conhecimento através daquele.
Com efeito, o arguido A., que começou por declarar, na qualidade de testemunha, que o veículo teria tido um problema no quadrante (onde se localiza esse aparelho), vindo, por isso, a substituí-lo (fls. 11 do Apenso referente ao veículo em causa), acabou por reconhecer, quando interrogado, que isso não era verídico e que era, sim, uma forma de valorizar o veículo (fls. 35 desse Apenso).
No que concerne aos depoimentos das testemunhas inquiridas em instrução (a cuja audição ora se procedeu) – C., esposa do arguido; S., amigo do arguido há 15/16 anos; e F., sobrinho do arguido -, todos se reportaram a que o arguido referia ser objecto de comentários e insinuações a propósito da quilometragem elevada que o veículo apresentava.
Por seu lado, declararam nada saber quanto a eventual avaria do quadrante.
Analisados estes elementos, mesmo admitindo-se, com algum esforço, que existissem esses comentários e insinuações, inevitavelmente estes prendiam-se com a valorização do veículo, o que foi, aliás, reconhecido pelo arguido e é, inevitavelmente, o que preside a uma intervenção do tipo da que, indiciariamente, foi realizada, não sendo visível diversa perspectiva.
Assim se valorizando o veículo, isso naturalmente comportou, para o arguido, uma vantagem, ainda que não imediatamente patrimonial, não obstante não decorrer indiciado, pelo conjunto dos elementos probatórios referidos, que a sua pretensão fosse vendê-lo, pelo menos pouco tempo depois da intervenção nesse aparelho, já que, quando teve conhecimento do processo (inquirido como testemunha em Dezembro de 2011) ainda o possuía, situação que se mantém, segundo as aludidas testemunhas (inquiridas em Fevereiro de 2015), sem que se descure, todavia, que a circunstâ0ncia de saber da existência da investigação alguma influência poderia ter tido caso existisse algum propósito de venda.
E essa vantagem foi alcançada de forma que não pode considerar-se conforme às regras aceites pela generalidade das pessoas, uma vez que é reconhecido amplamente por qualquer cidadão que o aparelho de registo de quilómetros é originário de fabricante oficial e não pode sofrer qualquer manipulação.
Deste modo, não é aceitável que a intervenção realizada não seja, em si mesma, indevida.
Idênticas considerações são aplicáveis ao arguido B. (não requerente da instrução), embora tenha afirmado, quando interrogado, que desconhecia o propósito da intervenção (fls. 66 do Apenso), atentando em que, como o recorrente bem refere, se tratava de um mecânico, com conhecimentos técnicos específicos, e que se dedicava a realizar este tipo de intervenções numa garagem transformada em oficina, possuindo maquinaria própria para estas operações, fazendo disso rotina de trabalho, sendo esse o seu modo de vida, com facilidade se conclui estar ciente da intenção que motivava o grosso dos seus clientes (…)era, por força destas circunstâncias, pessoa conhecedora do mercado, do interesse que no negócio de compra/venda assume também a apresentação de uma viatura com quilómetros dentro da normalidade de uso, como potencial do seu valor em 2ª mão (…) teria a noção privilegiada da extrema importância que a sua intervenção representava para aquela finalidade, porquanto este tipo de operações não é feito em concessionários e oficinas oficiais, mas sim de forma encapotada e clandestina como no caso concreto.
Já se vê, pois, que, ao nível da indiciação, haverá que proceder à consequente modificação, sem prejuízo do que se apreciará, de seguida, quanto à pretendida subsunção ao ilícito imputado.
A discordância do recorrente prende-se com a circunstância de que a decisão sob censura tenha entendido que, embora incidindo a acção dos arguidos na notação dos quilómetros do veículo, esse registo, como se consignou, não se destina à prova de facto juridicamente relevante.
O tribunal fundamentou-se na noção de facto juridicamente relevante como sendo aquele que seja apto a construir, modificar ou extinguir uma relação jurídica, acrescentando que, essa virtualidade, o registo de quilómetros percorridos por uma viatura automóvel não tem.
Além do mais, sustentou-se em jurisprudência que tem decidido nesse sentido - acórdãos da Relação de Guimarães de 19.01.2004 e de 21.11.2005 e da Relação do Porto de 18.03.2009, acessíveis em www.dgsi.pt - transcrevendo excertos mais significativos da mesma, que se dispensa agora repetir.
Não obstante, o recorrente invoca que a intervenção em causa tem efetivamente relevo no tráfico jurídico (negocial/comercial) e deve suscitar uma tutela idêntica aos tradicionais sinais identificativos e distintivos dos veículos (cor, matricula e número de chassis/motor) e a prova do facto juridicamente relevante que se visa tutelar neste crime deve abranger também o âmbito obrigacional, as relações de cariz privado e não apenas a tutela do significado atribuído pelo Estado.
Para ilustrar a sua posição, aponta três situações em que, na sua perspectiva, esse relevo se verifica, dada a influência que a quilometragem aí representa.
Assim, em breve síntese, refere-se (i) à garantia das peças e dos veículos, atinente a contratos de compra e venda de veículos novos, mas também de usados, ainda aludindo ao subjacente controlo de qualidade para os fabricantes e aos prazos de substituição de peças e de revisões aos veículos, (ii) ao financiamento designado de renting (aluguer operacional de viaturas), em que existe, normalmente, cláusula reportando-se aos quilómetros, bem como a previsão de cláusula dedesvio de quilómetros caso ocorra diferença relativamente ao inicialmente contratado, e (iii) à tutela da confiança do mercado de usados.
Desde logo, admite-se que, estando em vista a protecção da notação, destinada a prova de facto juridicamente relevante, a mesma não se restrinja à finalidade probatória de originar, manter, transformar ou extinguir direito ou relação jurídica de natureza pública, abarcando, tanto quanto se justifique, direito ou relação jurídica de natureza privada (Helena Moniz, in “O Crime de Falsificação de Documentos. Da Falsidade Intelectual e Da Falsidade em Documento”, Almedina, 1993, pág. 167, nota de rodapé 177, citando Ebermayier).
No entanto, afigura-se que o carácter restritivo da definição de notação técnica enquanto se destina à prova de facto juridicamente relevante (art. 255.º, alínea b), do CP), tem de ser visto como assumindo-se como condicionante, em si mesma, ainda que combinada com outros factores, dessas relações jurídicas, com o rigor e a segurança exigíveis, por um lado, à intervenção do Direito Penal, merecedora da sua tutela e, por outro, à delimitação da tipicidade do crime do art. 258.º do CP.
Ora, nas situações alegadas pelo recorrente, apesar de não despiciendas, não se descortina que a quilometragem do veículo tenha relevo decisivo para os efeitos invocados, quedando-se sempre por aspecto que, a par de outros, não tem autonomia, tendencialmente inerente à informação e à negociação, consentindo livre disponibilidade e, nesse âmbito, se colocando.
Se é verdade que a notação deverá constituir uma referência de prova relativamente a um determinado fenómeno (Helena Moniz, in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora. 1999, tomo II, pág. 701), tal deve interpretar-se como impondo que a notação, em si mesma, tenha sentido inequívoco de prova defacto juridicamente relevante.
Diverso entendimento redundará em descurar a noção legal de notação técnica e, por essa via, desencadear incriminação que se quer, inevitavelmente, precisa.
Não obstante, pois, o que ficou esclarecido quanto à indiciação dos factos, entende-se que estes não integram o tipo legal de falsificação de notação técnica imputado aos arguidos.
Em resumo, modifica-se a indiciação nos seguintes termos:
Aos factos indiciados, aditam-se:
- O arguido A. decidiu reduzir o valor dos quilómetros registados no intuito de potenciar a sua valorização no mercado.
- Cada um dos arguidos agiu sempre de modo voluntário, livre e consciente.
- Os arguidos atuaram em conjugação de vontades e de esforços, sabendo que o veículo tinha percorrido mais 90.000 a 100.000 km., tendo um desgaste superior àquele que passou a aparentar no registo de conta-quilómetros, e que assim iriam pôr em risco a confiança que a generalidade das pessoas deposita na informação fornecida por tais aparelhos.
- Com tal conduta, ambos os arguidos quiseram alcançar uma vantagem, a que sabiam não ter direito, potenciando a sua venda por valor superior ao devido segundo o seu desgaste correspondente aos quilómetros realmente percorridos, gerando uma vantagem indevida em prejuízo de futuros compradores do veículo.
Como factos não indiciados, passam a constar:
- Foi no intuito de depois vendê-lo a preço mais vantajoso que o arguido A. decidiu reduzir o valor dos quilómetros registados no veículo.
- O arguido A. destinava o veículo à venda futura a terceiros no intuito de obter maior vantagem em negócio.
- Cada um dos arguidos sabia que praticava factos proibidos e punidos por lei.
Pese embora tal modificação, não se configura, nos termos descritos, em sintonia com a fundamentação indicada na decisão recorrida, que deva enquadrar a prática do crime de falsificação de notação técnica, do que resulta que os arguidos subsistirão não pronunciados, efeito que o recurso, ainda que em parte influenciando essa modificação, pretendia alcançar.
3. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se:
- negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência,
- sem prejuízo da operada alteração indiciária, manter a decisão instrutória que não pronunciou os arguidos, A. e B., pela prática do crime de falsificação de notação técnica.