CRIME DE AMEAÇAS
CONSUMAÇÃO
Sumário

I – Para a consumação do crime de ameaça é suficiente que a ameaça seja susceptível (idónea) de afectar, lesar a paz individual ou a liberdade de determinação;
II – Comete o referido crime a arguida que, num contexto referente à guarda de uma menor e com o propósito de provocar em D… medo e receio pela vida, dirigindo-se a C… profere a expressão “eu mato a D…”, bem sabendo em que virtude da relação de amizade entre C… e D… aquela transmitiria a esta, como transmitiu, a referida expressão.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 1ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I - Relatório
1 - Nos Autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular N.º 425/13.1GEBNV, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Silves, foi realizada audiência de discussão e julgamento da arguida:
B…, residente na Rua…, tendo sido proferida a sentença seguinte:
“A) Condena a arguida B…pela prática de um crime de ofensa à integridade física p.p. pelo art.º 143º/1 do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de EUR. EUR. 5,50;
B) Condena a arguida B…pela prática de um crime de ameaça agravada p.p. pelo art.º 153º/1 e art.º 155º al. a), do Código Penal na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de EUR. 5,50;
C) Nos termos do art.º 77º do Código Penal, vai a arguida condenado na pena única e global de 130 (cento e trinta) dias de multa à taxa diária de EUR. 5,50;
D) Julga parcialmente procedente por parcialmente provado o pedido de indemnização civil e em consequência condena a arguida a pagar à Assistente a quantia de EUR. 750,00 (setecentos e cinquenta euros);
(...).”

1.1 - A arguida, inconformada com essa decisão, dela interpôs recurso. Nas suas alegações, apresentou as seguintes conclusões:
“O tribunal não analisou de forma crítica a expressão invocada pela testemunha “Flora” em confronto com os requisitos do artº 153º, nº 1 e 155º, al. a) ambos do CP, bem como, não valorou o testemunho do marido da assistente que abona a favor da arguida, pela ausência de receio ou medo da assistente quando desacompanhada da criança, sobrinha da arguida.
Por exposto, e que concretizamos, não estão preenchidos os pressupostos do artº 153º, n.º 1 do CP.
Temos, em que deve a arguida ser absolvida do crime de ameaça agravada, p.p. pelos artº 153º, nº 1 e 155º, al. a) do CP.
Assim se fará JUSTIÇA”.

2 - O recurso foi recebido, tendo o MºPº, junto do tribunal “ a quo”, apresentado resposta, com as conclusões seguintes:
“(…)
5 – Após a alteração da redacção do artigo 153º do Código Penal, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, para que se considere praticado o crime de ameaça, deixou de ser exigível que a ameaça cause efectiva perturbação na liberdade do ameaçado ou que lhe cause medo ou inquietação, bastando que, de acordo com a experiência comum, seja adequada a provocar-lhe essas situações ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.
6 – O crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano e passou a ser um crime de mera acção e de perigo concreto, não sendo necessário que o mal anunciado provoque no visado efectivo medo ou receio ou justificada inquietação, mas sim que seja objectivamente idóneo (adequado) a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação.
7 – A ameaça, tendo em conta as circunstâncias concretas em que é proferida e a personalidade do ameaçado, tem de ser susceptível de intimidar qualquer pessoa.
8 – O critério da adequação da ameaça é um critério objectivo individual, isto é, o critério do homem comum, médio (pessoa adulta e normal), tendo em conta as características individuais do ameaçado e de acordo com a experiência comum, (cfr. Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 348).
9 – Não merece qualquer reparo o decidido na douta sentença.
Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto mantendo-se a decisão recorrida.
Porém V. Exas encontrarão, como sempre, a decisão JUSTA”.

3 - Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer, concluindo:
“Em conclusão o recurso não merece provimento”.

4 - Foi cumprido o preceituado não art. 417º n.º 2 do C.P.P.

5 - Foram colhidos os vistos legais.

6 - Cumpre decidir.


II - Fundamentação
2.1 - O teor da decisão recorrida, na parte que interessa, é o seguinte:
“FACTOS PROVADOS
Da instrução e discussão da causa, e com interesse para a respectiva decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1. C… é amiga de D….
2. A arguida tem conhecimento desse facto.
3. Em data e hora não concretamente determinadas do mês de Outubro de 2013, mas anterior a 16/10/2013, a arguida B…dirigiu-se a C…na Rua …, e dirigiu-lhe as seguintes palavras: “A sua amiga D…roubou - me a menina – juro lhe que ela não fica com a menina – e eu mato a D…!”
4. C… transmitiu as palavras supra descritas, proferidas pela arguida, a D….
5. Cerca das 11:00 horas do dia 16 de Outubro de 2013, a arguida B…dirigiu-se a D…, na Rua …, junto da porta do prédio com o número de polícia 171.
6. Naquele instante, D… tinha ao seu colo uma sobrinha com três anos de idade.
7. A arguida tentou puxar pelo corpo da supra identificada criança, procurando assim retirá-la do colo de D…e, como não conseguiu, agarrou o pescoço e o cabelo de D… e puxou-o, com o que provocou a queda desta no chão, com a sobrinha ao colo.
8. Naquele instante, a criança foi retirada do colo de D…por outra pessoa que ali se encontrava e que as viu caídas no chão.
9. Ato contínuo, a arguida puxou D…, pelo pescoço e pelos cabelos, para o outro lado da estrada.
10. Com a supra descrita atuação a arguida provocou a D…traumatismo membros superiores, puxão de cabelo, dor no cor cabeludo, cefaleias e dorsalgia, escoriações no cotovelo direito com 1 centímetro de comprimento e na face dorsal do segundo dedo da mão direita, com 1,5 centímetros de comprimento, lesões estas que determinaram um período de 5 dias para a cura, 2 dos quais com afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.
11. A arguida previu, quis e conseguiu dirigir as palavras supra descritas a C…, bem sabendo que esta era amiga de D… e que, em virtude de tal amizade, lhe transmitiria o teor das mesmas, com o propósito de provocar nesta medo e receio pela vida.
12. Mais previu, quis e conseguiu agarrar e puxar o pescoço e cabelo de D…, com o propósito de provocar a queda desta no chão, bem como arrastar o corpo desta pelo chão. A arguida sabia que as suas condutas são proibidas por lei penal e tinha capacidade para se determinar segundo esse conhecimento.
Mais se provou que:
13. A arguida vive com o marido na mesma casa mas em economias separadas;
14. Aufere reforma de EUR. 280,00 mensais;
15. A arguida declarou em 2011 e 2012 RAB de cerca de 3.500,00;
16. A arguida não tem antecedentes criminais registados;
Do pedido de indemnização civil:
17. A arguida é tia-avó da menor referida em 6;
18. A Assistente sente angústia medo e desespero pelo que lhe pode acontecer a si;
19. Na sequência da conduta da arguida a Assistente mostra relutância em sair á rua, especialmente quando acompanhada da menor;
20. A Assistente é vista como pessoa de bom trato no meio onde reside;

FACTOS NÃO PROVADOS
21. Com a agressão descrita em 10 a arguida provocou à ofendida traumatismo craniano sem perda de conhecimento e traumatismo do tórax.
(…)
A matéria fáctica apurada é a que se mostra supra descrita, nomeadamente a vertida nos seus pontos n.ºs.1 a 20.
Assim, não se modifica tal matéria de facto, nos termos preceituados no art. 431º n.º 1 al. b), do C.P.P.
(…)

2.4.3 - A recorrente alega, de forma conclusiva, a falta de preenchimento de elementos (os subjectivos) do tipo legal dos crimes, pelos quais foi condenada.
É fundamental atender à previsão dos arts. 143º, 153º, nº 1 e 155º, todos do Código Penal.
(…)
No que ao crime de ameaças respeita, dir-se-á que o artigo 153º do Código Penal, prevê o crime de ameaças, definindo-o como aquele que “ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação…”.
São, pois, elementos constitutivos desse tipo legal, o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal futuro, dependente da sua vontade e que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, que esse anúncio seja adequado a provocar na pessoa a quem se dirige, medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação e que o agente tenha actuado com dolo.
Este tipo legal de crime é agravado, conforme preceitua o art.º 155º, nos seguintes termos:
1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º (Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2013, de 20 de Março, DR, I Série de 20-03-2013: A ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.º 1 do artigo 153º do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.º 1 do artigo 155º do mesmo diploma legal.
O bem jurídico protegido pelo artigo 153.º é a liberdade de decisão e de acção – «as ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade» - Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricence do Código Penal, Vol. 1, pag. 342.
Este autor, na ob. já referenciada (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999), págs. 340 a 348, adianta: “no crime de ameaça, o que está em causa é um ataque ou afectação ilícita da liberdade individual, em que o bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de acção, concluindo que o crime de ameaça é um crime de mera acção e de perigo, de perigo concreto, exigindo apenas que a ameaça seja susceptível de afectar ou de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado, deixando de ser um crime de resultado e de dano, passando a crime de acção e de perigo. “
Para que se consume o crime de ameaça é ainda necessário o dolo. Este dolo exige e basta-se com a consciência - representação e conformação - da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado, sendo irrelevante que o agente tenha, ou não, a intenção de concretizar a ameaça.
No que concerne a este elemento subjectivo do tipo legal deste crime, conforme escreve o Sr. Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira em "Direito Penal Português” - Parte Geral I - Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, se a intenção é vontade e esta é acto psíquico, acto interior são, contudo, grandes as dificuldades para dar praticabilidade a conceitos que designam actos internos, de carácter psicológico e espiritual. Por isso se recorre a regras da experiência, que as leis utilizam quando elas podem dar aos conceitos maior precisão...
Por outro lado, o dolo, dada a sua natureza subjectiva, é insusceptível de apreensão directa, só podendo captar-se a sua existência através de factos materiais, entre os quais o preenchimento dos elementos integrantes da infracção, e por meio das presunções materiais ligadas ao princípio da normalidade ou das regras gerais da experiência.
E, como se refere, bem, na sentença recorrida, “a mensagem ameaçadora pode ser transmitida directamente ou por interposta pessoa como foi o caso dos autos.
Em face do tom e seriedade com que a arguida proferiu a expressão - “Eu mato a D… -, a assistente ficou perturbada no seu sossego e tranquilidade e receoso, convencendo-se que aquela seria capaz de concretizar os seus intentos, e viu por causa delas prejudicada a sua liberdade de movimentos e a tranquilidade, o que decorre das regras da experiencia atenta a expressão e o contexto em que a mesma foi proferida, o que permite considerar preenchidos todos os elementos típicos do crime de ameaça, incluindo o do mal futuro. Acresce que o contexto que preside à conduta da arguida que envolve a guarda de uma menor contribui para um crescendo de pressão que fazem crer pela atitude adoptada pela arguida em audiência de julgamento, que outras atitudes semelhantes poderão ser tomadas pela arguida no futuro.
A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, querendo ao actuar da forma supra descrita, de uma forma séria e convincente, fazer crer à assistente que poderia atentar contra a sua vida, sendo por isso uma conduta concreta adequada a provocar, como efectivamente provocou, o receio, a intranquilidade de tal poder vir verdadeiramente a acontecer.
Sabia que a sua conduta era punida e proibida por lei.”
E, não se diga, como pretende a arguida, que os pressupostos legais deste tipo de crime não se mostram preenchidos, portanto não se provou o receio ou medo da assistente causado pela afirmação da arguida.
Não olvidamos, como já mencionado, que com a revisão do CPP, com a Lei n.º 48/95, de 15/03, este tipo legal de crime, deixou de ser um delito criminal de resultado de dano, para passar a ser um crime de mera acção e de perigo. Consequentemente, deixou de ser necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, afectando a liberdade de determinação do ameaçado, sendo suficiente, para a consumação deste crime, que a ameaça seja susceptível de afectar, lesar a paz individual ou a liberdade de determinação.
Neste mesmo sentido, disponíveis em www.pgdlisboa.pt:
O Ac. TRC de 7-03-2012, proferido no Proc. 110/09.9TATCS.C1, referindo:” Após a revisão do C. Penal de 1995, passou a ser claro que no crime de ameaça não se exige que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que a ameaça seja susceptível de a afectar. O crime de ameaça deixou, pois, de ser um crime de resultado e de dano. A ameaça «adequada» é aquela que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, independentemente do seu destinatário ficar, ou não, intimidado;
O Ac. TRG de 23-03-2015, proferido no Proc. N.º 607/12.3GBVLN.G1, referindo: “Após a revisão do Cód. Penal de 1995, o crime de ameaça não exige que, em concreto, o agente tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afetada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que a ameaça seja suscetível de a afetar. II. O crime de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano.”
Concluindo, no caso “sub judice”, atenta a matéria fáctica aludida no ponto 2.1 deste acórdão e contida nos pontos 1º a 12º, da matéria de facto provada, vertida na sentença recorrida, é inquestionável a afirmação de que “em face das considerações acima tecidas, verifica-se que se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivo dos tipos de ilícitos imputados à arguida B…, constituindo-se esta como autora de um crime de ofensas à integridade física e de um crime de ameaça agravada”
Carece, mais uma vez, de razão a recorrente.

III - Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso.
Custas pela arguida/recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 Ucs.
(Processado por computador e integralmente revisto pela relatora que rubrica as restantes folhas).

Évora, 02/02/2016
Maria Isabel Duarte (relatora)
Martins Simão (adjunto)