PRESUNÇÃO
MATÉRIA DE FACTO ERRO DE JULGAMENTO
Sumário

I - As inferências ou ilações são raciocínios lógicos que concorrem para a construção da decisão judicial.
II – São inferências de facto as que se inserem na reconstrução da espécie ou situação de facto deduzida em juízo; são inferências de direito os juízos classificatórios necessários ao confronto entre a espécie concreta dos autos e as espécies abstratas – ou típicas – da lei tendo em vista a qualificação jurídica dos factos.
III – Por relevarem para a fixação dos factos materiais da causa, as inferências de facto e só estas, estão, em princípio, excluídas do conhecimento do Tribunal de Revista.

Texto Integral








Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório.
1. AA instaurou contra o Estado Português, ação declarativa com processo ordinário.
Alegou, em síntese, que mostrando-se o Estado obrigado à reparação civil dos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais, ilegais ou injustificadas por erro grosseiro e havendo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo 2634/06.0TBPTM, com violação da lei, alterado a matéria de facto fixado pelas instâncias, assim cometendo erro grosseiro grave e indesculpável, na sequência do qual, a A. deixou de receber a quantia de € 50.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais que as instâncias lhe haviam fixado, deverá o Estado reparar a A.
A tal não obsta a circunstância do acórdão do Supremo Tribunal não haver sido revogado, nem o poder ser porque decidiu em última instância, porque o TJCE no acórdão Kobler decidiu que há responsabilidade estadual quando o incumprimento resulta de uma decisão de um órgão jurisdicional decidindo em última instância desde que o juiz tenha violado de um modo manifesto o direito aplicável.
Concluiu pedindo a condenação do Estado a pagar-lhe a quantia de € 50.000,00 e as custas judiciais que tiver que suportar no processo 2640/06.0TBPTM em função do seu decaimento, a liquidar em execução de sentença.
O Ministério Publico contestou, em síntese, considerando competente para conhecer da causa o tribunal da comarca de Lisboa, defendendo que obsta ao conhecimento do pedido formulado pela A. a inexistência da prévia revogação da decisão pressuposta como danosa, uma vez que a lógica da nossa estrutura judiciária obsta a que as instâncias apreciem o mérito das decisões do Supremo Tribunal de Justiça, ponderando que o acórdão não procedeu a qualquer alteração da matéria de facto e, por último, defendendo que a A. não alega quaisquer danos ocasionados pela decisão considerada danosa.
Concluiu, na procedência da exceção da incompetência territorial, pela remessa dos autos às Varas Cíveis de Lisboa, na procedência da exceção inominada da inexistência da prévia revogação da decisão danosa, pela absolvição da instância do R. e, em qualquer caso, pela improcedência da ação.
A A. respondeu à contestação para concluir como na petição inicial.

2. Findos os articulados, foi proferido despacho que dispensou a realização da audiência prévia e em seguida, na consideração que os autos reuniam todos os elementos para o efeito, foi proferido saneador/sentença, julgando improcedentes as exceções da incompetência do tribunal em razão do território e da exceção inominada da inexistência da prévia revogação da decisão danosa, por desaplicação aos autos do nº2, do artº 13º, da Lei 67/2007, decidindo a final julgar a ação improcedente e absolver o Réu do pedido.

3. Recurso.
É desta sentença que a A. recorre formulando as seguintes conclusões que se reproduzem:
“1. O STJ, em seu acórdão estabeleceu, ao contrário das instâncias que a associação da Autora a um esquema de corrupção era investigado no inquérito penal que decorria, enquanto as instâncias deram por apurado, que o preenchimento em branco, só passou a estar sob investigação após publicação da notícia.
2. O Supremo Tribunal de Justiça ao alterar a matéria de facto fixado pela Relação de Évora, violou os artigos 722º nº 3 e 729 nº 2 do Código de Processo Civil (revogado).
3. Tal obrigação do Supremo Tribunal de Justiça estende-se às inferências ou ilações fixadas pelo Tribunal da Relação de Évora, nos termos do nº3 do artº 674º e nºs 1 e 2 do artº 682º do NCPC, conforme jurisprudência uniforme.
4. A srª Juíza de Circulo não fixou tal facto por ilação, mas pela análise do documento de que o facto resulta, que é o próprio inquérito penal. Tal entendimento é mantido peça Relação de Évora e inquestionável face à leitura do documento.
5. A alteração da matéria de facto não constitui apenas um problema interno mas também um problema comunitário.
6. Dada a função instrumental do processo o direito de ação é o direito subjetivo à defesa. Ao negar-se (ou violar-se) o processo ofende-se o próprio direito subjetivo tutelado. A norma viola e a aplicar é o artº 20º da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito à Justiça.
7. Acresce que, constitui direito fundamental, tutelado no artigo 47º da Carta dos Direitos fundamentais da União Europeia (ilidem artigo 20º do CRP e artigo 6º da CEDH), o direito a ser-se julgado por um tribunal imparcial de forma equitativa, normas violadas e a aplicar são as atrás citadas.
8. Consagrou-se desta forma o chamado “due process” um processo justo na sua conformação legislativa e materialmente informado pelo princípios materiais de justiça nos vários momentos processuais, como resulta das normas citadas na conclusão anterior.
9. Dando conformação na legislação ordinária a tal principio a Lei 67/2007 de 31 de Dezembro, considera determinante de responsabilidade civil do Estado o erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto numa acção. Tal erro afasta os valores materiais de justiça que devem informar um processo equitativo.
A lei violada é o artº 13º da citada lei.
10. A Autora esgotou os meios processuais disponíveis, para reagir contra o acórdão do STJ, arguindo a sua nulidade e inconstitucionalidade. O facto constante da sentença não corresponde à verdade. Sobre tal recaiu acórdão que integra o acórdão em análise.
O recurso para o Tribunal Constitucional não é recurso ordinário, nos termos do artº 628 do C.P.C.
11. Os direitos fundamentais não são hierarquizáveis, nem são ilimitados.
12. No caso em apreço o direito ao bom nome e o direito à liberdade de expressão entraram em colisão, o que implica estabelecer fronteiras entre ambos.
13. Sendo certo que tal questão pode ser encarada na sua vertente civil ou penal, a última barreira, na solução de tal questão está fixada no artigo 180º do Código Penal, ou seja, conformada na lei ordinária, em hipótese que ultrapassa o conflito inter – subjectivo de interesses ou direitos para se cair em valores comunitários essenciais.
A norma a aplicar é o artº 180 do Código Penal.
14. O “busílis” da questão não está na forma com a Autora assinava os certificados de óbitos, aspeto de pendor burocrático e pouco relevante, justificado pelo facto de, por vezes, não conhecer a identidade da pessoa observada, derivada do facto da GNR, não ter ainda enviado a sua identificação ou não a possuir mas na sua associação a um esquema de corrupção promovido pelos agentes funerários.
15. Para efeitos do artigo 180º do Código Penal, não se apurou ser a notícia verdadeira e a sua autora, a jornalista BB não invocou razões para a reputar com tal.
16. Não colhe melhor razão o invocado acórdão do TEDH, sendo erráticas as inferências dele extraídas. Não estabelecendo qualquer hierarquia entre direitos fundamentais como resulta da análise do citado acórdão.
17. O que existe no acórdão relativamente à sentença do Tribunal, é uma diferente interpretação da matéria de facto, como resulta da conclusão anterior.
18. O Tribunal, viu na obra “Nós somos a Pátria”, de pendor jornalístico, onde se relatem factos públicos e notórios, na expressão que o CC era “inimigo figadal da Selecção Nacional” matéria de difamação e o TEDH, por seu turno, um debate de pendor de política futebolística, onde o autor tece juízos de valor negativo sobre factos incontroversos (ibidem).
19. O TEDH, não aceitou, assim, o caracter difamatório das expressões usadas, vendo neles o exercício de crítica, própria de uma sociedade democrática, relativamente a factos verdadeiros. Mais refere que nestes debates, políticos ou de política futebolística, é tolerável algum exagero na linguagem (ibidem).
NESTES TERMOS, DANDO PROVIMENTO AO RECURSO E REVOGANDO A SENTENÇA RECORRIDA E DANDO A PRESENTE ACÇÃO POR PROCEDENTE E PROVADA, SE FARÁ J U S T I Ç A.”[1]
Respondeu o Ministério Público defendendo a confirmação da sentença recorrida.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso.
O objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo de alguma ou algumas da questões, nestas suscitadas ficar prejudicada pela solução dada a outras –cfr. artºs. 635º, nº4, 639º, nº1, 608º, nº2 e 663º, nº2, todos do Código de Processo Civil.
Vistas as conclusões do recurso, são as seguintes as questões nele suscitadas:
- se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça alterou a decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido (conclusões 1ª a 4ª);
- se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por negação ou violação do processo, ofende o artº 20º da Constituição da República Portuguesa e/ou normas do direito comunitário (conclusões 5ª a 19ª).

III. Fundamentação.
1. Factos:
A decisão recorrida consignou o seguinte quanto aos factos:
O tribunal, dá por reproduzido o teor da sentença proferida pelo Tribunal de Círculo no processo 2640/06.0TBPTM, bem como o teor dos acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Évora e, a final, pelo Supremo Tribunal de Justiça, em sede de recurso, cujo conhecimento o tribunal invoca nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412.º n.º 2 do Código de Processo Civil.

2. Direito.
2.1. Se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça alterou a decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido (conclusões 1ª a 4ª).
A ação tem como fundamento a responsabilidade civil do Estado por erro judiciário (artº 13º, nº1, da Lei 67/2007, de 31/12) e a decisão que a recorrente considera injustificada por erro grosseiro, é acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 15/9/2011, proferido na ação que correu termos com o número 2634/06.0TBPTM que, concedendo a revista do acórdão desta Relação de 13/10/2010, julgou a ação improcedente e absolveu as rés DD S.A. e EE, S.A. dos pedidos formulados pela A.
A recorrente alegou na presente ação que o acórdão do STJ alterou a matéria de facto estabelecida pelas instâncias, com violação dos artºs 722º e 729º, do Código de Processo Civil então em vigor e do artº 210º, nº5, a contrario da Constituição da República Portuguesa e, assim, “cometeu o Supremo Tribunal de Justiça erro grosseiro grave e indesculpável”.
A decisão recorrida depois de considerar inaplicável o nº2 do artº 13º da referida Lei nº 67/2007, que estabelece que o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, considerou que o STJ não havia alterado a matéria de facto fixado pelas instâncias.
Concretamente exarou:
«Compulsada a sentença proferida em 1.ª instância, bem como os acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Évora e pelo Supremo Tribunal de Justiça, se constata que a matéria de facto fixada na primeira instância em 49 artigos, foi integralmente confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora, mantendo-se integralmente intocada em número e redação, no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
O que se verificou foi que o Supremo Tribunal de Justiça, retirou ilações diferentes da mesma matéria de facto e, em consequência, efetuou diverso enquadramento jurídico, que culminou em decisão totalmente desfavorável à pretensão da autora.
Em concreto, da matéria plasmada nos artigos 15.º e 16.º da matéria de facto provada, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu que “a associação dos certificados de óbito assinados em branco a um esquema de corrupção era investigada no inquérito penal que decorria”, enquanto que em primeira instância se concluiu da matéria plasmada no artigo 35.º dos factos provados que “o preenchimento em branco só passou a estar sob investigação no inquérito, após publicação da notícia pelo Jornal e pela EE”».
A recorrente reitera no recurso que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça alterou a matéria de facto fixada pela Relação e defende que a vinculação do STJ à matéria de facto fixada pelas instâncias se estende às inferências ou ilações por estas fixadas.
O acórdão foi proferido na vigência do Código de Processo Civil revogado pela Lei nº 41/2013, de 26/6, o qual estipulava que a matéria de facto era decidida por meio e acórdão ou despacho se o julgamento incumbisse ao juiz singular (artº 653º, nº 2), seguia-se a discussão do aspeto jurídico da causa (artº 657º) e depois o processo era concluso ao juiz para a prolação da sentença (artº 658º); na fundamentação da sentença incumbia ao juiz tomar em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal coletivo deu como provados (artº 659º, nº3), discriminando-os e depois de aplicar o direito, concluir pela decisão final (artº 659º, n2); a decisão da matéria de facto poderia ser modificada pela Relação (artº 712º) mas, em princípio, não poderia ser modificada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
“A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no nº3 do artº 722º” – artº 729º, nº2.
“O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” – artº 722º, nº3.
Nas palavras de Amâncio Ferreira, na “apreciação do recurso de revista, o STJ só conhece de questões de direito (artº 33º da LOFTJ). Não controla a matéria de facto nem revoga por erro no seu apuramento; compete-lhe antes fiscalizar a aplicação do direito aos factos selecionados pelos tribunais de primeira e segunda instâncias (arts. 722º, nº3 e 729 nºs 1 e 2). Daí dizer-se que o STJ é um tribunal de revista e não um tribunal de 3ª instância (artº 210º, nº5, da CRP)”.[2]
Considerandos que não suscitando controvérsia nos autos apoiam e opõem-se, a nosso ver, à pretensão da recorrente; suportam a pretensão da recorrente porque ao STJ, enquanto tribunal de revista, está vedada, em princípio, a alteração da matéria de facto fixada pelas instâncias; opõem-se à pretensão da recorrente, porque não configura uma alteração da matéria de facto o julgamento que se limita a aplicar o regime jurídico tido por adequado aos factos fixados pelas instâncias; ou seja, a violação dos artºs 722º, nº3 e 729º, nº2, causa de pedir na ação, supõem uma alteração da base factual do litígio fixado pelas instâncias, mas não impede uma diferente caraterização jurídica ou enquadramento legal dos factos por esta fixados.
É o que resulta, a nosso ver, da expressão legal a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada conjugada com os já citados nºs 2 e 3, do artº 659, vista à luz do ensinamento de Alberto dos Reis quando discorrendo sobre os momentos lógicos da construção da sentença distingue entre a determinação da espécie concreta (fixação dos factos da causa) e a qualificação jurídica dos factos[3] que se segue ao seu apuramento e fixação.
Se o acórdão que julga a revista se serviu dos factos apurados e fixados pelas instâncias e deles retira, admite-se por mera necessidade de raciocínio, consequências jurídicas que aqueles não comportam ou que a eles se opõem, o erro está no juízo de subsunção dos factos provados ao direito e não na sua alteração.
Por isto que a ação estava, a nosso ver, ab initio votada ao fracasso, num primeiro momento porque, aliás como anotou a decisão recorrida, o acórdão reproduziu os factos que as instâncias deram como provados e depois porque a recorrente considerou, como agora considera, que o acórdão alterou a matéria de facto fixado pelas instâncias, porque o Supremo Tribunal de Justiça reportando-se aos números 15 e 16 da matéria de facto referiu que “a associação dos certificados de óbito assinados em branco a um esquema de corrupção era investigada no inquérito penal que decorria”, enquanto a primeira instância, reportando-se à matéria de facto constante dos pontos 32 a 35, entendeu, com a concordância desta Relação, que “o preenchimento em branco só passou a estar sob investigação no inquérito, após publicação da notícia pelo Jornal e pela EE”»; ora, a nosso ver, não há nisto qualquer alteração de factos o que existe é um entendimento distinto quanto à interpretação dos factos que se provam com vista à sua subsunção jurídica.
Concretamente refere o acórdão neste segmento:
“Depois impõe-se ter presente – e ao contrário do sustentado na decisão recorrida – que a associação dos certificados de óbito assinados em branco a um esquema de corrupção era investigada no inquérito penal que decorria.
Na verdade, ficou provado (15º) que «a jornalista envolvida acreditou na veracidade dos factos que noticiou tendo confirmado que existia uma investigação criminal em curso que associava a existência de certificados de óbito a um esquema de corrupção», sublinhado nosso.
Tenha-se ainda presente que, embora se referindo à noticia da EE, mas os factos no essencial são os mesmos e a jornalista é a mesma, resultou provado (16º) que «os factos de que a notícia em causa dá conta já haviam sido denunciados às entidades competentes …» (sublinhado nosso).
Ou seja, e concluindo: de acordo com os factos provados, a associação daqueles factos não foi lançada pela notícia, mas já fazia parte do assunto da investigação penal que decorria, como foi confirmado pela jornalista.”
Admitindo que o acórdão do STJ errou, por ser o que a recorrente defende, o apontado erro, tal como a recorrente o configura, não está na alteração da matéria de facto fixada pelas instâncias - aliás, como claramente se expressa e se destaca, na origem, a negrito o acórdão conclui de acordo com os factos provados - o erro estaria no juízo formulado sobre os factos provados, na sua avaliação e interpretação e, assim, excluído do âmbito das normas que a recorrente considera violadas, cujo campo de aplicação se esgota na decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto, ou seja, na fixação dos factos.
E a tanto não obsta a circunstância da vinculação do STJ à matéria de facto fixada pelas instâncias se estender às inferências ou ilações por estas fixadas.
De forma uniforme, ao que cremos e em linha com o defendido pela recorrente, o STJ vem decidindo que as ilações ou conclusões tiradas em matéria de facto pelas instâncias constituem a última palavra quanto ao facto respetivo[4]; o que se compreende, as deduções ou inferências que se possam estabelecer a partir dos factos provados, por constituírem o seu desenvolvimento lógico, situam-se ainda no âmbito da decisão proferida quanto à matéria de facto e, como tal, em princípio, mostram-se excluídas da sindicância do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista; mas importa esclarecer que estas deduções ou inferências são as que se reportam à fixação e determinação da base factual do litígio e já não aquelas que partindo desta base se tenham por necessárias ao processo da subsunção dos factos ao direito.
Como esquematiza Manuel de Andrade a sentença implica as seguintes operações intelectuais:
a) Reconstrução da espécie ou situação de facto deduzida em juízo. É a critica das afirmações de facto postas pelas partes – operação que se realiza, principalmente, através da apreciação das provas.
b) Qualificação jurídica da espécie de facto reconstruída. É a sua integração (ou subsunção) numa dada previsão legal. (…)
c) Interpretação da lei aplicável. (…)
d) Individualização da lei aplicável. (…)
À 1ª correspondem juízos históricos, isto é, juízos existenciais referidos a factos passados e por vezes também presentes (…). À 2ª correspondem juízos classificatórios. Através deles se estabelece o confronto entre a espécie concreta dos autos e as espécies abstractas – ou típicas – da lei (…). À 3ª correspondem juízos interpretativos (…). À última correspondem juízos determinativos”[5]
Vista a questão colocada nos autos à luz deste ensinamento, as inferências ou ilações tiradas pelas instâncias e cujo conhecimento está vedado ao Tribunal de Revista são as que se inserem na reconstrução da espécie ou situação de facto deduzida em juízo, caindo fora desta alçada os juízos classificatórios que se tiverem por necessários ao confronto entre a espécie concreta dos autos e as espécies abstratas – ou típicas – da lei tendo em vista a sua qualificação jurídica; o primeiro juízo é de facto, o segundo é de direito.
O erro apontado ao acórdão não se insere, em substância, no juízo de facto, na reconstrução da espécie ou situação de facto deduzida em juízo, pois embora pareça certo, como se se argumenta, que o “Supremo Tribunal de Justiça retirou ilações diferentes da matéria de facto” [“impõe-se ter presente – e ao contrário do sustentado na decisão recorrida – que a associação dos certificados de óbito assinados em branco a um esquema de corrupção era investigada no inquérito penal que decorria”, consignou-se], tais ilações não tiveram por efeito alterar os factos fixados pelas instâncias – o acórdão é claro quanto a concluir de acordo com os factos provados - mas tão só o entendimento que estas deles haviam retirado, juízo que por se reportar à qualificação jurídica da espécie de facto reconstruída, é um juízo de direito, cuja formulação exclui a violação dos artºs 722º, nº3 e 729º, nº2, do CPC vigente à data do acórdão.
Em conclusão, há uma diferença entre alterar os factos provados e decidir em desconformidade com os factos que se provam; a recorrente pretende os efeitos da primeira situação, fundamentando-se nesta última e, como tal, não se vê como lhe dar razão.

2.2. - Se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por negação ou violação do processo, ofende o artº 20º da Constituição da República Portuguesa e/ou normas do direito comunitário (conclusões 5ª a 19ª).
Assim se decidindo, mostra-se prejudicado o conhecimento da ofensa de normas constitucionais ou de normas de direito comunitário pela decisão alegadamente danosa, por supor, na lógica recursiva, em ambos os casos, a violação de normas de procedimento que não reconhece.
Improcede, pois, o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.
IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Évora, 4/2/2016

Francisco Matos

Manuel Bargado

Elisabete Valente
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[1] Transcrição de fls. 427 a 431.
[2] Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª ed., pág. 251.
[3] Código de Processo Civil anotado, vol. 5º, 1952, págs 32 a 34.
[4] Cfr. v.g. Acs. do STJ de 19/4/1994 e de 18/12/2003, disponíveis em www.dgsi.pt
[5] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, págs. 295 a 297.