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RECETAÇÃO CULPOSA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
BASTÃO EXTENSÍVEL
ERRO SOBRE A PROIBIÇÃO
ERRO SOBRE A ILICITUDE
ERRO CENSURÁVEL
Sumário
I – A recetação culposa ocorre sempre que o agente, não tendo conhecimento certo da origem da coisa que adquire ou recebe, devia tê-la presumido em função da própria qualidade da coisa, da desproporção entre o preço proposto e o valor de tal coisa, ou da condição de quem vende ou oferece.
II - A detenção de um “bastão extensível”, em metal, com 52 cm de comprimento, objeto que não tem aplicação definida e que pode ser utilizado como meio de agressão, e não tendo o seu portador justificado a sua posse, integra todos os elementos objetivos do crime de detenção de arma proibida previsto no artigo 86º, nº 1, al. d), do Regime Jurídico das Armas e Munições.
III - A teoria do erro do tipo está diretamente conectada com a teoria do dolo, na medida em que o erro do tipo não é outra coisa, em substância, do que a negação do quadro de representação requerido pelo dolo: o autor desconhece os elementos a que há-de estender o dolo segundo o correspondente tipo de crime. Quanto ao respetivo conteúdo, o erro do tipo pode consistir tanto numa representação falsa como na falta de representação, pois o erro é, em termos gerais, a discrepância entre consciência e realidade.
IV - Assim, o erro do tipo pode referir-se, como o dolo, a todos os elementos objetivos do tipo, incluídos os conceitos jurídicos contidos no mesmo e outros elementos normativos; se o agente do crime não compreendeu devidamente o significado de tais elementos, ao menos no marco de valoração paralela na esfera do profano, falta o dolo. Não basta que o agente haja conhecido a base fáctica do conceito jurídico.
V - O erro do tipo é o erro sobre a concorrência dos pressupostos objetivos previstos na ordem jurídica e com os quais a mesma adquire eficácia; pelo contrário, o erro de proibição é um erro acerca de que um determinado comportamento, advertido corretamente pelo agente na sua estrutura objetiva, é juridicamente proibido.
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO
Nos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) nº 649/12.9GDLLE, da Comarca de Faro (Loulé - Instância Local - Secção Criminal - Juiz 1), em que é arguido R. (e outro), após audiência de discussão e julgamento, e mediante pertinente sentença, a Mmª Juíza decidiu:
“A) Absolver o arguido B. e o arguido R.do crime de recetação, p. p. pelo art. 231º, nº 1, do C.P.;
B) Condenar o arguido R. pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de recetação, p. e p. pelo artigo 231º, nº 2, do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00;
C) Condenar o arguido R. pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º nº 1, aI. d), do Regime Jurídico das Armas e munições, na redação atual da Lei 50/2013, de 24/07, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00;
D) Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares supras, condenar o arguido, nos termos do art. 77º do C.P., na pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o total de € 1.000,00 (mil euros);
E) Condenar o arguido R. em taxa de justiça, que se fixa em 2 (duas) UC's, e, bem assim, nas demais custas do processo;
F) Determinar a restituição do telemóvel apreendido a fls. 61 ao respetivo proprietário, nos termos do art. 186º, nºs 1 e 2, do CPP”.
O arguido R. recorreu da sentença condenatória, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões, extraídas da motivação do recurso:
“I - Discorda o arguido da sua condenação por posse de arma proibida, por violação do artigo 86º, nº 1, al. d), do regime jurídico das armas proibidas e munições.
II - Discorda o arguido da sua condenação pelo crime de recetação, por violação do artigo 231º, nº 2, do Código Penal.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogada a douta decisão recorrida que condena o recorrente, absolvendo o mesmo, tanto do crime de recetação como do crime de posse de arma proibida”.
*
A Exmª Magistrada do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância respondeu ao recurso, pugnando pela confirmação da decisão revidenda.
Conclui a sua resposta nos seguintes termos (em transcrição):
“1. O Tribunal fez um correto apuramento e valoração da matéria de facto, e fundamentou com suficiência e rigor de critério, fáctica e juridicamente, a sua decisão.
2. A convicção do Tribunal alicerçou-se no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, com apreciação crítica das provas, documental e testemunhal, e de acordo com as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.
3. Tendo em consideração a matéria de facto dada corno provada e subsumindo-a à previsão do art. 231º, nº 2, do Código Penal, outra não poderia ter sido a decisão do Tribunal se não a condenação do arguido pela prática do crime de recetação.
4. Do mesmo modo, tendo em consideração a matéria de facto dada como provada e subsumindo-a à previsão do art. 86º, nº 1 - d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, outra não poderia ter sido a decisão do Tribunal se não a condenação do arguido pela prática do crime de detenção de arma proibida.
5. Por tudo o exposto, deve a sentença recorrida ser confirmada e, em consequência, negar-se provimento ao recurso”.
*
Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer (fls. 634 a 638), entendendo que o recurso não merece provimento.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
Foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1 - Delimitação do objeto do recurso.
De harmonia com o disposto no nº 1 do artigo 412º do C. P. Penal, e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente do S.T.J. – cfr. Ac. de 13-05-1998, in B.M.J. 477/263, Ac. de 25-06-1998, in B.M.J. 478/242, e Ac. de 03-02-1999, in B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19-10-1995, in D.R., I - Série A, de 28/12/1995).
Ou seja, são só as questões suscitadas pelo recorrente, e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar - artigos 403º, nº 1, e 412º, nºs 1 e 2, ambos do C. P. Penal.
A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva (in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, pág. 335): “daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Ora, a esta luz, lendo as conclusões extraídas da motivação de recurso, verificamos, sem dúvidas ou hesitações, que:
- O recorrente não impugna a matéria de facto dada como provada na sentença revidenda (impugnação alargada da matéria de facto - cfr. o disposto no artigo 412º, nºs 3 e 4, do C. P. Penal);
- O recorrente não invoca a existência de qualquer um dos vícios da decisão, prevenidos no artigo 410º, nº 2, do C. P. Penal, nem, numa apreciação oficiosa, vislumbramos, minimamente, a ocorrência de algum desses vícios;
- O recorrente não argui, quanto à sentença sub judice, qualquer nulidade ou irregularidade.
Assim sendo, este tribunal ad quem considera definitivamente fixada a matéria de facto, nos precisos termos em que o tribunal de primeira instância a definiu.
E, em consequência, é com base na matéria de facto dada como assente na sentença recorrida que iremos, sem mais, apreciar e decidir as questões (de direito) colocadas na motivação do recurso (nas respetivas conclusões - as quais, como acima já dito, delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal -).
À luz dos anteriores considerandos, e em breve síntese, são duas as questões a conhecer:
1ª - Os factos provados não integram a prática do crime de detenção de arma proibida (p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, al. d), do Regime Jurídico das Armas e Munições).
2ª - Os factos provados não integram a prática do crime de recetação (p. e p. pelo artigo 231º, nº 2, do Código Penal).
2 - A decisão recorrida.
A sentença revidenda (quanto aos factos, provados e não provados, e quanto à motivação da decisão fáctica) é do seguinte teor:
“Fundamentação:
A) Da acusação resultaram PROVADOS os seguintes factos, com relevância para a causa:
1. No dia 19.08.2012, pessoas de identidade não apurada dirigiram-se à residência pertença de P., sita em Sítio do Passis de Almargem, …, Quarteira.
2. Aí chegados, partiram a fechadura de uma portada e entraram na residência.
3. Do interior da residência, entre outros, retiraram os seguintes objetos:
- Um telemóvel de marca Nokia, modelo 7100, de cor preta e rosa, com o IMEI ---, e,
- Um telemóvel de marca Nokia C5, com o IMEI ----.
4. Na posse dos referidos objetos, abandonaram o local, integrando esses bens nos seus patrimónios.
5. No dia 02.10.2012, o arguido B. adquiriu o telemóvel de marca Nokia, modelo 7100, de cor preta e rosa, com o IMEI 35802303713885 numa feira de velharias, pelo preço de €10,00, passando a utilizá-lo.
6. O arguido B. não desconhecia o valor real desse telemóvel que, à data, se adquiria nos estabelecimentos comerciais autorizados para o efeito pelo valor de € 45,00.
7. O arguido R. apossou-se do telemóvel de marca Nokia C5, com o IMEI --, no dia 24.08.2014, adquirindo-o a um indivíduo pelo preço de € 15,00.
8. O arguido não desconhecia o valor real desse telemóvel que, à data, se adquiria nos estabelecimentos autorizados para o efeito por valores superiores a € 200,00.
9. O arguido R., sem que lhe fosse apresentada qualquer documentação do telemóvel e conhecendo as suas características e o seu valor comercial, o que fazia desconfiar seriamente da sua origem ilícita, não curou de saber da sua proveniência e quis recebê-lo, pelo preço de € 15,00, para utilização própria, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida, ao que foi indiferente.
10. No dia 24.03.2013 o arguido R. detinha, no interior da sua residência sita em…, em Quarteira, um bastão extensível com 52 cms de comprimento, de sua pertença, em metal.
11. Sabia o arguido R. que não podia deter tal bastão, uma vez que se tratava de um instrumento destinado a servir de arma de agressão.
12. O arguido não estava autorizado a deter tal objeto.
13. Com a conduta descrita em 10, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, ao que foi indiferente.
14. O arguido B. é armador de ferro e aufere cerca de € 505,00 mensais.
15. Vive com uma companheira e deixou dois filhos, em África, de 6 e 11 anos de idade, que estão com a mãe, para quem envia, sempre que lhe é possível, cerca de € 100,00 mensais.
16. Tem o 9º ano de escolaridade.
17. O arguido R. é mecânico e aufere um vencimento mensal que estima em € 700,00.
18. Vive em casa própria, com uma companheira, que neste momento está desempregada, e um filho de dois anos de idade.
19. Tem de habilitações literárias o 12º ano de escolaridade.
20. Do registo criminal do arguido B. nada consta.
21. Do registo criminal do arguido R. constam as seguintes condenações:
a) No proc. ---/04.7GTABF, que correu termos no 3º juízo do Tribunal judicial de Albufeira, por crime de condução sem habilitação legal, praticado em 12.10.2004, por decisão de 21.10.2004, transitada em julgado em 05.11.2004, na pena de 70 dias de multa, já declarada extinta;
b) No proc. ---/06.5GELSV, que correu termos no 2º juízo do Tribunal judicial de Silves, por crime de condução sem habilitação legal, praticado em 21.08.2006, por decisão de 13.11.2007, transitada em julgado em 03.12.2007, na pena de 100 dias de multa, já declarada extinta;
c) No proc. ---/07.4GCABF, que correu termos no 2º juízo do Tribunal judicial de Albufeira, por crime de condução sem habilitação legal, praticado em 18.12.2007, por decisão de 25.01.2008, transitada em julgado em 05.03.2008, na pena de 120 dias de multa, já declarada extinta;
d) No proc. ---/08.8GBLLE, que correu termos no 2º juízo criminal deste Tribunal de Loulé, por crime de condução sem habilitação legal, praticado em 15.04.2008, por decisão de 17.07.2008, transitada em julgado em 18.08.2008, na pena de 3 meses de prisão, suspensa por 1 ano, condicionada a inscrição em escola de condução, já declarada extinta;
e) No proc. ---/08.0GELLE, que correu termos no 1º juízo criminal deste Tribunal de Loulé, por crime de condução sem habilitação legal, praticado em 16.12.2008, por decisão de 19.01.2009, transitada em julgado em 03.02.2009, na pena de 9 meses de prisão, suspensa por 1 ano, condicionada a sujeição a exame de condução;
f) No proc. ---/08.0GBLLE, que correu termos no 1º juízo criminal deste Tribunal de Loulé, por 4 crimes de roubo, praticados em 31.01.2008, por decisão de 07.04.2011, transitada em julgado em 07.11.2011, na pena de 5 anos de prisão, suspensa por 5 anos, com base em plano de readaptação social.
g) No proc. ---/07.0GBABF, que correu termos no 2º juízo do Tribunal judicial de Albufeira, por crime de furto, praticado em 06.12.2007, por decisão de 06.10.2011, transitada em julgado em 13.12.2011, na pena de 3 anos de prisão, suspensa por 3 anos.
B) Factos não provados da acusação:
1. O valor do telemóvel mencionado no inciso 5 era superior a € 50,00.
2. O arguido R. adquiriu o telemóvel mencionado no inciso 6 pelo preço de € 10,00.
3. Os arguidos sabiam que os referidos telemóveis tinham sido subtraídos ao ofendido.
4. Agiram com a intenção concretizada de obterem uma vantagem patrimonial para si, correspondente ao valor do objeto.
5. Com a descrita conduta, os arguidos agiram de modo livre, deliberado e consciente.
Convicção:
O tribunal formou a sua convicção, sobre os factos que eram imputados aos arguidos na acusação, com base no conjunto da prova produzida, e examinada em audiência de julgamento, nomeadamente, nas declarações dos arguidos, e, ainda, no depoimento das testemunhas, estas analisadas segundo os princípios da imediação, da oralidade e da concentração.
O Tribunal apreciou livremente as provas, segundo a sua prudente convicção, ou seja, depois da prova produzida, o Tribunal retirou as suas conclusões, em conformidade com as suas impressões recém colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as regras da ciência, do raciocínio, e das máximas da experiência que forem aplicáveis.
Sobre tais contributos de ciência impendeu o raciocínio que se passa a expor:
O arguido B. prestou declarações e declarou que comprou o telemóvel mencionado no inciso 5 numa feira de velharias, pelo preço de € 10,00. Esclareceu que vai quase todos os Domingos à feira e naquele dia viu o telemóvel exposto no chão em cima de um pano, juntamente com outros objetos e decidiu adquiri-lo. Referiu que o mesmo era usado, estava riscado, não vinha com cartão e não estava no interior de qualquer caixa, parecendo-lhe que o preço era ajustado ao estado do mesmo. Questionado sobre o valor comercial de um telemóvel novo com aquelas características disse tratar-se de € 40 a € 50,00. Por último referiu que como o telemóvel vinha sem cartão, colocou o seu cartão no mesmo.
O arguido R. declarou que comprou o telemóvel mencionado no inciso 7 a um individuo de nome Laurentino, por € 15,00, desconhecendo o valor real daquele telemóvel. Esclareceu que o referido indivíduo já lhe tinha vendido peças de automóveis e dirigiu-se a ele a propor-lhe a compra do telemóvel, dizendo que precisava de dinheiro. O telemóvel do arguido estava partido, pelo que, e sem mais, decidiu adquirir o dito telemóvel. Questionado sobre se solicitou alguma documentação relativa ao telemóvel, disse que não, pois via regularmente aquela pessoa, a quem já tinha adquirido peças de automóveis.
No que concerne ao bastão, disse que o encontrou num carro de uma cliente e quando vendeu o carro ficou com ele, e guardou-o em casa, já não se recordando onde. Por último, disse que desconhecia que era proibido deter aquele objeto.
A testemunha P., ofendido nos presentes autos, confirmou que os telemóveis em apreço nos autos, entre outros objetos, foram furtados do interior da residência mencionada na acusação, onde estava com a família a passar férias. Referiu que o telemóvel Nokia C5 tinha cerca de dois meses e o Nokia preto e rosa era do filho André e custou cerca de € 200 a € 300,00. Por último, disse que os mesmos não lhe foram entregues.
A testemunha RA filho da anterior testemunha, começou por confirmar os dois telemóveis que constam da acusação como tendo sido furtados do interior da residência onde estavam a passar férias. Referiu que o Nokia preto era da mãe, e que o pai se terá equivocado quando disse que era seu, o telemóvel era de 2005 e não se recorda bem do valor, mas falou em cerca € 150,00. O Nokia C5 era mais recente, de 2009/2010, foi mais caro, e estimou o preço em € 300,00.
As duas testemunhas confirmaram os dois telemóveis que foram encontrados na posse dos arguidos, como pertencendo aos vários membros da família e furtados do interior da residência onde estavam a passar férias, no mais, verificou-se algumas contradições nos depoimentos, mas que em nada abala a credibilidade das testemunhas, pois trata-se de pormenores, sendo que no essencial e no que verdadeiramente interessa, foram uníssonos. Ao que acresce que as contradições nos depoimentos nem sempre põem em causa a credibilidade das testemunhas, antes pelo contrário, denotam que não houve instrumentalização dos depoimentos, tornando-os até mais genuínos e autênticos.
Não olvida o Tribunal que a questão do valor é importante nos autos, porém, o decurso do tempo também permite compreender que as testemunhas não se recordem com precisão dos respetivos valores, mas para isso temos a fatura de fls. 29 no que concerne ao Nokia preto, donde consta € 45,00 e relativamente ao Nokia C5, a testemunha A. referiu ter sido bem mais caro que o outro e falou em cerca de €300,00.
A testemunha AO, cunhado da primeira testemunha e também uma das pessoas que estava a passar férias na dita residência, confirmou o furto dos telemóveis.
Por último, a testemunha L, militar da GNR, confirmou o furto à residência constante da acusação, sendo que um dos telemóveis foi encontrado na posse no arguido B, o qual já tinha sido enviado para o estrangeiro, porém, o arguido de imediato assegurou que o telemóvel regressasse a Portugal e fez a sua entrega à GNR.
Confrontado com a fatura de fls. 29, confirmou como sendo a que se reporta ao telemóvel apreendido ao arguido B, cujo auto de apreensão se encontra a fls. 61 e auto de exame e avaliação de fis. 215-216, que foram elaborados pela testemunha.
O telemóvel que estava na posse do arguido R. não foi recuperado, sendo que chegaram ao arguido através da respetiva localização e do uso que aquele fez do mesmo.
Confirmou que na busca à casa do R. foi, ainda, encontrado um bastão extensível, sendo a testemunha quem elaborou o respetivo auto de exame e avaliação de fls. 235/236, tendo confirmado o respetivo teor, nomeadamente, no que concerne às características do mesmo.
Questionado sobre o comportamento do arguido aquando da busca e apreensão do bastão, referiu que o mesmo não ficou surpreendido, comportando-se naturalmente e não questionando a apreensão.
Prestou um depoimento isento e imparcial, não denotando hostilidade e animosidade para com os arguidos, depondo de forma lógica e estruturada, merecendo-nos inteira credibilidade.
Relativamente ao arguido B, o mesmo prestou declarações de forma serena e tranquila e que nos convenceu, até pelas circunstâncias em que adquiriu o telemóvel, repare-se que foi numa feira de velharias, locais que se procuram tendo em vista adquirir objetos por preço inferior ao valor real, o telemóvel estava usado, em razoável estado de conservação. Por outro lado, o comportamento do arguido foi sempre no sentido de colaborar, tendo até diligenciado para que o telemóvel regressasse a Portugal e entregou-o às autoridades.
Já o mesmo não podemos dizer do arguido R, repare-se que, neste caso, é uma pessoa que se dirige ao arguido a propor-lhe a venda do telemóvel pelo preço de € 15,00, sendo que essa pessoa nada tinha que ver com o comércio de telemóveis, pelo que se impunha ao arguido cuidados acrescidos, nomeadamente, solicitar a apresentação da documentação do telemóvel, independentemente de já ter adquirido outras peças de automóveis ao referido indivíduo. É que, o tal indivíduo, a fazer fé nas declarações do arguido, tinha uma oficina próxima do arguido e vendeu-lhe peças relacionadas com a sua atividade, o que em princípio não suscitava estranheza, o que já não era o caso de um telemóvel, pelo que, é nosso entendimento que o arguido poderia e deveria ter-se certificado da origem do telemóvel.
Assim como também não nos convenceu a sua versão de que desconhecia ser proibida a detenção do bastão, pois que, em julgamento, demonstrou conhecer perfeitamente as características do bastão, no que concerne ao facto de ser extensível, tendo até feito o gesto característico com o braço, adequado à utilização do referido objeto, sendo que o militar, que procedeu à busca e apreensão do bastão, referiu que o arguido nada disse nem questionou quando o bastão foi aprendido, não se mostrando em nada surpreendido. Ora, a ser credível a sua versão que desconhecia a proibição de detenção do referido objeto, o comportamento do homem médio seria o de imediatamente questionar a autoridade sobre a razão da referida apreensão e da proibição da detenção do mesmo, revelando-se surpreendido, o que nunca fez.
Assumiu uma postura em julgamento de completa negação dos factos, que não nos convenceu, não exercendo autocensura e não se assumindo nas suas responsabilidades.
Foram, ainda, devidamente ponderados a fatura de fls. 29, auto de apreensão de fls. 61, auto de exame de fls. 215/216, auto de busca e apreensão de fls. 218 a 226 e auto de exame direto e avaliação de fls. 235 a 237, os quais não foram impugnados.
As declarações dos arguidos, no que respeita às suas condições económicas e pessoais, revelaram-se credíveis, pois não descortinou o Tribunal, neste particular, quaisquer razões para lhes retirar credibilidade.
No que respeita aos antecedentes criminais, tal resultou do teor do Certificado de Registo Criminal dos arguidos juntos aos autos.
No que concerne aos factos não provados sob o inciso 1, tal resultou da fatura junta aos autos a fls. 29, quanto ao inciso 2 tal resultou das declarações do arguido R., pois nenhuma outra prova se encontrava nos autos que permitisse formar convicção distinta, já os factos constantes dos incisos 3 a 5 resultaram de ausência de prova nesse sentido, tudo com o consequente juízo probatório a que chegámos”.
3 - Apreciação do mérito do recurso.
a) Do crime de detenção de arma proibida.
Alega o recorrente que os factos dados como assentes na sentença revidenda não integram a prática do crime de detenção de arma proibida (p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, al. d), do Regime Jurídico das Armas e Munições).
Cumpre apreciar e decidir.
Sob a epígrafe “detenção de arma proibida e crime cometido com arma”, dispõe o artigo 86º, nº 1, al. d), do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei nº 50/2013, de 24/07):
“1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo: a) (….); b) (….); c) (….);
d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projétil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias”.
Perante este preceito legal, na sua nua literalidade, integra a prática do crime de “detenção de arma proibida” a posse, pelo arguido, no interior da sua residência, de um “bastão extensível” (em metal, com 52 cms de comprimento, destinado a servir de arma de agressão) - cfr. factos provados sob os nºs 10 e 11 da sentença revidenda -.
A detenção desse “bastão extensível”, objeto que não tem aplicação definida e que pode ser utilizado como meio de agressão, e não tendo o seu portador justificado a sua posse, integra, pois, a nosso ver, todos os elementos objetivos do crime de detenção de arma proibida previsto no artigo 86º, nº 1, al. d), do Regime Jurídico das Armas e Munições (disposição legal acima transcrita).
Não é pelo nome dado ao objeto em causa (“bastão extensível”) que, sem mais, o mesmo é ou deixa de ser classificado como arma (cuja detenção é proibida e criminalmente punível).
São, isso sim, as características específicas de tal objeto (neste caso concreto), sem aplicação definida, sem que o arguido justifique a sua posse, e, além disso, vista a sua potencialidade para ser utilizado como arma de agressão - independentemente de o arguido o destinar ou não a esse fim -, que nos permitem concluir pela verificação dos elementos objetivos do tipo legal de crime de detenção de arma proibida.
Em suma: tendo ficado provado que o arguido possuía, no interior da sua residência, o referido “bastão extensível”, arma sem aplicação definida e que podia ser usada como arma de agressão, não tendo o arguido justificação para tal posse, estão preenchidos os elementos objetivos do crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, al. d), da Lei nº 50/2013, de 24/07).
Numa outra vertente, alega o recorrente que desconhecia a ilicitude do ato de deter consigo o “bastão extensível” em causa nos autos, não sabendo que a posse desse objeto era proibida e pensando que tal posse era “normal” e “insignificante”.
A esta luz, o recorrente entende não estarem preenchidos, in casu, os elementos subjetivos do crime de detenção de arma proibida.
Em primeiro lugar, o como acima já expusemos, o recorrente não impugnou, obedecendo ao formalismo legalmente imposto (cfr. artigo 412º, nºs 3 e 4, do C. P. Penal), a decisão fáctica tomada pelo tribunal a quo.
Ora, e quanto ao crime agora em análise, ficou provado o seguinte (cfr. factos provados sob os nºs 11 a 13 da sentença recorrida): o arguido sabia que não podia deter o “bastão extensível”, uma vez que se tratava de um instrumento destinado a servir de arma de agressão; o arguido não estava autorizado a deter tal objeto; o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, ao que foi indiferente.
Assim, perante tal factualidade, é inquestionável, a nosso ver, que a conduta do recorrente preenche, também quanto aos elementos subjetivos, o tipo legal de crime agora em questão.
Com efeito, e resumidamente, o arguido era detentor do aludido “bastão extensível”, conhecendo a natureza do mesmo e as proibições legais respeitantes à sua detenção.
Em segundo lugar, não existem, neste caso, e a nosso ver, quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
É certo que, na vertente subjetiva, o crime de detenção de arma proibida exige a verificação do dolo, em qualquer uma das suas três modalidades (direto, necessário ou eventual), e, por conseguinte, a representação por parte do arguido dos elementos objetivos previstos no tipo, acima considerados.
No caso em apreço, ficou provado que o arguido agiu na convicção de que era proibida por lei a detenção do “bastão extensível”.
Logo, e ao contrário do que parece invocar-se na motivação do recurso, não é aqui aplicável a previsão normativa dos artigos 16º, nº 1, e 17º, nº 1, do Código Penal.
Reporta-se o artigo 16º, nº 1, ao “erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto”, erro que, como previsto em tal dispositivo legal, exclui o dolo.
A teoria do erro do tipo está diretamente conectada com a teoria do dolo, na medida em que o erro do tipo não é outra coisa, em substância, do que a negação do quadro de representação requerido pelo dolo: o autor desconhece os elementos a que há-de estender o dolo segundo o correspondente tipo de crime.
Quanto ao respetivo conteúdo, o erro do tipo pode consistir tanto numa representação falsa como na falta de representação, pois o erro é, em termos gerais, a discrepância entre consciência e realidade.
Assim, o erro do tipo pode referir-se, como o dolo, a todos os elementos objetivos do tipo, incluídos os conceitos jurídicos contidos no mesmo e outros elementos normativos; se o agente do crime não compreendeu devidamente o significado de tais elementos, ao menos no marco de valoração paralela na esfera do profano, falta o dolo. Não basta que o agente haja conhecido a base fáctica do conceito jurídico.
Como bem escreve, a este propósito, o Prof. Figueiredo Dias (in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 289), “um erro que exclui o dolo existe (...), segundo o direito português (...), em três casos: 1) quando verse sobre elementos, de facto ou de direito, de um tipo de crime; 2) quando verse sobre os pressupostos de uma causa de justificação ou de uma causa de exclusão de culpa; 3) quando verse sobre proibições (ou imposições, no caso de omissão) cujo conhecimento seria razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência do ilícito”.
Acrescenta o mesmo Ilustre Professor (ob. citada, pág. 298): “sendo o tipo o portador da valoração de uma conduta como ilícita, o conhecimento de todos os seus elementos constitutivos (de facto ou de direito, positivos ou negativos, descritivos ou normativos, determinados ou indeterminados, “fechados” ou “abertos”) é indispensável a uma correta orientação da consciência-ética do agente para o desvalor do ilícito”.
Retomando o quadro concreto dos presentes autos, e perante toda a factualidade neles apurada, não pode aqui afirmar-se, minimamente (a nosso ver, e com o devido respeito por opinião contrária), a existência de qualquer erro do arguido sobre as circunstâncias de facto, pertencentes ao tipo de crime de detenção de arma proibida que lhe está imputado, implicando a ausência de dolo, e, nos termos do disposto no artigo 16º do Código Penal, impondo que seja decretada uma decisão absolutória.
De igual modo, não pode aqui concluir-se pela existência de erro sobre elementos de direito do tipo de crime em causa, ou, bem assim, pela existência de erro sobre a proibição (erros esses que também excluem o dolo, sempre no âmbito do preceituado no artigo 16º, nº 1, do Código Penal) - como é sabido, ao erro do tipo contrapõe-se o erro de proibição; o erro do tipo é o erro sobre a concorrência dos pressupostos objetivos previstos na ordem jurídica e com os quais a mesma adquire eficácia; pelo contrário, o erro de proibição é um erro acerca de que um determinado comportamento, advertido corretamente pelo agente na sua estrutura objetiva, é juridicamente proibido -.
Por último, também não vislumbramos a existência, in casu, de uma atuação do arguido sem consciência da ilicitude do facto praticado (erro sobre a ilicitude), que implique a ausência de culpa, ao abrigo do disposto no artigo 17º do Código Penal.
Com efeito, estabelece o artigo 17º do Código Penal:
“1. Age sem culpa quem atuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2. Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respetivo, a qual pode ser especialmente atenuada”.
Marcando a distinção entre o erro excludente do dolo, previsto no acima citado artigo 16º do Código Penal, e aquele outro (sobre a ilicitude), que exclui a culpa, quando não censurável, contemplado no artigo 17º do mesmo diploma legal, refere o Prof. Figueiredo Dias (ob. citada, págs. 290 e 291): “o erro excluirá o dolo sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correta orientação da consciência-ética do agente para o desvalor do ilícito; diversamente, o erro deixará persistir o dolo sempre que, detendo embora o agente todo o conhecimento razoavelmente indispensável àquela orientação, atua todavia em estado de erro sobre o carácter ilícito do facto: neste caso o erro não radica ao nível da consciência-psicológica (ou consciência-intencional), mas ao nível da própria consciência ética (ou consciência de valores) (…). Por outras palavras: no primeiro caso estamos perante uma deficiência da consciência-psicológica, imputável a uma falta de informação ou de esclarecimento, e que, por isso, quando censurável, conforma o tipo específico de censura da negligência. Diferentemente, no segundo caso estamos perante uma deficiência da própria consciência-ética do agente, que lhe não permite apreender corretamente os valores jurídico-penais, e que, por isso, quando censurável, conforma o tipo específico de censura do dolo”.
Ora, no caso em análise, e repete-se, também não ocorre, seguramente, uma situação de erro sobre a ilicitude devido a um erro de valoração do arguido relativamente à licitude da sua conduta.
Na verdade, além de a existência de consciência da ilicitude por banda do arguido decorrer, linearmente, dos factos provados na sentença recorrida (cfr. facto provado nº 13), verificamos ainda que o crime de detenção de arma proibida em apreço, perante as específicas características do objeto detido pelo arguido (um “bastão extensível”), possui relevante carga ética, não sendo um crime axiologicamente neutro (qualquer homem comum, de são entendimento, considera, sem hesitações, proibida a detenção de um “bastão extensível”, não fazendo qualquer sentido considerar-se a posse de um tal objeto como sendo uma atitude “normal” ou “insignificante” - como se considera na motivação do recurso -).
A esta luz, e como bem refere o Prof. Figueiredo Dias (in “O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal”, 3ª ed., Coimbra Editora, 1987, pág. 221) - em doutrina que está por detrás do disposto no artigo 17º, nº 1, do Código Penal (quer do vigente, quer do de 1982) -, “se toda a culpa material há de analisar-se em uma decisão consciente da vontade a favor do ilícito e contra o direito, a ilicitude cuja consciência a culpa exige, para que a vontade se possa considerar má e censurável, só pode ser uma característica material que lhe é conferida pelo valor lesado pelo facto, e, assim, o sentido negativo de valor jurídico que àquele objetivamente se liga”.
Face às circunstâncias em que o arguido detinha o “bastão extensível”, olhando à natureza deste objeto, e atendendo ao “valor” protegido pelo tipo legal de crime em causa, entendemos que o arguido, para além de conhecer a anti juridicidade formal da sua conduta, conhecia ainda a ilicitude material ou danosidade social dessa mesma sua conduta (sabia que agia, claramente, em desconformidade com os valores tutelados pela ordem jurídico-penal).
Dito de outro modo: o arguido encontrava-se numa situação de prever o injusto do facto, como previu, não tendo atuado sem consciência da ilicitude (não tendo agido em erro sobre a ilicitude).
Mais: mesmo a existir esse erro sobre a ilicitude (invocado na motivação do recurso), sempre tal erro seria censurável, nos termos e para os efeitos enunciados no nº 2 do artigo 17º do Código Penal.
Senão vejamos.
O erro sobre a ilicitude é punido consoante a conduta seja ou não passível de juízo de culpa, o que depende de a conduta em causa ser ou não decorrente de uma qualidade desvaliosa e juridicamente censurável da personalidade do agente, dentro de um espaço de liberdade em que esta efetivamente se desenvolve e se consolida (cfr., detalhadamente, Prof. Figueiredo Dias, in “O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal” - ob. acima citada -, págs. 287 e segs.).
Se o agente não se apercebe da inadequação do ato praticado aos padrões da sociedade em que se integra, é porque não sabe ou não quer conformar a eles a sua personalidade, o que se revela censurável, ou, dito de outro modo, a censurabilidade tem de ser vista pelo prisma da personalidade do agente, consoante ele possa ou seja capaz, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de prever corretamente a realização do tipo legal de crime.
Seguindo, mais uma vez, a clara exposição do Prof. Figueiredo Dias (in “Temas Básicos da Doutrina Penal” - ob. acima citada -, págs. 306 e 307), “indispensável será que a solução dada pelo agente à questão sobre o lícito ou ilícito se adeque ainda a um ponto de vista de valor juridicamente aceitável e que uma tal adequação se manifeste no facto. O que supõe que se trate de uma atitude consciente do agente ou, pelo menos, produto de um esforço continuado de correspondência às exigências do direito. (...) A censurabilidade da falta de consciência do ilícito arrasta sempre consigo um pedaço de culpa na condução da vida”.
Passando ao caso concreto, vê-se (tal decorre da factualidade - no seu todo - dada como provada na sentença sub judice) que o arguido tinha (e tem) capacidades pessoais para prever a ilicitude da sua conduta (bastava apenas a sensata procura de informação, junto de qualquer autoridade policial, e antes de se apossar do mesmo, acerca da proibição ou não da detenção do “bastão extensível” em causa), que o arguido podia e devia ter procedido a uma correta valoração da conduta por si praticada (conduta que, conforme já acima dito, não é axiologicamente neutra, isto é, conduta que qualquer cidadão comum logo vislumbra como ilícita, censurável e punível por lei), e que o arguido podia e devia ter-se apercebido do desvalor ético-jurídico da sua atitude, sendo, por tudo isso, o seu comportamento passível de censura jurídico-penal, e, assim, merecedor de pena.
Em jeito de síntese (de tudo o que ficou dito): estão verificados, in casu, todos os elementos (objetivos e subjetivos) do tipo legal de crime de detenção de arma proibida.
Em consequência, é de improceder esta primeira vertente do recurso (relativa ao preenchimento dos elementos do tipo legal de crime de detenção de arma proibida).
b) Do crime de recetação.
Entende o recorrente que a materialidade fáctica tida como provada na sentença sub judice não integra a prática do crime de recetação pelo qual vem condenado em primeira instância (crime de recetação p. e p. pelo artigo 231º, nº 2, do Código Penal).
Cabe apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 231º, nºs 1 e 2, do Código Penal:
“1 - Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 - Quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias”.
O nº 1 do transcrito artigo estrutura o tipo fundamental do crime de recetação, que normativamente se define por o agente fixar, por meio das diversas modalidades de ação descritas, uma relação de natureza patrimonial com uma coisa obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, sendo a conduta orientada pela intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial (cfr., Pedro Caeiro, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Coimbra Editora, 1999, Tomo II, pág. 475).
Poder-se-á, pois, dizer, que o ilícito em causa radica, para o desenvolvimento ou verificação dos diversos itens que prevê ou para as várias situações que contempla, num dolo (manifestamente específico), o qual se traduz em o agente visar a obtenção de vantagem patrimonial (para si ou para outra pessoa).
Discorrendo sobre os elementos que compõem o tipo objetivo de ilícito de recetação, desde logo nos damos conta de que o objeto da ação é constituído pela “coisa que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património”.
Cabe aqui realçar que, para a verificação deste elemento da factualidade típica, basta a demonstração de o agente saber que a coisa recetada constitui objeto de um crime contra o património e não também de conhecer o condicionalismo concreto em que o referido ilícito ocorreu.
Como bem escreve Pedro Caeiro (ob. citada, pág. 479), “basta a prova de que a coisa foi obtida pelo autor do facto referencial graças a uma conduta que preenche o tipo de ilícito (objetivo e subjetivo) de um crime patrimonial. As concretas condições em que o facto referencial foi praticado (v. g., a identidade do agente e da vítima, o local e o modo de obtenção da coisa, etc.) são irrelevantes, e, por isso, não carecem de ser provadas (....); o mesmo se diga da concreta subsunção jurídica do facto (v. g., é irrelevante determinar se o facto referencial constituiu um furto ou um abuso de confiança, desde que seja certo que integra necessariamente um desses crimes)”.
Decisiva para a existência do crime é tão só a demonstração de que a coisa foi obtida por outrem através da prática de um facto tipificado pela lei como crime contra o património.
Ao nível das condutas típicas, que determinam a prática do crime, estão compreendidas, no transcrito artigo 231º do Código Penal, a dissimulação da coisa, o seu recebimento em penhor, a aquisição por qualquer título, a detenção, a conservação, a transmissão ou contribuição para a transmissão, e o assegurar, para o agente ou para outra pessoa, a posse da mesma.
No que tange ao tipo subjetivo do crime, estamos em presença de um crime de natureza exclusivamente dolosa, exigindo-se o conhecimento da proveniência ilícita da coisa e especificando-se a intenção de o agente obter para si ou para terceiro vantagem patrimonial.
Sendo necessário que o agente saiba que a coisa provém de um facto ilícito típico contra o património, a simples admissão dessa possibilidade, a título de dolo eventual, não preenche, como se nos afigura óbvio, o elemento subjetivo do tipo de crime previsto no nº 1 do artigo 231º agora em análise.
Retomando o caso destes autos, perante a factualidade dada como provada na sentença revidenda, não restam dúvidas que o arguido cometeu um crime de recetação.
Contudo, não cometeu o crime de recetação dolosa, que lhe era imputado na acusação, mas sim um crime de recetação negligente, p. e p. pelo artigo 231º, nº 2, do Código Penal, tal como vem condenado.
Com efeito, o arguido comprou um telemóvel a indivíduo que, na própria versão do arguido, já lhe tinha vendido “peças de automóveis”, por preço muito inferior ao valor real do mesmo, o qual havia sido furtado, facto que o arguido desconhecia mas do qual devia razoavelmente ter suspeitado.
A recetação culposa ocorre sempre que o agente, não tendo conhecimento certo da origem da coisa que adquire ou recebe, devia tê-la presumido em função da própria qualidade da coisa, da desproporção entre o preço proposto e o valor de tal coisa, ou da condição de quem vende ou oferece.
Como bem refere Nelson Hungria (in “Comentários ao Código Penal Brasileiro”, Vol. II, pág. 319)), esses indícios “relativamente à origem criminosa da coisa têm carácter objetivo (...). A lei pressupõe que qualquer deles deve gerar a presunção de que a coisa procede de crime, pouco importando, em princípio, que o acusado não tenha realmente presumido tal proveniência”.
Ora, o arguido comprou o telemóvel em causa sem se assegurar previamente da sua legítima proveniência, quando havia motivos que faziam razoavelmente suspeitar que esse telemóvel tinha proveniência ilícita.
Na verdade, e conforme a materialidade fáctica dada como assente na sentença revidenda (factos provados sob os nºs 7 a 9), o arguido/recorrente adquiriu um telemóvel a um indivíduo, pelo preço de € 15,00, telemóvel esse que, na data dos factos, se adquiria nos estabelecimentos autorizados para o efeito por valores superiores a € 200,00, fazendo-o sem que lhe fosse apresentada qualquer documentação e conhecendo as suas características e o seu valor comercial, o que fazia desconfiar seriamente da sua origem ilícita, não curando de saber da sua proveniência e querendo recebê-lo, pelo preço de € 15,00, para utilização própria, bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida, ao que foi indiferente.
Por outras palavras: olhando à circunstância de um indivíduo, completamente alheio à comercialização de telemóveis (na versão do arguido, esse indivíduo já lhe tinha vendido “peças de automóveis”), propor ao arguido a venda de um telemóvel - num local que nada tem a ver com tal atividade comercial -, ponderando o preço pago por tal telemóvel (€ 15,00) e o valor real do mesmo (superior a € 200,00), e atendendo a que, como é do conhecimento geral, os telemóveis são objetos preferenciais dos crimes contra o património, entendemos, sem dúvidas ou hesitações, que o arguido devia ter desconfiado da ilegítima proveniência do objeto em causa.
O homem médio, posto naquelas mesmas circunstâncias, assim faria.
Por conseguinte, a conduta do arguido preenche todos os elementos constitutivos - objetivos e subjetivos - do crime de recetação negligente previsto e punido pelo artigo 231º, nº 2, do Código Penal.
Esta disposição legal (artigo 231º, nº 2, do Código Penal) estabelece a punição daquele que adquire ou recebe uma coisa, a qual, em virtude da sua própria qualidade, do montante do preço proposto ou da condição de quem a oferece, faz razoavelmente suspeitar de ter provindo de uma atividade criminosa, sempre que o agente, nas circunstâncias indicadas, não se assegura da sua legítima proveniência.
As modalidades de ação, previstas no nº 2 do artigo 231º, são de âmbito mais restrito, quando comparadas com as descritas no nº 1 do mesmo artigo, aludindo-se, nesse nº 2, tão só à aquisição/recebimento da coisa.
Também aqui, e a nosso ver, é manifestamente irrelevante a causa da aquisição ou do recebimento (contrato oneroso ou gratuito, etc.).
A coisa, e as circunstâncias envolventes da sua aquisição/recebimento, têm de fundar a suspeita razoável (não bastando, pois, uma suspeita ténue ou remota) de que aquela provém de atividade criminosa.
Os fatores que são suscetíveis de gerar tal suspeita, constituindo elementos objetivos típicos, estão taxativamente elencadas na norma em análise. São eles: a qualidade da coisa; a condição de quem a oferece e o montante do preço proposto.
A qualidade da coisa pode, só por si, criar a suspeita de que a coisa foi obtida criminosamente. Pense-se, por exemplo, em objeto (cavalo de raça) contendo a marca do seu proprietário, ou em determinados bens que, pela sua raridade (nomeadamente obras de arte), estão fora do comércio jurídico.
A qualidade de quem oferece constitui, em certas circunstâncias, indício de que a coisa não está legitimamente em poder do agente. Assim sucede, nomeadamente, nos casos em que a coisa é adquirida a alguém que já foi condenado por diversos crimes contra o património.
Relativamente ao montante do preço proposto, se este se apresenta claramente inferior ao valor real da coisa adquirida, as regras da experiência e o senso comum do homem médio tendem a presumir que se trata de objeto proveniente da prática de um crime de natureza patrimonial.
Quase sempre, porém, a suspeita razoável acerca da proveniência criminosa da coisa deriva da conjugação dos três fatores que se acabam de enunciar.
É também isso que ocorre in casu: a qualidade da coisa (um telemóvel, que é um dos objetos prediletos dos autores de crimes contra o património, repete-se), a qualidade de quem a “ofereceu” (segundo o arguido, um vendedor de “peças de automóveis”), e o montante do preço proposto (€ 15,00 - valor manifestamente inferior ao valor real do telemóvel, valor este superior a € 200,00 -), analisados e ponderados de forma conjunta e conjugada, impõem, necessariamente (com o devido respeito por diferente opinião), a conclusão de que o arguido/recorrente devia, previamente, ter-se assegurado da legítima proveniência do telemóvel, pois era, razoavelmente, de suspeitar que tal telemóvel proviesse de facto ilícito típico contra o património.
Para o exaurimento do tipo objetivo de crime de recetação, a par da aquisição de uma coisa que, por força das características já descritas, gera a suspeita razoável de que provém de facto ilícito típico contra o património, é indispensável que, em face desse quadro, o agente não se assegure da legítima proveniência do objeto.
O cumprimento do dever normativamente imposto de o agente se assegurar da proveniência do bem adquirido, para que não incorra na prática do crime previsto no artigo 231º, nº 2, do Código Penal, não pode ter o alcance de ser atingida uma certeza absoluta sobre a legitimidade do disponente para a alienação daquele.
Como bem salienta Pedro Caeiro (ob. citada, págs. 490 e 491), “tal certeza é sempre impossível de obter. (...) Depois (....), se o dever de informação só houvesse de considerar-se cumprido com a obtenção de uma tal certeza definitiva e absoluta, a sua imposição seria redundante, já que serviria apenas para excluir do tipo condutas que já são atípicas por força da proveniência lícita da coisa. (…) Assim, é forçoso concluir que o cumprimento do dever de informação tem de guiar-se por critérios de razoabilidade. Perante a oferta de uma coisa que, pelos motivos referidos no tipo - e só por esses -, se mostre uma coisa suspeita - e só relativamente às coisas nestas condições -, deve o eventual comprador promover as diligências exigíveis ao homem médio, naquele concreta situação, para afastar a suspeita que tal oferta criou, de forma a poder afirmar-se que adquiriu a coisa com a fundada convicção de que ela não provinha de um facto ilícito típico contra o património”.
Ao nível do tipo subjetivo de ilícito, exige-se que o agente represente, pelo menos a título de dolo eventual, a aquisição/recebimento da coisa e os elementos que levam, em concreto, a tê-la como razoavelmente suspeita (qualidade, condição de quem oferece, montante do preço proposto, por si só ou conjugados).
Necessário é também que o agente admita, ainda que tão-somente a título de dolo eventual, que a coisa provém de facto ilícito típico contra o património.
Ora, e revertendo ao caso posto nos autos, o arguido não se assegurou, minimamente, como podia e devia, da proveniência do telemóvel, e adquiriu-o, por compra, num quadro circunstancial (natureza do referido objeto, ligada à pessoa que lhe o ofereceu - segundo o arguido, um vendedor de “peças de automóveis” -, e, sobretudo, o preço - manifestamente inferior ao valor real que o bem no mercado possuía -) em que as regras da experiência e do bom senso (comum ao homem médio pressuposto pelo direito) tendiam a presumir que se tratava de objeto proveniente da prática de um crime contra o património.
Subscrevemos, pois, neste ponto, o que se escreve (e bem) na sentença revidenda: “o homem médio, naquelas circunstâncias, indagaria acerca da documentação do telemóvel, assegurando-se da sua legítima proveniência, bastando-lhe solicitar ao vendedor que fosse buscar a respetiva documentação. (….) No descrito contexto, outra, mais completa e cabal investigação, se impunha ao arguido R., designadamente que fosse seu dever exigir do vendedor a comprovação documental da qualidade que invocava”.
É que, e com o devido respeito pelo alegado na motivação do recurso, não estamos aqui perante um “normal” e “vulgar” telemóvel, desses que se vendem, em segunda mão, por 10 ou 15 euros (e que, novos, custam apenas o dobro desses montantes), mas sim perante um telemóvel que, como é de todos sabido, vale na ordem das centenas de euros.
Não se trata, pois, como alega o recorrente, de “material barato, em segunda mão (…)”, comprando-se “telemóveis novos por 20 (vinte) euros e pouco mais”, mas antes de um telemóvel de última geração, com múltiplas funções (que não apenas fazer e receber chamadas telefónicas ou enviar mensagens), e, por isso, como é da experiência do cidadão comum, com valores de aquisição muito elevados (podendo chegar, tratando-se de aparelhos novos, a várias centenas de euros).
A esta luz, carece de sentido a seguinte alegação do recorrente (traduzindo uma ideia repetida, aliás, noutras partes da motivação do recurso): “não estamos na presença da compra dum plasma, ou de outro eletrodoméstico ou produto de valor elevado, onde se poderia pôr a questão do seguinte modo: por exemplo, algo cujo custo fosse de dois mil euros ou mil e quinhentos euros, e fosse vendido por quatrocentos ou quinhentos euros, então seria para duvidar da sua origem, e como diz o povo “quando a esmola é grande, o pobre desconfia”, mas um telemóvel? E por dez euros, quando alguns, mesmo comprados de novo - como já supra se aludiu -, pouco mais custam do que isso?”.
No mínimo, ao arguido competia questionar o vendedor (o que não fez) sobre o percurso anterior do telemóvel em causa, quando e como tinha sido adquirido, o preço da aquisição, as razões pelas quais estava a ser vendido (por € 15,00), e mesmo, numa segunda fase (se assim se justificasse), indagar, junto do vendedor, pela fatura de compra de tal telemóvel (o que o arguido também não fez).
Perante o que ficou dito, e ao contrário do invocado na motivação do recurso, também aqui (no tocante ao crime de recetação) o tribunal a quo não “errou” nem “aplicou mal o direito”, pelo que, em consequência, o arguido não pode ser absolvido da prática desse crime.
Por isso, também não merece provimento a segunda vertente do recurso (preenchimento dos elementos do tipo legal de crime de recetação previsto no artigo 231º, nº 2, do Código Penal).
Posto tudo o que precede, é de manter, na íntegra, a sentença sub judice, improcedendo o recurso.
III - DECISÃO
Nos termos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se integralmente a sentença revidenda.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.
Texto processado e integralmente revisto pelo relator.
Évora, 16 de fevereiro de 2016
João Manuel Monteiro Amaro
Maria Filomena de Paula Soares