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DESPACHO DE PRONÚNCIA
INDÍCIOS
USURPAÇÃO DE IMÓVEL
FURTO QUALIFICADO
DANO
Sumário
i. Para que seja proferido despacho de pronúncia não basta a existência de quaisquer indícios, é necessário que tais indícios sejam de tal modo fortes que o julgador adquira a convicção, pela análise conjugada dos mesmos, de acordo com as regras da experiência e critérios de razoabilidade, que em julgamento – com a discussão ampla – se poderão vir a provar, com um juízo de certeza (e não de mera probabilidade), os elementos constitutivos da infração ii. A violência ou ameaça que constitui elemento objetivo do crime de usurpação de coisa imóvel previsto no artigo 215.º do CP deve ser sobre as pessoas, e não sobre as coisas, pelo que não deve ser pronunciado o arguido pelo referido crime se das provas juntas aos autos não resulta violência ou ameaça sobre pessoas; iii. Também não deve o arguido ser pronunciado pelo crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203, e 204 n.ºs 1 al.ª a) e 2 al.ª e) do CP, se não obstante ter arrombado a fechadura de uma garagem de que se arroga proprietário, substituindo-a por outra, e ter retirado todo o recheio do interior da mesma, guardou este noutro espaço com o fim de o entregar ao respectivo proprietário, não tendo, pois, qualquer intuito de se apropriar do referido recheio; iv. E, ainda, não deve o arguido ser pronunciado pelo crime de dano previsto no artigo 212.º do CP se no requerimento de abertura de instrução os assistentes nada alegam quanto ao elemento subjectivo do tipo, ou seja, que o arguido agiu voluntária e conscientemente, o mesmo é dizer que o arguido agiu com dolo, em qualquer das suas modalidades.
Texto Integral
Proc. 1220/13.3PCSTB.E1
Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1. No Tribunal da Comarca de Setúbal (Setúbal, Instância Central, Secção de Instrução Criminal, J1) correu termos o Proc. n.º 1220/13.3PCSTB, no qual, na sequência da instrução requerida pelos assistentes C… e D…, melhor identificados nos autos, foi decidido não pronunciar o arguido B…, também nos autos melhor identificado, da prática dos crimes que lhe vinham imputados:
- um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.ºs 203 e 204 n.ºs 1 al.ª a) e 2 al.ª e) do Código Penal;
- um crime de dano, p. e p pelo art.º 212 do Código Penal;
- e um crime de usurpação, p. e p. pelo art.º 215 do Código Penal.
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2. Inconformados com tal decisão, recorreram os assistentes, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
2.1. A assistente D…:
1 - A recorrente e seu marido, também ele assistente, eram e são proprietários da fração autónoma designada pela letra “M”, correspondente à garagem n.º 13 do prédio sito na Praceta …, concelho de Setúbal, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal e escrito na matriz predial urbana sob o artigo….
2 - No dia 14/09/2013, pelas 12h10m, o marido da ora recorrente deslocou-se, conforme era habitual, à garagem de sua propriedade (fração autónoma supra identificada), onde tinha armazenado vários bens pessoais do casal e materiais de construção civil que utilizava no âmbito da sua atividade profissional (bens que se estima no valor global de € 18.180,00), e aí chegado não conseguiu abrir a porta da sua garagem; julgando tratar-se de um problema na fechadura, arrombou-a, constatando que a fechadura havia sido mudada e que todos os objetos que guardava no seu interior haviam desaparecido, encontrando-se ali, então, duas motas e algumas ferramentas que não lhes pertenciam.
3 - A aqui recorrente e seu marido apresentaram participação criminal contra o denunciado B…, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punível nos termos dos artigos 203 e 204 n.ºs 1 alínea a) e 2 alínea e), um crime de dano, previsto e punível nos termos do artigo 212, e um crime de usurpação, previsto e punível nos termos do artigo 215, todos do Código Penal.
4 - No âmbito das investigações veio-se a apurar que, no decurso do segundo semestre do 2013, o arguido B…arrombou a fechadura da garagem n.º 13, de propriedade da recorrente, substituindo-a por outra, retirou todo o recheio do interior da mesma e guardou-o noutro espaço de que é proprietário e que, posteriormente, arrendou a referida garagem a um terceiro – E… – apresentando-se a este como proprietário da garagem n.º 13.
5 - Aquando das suas declarações a fol.ªs…, o arguido B… veio informar os presentes autos que havia comprado em leilão duas garagens no início de outubro de 2001, juntou escritura pública referente às garagens com os n.ºs 14 e 15, respetivamente, correspondentes às frações autónomas designadas pelas letras "N" e "O", caderneta predial urbana, certidão da descrição da fração autónoma emitida pela 2.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal; questionado sobre os bens que se encontravam no interior da garagem n.º 13, aquando do seu arrombamento, por si, respondeu que os havia transportado para um local sito em …, do qual era proprietário.
6 - Em sede de inquérito os aí assistentes e aqui recorrentes juntaram aos autos os pertinentes documentos comprovativos da propriedade da fração/garagem em causa e objeto de furto e dano (fracção “M” – garagem n.º 13), averbada em seu nome, designadamente: cópias da escritura pública de aquisição da fração em causa, caderneta predial urbana, certidão do registo predial, plantas do imóvel, bem assim cópia de atas do condomínio do prédio, faturas e contas da EDP relativas a contrato e consumos de eletricidade inerentes àquela fração/garagem, e ainda relação dos artigos ali guardavam.
7 - Nos autos, evidenciada - por prova testemunhal e documentalmente comprovada - que estava a propriedade da garagem n.º 13 (fracção “M”) pela aqui recorrente e seu marido, bem assim que o arguido B… arrombou a fechadura da garagem n.º 13, de propriedade da recorrente, substituindo-a por outra, retirou todo o recheio do interior da mesma e guardou-o noutro espaço de que é proprietário e que, posteriormente, arrendou a referida garagem a um terceiro – E… – apresentando-se a este como proprietário da garagem n.º 13, esperava-se que o MP, titular do inquérito, deduzisse a necessária acusação, mas não! Pois que, no absurdo, e pelo inusitado facto do arguido ter referido que aquela fração era de sua propriedade (!), o magistrado do MP titular do processo decidiu-se pelo arquivamento, ademais, aduzindo o risível (mas relevante) trecho: “Do que foi possível apurar dos autos, emerge uma situação de caráter real e possessório relativa à garagem referida na queixa, a qual deverá ser dirimida entre queixoso e denunciado no foro competente e nos termos processuais próprios, uma vez que decidir a quem pertence, afinal, a garagem não constitui - nem poderia constituir - o objeto do presente inquérito”. Quando, dúvidas não persistiam que a fração objeto da ação perpetrada pelo arguido B…foi a garagem n.º 13 (fracção “M”), indubitavelmente de propriedade e posse da aqui recorrente e seu marido!
8 - O arguido B… é/era antes proprietário de duas garagens contíguas, as quais, com os n.ºs 14 e 15 (frações "N" e "O"), referiu tê-las adquirido em leilão, presencialmente, assim as conhecendo em concreto e in loco aquando da aquisição!
9 - Inconformados com aquela incompressível decisão (e teor), os assistentes requereram a abertura de instrução, de cuja decisão que lhe incidiu – de não pronuncia – ora se recorre, porquanto, igualmente incompreensível.
10 - Desde logo, o Mm.º Juiz a quo prejudicou o pedido ali deduzido, antes do mais, indeferindo, sem fundamentação, as diligências requeridas e que se tinham como pertinentes para a boa decisão instrutória, designadamente, a inquirição de testemunhas, a acareação entre o assistente C… e o arguido, a notificação do arguido para juntar aos autos recibos das quotizações referentes ao condomínio das garagens de que é proprietário no prédio urbano em causa e inspeção judicial ao local, pura e simplesmente alegando, para o efeito, encontrar-se em condições de decidir!
11 - Depois, em sede de decisão, refere: “Não resultaram indiciados quais outros factos relevantes para a presente decisão, nomeadamente, que: a) o arguido soubesse ser a garagem em questão pertença dos assistentes ou de terceiro;(…)” como?
12 - Mais consta da referida decisão: “Acresce, como realça o Ministério Público em sede de despacho final de arquivamento, que discutir a propriedade deste espaço - questão prévia - não poderia jamais constituir o centro da investigação de um processo crime. E a propriedade da garagem é uma questão pendente. As partes deverão dirimir o conflito que subsista sobre a propriedade do espaço e/ou eventuais prejuízos resultantes da ação de cada um, na sede própria - a cível (…)”.
13 - Está de ver que esse ponto prévio – a aferição da propriedade da garagem e dos bens aí existentes e objeto do imputado crime - é relevantíssimo e a base para a aferição da legitimidade processual dos intervenientes, estruturação do raciocínio e demais subsequente factualidade, afinal, a compreensão do todo.
14 - Questiona-se: a que propósito o Mm.º Juiz a quo se permitiu considerar que a questão da “propriedade da garagem é uma questão pendente” (?) pendente de quê e do quê (?) Pois que presente e confrontado com a documentação nos autos, em concreto, com (i) cópia da escritura pública de aquisição da garagem em causa, (ii) da certidão do registo predial, (iii) da caderneta predial urbana, (iv) das plantas do imóvel e das frações, podia, assim quisesse, aferir sem margem para quaisquer dúvidas que a fração/garagem em causa se encontra averbada/inscrita a favor da recorrente e do seu marido! Não existindo ali qualquer registo pendente! De igual modo confrontado com documentos que confirmam a propriedade das frações contíguas pelo arguido (garagens nos 14 e 15).
15 - Quer o magistrado do MP quer o Mm.º Juiz a quo certamente sabem ler e interpretar o teor de uma certidão predial, das descrições e inscrições nelas averbadas, de igual modo de cadernetas prediais e plantas de imóveis!
16 - O Mm.º Juiz a quo tinha à evidência elementos bastantes para aferir da propriedade da fração objeto da ilegal ação perpetrada pelo arguido, todavia, fez tábua rasa desses relevantes elementos e com ausência/omissão de análise obliterou “de morte” a apreciação e a correta decisão, como se veio a verificar!
17 - Em concreto, tratando-se, como se trata, de imputação de crimes de furto, de dano e de usurpação, a tipificação deste elenco de crimes tem como pressuposto a “coisa alheia”, assim, antes do mais, haveria que aferir com o rigor que se impunha a propriedade dos bens objeto do crime!
18 - Com o devido respeito, afigura-se que o Mm.º Juiz a quo, ao não aferir e apreciar previamente uma questão que foi legitimamente suscitada por quem, como a ora recorrente, tinha legitimidade para o fazer e, ademais, que se mostrava à evidência e era absolutamente necessário – a propriedade e a posse da fracão em objeto e dos bens que aí se encontravam – pois que assim “viciou” o raciocino e lógica factual que subsequentemente permitiria o enquadramento jurídico-penal no caso que se lhe apresentava, assim, terá de concluir-se que a decisão instrutória é nula, por omissão de pronúncia, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379 do CPP; arguida que fica tal nulidade, espera-se a respetiva procedência, com as legais consequências.
19 - O tribunal a quo não efetuou uma análise crítica da prova, não indica os factos que possibilitam chegar à conclusão da insuficiência da prova indiciária, como impõem os artigos 283 n.º 3 e 308 n.º 2 do CPP.
20 - Da factualidade supra elencada resultou claro que o arguido B…, com o seu comportamento, deliberadamente se apropriou de um espaço que sabia não lhe pertencer (a garagem n.º 13), como de todo o recheio ali existente.
21 - O arguido B… bem sabia que tal actuação não lhe era permitida, pois, contrariamente ao invocado, tinha conhecimento que a garagem n.º 13 não lhe pertencia, mas antes de propriedade e posse da recorrente e do seu marido, não só porque estiverem todos presentes no leilão onde cada um deles adquiriu as respetivas frações e as conheceram fisicamente, como ainda, durante anos a fio, o arguido e o marido da recorrente cruzavam-se no espaço de entrada das respetivas garagens, viam-se entrar, permanecer, ocupar e sair das respetivas garagens de cada um, ou seja, o arguido sabia que a garagem com o n.º 13 era de propriedade e posse da recorrente e seu marido, pelo que sequer se admite um qualquer engano ou lapso quanto àquele.
22 - Dilucidada que estava e está a questão da propriedade e posse da fração objeto dos crimes imputados ao arguido, e certo que o aí arguido assentiu que no decurso do segundo semestre do 2013 arrombou a fechadura da garagem n.º 13, substituindo-a por outra, retirou todo o recheio do interior da mesma e guardou-o noutro espaço de que é proprietário e que, posteriormente, arrendou a referida garagem a um terceiro, duvidas não podem subsistir que se mostram verificados ou, pelo menos, indiciariamente verificados os elementos objetivos e subjetivos da prática, pelo arguido, do crime de furto qualificado, nos termos dos artigos 203 n.º 1 e 204 n.ºs 1 al.ª a) e 2 al.ª e) do Código Penal (a subtração de coisa móvel alheia de valor elevado com a ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, penetrando em espaço fechado por arrombamento), bem assim da prática dos crimes de dano, previsto e punido pelo artigo 212, e de usurpação de coisa imóvel, previsto e punido pelo artigo 215, ambos do Código Penal;
23 - “Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido”.
24 - A natureza indiciária da prova para efeitos de pronúncia inculca a ideia de mero juízo de probabilidade; na pronúncia o juiz não julga a causa, verifica se se justifica que, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, o arguido seja submetido a julgamento.
25 - Com o devido respeito, a recorrente entende que havia e há indícios, quer no que respeita à prova recolhida em sede de inquérito, quer em sede de instrução, designadamente, a prova documental produzida, corroborada pela prova testemunhal, que indiciam suficientemente a prática dos assinalados crimes pelo arguido.
26 - Ante o que, julgando-se procedente o presente recurso, deve revogar-se a decisão instrutória ora recorrida e proferir-se despacho de pronúncia do arguido pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punível nos termos dos artigos 203 e 204 n.ºs 1 alínea a) e 2 alínea e), um crime de dano, previsto e punível nos termos do artigo 212, e um crime de usurpação, previsto e punível nos termos do artigo 215, todos do Código Penal.
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2.2. O assistente C…:
1 - O tribunal a quo não pronunciou o arguido pelos crimes que lhe são imputados pelos assistentes “(…) porquanto, não existem, desde logo, indícios do objeto subjetivo dos mesmos – intenção de apropriação ou destruição de bem de terceiro”.
2 -O tribunal a quo fundamentou a sua decisão numa falsa premissa de que toda a matéria constante nos presentes autos tem subjacente somente uma questão relativa à propriedade da fração autónoma designada pela letra “M”, correspondente à garagem n.º 13, concluindo, e bem, que não é possível tal questão ser o centro de uma investigação de um processo crime.
3 - O tribunal a quo, ao fundamentar desta forma a sua decisão, não apreciou a prova documental e testemunhal careada e constante dos autos, documentos autênticos (escrituras, certidões do registo predial, cadernetas prediais, plantas, comprovativos do pagamento do condomínio, despesas com eletricidade, etc.).
4 - A prova carreada para os autos pelo recorrente demonstra de forma inequívoca a titularidade a seu favor da propriedade da fração autónoma designada pela letra “M”, correspondente à garagem n.º 13 do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Praceta…, em Setúbal, a saber:
§ De fls. 8 a 12, a escritura de compra e venda;
§ De fls. 13 a 18, a caderneta predial urbana;
§ De fls. 180 a 185, a descrição e inscrições prediais em vigor;
§ A fls. 157, a tela final da cave e rés-do-chão do referido prédio urbano;
§ A fls. 19, fatura/recibo referente ao pagamento em sede de leilão presencial de parte do preço da fração autónoma;
§ A fls. 61, recibo n.º 104 emitido pela administração do condomínio referente às quotizações do ano de 2008;
§ A fls. 52, recibo n.º 36 emitido pela administração do condomínio referente às quotizações do ano de 2013.
5 – F…, aquando do seu depoimento, enquanto gerente da sociedade “Agência de Leilões…”, refere que “(…) procedeu à venda da fração autónoma letra M, correspondente à garagem número 13, a D…e C…”. “(…) relativamente a B…, este na altura adquiriu duas frações autónomas correspondentes às garagens números 14 e 15”, tendo junto planta com a identificação das referidas garagens, conforme consta de fls. 139 a 141. 6 - No dia 10 de novembro de 2000, a “Agência de Leilões…” realizou a venda presencial das referidas garagens, tendo o ora recorrente e a assistente, D…, comprado a fração autónoma designada pela letra “M”, correspondente à garagem n.º 13, e o recorrido comprado as frações autónomas designadas pelas letras “N” e “O”, correspondentes às garagens n.os 14 e 15.
7 - O recorrente e a assistente, D…, outorgaram, em 26 de julho de 2001, a competente escritura de compra e venda da referida fração autónoma designada pela letra “M”, correspondente à garagem n.º 13.
8 - O recorrido, B…, outorgou, em 11 de outubro de 2001, escritura pública de compra e venda das frações autónomas designadas pelas letras “N” e “O”, correspondentes às garagens n.os 14 e 15.
9 - É do conhecimento do recorrido que a garagem n.º 14 tem uma área de 15,89m2 (cfr. doc. junto a fls. 300), que a garagem n.º 15 tem uma área de 30,55m2 (cfr. doc. junto a fls. 303) e que as referidas frações autónomas estão ligadas entre si, existindo uma porta de entrada que permite o acesso ao interior de ambas as frações.
10 - As certidões do registo predial juntas pelo ora recorrido a fls. 302 e 305, relativa às frações autónomas designadas pelas letras “N” e “O” abrangem ambas as garagens n.os 14 e 15.
11 - Do auto de vistoria da Câmara Municipal de Setúbal, junto pelo recorrido aos autos de inquérito a fls. 306 e seguintes, constam 15 espaços de garagem, não se encontrando nenhuma ocupada pelo poço do elevador, conforme alegado por este.
12 - O ora recorrente, após a compra da fração “M” passou a usar regularmente a garagem n.º 13 para guardar diversos haveres, bem como materiais e utensílios necessários para o desempenho da sua atividade (reconstrução e reparação de imóveis).
13 - No decurso do exercício da sua atividade profissional o recorrente e os seus colaboradores deslocavam-se regularmente à sua garagem n.º 13, ali permanecendo por largos períodos de tempo, organizando o espaço, desempenhando atividades, verificando o material guardado, etc., tudo isto de porta aberta e à vista de todos, inclusive, do recorrido, B…, pois inúmeras vezes também este se encontrava nas suas garagens n.os 14 e 15, de porta aberta, na companhia de terceiros e em diversas ocasiões a jogar matraquilhos.
14 - Recorrente e recorrido frequentavam o café “…”, facto confirmado no depoimento prestado pelo trabalhador do referido estabelecimento comercial, G….
15 - Face à atual conjetura económica, o volume de trabalho do ora recorrente diminui de forma drástica, implicando a redução do número de deslocações à sua garagem.
16 - No dia 14 de setembro de 2013, o ora recorrente deslocou-se à sua garagem para ir buscar material de construção civil, constatando que haviam mudado a fechadura e o seu recheio da referida garagem tinha desaparecido, encontrando-se o local ocupado por duas motas e ferramentas, cuja pertença desconhecia.
17 - O recorrente chamou a PSP ao local e na presença dos mesmos soube que a sua garagem n.º 13 tinha sido arrendada pelo recorrido a E…e que todo o recheio tinha sido removido pelo recorrido para outro local.
18 - O recorrido arrombou a fechadura da garagem n.º 13 e substituiu-a por outra, apropriando-se desta fração autónoma e dos bens que o ora recorrente lá guardava.
19 - O recorrido, confrontado pelo recorrente, veio, de forma ardilosa, justificar o injustificável, afirmando “julgar” que a garagem n.º 13 era sua e que o recheio da mesma pertencia ao construtor.
20 - Argumento que não colhe, pois uma garagem que estivesse fechada ininterruptamente ao longo de 13 anos jamais poderia encontrar-se como aquela, em perfeito estado de conservação, limpeza, arrumação, com contador de eletricidade instalado e fornecimento de luz. Tão pouco é credível aquele argumento, atendendo a que os materiais de construção ali guardados (tintas, diluentes, vernizes, etc.) se encontravam dentro do prazo de validade e em bom estado de conservação. Acresce ainda que os objetos, mobílias, eletrodomésticos, etc., que também ali se encontravam eram de marcas e modelos atuais.
21 - O recorrido sempre teve consciência que a garagem n.º 13 não era propriedade sua, pois, durante 13 anos, cruzou-se, cumprimentou e viu o ora recorrente entrar, permanecer, ocupar e sair daquela garagem sem nunca o interpelar sobre a propriedade da mesma.
22 - O recorrido trabalha diariamente no centro de Setúbal, desloca-se com frequência às garagens n.os 14 e 15, que adquiriu em leilão em 2001, as quais se localizam na mesma cidade, paga impostos, taxas, encargos e despesas referentes àquelas duas frações, pelo que não é credível que após cerca de 12 anos diga que lhe falta uma garagem.
23 - O ora recorrente não se conforma com a afirmação do tribunal a quo de que “(…) a propriedade da garagem é uma questão pendente”, pois nos autos constam elementos suficientes que provam inequivocamente que o recorrente é o único legítimo proprietário da garagem n.º 13.
24 - O tribunal a quo fundamenta a sua decisão na falsa questão da impossibilidade de determinar a propriedade da garagem n.º 13, quando, na realidade, a propriedade da referida garagem nunca foi o cerne do presente processo e encontra-se provada nos autos.
25 - O tribunal a quo dá como provado que o recorrido é proprietário da garagem contígua à garagem n.º 13 com base em documentos idênticos aos apresentados pelo recorrente (escritura, certidão do registo predial, caderneta predial, etc.), contudo não valora de igual modo os mesmos documentos para aferir a propriedade da garagem n.º 13.
26 - O tribunal a quo faz “tábua rasa” de todos os factos, indícios e provas carreadas para os autos, indeferindo a realização das diligencias probatórias requeridas pelo recorrente aquando da abertura de instrução e fundamenta a sua decisão com o entendimento de “(…) ter como moderadamente plausível, por desnecessidade, nunca tenha dado, durante longos anos, uso a uma garagem adquirida no início do século (…)”, aceitando, no entanto, como “plausível” que o recorrido tenha, durante cerca de 13 anos, usado a garagem contígua à garagem n.º 13 sem nunca se lembrar que lhe faltava uma garagem ou que eventualmente a garagem em falta era a que estava a ser usada pelo recorrente com o seu conhecimento.
27 - O tribunal a quo refere que o recorrente “(…) já poderia, inclusivamente, ter recuperado os seus bens se tivesse comparecido à diligência para a qual foi notificado”, porém, compulsados os presentes autos, não consta que o recorrente tenha sido regularmente notificado para o efeito.
28 - O recorrente jamais se pode conformar com os argumentos avocados pelo tribunal a quo para fundamentar a decisão de não pronúncia do recorrido, B…, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punível nos termos dos artigos 203 e 204 n.ºs 1 alínea a) e 2 alínea e), um crime de dano, previsto e punível nos termos do artigo 212, e um crime de usurpação, previsto e punível nos termos do artigo 215, todos do Código Penal, e, consequentemente, arquivar os presentes autos.
29 - Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso e alterar-se, em conformidade, a decisão do Tribunal de Instrução Criminal, proferindo o competentedespacho de pronúncia.
3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância aos recursos interpostos, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
3.1. Quanto ao recurso interposto pela assistente:
1 – O assistente apresentou queixa contra o arguido B…pela prática de factos susceptíveis de indiciar um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203 e 204 n.ºs 1 alínea a) e 2 alínea e), um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212, e um crime de usurpação, p. e p. pelo artigo 215, todos do Código Penal.
2 – O Ministério público deduziu despacho de arquivamento, por entender inexistirem indícios suficientes relativamente ao crime de furto e quanto ao crime de dano, por falta de um elemento do tipo, a coisa alheia, já que não se apurou a propriedade da garagem.
3 – Em sede de instrução foi proferida despacho de não pronúncia pelos mesmos fundamentos.
4 – Inconformado com tal despacho, vem a assistente a recorrer, por entender que a propriedade da garagem está estabelecida e que o arguido praticou os ilícitos denunciados, pelo que deveria ter sido pronunciado.
5 – O bem jurídico protegido nos crimes em causa é a propriedade.
6 – Quanto ao crime de usurpação de imóvel, p. e p. pelo art.º 215 do CP, entende-se ser de afastar, tendo em conta a jurisprudência maioritária, que considera que a violência a que aquele preceito se refere é sobre pessoas e não coisas (a título de exemplo cita-se o acórdão da RP de 26.06.2013, inwww.dgsi.pt).
7 – Quanto aos crimes de furto e dano, ao nível dos elementos objetivos é objeto da ação coisa alheia – que significa coisa cujo direito de propriedade pertença a outrem que não o agente – podendo a conduta típica assumir várias modalidades graduadas no tipo legal, conforme a intensidade do ataque à coisa alheia.
8 – O arguido desde o primeiro momento que assume ser proprietário da garagem em causa nos autos onde foi substituída a fechadura e colocados bens de uma terceira pessoas; o arguido não só identifica os prédios que possui como se prontificou a fazer a entrega dos bens que encontrou na mencionada garagem, sendo que foi o assistente quem se recusou a receber os bens.
9 – Do ponto de vista do tipo subjetivo, o cometimento dos crimes pressupõe a existência de dolo, em qualquer das suas modalidades.
10 – Neste crime o dolo consiste na consciência e vontade de, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa, a haver para si ou para outrem, comportando-se relativamente a ela como verdadeiro dono e/ou danificar ou desfigurar a coisa alheia com o fim de lesar a propriedade de ourem.
11 – Face ao que se refere em 7, dúvidas não restam que o arguido (não?) pretendia apropriar-se dos bens da assistente, não agindo, pois, com dolo.
12 – O arguido procedeu à substituição da fechadura da porta da garagem e colocou na mesma pertences de terceiro, a quem arrendou aquela. Todavia, o que aqui está em discussão em primeira linha é se o fez num prédio que era próprio ou alheio, pois que sempre será o caráter alheio do mesmo que permitirá concluir que possam estar consumados os elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico do crime de dano.
13 – Para a verificação de tal ilícito o arguido tem de conhecer o carácter alheio da coisa que pretende apropriar-se ou destruir. No caso que nos ocupa, o arguido desde o primeiro momento que assume ser proprietário da garagem em causa nos autos onde foi substituída a fechadura e colocados bens de uma terceira pessoa, e não só identifica os prédios que possui como coloca à disposição do assistente os bens que encontrou na garagem.
14 – Da prova coligida para os autos teremos de concluir que os elementos deles constantes não permitem, ainda que conjugados entre si, fundar qualquer juízo de culpabilidade do arguido, nada apontando para uma probabilidade de condenação daquele em julgamento.
15 – O desfecho de uma eventual ação cível instaurada ou a instaurar não contende com a apreciação que nesta sede penal nos cumpre apreciar, desde logo, porque resultou suficientemente indiciado que sempre ao arguido, independentemente de eventual ganho da causa cível, atuou no pressuposto de que a garagem é bem próprio dele, mesmo que tal facto não lhe venha a ser reconhecido por via da ação judicial que vier a interpor ou em que seja réu/demandado.
16 - Não se mostram violadas quaisquer normas jurídicas e a decisão recorrida não nos merece reparo, pelo que deve ser mantida.
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3.2. Quanto ao recurso interposto pelo assistente:
1 – O assistente interpôs recurso da decisão instrutória proferida a fol.ªs 491-485 dos autos, que não pronunciou o arguido B…pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203 e 204 n.ºs 1 alínea a) e 2 alínea e), um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212, e um crime de usurpação, p. e p. pelo artigo 215, todos do Código Penal, que lhe haviam sido imputados pelo assistente e pela mulher deste, também assistente, no requerimento de abertura de instrução apresentado a fol.ªs 372-381 (408-417) dos autos.
2 – Pugna o recorrente pela revogação daquela decisão e, consequentemente, pela pronúncia do arguido pela prática daqueles ilícitos criminais.
3 – Estará aqui em causa, segundo no assistente, aquilatar da (in)suficiência indiciária da prática de factos suscetíveis de consubstanciar a prática dos crimes de furto qualificado, dano e usurpação de coisa imóvel por parte do arguido, relativamente aos quais devesse este ter sido pronunciado.
4 - Quanto ao crime de usurpação de imóvel, p. e p. pelo art.º 215 do CP, entende-se ser de afastar o mesmo, tendo em conta a jurisprudência maioritária, que considera que a violência a que aquele preceito se refere é sobre pessoas e não sobre coisas (a título de exemplo cita-se o acórdão da RP de 26.06.2013, inwww.dgsi.pt).
7 – Relativamente aos crimes de furto qualificado e dano, ao nível dos elementos objetivos é objeto da ação coisa alheia – que significa coisa cujo direito de propriedade pertença a outrem que não ao agente – podendo a conduta típica, no caso daquele segundo ilícito, assumir várias modalidades graduadas no tipo legal, conforme a intensidade do ataque à coisa alheia.
8 – O arguido desde o primeiro momento que assume ser proprietário da garagem em causa nos autos, onde foi substituída a fechadura e foram colocados bens de uma terceira pessoas; o arguido não só identifica os prédios que possui como se prontificou a fazer a entrega dos bens que encontrou na mencionada garagem, sendo que foi o assistente quem se recusou a receber os bens.
9 – Do ponto de vista do tipo subjetivo, o cometimento dos crimes pressupõe a existência de dolo, em qualquer das suas modalidades.
10 – Nestes crimes o dolo consiste na consciência e vontade de, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa, a haver para si ou para outrem, comportando-se relativamente a ela como verdadeiro dono e/ou danificar ou desfigurar a coisa alheia com o fim de lesar a propriedade de ourem.
11 – Face ao acima referido, dúvidas não restarão de que o arguido não agiu, pois, com dolo.
12 – O arguido procedeu à substituição da fechadura da porta da garagem e colocou na mesma pertences de terceiro, a quem arrendou aquela. Todavia, o que aqui está em discussão em primeira linha é se o fez num prédio que era próprio ou alheio, pois que sempre será o caráter alheio do mesmo que permitirá concluir que possam estar verificados os elementos objetivos e subjetivos típicos desses ilícitos criminais.
13 – Para a verificação de tais ilícitos o arguido tem de conhecer o caráter alheio da coisa de que pretende apropriar-se ou que quer destruir.
14 – Em face da prova carreada para os autos teremos de concluir que os elementos deles constantes não permitem, conjugados entre si, fundar qualquer juízo de culpabilidade do arguido, nada apontando para uma probabilidade de condenação daquele em julgamento.
15 – O desfecho de uma eventual ação cível instaurada ou a instaurar não contende com a apreciação que nesta sede penal nos cumpre efetuar, desde logo, porque resultou suficientemente indiciado que sempre ao arguido, independentemente de eventual ganho nessa acção (cível), atuou no pressuposto de que a garagem é bem próprio dele, mesmo que tal facto não lhe venha a ser reconhecido por via da ação judicial que interponha ou em que seja réu/demandado.
16 - Não se mostram violadas quaisquer normas jurídicas e a decisão instrutória recorrida não merece reparo, pelo que deve ser mantida.
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4. Nesta instância o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência, atentas a questões colocadas pelos recorrentes – nas conclusões da motivação do recurso, pois que são estas que delimitam o seu objecto – e que se resumem a saber se os autos contém indícios suficientes de que o arguido praticou os crimes que lhe vinham imputados e, consequentemente, por eles devia ter sido pronunciado.
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5.1. Os presentes autos tiveram origem numa queixa que o assistente apresentou contra o arguido B…, na qual lhe imputa, na sequência dos factos que aí descreve, a prática de um crime de furto qualificado (p. e p. pelos art.ºs 203 n.º 1e 204 n.ºs 1 al.ª a) e 2 al.ª e) do Código Penal), um crime de dano (p. e p. pelo art.º 212 n.º 1 do Código Penal) e um crime de usurpação de imóvel (p. e p. pelo art.º 215 n.º 1 do Código Penal).
Decorrida a investigação, o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos, em síntese, por entender que não existem indícios da prática do crime de furto, uma vez que o arguido se disponibilizou a fazer a entrega dos bens aos queixosos – que não compareceram para os receber – e inexiste, quanto ao imóvel, o elemento do tipo «coisa alheia», já que não se apurou a sua propriedade.
5.2. Vieram então os assistentes a requerer a abertura da instrução, nos termos que constam de fol.ªs 408 e seguintes, manifestando a sua discordância quanto ao despacho de arquivamento, em síntese, porque entendem que a prova recolhida em sede de inquérito permite concluir que o arguido bem sabia que a garagem em causa não era sua, mas sim dos assistentes, e deliberadamente forçou a sua abertura e apoderou-se dos bens que ali se encontravam fazendo-os seus.
5.3. Aberta a instrução e realizado debate instrutório, veio a decidir-se não pronunciar o arguido pela prática dos crimes que lhe eram imputados.
Consta desse despacho, em síntese, depois de se descreverem os factos que se consideram indiciados e não indiciados (fol.ªs 492 e 493): “… as duas visões do sucedido – a dos assistentes e a do arguido – são as seguintes: 1. O arguido entendeu – e entende – ser a garagem em questão sua propriedade, tendo removido os bens que lá se encontravam para dar uso à mesma (versão do arguido); 2. O arguido, sabendo pertencer a garagem a terceiro, decidiu ocupá-la, destruindo a fechadura e removendo os bens para os integrar no seu património (versão dos assistentes). Existem indícios de que seja o arguido proprietário de duas garagens no prédio em apreço – o mesmo apresentou as respectivas escrituras. … a quem pertence efectivamente a garagem em questão? Desde logo, entendemos ter como moderadamente plausível que alguém, por desnecessidade, nunca tenha dado, durante longos anos, uso a uma garagem adquirida no início do século e que, ao procurar começar a dar-lhe uso, encontre o mesmo ocupado por terceiro – eventualmente o próprio vendedor, antigo proprietário. E decida remover os bens e ocupar aquele que entende ser sua propriedade. São, aliás, frequentes em tribunal os casos de ocupação abusiva de espaços devolutos. E a versão supra – entendimento do arguido de que a sua garagem estava ocupada indevidamente por terceiro – parece-nos mais verosímil… do que a do queixoso, que invoca ter o arguido, com duas garagens no local, decidido conscientemente apossar-se do espaço e dos eu recheio de terceiro, substituindo fechaduras e arrendando o mesmo na expetativa… de que ninguém reparasse. Soubesse o arguido o que o queixoso invoca, qual o propósito de arrendar um espaço de terceiro (vizinho) devidamente ocupado e usado? Quantos dias, quantas horas, até ser descoberto? Que vantagem poderia realisticamente retirar o arguido de tal opção consciente? Não se alcança. … Não se vislumbram, em todo o caso, indícios de que tenha o arguido procurado – de um modo que se teria necessariamente inconsequente e despropositado – deliberadamente procurado se apossar do que quer que seja que soubesse não ser seu. … discutir a propriedade deste espaço – questão prévia – anão poderia jamais constituir o centro da investigação de um processo crime. E a propriedade da garagem é uma questão pendente…”.
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5.4. A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art.º 286 n.º 1 do CPP); ela termina pela decisão instrutória, onde o juiz avalia os elementos de prova carreados para os autos, concretamente, se os mesmos são suficientes para se concluir que se verificam os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena (ou medida de segurança) – na afirmativa, o juiz decidirá que a causa deve ser submetida a julgamento, proferindo despacho de pronúncia; na negativa, ele optará por uma decisão de arquivamento, proferindo despacho de não pronúncia (art.º 308 do Código de Processo Penal).
Na instrução impõe-se alcançar, não a demonstração da realidade dos factos, mas apenas indícios, ou seja, sinais da ocorrência de um crime e de que este foi cometido pelo agente a quem é imputado, não constituindo, nesta fase, os dados probatórios, pressuposto da decisão de fundo, mas de simples determinação judicial de prosseguimento dos trâmites processuais até julgamento.
A lei define actualmente (art.º 283 n.º 2 do CPP) o que deve entender-se por indícios suficientes, no seguimento da orientação da doutrina e jurisprudência que vigoraram no domínio da lei processual anterior: “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”; não basta, pois, a existência de quaisquer indícios, é necessário que tais indícios sejam de tal modo fortes que o julgador adquira a convicção, pela análise conjugada dos mesmos, de acordo com as regras da experiência e critérios de razoabilidade, que em julgamento – com a discussão ampla – se poderão vir a provar, com um juízo de certeza (e não de mera probabilidade), os elementos constitutivos da infração (veja-se, a propósito, o acórdão da RP de 20.10.93, Col. Jur., Ano XVIII, t. 5, 261 – que mantém, actualidade - onde se decidiu que “o Juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido, ou os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, haja uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”).
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5.5. Será que tais indícios, assim entendidos, se verificam no caso em apreço?
5.5.1. Quanto ao crime de usurpação de coisa imóvel previsto no art.º 215 do CP.
Dispõe este preceito que pratica este crime quem, “por meio de violência ou ameaça grave, invadir ou ocupar coisa imóvel alheia, com intenção de exercer direito de propriedade, posse…”.
Entendemos que, em face das provas juntas aos autos, há indícios - fortes indícios - entendidos nos termos supra expostos, que a garagem n.º 13, correspondente à fração M do prédio n.º …da praceta…, em Setúbal, é propriedade dos assistentes.
Tal resulta da escritura pública outorgada em 26.07.2001 (cópia de fol.ªs 8 e seguintes), do registo da respetiva aquisição na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal (fol.s 30 a 32 verso), da fatura e recibo de 16.02.2001 (fol.ªs 19), do contrato de fornecimento de energia elétrica de 14.09.2001 (fol.ªs 74 v.º) e dos recibos respeitantes às quotas de condomínio juntos aos autos, em conjugação com as declarações dos assistentes, que esclareceram as condições em que aquiriram tal garagem, em termos que não deixam dúvidas que foi essa a garagem que adquiriram.
Por outro lado, o facto do arguido ter adquirido, no mesmo leilão, duas frações - as frações N e O do mesmo prédio, correspondentes às garagens n.ºs 14 e 15 (escritura de 11.10.2001, cuja cópia consta a fol.ªs 295 e seguintes) - em conjugação com a planta do prédio junta a fol.ªs 157 (em arquivo no Departamento de Urbanismo da Câmara Municipal de Setúbal), permite concluir, com elevado grau de segurança - em termos indiciários, pois é disso que se trata nesta fase processual - que não há qualquer confusão entre a garagem 13, correspondente à fracção M e as garagens 14 e 15, correspondentes às frações N e O.
O que se indicia é que a garagem 15 - que consta da propriedade horizontal e da planta supra referida - não existe fisicamente, pois que fisicamente apenas existirão 14 garagens (veja-se o depoimento de fol.ªs 243 e do arguido, a fol.ªs 294, que reconhece que apenas existem 14 garagens), mas tal facto não permite concluir, ainda que indiciariamente, que o arguido - que adquiriu duas garagens - tivesse adquirido a garagem 13, pois que tal não tem a mínima correspondência com a documentação junta e tal não faz qualquer sentido, pois que se assim fosse seguramente que não deixaria de se deslocar à mesma, no mínimo para se inteirar do seu estado, o que nunca aconteceu nos cerca de 12 anos que se seguiram à compra.
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De qualquer modo, não vale a pena, a esse propósito, alongar-nos mais, pois que - não obstante se entender que tal garagem não é propriedade do arguido (e é, portanto, coisa alheia, o que ele não podia deixar de saber, de acordo com as regras da experiência e os critérios da normalidade) - a ocupação da mesma pelo arguido não ocorreu “por meio de violência ou ameaça grave”, sendo que a violência prevista no preceito incriminador, até pela referência feita a “ameaça grave”, é entendida como uma violência sobre as pessoas.
Como se escreve J.M. Damião da Cunha, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 263, “quanto ao facto de saber se a violência se devia dirigir só contra as pessoas ou abrangeria também a violência contra as coisas. Devem interpretar-se os presentes elementos no mesmo sentido com que eles são integrados nos restantes tipos legais - isto é, tem de tratar-se de violência ou ameaça contra as pessoas… Do que se trata é de garantir a propriedade imobiliária contra limitações injustificadas que se apoiem em atos que ponham em causa a liberdade pessoal…” (neste sentido pode ver-se, a título meramente exemplificativo, para além do acórdão citado pelo Ministério Público na resposta à motivação dos recursos - acórdão da RP de 26.06.2013, inwww.dgsi.pt, e outros que nesse são identificados - o acórdão da RC de 9.11.2011, Proc. 344/08.3GASPS.C1, in www.dgsi.pt).
Não se mostra preenchido, pois, um dos elementos objetivos do crime de usurpação de coisa imóvel imputado ao arguido - a ocupação por meio de violência ou ameaça grave.
Improcede, por isso, o recurso no que respeita ao crime de usurpação de coisa imóvel.
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5.5.2. Quanto ao crime de furto qualificado previsto e punido pelos art.ºs 203, e 204 n.ºs 1 al.ª a) e 2 al.ª e) do CP.
As provas constantes dos autos indiciam:
- que o arguido, em data não apurada do segundo semestre de 2013, arrombou a fechadura da garagem n.º 13, substituindo-a por outra, retirou todo o recheio do interior da mesma e guardou-o noutro espaço de que é proprietário;
- que o arguido reivindica a propriedade da referida garagem, que disse ter adquirido em leilão no início de outubro de 2001, e que arrendou a E… na 1.ª quinzena do mês de setembro de 2013, antes do dia 14;
- que o arguido retirou e guardou os bens que se encontravam naquela garagem - cuja propriedade reivindica - a fim de os entregar ao seu proprietário, declarando (quando foi ouvido em declarações) que “deu pelos mesmos quando foi abrir a garagem pela primeira vez, pelo que julgou que fossem do construtor… que os guardou para que mais tarde alguém os viesse re4clamar, pois nunca foi sua intenção de se apropriar dos bens…”;
- que a PSP, na sequência do ordenado pelo despacho de 12.12.2013, diligenciou o agendamento de uma data com o denunciado e o queixoso para reconhecimento e entrega dos bens, diligência que não foi possível por ausência de comparência do queixoso (fol.ªs 354).
Ora das provas juntas aos autos - que permitem, em síntese, considerar indiciada esta factualidade - e das circunstâncias em que os factos ocorreram, nada permite concluir, sequer indiciariamente, de acordo com as regras da experiência e os critérios da normalidade, que o arguido os tenha retirado da garagem (que diz ser sua) com qualquer intuito apropriativo.
Naturalmente, como é sabido, a intenção com que o agente atua, neste como noutros crimes, pertence ao foro íntimo do agente, pelo que não é susceptível de prova direta, ela há-de resultar como consequência lógica e necessária de outros elementos de prova – a chamada prova indireta ou por presunção – ou seja, por dedução lógico dedutiva de outra factualidade objetiva dada como assente (presunções são “as ilações que a lei ou o julgador tira de uma facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”, segundo definição que nos é dada pelo art.º 349 do Código Civil), de acordo com as regras da experiência comum, da lógica e os critérios da normalidade, afinal, os critérios a que o tribunal se encontra vinculado, ex vi art.º 127 do CPP.
E de acordo com tais critérios, atentas as circunstâncias em que os factos se passaram - e veja-se que desde o início o arguido se dispôs a entregar os bens a quem pertencessem, o que não aconteceu por indisponibilidade dos assistentes - dúvidas não se suscitam que o arguido não teve qualquer intenção de fazer seus tais bens, mas apenas retirá-los da garagem a fim de a poder utilizar.
Não se verifica, por conseguinte - em termos indiciários, pois que é de indícios que se trata - um dos elementos do tipo, o elemento subjetivo.
Improcede, por isso, o recurso no que respeita ao crime de furto.
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5.2.3. Quanto ao crime de dano previsto no art.º 212 n.º 1 do CP.
O crime de dano verifica-se quando o agente destrói, no todo ou em parte, danifica, desfigura ou torna não utilizável coisa alheia (art.º 212 n.º 1 do CP).
Consta do requerimento de abertura de instrução/acusação alternativa:
- que o arguido, “no decurso do segundo semestre de 2013 (em dia e mês não apurados)… arrombou a fechadura da garagem n.º 13, substituindo-a por outra… Posteriormente arrendou a referida garagem a um terceiro”;
- que o arguido “bem sabia que tal atuação não lhe era permitida…”;
- que o arguido “agiu com intenção de se apropriar de bens móveis… recorrendo para o efeito ao arrombamento de fechadura da porta da garagem n.º 13, propriedade do ora assistente…”.
Ora esta factualidade - e outra não consta do requerimento de abertura de instrução que releve para o caso - não integra o crime de dano pelo qual os assistentes pretendem que o arguido seja pronunciado, pois que dele não consta o elementos subjetivo do tipo, ou seja, a alegação de que o agente agiu voluntária e conscientemente, em suma, que o agente atuou com dolo, em qualquer das suas modalidades, sendo que o dano só é punível sob a forma dolosa, o que significa que a verificação deste crime exige que o agente tenha representado o facto que preenche o tipo de crime e tenha atuado com intenção de o realizar ou, pelo menos, que o tenha o representado como consequência possível da sua conduta e se tenha conformado com a sua realização (art.ºs 154, 13 e 14 n.ºs 1 e 2 do CP).
E sem a alegação de tal facto não se mostra preenchido um dos elementos do crime de dano imputado ao arguido, pois que uma coisa é a prova do dolo - que pode ser feita por dedução lógica da factualidade objetiva dada como provada e das circunstâncias que em ocorreu - e outra, diversa, é a sua alegação, enquanto elemento essencial do crime imputado ao agente e, consequentemente, da sua responsabilização, que não pode deixar de constar da acusação ou do requerimento de abertura de instrução, enquanto acusação alternativa.
De facto, o requerimento de abertura de instrução, não estando sujeito a formalidades especiais (di-lo o art.º 287 n.º 2 do CPP), “não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, onde constem os factos que se consideram indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório” (Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 41, e art.ºs 287 n.º 2 e 283 n.º 3 al.ªs b) e c) do CPP).
“A estrutura acusatória do processo penal português... impõe que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução... o seu objeto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa... o assistente tem de fazer constar do requerimento para a abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no n.º 3 do artigo 283 do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre... de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória” – escreve-se no acórdão do TC de 19.05.2004.
E entre tais elementos (mencionados nas alíneas do n.º 3 do art.º 283 do CPP) constam:
“b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível… e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
Tal requerimento - como escreve, a propósito, Maia Gonçalves, in CPP Anotado e Comentado, 12.ª edição 574 - “deverá, a par dos requisitos do n.º 1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório e da elaboração da decisão instrutória”, o que justifica a exigência da sua notificação ao arguido a fim de poder exercer o seu direito de defesa relativamente ao objeto do processo assim delimitado.
Por outro lado, o eventual convite ao assistente para corrigir as deficiências do RAI - questão que durante algum tempo mereceu tratamento divergente na jurisprudência - está hoje ultrapassada, face ao acórdão para fixação de jurisprudência do STJ de 12.05.2005, DR, I Série – A, de 4.11.2005, do qual não vemos razões para divergir, onde se decidiu que “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução apresentado nos termos do art.º 287 n.º 2 do Código de Processo Penal quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.
Como nos fundamentos desse acórdão se escreveu, citando Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, 175, “sem acusação formal o juiz está impedido de pronunciar o arguido, por falta de uma condição de prosseguibilidade do processo, ligada à falta do seu objeto, e, mercê da estrutura acusatória em que repousa o processo penal, substituindo-se o juiz ao assistente no colmatar da falta de narração dos factos, enraizaria em si uma função deles indagatória, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado de não isento, imparcial e objetivo, mais próprio de um tipo processual de feição inquisitória, já ultrapassado”.
Essa orientação – como nos dá conta o mencionado acórdão – vinha já sendo seguida pela maioria da jurisprudência, assim como pelo TC, como resulta do acórdão n.º 358/2004, de 19 de Maio de 2004, DR, 2.ª Série, de 28.06.2004 (acima mencionado), onde se escreve: “A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa... impõe que o objeto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura de instrução (...) o assistente tem de fazer constar do requerimento para a abertura de instrução todos os elementos mencionados nas al.ªs referidas no n.º 3 do art.º 283 do CPP. Tal exigência decorre... de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória”.
A não se entender assim violar-se-iam de modo desproporcionado as garantias de defesa do arguido e as regras dos art.ºs 18 e 32 n.ºs 1 e 5 da CRP, colocando, ao fim e ao cabo, nas mãos do juiz o estatuto de acusador, o que a lei não permite.
Acresce que, como se decidiu no acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 20.11.2014, inwww.dgsi.pt, “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento…”, jurisprudência da qual não vemos razão para divergir e que vale para o requerimento de abertura de instrução, entendido como acusação alternativa.
Improcede, por isso, o recurso, também quanto a este crime.
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6. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelos assistentes e, consequentemente, confirmar integralmente a decisão recorrida.
Custas pelos assistentes, fixando-se a taxa de justiça a pagar por cada um deles em 4 UC (art.ºs 515 n.ºs 1 al.ª b) e 2 do CPP e 8 n.º 5 e tabela III anexa do RCP).
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(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)
Évora, 23-02-2016
Alberto João Borges (relator)
Maria Fernanda Pereira Palma (adjunta)