JULGAMENTO NA AUSÊNCIA DO ARGUIDO
NULIDADE INSANÁVEL
ARGUIÇÃO
CASO JULGADO
Sumário

I. A realização da audiência sem a presença do arguido e sem a notificação para a mesma, no caso em que a lei exige a sua comparência, configura uma nulidade processual insanável (artigo 119.º, n.º 1, alínea c) do CPP);
II. Não tendo essa nulidade sido arguida – ou conhecida – antes da decisão final (ou antes da interposição do recurso dessa decisão), pode o recurso da decisão final ser interposto com esse fundamento (n.º 3 do artigo 410.º do CPP);
III. Todavia, se a nulidade foi arguida antes da interposição do recurso da decisão final – e ainda que depois de proferida a sentença – ao tribunal da 1.ª instância incumbia conhecer – como conheceu – de tal questão;
IV. E não tendo os interessados interposto recurso desse despacho que indeferiu a referida nulidade, o mesmo transitou em julgado, pelo que não pode no recurso interposto da sentença final voltar a conhecer-se dessa questão.

Texto Integral

Proc. 113/13.9GCCUB.E1

Acordam, em conferência, os juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO
1. No Tribunal da Comarca de Beja (Cuba, Instância Local, Secção de Competência Genérica, J1) correu termos o Proc. Comum Singular n.º 113/13.9GCCUB, no qual foi julgado o arguido B…, filho de …, com morada na … e portador do documento de identificação n.º …, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86/1 al.ª d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.
A final veio a ser condenado, pela prática, na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86/1 al.ª d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na redação dada pela Lei 12/2011, de 27 de abril, na pena de multa de 180 dias, à razão diária de €7,50, que perfaz a quantia de €1350 (mil trezentos e cinquenta euros).

2. Recorreu o arguido dessa sentença, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1 - O recurso vem interposto da sentença da Instância Local de Cuba de 24/06/2015, proferida no processo acima indicado, que condenou o arguido, pelo crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86 n.º 1 d) da Lei n.º 5/2006, na pena de 180 dias de multa, à razão diária de 7,50 €, o que perfaz 1.350,00 €, porque se verificam as nulidades insanáveis da sessão da audiência de julgamento de 16/06/2015 e de todos os atos posteriores à sessão de 16/06/2015, designadamente, da sessão de 24/06/2015 e da sentença de 24/06/2015.
2 - O arguido foi notificado das seguintes datas designadas para a realização da audiência de julgamento: 27/04/2015, pelas 15,45 horas, e 05/05/2015, pelas 14 horas.
3 - O arguido não pôde comparecer, em 27/04/2015, devido ao facto de lhe ter nascido uma filha, no Hospital de Leiria.
4 - Em 27/04/2015 não teve lugar nenhum ato de produção de prova, pelo que a audiência não foi encerrada nesta data, foi designada a nova data de 16/06/2015 para a realização da audiência de julgamento e ficou sem efeito a data de 05/05/2015.
5 - Em 16/06/2015, a audiência realizou-se, com a produção de prova, na ausência do arguido, que não foi notificado da nova data de 16/06/2015.
6 - O arguido, também, não foi notificado da data de 24/06/2015, que foi designada para a leitura da sentença.
7 - A sentença de 24/06/2015 só foi notificada ao arguido no decurso das férias judiciais, em agosto de 2015, pelo que o prazo do recurso vai até 30/09/2015.
8 - A data de 16/06/2015 para a realização da audiência de julgamento tinha que ser notificada, pessoalmente, ao arguido, nos termos dos artigos 32 n.º 1 da Constituição da República, 6 n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 61 n.º 1 a), 332 n.º 1, 333 n.º 3 e 113 n.º 10, todos do Código de Processo Penal.
9 - O arguido tem o direito de estar presente na audiência, a fim de poder exercer o seu direito de defesa, de forma a defender-se da acusação, nos termos dos artigos 32 n.º 1 da Constituição da República, 6 n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 61 n.º 1 a), 332 n.º 1, 333 n.º 3 e 113 n.º 10, todos do Código de Processo Penal.
10 - Impende sobre o tribunal o correspondente dever de notificação da data, de forma a viabilizar o direito de o arguido estar presente e de exercer o direito de defesa, nos termos do artigos 61 n.º 1 a) e 113 n.º 10 do Código de Processo Penal, 32 n.º 1 da Constituição da República e 6 n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
11 - O arguido não foi notificado da data de 16/06/2015, motivo pelo qual não pôde comparecer, porque o tribunal não lhe comunicou a data, em violação do disposto nos artigos 332 n.º 1, 333 n.º 3 , 61 n.º 1 a) e 113 n.º 10 do Código de Processo Penal, 32 n.º 1 da Constituição da República e 6 n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
12 - A falta de notificação do arguido e a realização da sessão da audiência de julgamento em 16/06/2015, sem a sua presença, gera a nulidade insanável da sessão de 16/06/2015 e dos atos posteriores a ela, de acordo com o disposto nos artigos 61 n.º 1 a), 332 n.º 1, 333 n.º 3, 113 n.º 10, 119 c) e 122 n.º 1 do Código de Processo Penal, conforme foi doutamente decidido no douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/10/2014, publicado em www.dgsi.pt/trc.
13 - O artigo 333 n.º 3 do Código de Processo Penal e o acórdão do STJ n.º 9/2012 , no que concerne ao requerimento do defensor para a prestação de declarações na 2.ª data (05/05/2015), não se aplicam à situação dos autos, porque na sessão de 27/04/2015 não teve lugar nenhum ato de produção de prova, logo, a audiência não foi encerrada e a 2.ª data (05/05/2015), notificada ao arguido, ficou sem efeito, sendo que a nova data de 16/06/2015 não lhe foi notificada.
14 - A sentença violou os artigos artigos 332 n.º 1, 333 n.º 3, 61 n.º 1 a), 113 n.º 10, 119 c ) e 122 n.º 1 do Código de Processo Penal, 32 n.º 1 da Constituição da República e 6 n.º 1 da Convenção dos Direitos do Homem.
15 - Devem ser declaradas as nulidades insanáveis da sessão da audiência de julgamento de 16/06/2015 e de todos os atos posteriores, designadamente, da sessão da audiência de julgamento de 24/06/2015 e da sentença de 24/06/2015.
16 - Deve ser repetida a sessão de 16/06/2015, notificando-se, pessoalmente, o arguido da data que vier a ser designada para o efeito.

3. Respondeu o Ministério Público ao recurso interposto, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
1- O arguido nos presentes autos está sujeito à medida de coação de termo de identidade e residência que prestou e está ciente dos seus direitos e obrigações.
2 - O arguido faltou à audiência de discussão de julgamento designada para o dia 27 de abril de 2015, para o qual foi regularmente notificado, apresentando os motivos para tal falta a 31 de agosto de 2015.
3 - Na audiência de discussão e julgamento o tribunal a quo considerou que a presença do arguido não era indispensável para a descoberta da verdade material, sendo representado pelo Ilustre Defensor.
4 - Por informação do órgão de polícia criminal prestada a 4 de junho de 2015, o arguido estaria em França, desconhecendo-se a data do seu regresso, pelo que violou a medida de coação do termo de identidade e residência e inviabilizou qualquer notificação por parte do tribunal.
5 - O Ilustre Defensor não requereu a audição do arguido, não competindo ao tribunal fazê-lo por não poder interferir na defesa deste.
6 - Atenta a fundamentação e a fixação de jurisprudência no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2012, de 8 de março de 2012, publicado no Diário da República, n.º 238, Série I, de 20 de dezembro de 2012, a presença do arguido não era obrigatória na audiência de discussão e julgamento, uma vez que o tribunal não considerou indispensável a sua presença.
7 - Não se verifica a nulidade do artigo 119 alínea c) do Código Penal, uma vez que a lei não exige a comparência do arguido em audiência após a sua presença não ser considerável indispensável e não ter sido requerida a sua audição.
8 - A douta sentença recorrida não violou os artigos 332 n.º 1, 333 n.º 3, 61 n.º 1 alínea a), 113 n.º 10, 119 alínea c) e 122 n.º 1, todos do Código de Processo Penal, 32 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 6 n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pelo que deve ser mantida a sentença proferida nos presentes autos e negado provimento ao douto recurso.

4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da procedência do recurso
(fol.ªs 201 a 205).

5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do Código de Processo Penal proferiu-se decisão sumária (art.º 417 n.º 6 al.ª a) do CPP), por se considerar que uma questão obstava ao conhecimento do recurso - a decisão antes proferida sobre a mesma questão, que transitou em julgado, obstando a que a mesma questão fosse de novo apreciada - tendo-se decidido, atento o disposto no art.º 417 n.º 6 al.ª a) do CPP, não conhecer do recurso interposto, por impossibilidade superveniente do mesmo.
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6. Factualidade considerada relevante naquela decisão sumária:
1. O arguido prestou termo de identidade e residência em 19.06.2014 (fol.ªs 72), onde declarou residir na Herdade….
2. O arguido foi notificado por via postal simples, com prova de depósito, enviada para a morada constante do TIR em 5.03.2015, “para comparecer… no próximo dia 27-04-2015, às 15.45 horas, a fim de ser ouvido em audiência de julgamento… sendo advertido de que, faltando, esta poderá ter lugar na sua ausência, sendo representado para todos os efeitos possíveis pelo seu defensor; em caso de adiamento fica desde já designado o dia 5.05.2015, às 14.00 horas, nos termos do art.º 312 n.º 2 do CPP, podendo nesta data ter lugar a sua audição… ao abrigo do art.º 333 n.º 3 do mesmo diploma legal”.
3. O arguido não compareceu na data designada para a audiência - 27.04.2015 - pelo que, considerando que a sua presença “não se afigura indispensável para a descoberta da verdade material…”, se determinou o prosseguimento da audiência de julgamento, sendo o arguido representado pelo seu ilustre defensor; mais se ordenou uma diligência de prova (a realização de um exame pericial) e se designou para continuação da audiência o dia 16 de junho de 2015, pelas 10.00 horas.
4. O arguido não foi notificado para a sessão da audiência que teve lugar em 16.06.2015 e não compareceu, tendo, no final dessa sessão - na qual foi produzida prova - sido suspensa audiência e designado para a leitura da sentença o dia 24 de junho de 2015, pelas 13h30.
5. O arguido não foi notificado para a sessão da audiência que teve lugar em 24.06.2015, pelas 13h30, na qual foi lida a sentença e na qual não esteve presente.
6. Por requerimento de 31 de agosto de 2015, subscrito pelo arguido, vem este arguir a nulidade do julgamento que teve lugar em 16.06.2015, por falta da notificação do arguido dessa data para a realização do julgamento (fol.ªs 169), requerimento que, por despacho de 30.09.2015 (fol.ªs 180 a 182), foi indeferido, por considerar que não se verificavam as nulidades invocadas.
7. O arguido interpôs recurso da decisão final em 28.09.2015, recurso onde - em síntese - repete os argumentos utilizados no requerimento referido em 6.
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7. E considerando-se que a questão colocada pelo recorrente era - de acordo com as conclusões da motivação do recurso - a de saber se – não tendo comparecido na audiência de julgamento marcada para 27.04.2015, onde se designou para sua continuação o dia 16 de junho de 2015, pelas 10.00 horas, e não tendo sido notificado para comparecer nesta segunda data (nem para a data em que foi lida a sentença, ou seja, 24.06.2015) não tendo estado presente - se devia considerar verificada a nulidade insanável prevista no art.º 119 al.ª c) do CPP, proferiu-se decisão sumária, onde se escreveu:
Esta questão - tal como se apresenta - foi anteriormente suscitada pelo arguido, em requerimento que apresentou em tribunal, por si subscrito, na sequência da notificação da sentença condenatória, tendo então sido decidido que não se verificavam as nulidades invocadas.
Tal decisão não foi impugnada pelo meio processual próprio, o recurso, pelo que transitou em julgado, circunstância que obsta a que tal questão volte a ser apreciada e conhecida por este tribunal.
O CPP não regula expressamente os efeitos do caso julgado (embora lhe façam referência os art.ºs 84 e 467 n.º 1, este quanto à força executiva das decisões penais condenatórias transitadas em julgado), entendendo-se que vigoram nesta sede as disposições do Código de Processo Civil que regulam tais efeitos, ex vi art.º 4 do CPP.
Significa isto, em suma, que, «transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória, dentro do processo e fora dele...», sem prejuízo do disposto sobre os recursos de revisão e de oposição de terceiro (art.º 671 n.º 1 do CPP), por outras palavras, transitada em julgado a sentença - ou qualquer ato decisório, já que tal princípio vale para todos os atos decisórios, tal como os define o art.º 97 do CPP - a decisão nela contida torna-se imodificável, não pode já ser alterada, salvo nos casos de recurso de revisão previsto no art.º 449 do CPP.
A razão de ser desta proibição de alteração ou modificação da decisão, uma vez transitada em julgado, assenta na necessidade de garantir aos cidadãos um mínimo de certeza, segurança jurídica e paz social, indispensáveis à vida em sociedade (ver Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 705). Como aí se destaca, bem pode acontecer que, por esse facto, «fiquem as partes definitivamente amarradas a uma decisão que não corresponda à correta interpretação e aplicação da lei», mas esse é «um mal menor do que aquele que adviria da falta do instituto do caso julgado, que seria o de as partes e seus sucessores ficarem indefinidamente sujeitos à possibilidade de os tribunais modificarem a solução dada».
Voltando ao caso em apreço:
A nulidade invocada - a realização da audiência de julgamento sem a presença do arguido, que não foi notificado das datas da sua continuação, em suma, a ausência do arguido num caso em que a lei exige a sua comparência (art.º 119 al.ª c) do CPP) - nada tem a ver com as nulidades da sentença previstas no art.º 379 n.º 1 do CPP e o regime do seu conhecimento, previsto no n.º 2 daquele mesmo preceito; trata-se - de acordo com os fundamentos em que se baseia a sua arguição - de uma nulidade processual, insanável, que deve ser oficiosamente declarada, em qualquer fase do procedimento, até ao trânsito em julgado da decisão final (art.º 119 do CPP), com as consequências previstas no art.º 122 do CPP.
Não tendo sido arguida - ou conhecida - antes da decisão final (ou antes da interposição do recurso dessa decisão), pode o recurso da decisão final ser interposto com esse fundamento, ex vi art.º 410 n.º 3 do CPP, todavia, se foi arguida, como foi, no caso em apreço, antes do recurso da decisão final - e ainda que depois de proferida a sentença - ao tribunal da 1.ª instância incumbia conhecer de tal questão, que expressamente lhe foi colocada.
E conhecida tal questão - e não importa aqui apurar se bem ou mal - aos interessados incumbia, se com a decisão não concordavam, impugnar a mesma, pela via processual própria, que era o recurso; não o tendo feito, aquela decisão - que indeferiu as invocadas nulidades - transitou em julgado, tornou-se definitiva, não podendo ser reapreciada a questão aí decidida, sob pena de violação do caso julgado, sendo certo que, em caso de contradição entre decisões transitadas em julgado, sempre haveria de prevalecer a que primeiro transitasse em julgado (art.º 625 n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi art.º 4 do CPP), no caso, a decisão que apreciou as nulidades invocadas.
Sempre se dirá que a isto não obsta o facto do recurso ter sido interposto antes de proferida tal decisão - e, por isso, antes desta ter transitado em julgado - pois que o recurso da decisão final e a arguição de nulidades, por requerimento, antes da interposição do recurso, são atos processuais distintos, submetidas à apreciação de tribunais diferentes, por outro lado, a interposição do recurso da decisão final, não se entendendo como manifestação de renúncia ou desistência da arguida nulidade, não era razão para não conhecer da mesma, pois que o tribunal deve conhecer de todas as questões que forem submetidas à sua apreciação e a procedência de tal pretensão, apresentada antes da interposição do recurso, caso procedesse, tornaria inútil o recurso, pelos efeitos decorrentes da sua procedência, ex vi art.º 122 do CPP.
Este entendimento não colide com o princípio de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa; isto é verdade, porém, tal significa que o juiz não pode corrigir, alterar ou revogar, totalmente ou parcialmente, a decisão - salvo o caso previsto no art.º 380 do CPP, e ainda assim antes da sentença subir em recurso - mas pode conhecer de outras questões que não devam considerar-se decididas pela sentença, como acontece, designadamente, com as nulidades que tenham ocorrido durante o julgamento e cuja arguição ou conhecimento só venha a suscitar-se após ser proferida a sentença (veja-se, concretamente, o que acontece com a nulidade prevista no art.º 363 do CPP, a que se refere o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 13/2014, in DR, 1.ª Série, de 23.09.2014, que pode vir a suscitar-se já depois de proferida a sentença).
Não faz sentido, por isso, a jurisprudência invocada pelo arguido a esse propósito na resposta ao parecer do Ministério Público junto deste tribunal, pois que respeita a questão que nada tem a ver com a que aqui nos ocupa.
Consequentemente, em face do que se deixa dito, e porque, no respeito pelo caso julgado, não pode conhecer-se de novo da mesma questão - já conhecida por decisão entretanto transitada em julgado - não pode este tribunal conhecer do recurso, por impossibilidade superveniente.
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8. Assim, em face do exposto, e atento o disposto no art.º 417 n.º 6 al.ª a) do CPP, decide-se não conhecer do recurso interposto, por impossibilidade superveniente do mesmo”.
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II - Reclamações
1. Reclamaram dessa decisão o Ministério Público junto deste tribunal e o arguido, alegando, em síntese:
A - O Ministério Público:
- Que a decisão sumária não explica (questão suscitada no parecer do Ministério Público e que foi “pura e simplesmente ignorada”):
Como se pode considerar susceptível de apreciação e decisão um requerimento formulado mais de dois meses depois do depósito da sentença, onde se invocam questões técnico-jurídicas, subscrito exclusivamente pelo arguido, já então representado por defensor;
Como pode considerar-se susceptível de produzir efeitos, nomeadamente, formação de caso julgado, um despacho proferido mais de três meses depois do depósito da sentença e dois dias depois de ter dado entrada o recurso da sentença subscrito pelo seu defensor;
- Que a situação não é equiparável à constante do acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 13/2014, pois que no presente caso as consequências da declaração da nulidade seriam a nulidade do julgamento e da sentença, quando naquele seriam apenas a reparação da deficiente gravação, preparando a fase de recurso;
- Que não se verificou qualquer exceção ao abrigo da qual fosse lícito ao Juiz alargar o seu poder jurisdicional, conhecendo de nulidades cujo deferimento, repercutindo-se na sentença, desta não constituam nulidades;
- Que o despacho de 30.09.2015 deve ser declarado juridicamente inexistente.
B - O arguido:
- Que, esgotado o poder jurisdicional, o tribunal só dispõe dos poderes excecionais que se extraem dos artigos 2, 379 n.º 4 e 380 do CPP, onde não consta o poder de conhecer das nulidades insanáveis cometidas antes da publicação da sentença;
- Que o meio processual próprio para arguir nulidades insanáveis, depois de publicada a sentença, é o recurso desta; a reclamação do arguido é inidónea para arguir a nulidade insanável depois de publicada a sentença;
- Que a interposição do recurso da sentença, em 28.09.2015, consubstancia uma desistência tácita da reclamação apresentada pelo arguido em 31.08.2015;
- Que o despacho proferido pelo tribunal a quo em 30.09.2015 não produziu nenhum efeito jurídico, uma vez que o tribunal não podia conhecer daquela questão, por se ter esgotado o seu poder jurisdicional.
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2. Respeitado o princípio do contraditório e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 417 n.ºs 8 e 10 do CPP).
Salvo o devido respeito, entendemos que carecem de fundamento as reclamações apresentadas.
De facto, entendendo manterem-se válidos os fundamentos aduzidos na decisão reclamada, que aqui se consideram reproduzidos, e considerando os argumentos que daquelas reclamações constam, dir-se-á, correndo o risco de nos repetirmos:
1) As nulidades insanáveis devem ser oficiosamente declaradas, em qualquer fase do procedimento, até ao trânsito em julgado da decisão final (art.º 119 do CPP) - e não até à prolação da sentença! - com as consequências previstas no art.º 122 do CPP, ou seja, com a consequente invalidade do ato em que se verificaram, “bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar”;
2) Não tendo sido arguida ou conhecida antes da decisão final (ou antes da interposição do recurso dessa decisão), pode o recurso da decisão final ser interposto com esse fundamento, ex vi art.º 410 n.º 3 do CPP; mas se arguida ou suscitada depois da decisão final, antes da interposição do recurso dessa decisão, o tribunal perante o qual foi suscitada não pode deixar de conhecer da mesma, pois que o tribunal da 1.ª instância - ainda que esgotado do poder jurisdicional quanto ao objeto do processo e quanto às questões concretamente apreciadas e conhecidas na sentença (art.º 613 n.º 1 do CPC, ex vi art.º 4 do CPP) - mantém competência para decidir todas as questões ou incidentes que se suscitem no processo enquanto este se mantiver sob a sua jurisdição, desde logo, as que respeitam aos pressupostos da admissibilidade do recurso, entendendo-se que se mantém pendente e sob sua jurisdição até à data em que for admitido o recurso da decisão final, no caso, da sentença (veja-se neste sentido a decisão proferida pelo Exm.º Senhor Juiz Conselheiro Santos Carvalho em 4.11.2014, no âmbito do Processo n.º 81/14.0YGMR.P1-A.S1, conflito de competência, onde se decidiu que o recurso se considera pendente a partir da sua admissão);
3) É irrelevante - e por isso não se apreciou tal questão na decisão reclamada - que a arguição tenha sido subscrita pelo próprio arguido, pois que, seja qual for o entendimento que se perfilhe a tal propósito, tendo o tribunal conhecido dessa questão - no âmbito da sua competência - qualquer vício de que enfermasse essa decisão sempre teria que ser atacado pelo meio próprio, que era o recurso; o que não pode é dizer-se que essa decisão não existiu, que é inexistente e que não pode produzir efeitos, por se ter esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa, pois que tal poder esgotou-se, sim, quanto ao objeto do processo, quanto à questão submetida a julgamento e às questões aí concretamente conhecidas, mas não quanto às demais questões incidentais suscitadas pelos interessados ou de que era lícito conhecer, enquanto o processo se mantivesse pendente nessa instância.
4) As consequências da eventual procedência da invocada nulidade são as consequências normais decorrentes da procedência de qualquer nulidade, ex vi art.º 122 n.º 1 do CPP, como acontece, por exemplo, com a nulidade decorrente da deficiente gravação da prova, que pode ser suscitada depois de proferida a sentença, nulidade que, contrariamente ao defendido pelo Ministério Público, não se destina apenas a preparar a fase do recurso (que até pode nem vir a ser interposto, depois de reparado aquele vício) e que, a proceder, não pode deixar de ter como consequência a nulidade do julgamento (na parte afetada) e da sentença que entretanto tenha sido proferida com base nessa prova (acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 13/2014) - trata-se de uma decorrência normal da procedência de qualquer nulidade.
5) Diga-se ainda:
Por um lado, a mera interposição do recurso não é incompatível com a arguição da nulidade supra referida, contrariamente ao defendido pelo arguido, antes pelo contrário, não competindo ao tribunal formular qualquer juízo sobre a estratégia da defesa, a interposição do recurso pode entender-se como mais um meio de impugnação da decisão, prevenindo a hipótese de improcedência da invocada nulidade, cujo eventual recurso teria que subir com aquele, interposto da decisão final;
Por outro lado - e também por isso - a interposição do recurso da sentença não pode, sem mais, ser entendido como manifestação de desistência da arguida nulidade, todavia, e ainda que assim se pudesse entender, o que não se aceita, a reação contra a decisão que dela conhecesse - não devendo conhecer - sempre seria o recurso, não havendo quaisquer razões para considerar tal decisão inexistente;
Por outro lado, o acórdão do STJ de 6.05.2010, Proc. 4670/2000.S1, in www.dgsi.pt (invocado pelo arguido), nada tem a ver com a situação que aqui nos ocupa, pois que aí estava em causa, de facto, a modificação/alteração de uma decisão condenatória num altura em que estava esgotado o poder jurisdicional do Juiz, o que aqui não acontece.
Improcedem, por isso, as reclamações apresentadas.
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3. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em indeferir as reclamações apresentadas e, consequentemente, em manter a decisão sumária reclamada.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (art.ºs 513 e 514 do CPP e 8 n.º 9 e tabela III anexa do RCP).
(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado).

Évora, 29/03/2016
Alberto João Borges (relator)
Maria Fernanda Pereira Palma (adjunta)