CONFISSÃO INTEGRAL E SEM RESERVAS
ACTO PESSOAL
Sumário

I. De acordo com o preceituado no artigo 344.º do Código de Processo Penal, a confissão do arguido, realizada em audiência, como acto de natureza pessoal, só pode ser praticado presencialmente, pelo próprio, sem possibilidade de delegação.
II. Por isso e para os fins em causa, a confissão realizada pela forma escrita e efectuada através do ilustre mandatário não produz efeito.
III. Em conformidade, deve ser anulado o julgamento se o tribunal baseou a sua convicção na confissão dos arguidos, realizada pela forma escrita e através do respectivo mandatário, baseando-se, pois, num meio de prova nulo.

Texto Integral

Proc. N.º 29/12.6IDFAR.E1

Acordam, em conferência, os juízes que compõem a 1ª subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

1 - No processo comum, com intervenção do tribunal singular, n.º 29/12.6IDFAR, do da Comarca de Faro - Lagos - Instância Local - Secção de Competência Genérica - J1, foram julgados os arguidos, BB, Lda., CC e DD, todos com os demais sinais dos autos, tendo sido proferida a decisão condenando-os nos termos seguintes:
“a) Condenar a arguida BB, Lda., por autoria material de crime doloso consumado de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º, nº 1, do RGIT, na pena de duzentos e quarenta dias de multa à razão diária de 10,00 euros, no total de 2.400,00 euros.
b) Condenar cada um dos arguidos CC e DD, por autoria material de crime doloso consumado de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º, nº 1, do RGIT, na pena de um ano de prisão, cuja execução vai declarada suspensa nos termos do artigo 50º do Código Penal, sob condição de que, no prazo de um ano a contar do trânsito, paguem ao Estado a quantia, respeitante a IVA, de cinco mil seiscentos e vinte e quatro euros e quarenta e nove cêntimos.”

2 - Os arguidos, CC e DD, inconformados, interpuseram recurso dessa decisão, tendo apresentado as seguintes conclusões:

(…)


3 - Após cumprido o art. 411º n.º 6, do C.P.P., o MP apresentou, douta resposta ao recurso, concluindo:
(…)

4 - Neste Tribunal a Exma. Sra. Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer, concluindo:
“Importa, porém, conhecer oficiosamente de questão preclusiva relativamente ao objecto do recurso interposto.
Da sentença recorrida constam os factos dados como provados e exara-se que a prova assenta na confissão integral e sem reservas prestada pelos arguidos.
Da acta da audiência de discussão e julgamento constata-se que os arguidos não estiveram presentes nesta por estarem ausentes do país.
Dessa mesma acta resulta que o Excelentíssimo Juiz confrontou os intervenientes com a confissão integral e sem reservas oferecida pelos arguidos a fls. 518/519. E tanto o Excelentíssimo Magistrado do MºPº, como O Ilustre Defensor da sociedade arguida disserem que aceitavam a confissão integral e sem reservas que ofereceram aqueles arguidos, ausentes por terem tido necessidade de deslocar-se à Austrália.
E resulta dessa mesma acta que o tribunal proferiu despacho a aceitar a confissão integral e sem reservas expressa pelos arguidos através do seu Ilustre Mandatário.
Como se sabe a confissão é uma declaração de vontade própria. De tal forma que terá de ser livre, fora de qualquer coacção, havendo mesmo a imposição legal, em fase de julgamento, do Juiz se assegurar que assim é. E é o que resulta do disposto no artigo 344º do CPP que estatui que no caso de o arguido declarar que pretende confessar os factos que lhe são imputados, o presidente, sob pena de nulidade, pergunta-lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coacção, bem como se se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas.
Esta disposição legal regula a confissão do arguido feito em audiência que é um acto pessoal, não delegável e que só pode ser exercido presencialmente pelo próprio.
Não tem relevo a confissão feita por escrito, nem tão pouco através de ilustre mandatário, como foi o caso dos autos, até por força do princípio da oralidade e da imediação que presidem na fase processual de audiência de discussão e julgamento.
No preceito legal acima indicado regula-se ... a confissão do arguido na audiência, ou seja, a assunção por parte do arguido dos factos que lhe são imputados na acusação e na pronúncia.
Ao tribunal cabe aferir, não só da espontaneidade e extensão da confissão, sob pena de nulidade, mas também da na genuidade, conquanto a letra da lei o não imponha.
... o tribunal deve verificar-se da genuidade da confissão no cumprimento do princípio da procura da verdade material, o qual domina todo o processo penal - Conselheiro Oliveira Mendes, anotação ao artigo 344° do CPP, página 1098, in Código de Processo Penal Comentado pelos Excelentíssimos Juízes Conselheiros do STJ, 2014, Almedina.
Poder-se-á, pois, dizer que não tendo relevância a confissão feita por escrito ou transmitida através de mandatário o tribunal se serviu, na formação da sua convicção, de um meio de um meio de prova nulo. "Nulidade" quer quanto à sua admissibilidade e consequente proibição de utilização, quer quanto ao seu “valor” a "irrelevância" - veja-se Acórdão do STJ de 15 de Novembro de 2007 in www.dgsi.pt
E a sua proibição como prova a ser valorada na formação da convicção do tribunal não têm de ser arguida e/ou invocada pelos sujeitos processuais, cabendo conhecer dela oficiosamente, em qualquer momento.
(…).
Chegados a este ponto, outra conclusão não poderá retirar-se que não seja a de que haverá que repetir a audiência de discussão e julgamento a fim de que os arguidos ai prestam as declarações que tiveram por convenientes, com observância das legais formalidades, ou não as prestem, querendo, proferindo-se uma nova sentença que, na formação da sua convicção, respeite a legalidade da prova.
Donde, embora por diferentes razões, se emite parecer no sentido da procedência do recurso.”

5 - Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º n.º 2, do C.P.P.

6 - Foram colhidos os vistos legais.

7 - Cumpre decidir


II - Fundamentação

2.1 - O teor da decisão, na parte que importa, é a seguinte:

“ A - Factos provados -
Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1p. A sociedade arguida, NIPC …, é uma sociedade comercial por quotas, que se dedica à construção civil, obras públicas, fiscalização e gestão de obras, desenho e projectos, decoração de interiores e exteriores, compra e venda de imóveis, e revenda dos adquiridos para esse fim, e comércio de materiais de construção.
2p. A sociedade arguida estava, para efeitos de enquadramento do regime de IVA, abrangida pelo regime normal de periodicidade mensal pelo exercício de “construção de edifícios (residenciais e não residenciais)”, a que corresponde o CAE…, e pela actividade secundária de “compra e venda de bens imobiliários”, a que corresponde o CAE ….
3p. Os arguidos CC e DD são sócios daquela sociedade, exercendo ambos a função de gerentes.
4p. No âmbito da sua actividade, a arguida sociedade comunicou ao Fisco, em 10 de Novembro de 2011, a prestação deduzida nos termos da lei através da entrega da declaração periódica (DP) de IVA referente ao período 2011/09, tendo no campo 93 apurado imposto a entregar ao Estado no montante de 47.888,30 euros, indo a declaração desacompanhada de meios de pagamento.
5p. Após análise da contabilidade, verificou-se que a arguida deveria ter declarado o recebimento dos montantes de 15.958,05 euros e 12.164,38 euros relativos, respectivamente, aos períodos 2008/05 e 2008/09, cobrados como IVA, somando ao todo 28.122,43 euros.
6p. Notificados para pagamento dentro dos prazos previstos na lei, os arguidos nada pagaram até à presente data, o que fizeram de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que beneficiaram das quantias não pagas, e que prejudicaram correspondentemente o Estado, cientes de que a lei pune estas condutas.
7p. Todos os arguidos sofreram, cada um, duas condenações por crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social, e outras duas por crimes de abuso de confiança fiscal, por decisões de 2011, 2012 e 2013.
- B – Provas dos factos e sua análise -
1 – A prova assenta na confissão integral e sem reservas prestada pelos arguidos.
2 – A testemunha …, inspectora tributária, explicou que foi verificada a entrada de receitas, respectivamente de 40.000,00 e de 70.000,00 euros, dos períodos 2008/05 e 2008/09, com IVA declarado e IVA não declarado, sendo a soma destas duas cifras, em cada período, que integra o prejuízo do Estado.
3 – Os certificados do registo criminal de folhas 492/501 atestam os antecedentes criminais.”

2.2 - O registo magnetofónico da prova permite, a este tribunal de recurso, apreciar as questões de direito avançadas pelo recorrente (Cfr. art. 428º, do mencionado compêndio adjectivo) e faz a apreciação de eventuais vícios do art. 410°, n.º 2 CPP ou de nulidades que não devam considerar-se sanadas. E dentro destes limites, são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso (art. 412°, n.º 1 CPP), uma vez que as questões submetidas à apreciação da instância de recurso são as definidas pelo recorrente.

São as conclusões que irão habilitar o tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos quer no plano do direito.

Como se viu, a lei exige conclusões em que o recorrente sintetize os fundamentos e diga o que pretenda que o juiz decida, certamente porque são elas que delimitam o objecto do recurso.
Não pode o tribunal seleccionar as questões segundo o seu livre arbítrio nem procurar encontrar no meio das alegações, por vezes extensas e pouco inteligíveis, o que lhe pareça ser uma conclusão.
As conclusões constituem, por natureza e definição, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo recorrente e destinam-se, à luz da cooperação devida pelas partes, a clarificar o debate quer para exercício do contraditório, quer para enquadramento da decisão

2.3 - Feita esta introdução de âmbito geral e analisadas as conclusões de recurso, dir-se-á que os recorrentes defendem que, no caso em apreço, constitui fundamento do recurso:
NA medida concreta da pena aplicada não se valorou devida e suficientemente as circunstâncias de carácter atenuante recenseadas na motivação, bem como, os princípios que regem o procedimento criminal da necessidade e da proporcionalidade das penas, devendo ser substituída por outra que condene os arguidos numa pena não privativa da liberdade.

2.4 - Das questões do recurso.
2.4.1 - Considerações prévias
No caso “sub judice” os recorrentes insurgem-se contra a medida concreta da pena aplicada, a cada um.
Importa, porém, como refere o MºPº, no seu parecer, conhecer oficiosamente de questão que obsta ao conhecimento de mérito do objecto do recurso interposto.
Sobre a arguição e o conhecimento oficioso da proibição das provas, o acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 03- 06-2008, proferido no processo 1991/07-1, disponível em www.dgsi.pt, referido no parecer do MºPº, tem acuidade, pois que “…do ponto de vista formal não há, pois, regra que faça depender de arguido as proibições de prova, pelo que pode a mesma ser conhecida oficiosamente, independentemente de arguirão pelos interessados. Isto porque o regime das proibições de prova detém autonomia face ao regime geral das nulidades. As proibições de prova (distintas das meras nulidades por preterição de regra de produção de prova) não carecem de ser arguidas, desde logo porque não lhe sendo directamente aplicável o regime das nulidades, não vale quanto a elas a regra do artigo 119º do CPP, segundo a qual são insanáveis apenas as nulidades ai previstas ou as que como tal forem cominadas em outras disposições legais.”
Entendemos a razão da autonomia do regime das proibições de prova face ao regime geral das nulidades.
Revertendo para o caso concreto, é necessário atender ao seguinte:
O texto da sentença recorrida é, expressamente, mencionado, no do ponto II, al. B) - Provas dos factos e sua análise -, que “1 – A prova assenta na confissão integral e sem reservas prestada pelos arguidos.”;
A análise da acta da audiência de discussão e julgamento, junta a fls. 542 a 544, constata-se que os arguidos não estiveram presentes nesta por estarem ausentes do país.
Nessa mesma acta de audiência de discussão e julgamento, realizada em 09/02/2015, resulta que o Excelentíssimo Juiz confrontou os intervenientes com a pretensão de confissão integral e sem reservas oferecida pelos arguidos, constante do documento de fls. 518/519, subscrito pelo seu mandatário;
Quer o Excelentíssimo Magistrado do MºPº, quer o Ilustre mandatário disserem que aceitavam a confissão integral e sem reservas que ofereceram aqueles arguidos, ausentes por terem tido necessidade de deslocar-se à Austrália;
Na sequência dessa posição, como consta da mencionada acta, o tribunal proferiu despacho a aceitar a confissão integral e sem reservas expressa pelos arguidos através do seu Ilustre Mandatário.
Em face destas ocorrências e atendendo ao circunstancialismo processual sucedido, é imprescindível atender à previsão do art. 344.º e ao regime das nulidades expresso nos arts. 118º e 119º, todos do CPP
O primeiro desses preceitos legais, sobre a epígrafe “Confissão”, estabelece: “1 - No caso de o arguido declarar que pretende confessar os factos que lhe são imputados, o presidente, sob pena de nulidade, pergunta-lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coacção, bem como se se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas.
2 - A confissão integral e sem reservas implica:
a) Renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados;
b) Passagem de imediato às alegações orais e, se o arguido não dever ser absolvido por outros motivos, à determinação da sanção aplicável; e
c) Redução da taxa de justiça em metade.
3 - Exceptuam-se do disposto no número anterior os casos em que:
a) Houver co-arguidos e não se verificar a confissão integral, sem reservas e coerente de todos eles;
b) O tribunal, em sua convicção, suspeitar do carácter livre da confissão, nomeadamente por dúvidas sobre a imputabilidade plena do arguido ou da veracidade dos factos confessados; ou
c) O crime for punível com pena de prisão superior a 5 anos.
4 - Verificando-se a confissão integral e sem reservas nos casos do número anterior ou a confissão parcial ou com reservas, o tribunal decide, em sua livre convicção, se deve ter lugar e em que medida, quanto aos factos confessados, a produção da prova.
O segundo, Artigo 118.º, sobre a epígrafe “Princípio da legalidade” estabelece: “1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei. 2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular. 3 - As disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova.”
O terceiro, Artigo 119.º, com a epígrafe “Nulidades insanáveis”, preceitua: “Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
(…)
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
(…)”
Do citado art. 344º resulta que a confissão do arguido, realizada em audiência, como acto de natureza pessoal, só podendo ser praticado, presencialmente, pelo próprio, sem possibilidade de delegação.
Portanto, a confissão realizada pela forma escrita e efectuada, através de ilustre mandatário, como ocorreu no caso “sub judice”, não produz efeito, assim o impõem os princípios da oralidade e da imediação, subjacentes à fase processual de audiência de discussão e julgamento.
A espontaneidade e extensão da confissão devem ser analisadas e avaliadas pelo tribunal, sob pena de nulidade. Acresce que, também, se entende que o mesmo se impõe relativamente à genuidade, atendendo ao princípio da descoberta da verdade material, subjacente ao processo penal, apesar de não se mostrar essa imposição expressa na lei.
A conclusão a retirar é a de que não tem valor a confissão efectuada por escrito ou transmitida através de mandatário. Portanto, o tribunal “a quo”, baseou a sua convicção da prova e fixação da matéria de facto, e serviu-se, na formação da sua convicção, de um meio de um meio de prova nulo.
A Jurisprudência já se pronunciou sobre esta matéria, referimos, a título de exemplo, os arrestos seguintes:
- Ac. TRG de 7-12-2009, CJ, 2009, T5, pág.270: I. A confissão integral e sem reservas implica não só a aceitação dos factos imputados, mas também a dimensão normativa que lhes é dada. … III. Não tendo o julgador cumprido as formalidades previstas no artº 344º, nº1 do CPP, ocorre uma nulidade que afecta a audiência, devendo ser ordenada a repetição do julgamento.
- Ac. TRP de 15-12-1999: II. A confissão do arguido só é relevante em audiência quando prestada nos termos e pela forma estabelecida no artigo 344 do Código de Processo Penal, sendo que as declarações do arguido só podem ser lidas em audiência nos termos do artigo 357 do mesmo Código, pelo que, fisicamente ausente o arguido, o meio de prova da sua confissão é inadmissível e é igualmente inadmissível o meio de prova relativa às suas declarações por não ocorrerem os pressupostos do citado artigo 357 (n.º 1 alínea a)).
Conclui-se, como supra referido: “…não tem valor a confissão efectuada por escrito ou transmitida através de mandatário. Portanto, o tribunal “a quo”, baseou a sua convicção da prova e fixação da matéria de facto, e serviu-se, na formação da sua convicção, de um meio de um meio de prova nulo.”.

III - DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao mencionado recurso, pelos fundamentos retro expressos, diversos dos alegados, anulando-se o julgamento, reenviando-se o processo para que se realize novo julgamento, e se apure e se julgue em conformidade.
Sem Custas.

(Processado por computador e integralmente revisto pela relatora que rubrica as restantes folhas).

Évora, 10/05/2016
Maria Isabel Duarte (relatora)
José Maria Martins Simão