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REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Sumário
I – O conceito de acusação “manifestamente infundada”, assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate. II – A conduta típica da violência doméstica tanto se pode revestir de maus-tratos físicos, onde se incluem as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, designadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade. III – Para se assumirem como actos típicos de maus tratos, os comportamentos não têm de possuir relevância específica no seio de outros tipos legais de crime, seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito. IV – Com a alteração legislativa operada pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, veio decidir-se no sentido de bastar para o preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica a prática de um acto isolado e sem que se exija a reiteração de conduta. V – Porém, não é qualquer acção isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo: os maus tratos pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável. VI – Tal não se verifica se da acusação consta apenas, de relevante na matéria, que o arguido esteve casado com CC entre 14 de Agosto de 1998 e 28 de Outubro de 2015, altura em que se divorciaram e que durante o relacionamento o arguido, por diversas vezes, em datas não apuradas, apelidou a ofendida CC de "puta', sendo também comum desferir-lhe empurrões. VII – Além disso, não são factos susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado. VIII – Em conformidade com as proposições anteriores, por manifestamente infundada, dever ser rejeitada a acusação em que se imputa ao ao arguido o crime de violência doméstica apenas com base nos "factos" referidos.
Texto Integral
Recurso n.º 515/14.3 PAENT.
Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Nos Autos de Processo Comum Singular, com o n.º 515/14.3 PAENT, a correrem termos pela Comarca de Santarém – Instância Local do Entroncamento – Secção de Competência Genérica – J2, a M.ma Juiz veio, ao abrigo do disposto no art.º 311.º, n.ºs 2, aI.ª a) e 3, aI.ª d), do Cód. Proc. Pen., rejeitar a acusação deduzida contra o arguido BB, na parte em que lhe imputa a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, aI. a), 2, 4 e 5 do Código Penal, contra a pessoa de CC, por considerar a mesma, nessa parte, manifestamente infundada.
Inconformado com o assim decidido traz o Magistrado do Ministério Público o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
1. "Só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam da acusação não constituem crime é que o tribunal ao abrigo do artigo 311.º/3 d) do Código de Processo Penal, pode rejeitar a acusação"!
2. No caso, o despacho acusatório- de fls. 163 e 164- define:
-/ o período temporal em que os factos ocorreram e a Sua reiteração: "durante o casamento compreendido entre 14.8.1998 e 28.10.2015, e por diversas vezes (ou seja, mais do que uma vez)- vide factos n.ºs 1 a 3.°;
-/ o modo e as circunstâncias: "( ... ) apelidou a ofendida de puta; (... ) desferiu empurrões"; "o arguido encontrava-se embriagado quando praticou os factos" - vide factos n.ºs 3 e 8 ; e
./ a motivação: "agiu voluntária, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar fisicamente, de humilhar e vexar a ofendida (. .. ) "- vide facto n.º 9.º;
5. O alegado em 3 da acusação-cfr. fls. 163- é, assim, um "facto" (um pedaço de vida concretizado) e não uma "conclusão", donde o tribunal a quo ao abolir o mesmo considerando-o como "não escrito" -, fê-lo sem qualquer suporte normativo, violando o disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
6. A acusação descreve um quadro factual de violência no seio de um agregado familiar, com duas vítimas - e que só é devidamente compreendido e contraditado pelo arguido, se analisado no seu conjunto- pelo que não podia o Tribunal rejeitar parte da acusação, fragmentando-a.
7. Do mesmo modo, os elementos típicos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica encontram-se devidamente descritos no despacho acusatório ¬ cfr. fls, 163 e 164- e permitem que o arguido seja condenado, em julgamento, pelo tipo de crime previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), 2, 4 e 5 do Código Penal, por factos cometidos contra a pessoa de CC.
6. No caso, a factualidade descrita no despacho acusatório possibilita, assim, que o arguido exerça o devido contraditório, daí que nem o Tribunal nem o arguido tenham arguido qualquer nulidade do despacho acusatório, nomeadamente por incorrera narração dos factos.
7. Por todo o exposto, o Tribunal a quo não podia rejeitar a acusação, mormente com fundamento de que os "factos não integram a prática de crime", pelo que violou o disposto nos artigos 32.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa e 283.º, n.º 1 e 3, alínea b), 311.º, n.ºs 2 e 3 alínea d), todos do Código de Processo Penal e 152.º, n.ºs 1 a 5 do Código Penal.
Nestes termos entendemos que o despacho recorrido de fis. 171 a 175- deve ser revogado e substituído por outro que admita a acusação pública de fis. 163 e 164, na parte que imputa, ao arguido BB, um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152 n.ºs 1, alínea a), 4 e 5 do Código Penal, por factos cometidos contra a pessoa de CC, designando-se, em sequência, dia para a realização de audiência e julgamento, cumprindo-se o disposto no artigo 312.º, do Código de Processo Penal.
Nesta Instância, o Sr. Procurador Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
É do seguinte teor o despacho recorrido – na parte que ora importa: O Ministério Público deduziu acusação pública contra o arguido, imputando-lhe, além do mais, a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, nºs 1, aI. a), 2, 4 e 5 do Código Penal, contra a pessoa de CC. Dispõe o art. 311º, nº 2, aI. a), do Código de Processo Penal que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada. A acusação é manifestamente infundada quando, além do mais, os factos não constituírem crime (cfr. aI. d) do nº 3 do preceito legal supra-citado). Ora, in casu, a acusação deduzida contra o arguido é, na parte em que lhe imputa a prática do crime acima referido, manifestamente infundada porquanto, em nosso entender, os factos nelas descritos não integram a prática do tipo de crime de violência doméstica ou de qualquer outro tipo de crime. Senão vejamos. São os seguintes os factos que, nesta parte, vêm imputados ao arguido: 1. O arguido esteve casado com CC entre 14 de Agosto de 1998 e 28 de Outubro de 2015, altura em que se divorciaram. 2. Deste casamento resultou o nascimento de DD. 3. Durante este relacionamento o arguido, por diversas vezes, em datas não apuradas, apelidou a ofendida CC de "puta': sendo também comum desferir-lhe empurrões. 4. Ao proceder como descrito, agiu sempre o arguido voluntária, livre e conscientemente, com o propósito concretizado molestar fisicamente, de humilhar e vexar a ofendida, pese embora soubesse que ela era sua esposa. 5. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Dispõe o art. 152º, nº 1, aI. a), e nº 2, do Código Penal que: 1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge, (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. O bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental e que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem, nomeadamente, a dignidade pessoal do companheiro. As condutas previstas e punidas neste preceito são de várias espécies: maus tratos físicos, ou seja, ofensas corporais simples, maus tratos psíquicos, isto é, humilhações, provocações, molestações, ameaças, mesmo que não configuradas em si crime de ameaça. A ratio deste tipo de crime não está, pois, na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. Este crime basta-se com a consolidação no estado vivencial da vítima de um estado de compressão na sua liberdade e de um apoucamento da dignidade que a um qualquer ser humano é devida (v. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27.06.2007, proferido no Processo nº 256/05.2GCAVR.C1, visualizável em www.dgsi.pt). Como se diz no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.02.2008, proferido no Processo nº 1702/2008-3, visualizável em www.dgsi.pt. os maus-tratos psíquicos compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional que perturbe «a normal convivência e as condições em que possa ter lugar o pleno desenvolvimento da personalidade dos membros do agregado familiar». Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal (v. Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.01.2010, proferido no Processo nº 361/07.0GCPBL.C1, visualizável em www.dgsi.pt). Ora, no caso em apreço, a conduta que vem imputada ao arguido não integra o tipo de crime de violência doméstica. É que, a descrição dos acontecimentos feita nos pontos acima indicados sob os números 1 a 3, dada a indefinição temporal que encerra, não permite o contraditório, impossibilitando qualquer defesa. Como se diz no douto Ac. do TRP, de 30.09.2015, proferido no Processo nº 775/13.7GDGDM.P1 (in www.dqsi.pt). «As imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas e do tempo e lugar em que ocorreram, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado no art.32.º, n.º 1, da CRP, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.» No mesmo sentido, vejam-se os seguintes acórdãos, todos em www.dqsi.pt: - Ac. do S T J, de 05.04.2006, Processo nº 05P2932: « O STJ tem vindo a decidir que não são factos susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado». - Ac. 8T J, de 21.02.2007, Processo nº 06P3932: «O arguido só pode contrariar a acusação ou a pronúncia, de forma adequada e eficaz, se naquelas peças processuais se encontrarem vertidos especificadamente e com clareza os factos imputados, isto é, o caso concreto ou particular submetido a julgamento. De outro modo, ou seja, perante uma acusação ou uma pronúncia constituídas por factos genéricos, não individualizados, fica ou pode ficar prejudicada a possibilidade de o arguido se defender.» Como se afirma no Ac. do TRP, de 08.07.2015, proferido no Processo n.º 1133/13.9PHMT8.P1 (in www.dgsi.pt) «O crime de violência domestica não é, nem pode ser, um crime que no final da vivência em comum de duas pessoas, vistoriando, retroactivamente o que foi a vivência conjugal ou familiar, vá julgar o modo como o casal viveu a vida em comum e puni-los como se fosse um crime de "regime': Nem tão pouco é um crime residual, no âmbito do qual cabe tudo o que não cabe nos demais tipos legais de crime, mas antes é um crime especifico ou especial. Desde há muito o STJ tem entendido que devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados/imputados na acusação (e consequentemente na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos». No crime de violência doméstica, «o tipo apresenta-se assim deliberadamente fragmentário, no que respeita à definição das condutas penalmente relevantes, pois prescreve na realidade que não são todos os maus tratos que são passíveis de activar a reacção penal, mas tão só aqueles infligidos de modo intenso ou reiterado. (...) a comissão de crime de maus tratos a cônjuge implica a prática reiterada ou minimamente repetida de actos de violência, ou a prática de uma conduta violenta singular, desde que a mesma se revista de específicos foros de gravidade» (cfr. Ricardo Bragança de Matos, in "Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo na tutela da vítima", RMP, ano 27, Julho-Setembro 2006, n.º 107, págs.100-101). No caso em apreço, é evidente que a única imputação que é feita ao arguido ¬ 'Durante este relacionamento o arguido, por diversas vezes, em datas não apuradas, apelidou a ofendida CC de "puta': sendo também comum desferir-lhe empurrões" - é absolutamente genérica, pois não indica o lugar, nem o tempo, nem o modo, nem a motivação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, inviabilizando um efectivo direito de defesa, pelo que tal facto se deve considerar como não escrito [v., no sentido de que as imputações genéricas devem dar-se como não escritas, entre outros, o citado Ac. TRP de 775/13.7GDGDM.P1, que aqui seguimos de perto, e os Ac. do STJ de 06.05.2004 (Processo nº 04P908) e de 02.04.2008 (Processo n.º 07P4197)]. Considerando-se o facto acima descrito sob o nº 3 como não escrito, é também evidente que os restantes não integram o crime de violência doméstica agravado que vem imputado ao arguido, pelo que a acusação deve, nessa parte, ser rejeitada. Face ao exposto, ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.º 2, aI. a) e n.º 3, aI. d), do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar a acusação deduzida contra o arguido, na parte em que lhe imputa a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, nºs 1, aI. a), 2, 4 e 5, do Código Penal, contra a pessoa de CC, por se considerar a mesma, nessa parte, manifestamente infundada.
Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso.
No caso vertente cura-se de saber se existe, ou não, fundamento para que a Sra. Juiz recorrida viesse rejeitar a acusação, com fundamento de ser manifestamente infundada – art.º 311.º, n.ºs 2, al.ª a) e 3, al.ª d), do Cód. Proc. Pen.
Segundo o citado preceito legal – n.º 3 - a acusação considera-se manifestamente infundada:
d) Se os factos não constituírem crime.
Como consabido, o n.º 3 do citado preceito legal foi aditado pela Lei n.º 59/98 de 25.08, vindo-se aí definir, de forma taxativa, as situações de acusação manifestamente infundada conducentes à rejeição da acusação. E sem que se olvidasse ou contendesse com a estrutura acusatória do processo penal, tudo de harmonia com o preceituado no art.º 32.º, n.º 5, da C.R.P.
Pelo que em obediência a tal principiologia esteja vedado ao juiz de julgamento, quando profere despacho ao abrigo do estatuído no art.º 311.º, do Cód. Proc. Pen., a emissão de juízo sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios que sustentam a acusação.
Só lhe sendo, desta feita, permitido rejeitar a acusação quando o teor fáctico da mesma conduzir, de forma inequívoca, ao entendimento de que o processo é inviável porque nunca poderia vir a ser outra a solução jurídica.
Ou dito de outro modo, o tribunal só pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la, só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime.
Como refere Maia Gonçalves, neste conceito compreende-se a acusação que padeça de deficiências estruturais de tal modo graves “que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade”.[1]
Prevendo-se a rejeição liminar da acusação para – e somente - casos extemos, limite, insusceptíveis de correcção.
Pelo que, anuamos ao entendimento vertido no Aresto desta Relação, datado de 15 de Outubro de 2013, no Processo n.º 321/12.0TDEVR.E1, que vai no sentido de os poderes do juiz de julgamento sobre a acusação, antes do julgamento, serem limitados.
Que o conceito de acusação “manifestamente infundada”, assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate.
E que a alínea d), do n.º 3, do art. 311.º, do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.
Configurando-se a rejeição liminar da acusação como um tipo de nulidade sui generis, extrema, insuperável ou insanável, ainda que susceptível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de permitir ao juiz de julgamento a intromissão na acusação, de forma a evitar um julgamento sem objecto fáctico e probatório [al. b) e segunda parte da al. c) - provas], sem acusado [al. a)], sem incriminação [al c)], ou sem objecto legal [al. d)].
Consagrando-se, desta feita, um específico regime de nulidades da acusação que, face à gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na Constituição da República Portuguesa, são insuperáveis/insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.[2]
Aplicando estes ensinamentos ao caso em análise, vejamos do bem ou mal fundado do despacho revidendo.
O Ministério Público, na acusação por si deduzida, imputa ao arguido BB a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, aI. a), 2, 4 e 5 do Cód. Pen.
No que respeita ao crime de violência doméstica, rege o art.º 152.º, do Cód. Pen., onde se diz no seu n.º 1, que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
Como ensina o Prof. Américo Taipa de Carvalho, o intento de prevenir e reprimir as ofensas que rebaixem de modo socialmente insuportável a dignidade pessoal da vítima está por certo na base da criminalização específica dos maus tratos domésticos.[3]
Sobre o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, vária tem sido a discussão, não existindo unanimidade de entendimento.
Para Nuno Brandão, ao contrário do que vem sendo defendido pela jurisprudência, não é de sufragar o entendimento que vai no sentido de o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica ser a dignidade humana.
Porquanto, com o delito em causa se pretende dirigir e actuar sobre condutas que estão muito longe de uma tal dignidade.
Sendo mais adequada á teleologia da específica criminalização dos maus tratos intra-familiares, à sua inserção sistemática e à eficácia operativa do preceito apontar a saúde como o bem jurídico do crime de violência doméstica.
Sendo objecto de tutela a integridade das funções corporais da pessoa nas suas dimensões física e psíquica[4].
Para Miguez Garcia o bem jurídico protegido pela norma será um bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, a liberdade nas suas expressões sexual e de natureza pessoal.[5]
Para Plácido Conde Rodrigues, o bem jurídico protegido pelo tipo de crime em apreço será a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral[6].
Como afirmação de que o bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime em apreço é, em geral, a dignidade da pessoa humana e, em particular, a saúde, vemos vários arestos dos nossos Tribunais Superiores, de onde destacamos, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto, de 26.05.2010, no Processo n.º 179/08.3GDSTS.P1.
E estaremos perante um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude de uma relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima. Pressupondo que o sujeito activo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos. O sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre, para com o agente ou sujeito activo, numa relação de coabitação conjugal ou seja cônjuge.[7]
De salientar que a lei prescinde da existência de laços familiares entre a vítima e o agente ao tempo do facto.
Do que de tal dá bem nota o segmento da lei ao abranger o ex-cônjuge ou pessoa com quem o agente “tenha mantido” relação análoga à dos cônjuges. Alargando-se, desta sorte, a tutela às relações parentais não familiares.
A conduta típica da violência doméstica tanto se pode revestir de maus-tratos físicos, onde se incluem as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, designadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade.
E como refere Nuno Brandão, in ob. cit., a págs. 21 a 22, no crime em apreço devem estar em causa actos que pelo seu caracter violento sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a reflectir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima.
Sendo que a circunstância de uma certa acção poder, a priori,integrar o conceito de maus tratos não significa necessariamente que se dê sem mais como preenchido o tipo-de-ilícito do crime de violência doméstica, tudo dependendo da respectiva situação ambiente e da imagem global do facto.
Entre todas as acções que podem ser tidas como maus tratos físicos temos de aí incluir os comportamentos agressivos contra o corpo e que preencham a factualidade típica da ofensa á integridade física; mesmo que se não comprove uma efectiva lesão da integridade corporal da pessoa visada.
No que respeita aos maus tratos psíquicos, aí podemos incluir todos os comportamentos que passem pelos insultos, as críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, as ameaças, as privações de liberdade, as perseguições…
Para se assumirem como actos típicos de maus tratos, estes comportamentos não têm de possuir relevância específica no seio de outros tipos legais de crime. Seja no sentido de que nem remotamente poderiam ser integrados em qualquer outra previsão típica, seja no de que a conduta seria de molde a preencher um específico tipo-de-ilícito, mas fica aquém do necessário para esse efeito, como se costuma enfatizar em relação às ameaças.
Há que analisar, de seguida, se para o preenchimento do tipo em questão se basta a prática de um acto isolado ou antes se tem de exigir a reiteração de conduta.
Com a alteração legislativa operada pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, veio decidir-se no sentido de bastar para o preenchimento do tipo legal de crime de violência doméstica a prática de um acto isolado e sem que se exija a reiteração de conduta.
Pondo-se, desta forma, fim à polémica que existia no seio da doutrina e da jurisprudência, a respeito. Sendo hoje inequívoco que a tutela da violência doméstica se projecta não apenas sobre casos de reiteração ou habitualidade de comportamentos violentos, mas também potencialmente aplicável a uma conduta violenta.
Porém, não é qualquer acção isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo.
Como refere Nuno Brandão, in ob. cit., a págs. 21, com a revisão de 2007 foi inequivocamente aberto caminho para a integração de alguns dos casos (do facto único) no ilícito-típico de violência doméstica. Na versão final da revisão deixou de constar a referência à intensidade dos maus-tratos como alternativa à reiteração, que fazia parte da proposta de Lei 98-X.
Na jurisprudência anterior á revisão era já largamente maioritária a posição de que o crime de maus tratos não prossupunha uma reiteração de condutas, podendo bastar-se com um único comportamento agressivo.
Para tal, muitas vezes, erigiu-se como critério relevante que a ofensa se revestisse de uma certa gravidade, que, fundamentalmente, traduzisse crueldade e insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente.
Mais recentemente, na Relação de Coimbra, vem-se aflorando a ideia da dignidade pessoal da pessoa ofendida e à possibilidade de à mesma ser atribuído o estatuto de vítima, considerando-se que “o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apresentados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal”.[8]
Apesar de entender de que os citados arestos apontam na direcção correcta, entende, porém, o Autor que há que exigir que o comportamento violento seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima.[9]
Ou como se deu nota no Acórdão da Relação do Porto, de 19.09.2012, no Processo n.º901/11.0PAPVZ.P1, como a própria expressão legal sugere, a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da vítima, tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão em sentido lato constitua uma situação de “maus tratos”. E estes só se verificam quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima. Se os maus tratos constituem ofensa do corpo ou da saúde de outrem, contudo, nem toda a ofensa inserida no seio da vida familiar/doméstica representa, imediatamente, maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável. Não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.
O tipo subjectivo só pode ser preenchido dolosamente. Sendo que o conhecimento correcto da identidade e das características da vítima é fundamental para a conformação do dolo do agente, como refere Pinto de Albuquerque, in ob. cit., págs. 406.
Com base nos ensinamentos acabado de mencionar, debrucemo-nos sobre o caso em apreço nos autos.
Importando, desta feita, descortinar se a conduta do agente no caso em apreço, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como “maus tratos”.[10]
O mesmo é dizer se estamos perante uma especial gravidade da conduta maltratante, onde se incluem os casos mais chocantes de maus tratos em cônjuges ou em pessoa em situação análoga.
Onde se tem de incluir o tratamento cruel, excessivo, sem respeito pela dignidade do companheiro, tudo com aproveitamento de uma autoridade do agente que lhe advém do uso e abuso da sua força física.
Visando-se, dessa feita, proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano.[11]
Para tanto, importa reter as situações - relativas ao comportamento do arguido para com a ofendida - que os autos nos descrevem, a saber:
1. O arguido esteve casado com CC entre 14 de Agosto de 1998 e 28 de Outubro de 2015, altura em que se divorciaram.
2. Durante este relacionamento o arguido, por diversas vezes, em datas não apuradas, apelidou a ofendida CC de "puta': sendo também comum desferir-lhe empurrões.
Do acabado de descrever não resulta, nem pode resultar, a conclusão de que se está perante a concretização de actos violentos que, pela sua imagem global e pela sua gravidade, devam ser tidos como desrespeitadores da pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, e, logo, susceptíveis de serem classificados como maus tratos.
De sorte a que sejam punidos no âmbito dos tipos legais de ofensas à integridade física ou injúrias e não passem a ser punidos ao nível do crime de violência doméstica.
O que sempre suscitaria a viabilidade da sua punição, dada a forma genérica como é feita a sua alegação na peça acusatória.
Porquanto, e como vem sendo entendido pelo nosso mais alto Tribunal, não são factos susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado.
Tudo, por as mesmas não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, art.º 32.º, n.º 1, da C.R.P.[12]
Ou como lapidarmente se deu nota no Acórdão do S.T.J., de 21.02.2007, no Processo n.º 06P4341, o princípio ou cláusula geral estabelecido no n.º 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objecto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender.
Sem curar de outras delongas ou considerandos, importa concluir pelo bem fundado do despacho recorrido que, por tal, é de manter.
Termos são em que Acordam em negar provimento ao recurso, confirmando-se o despacho recorrido.
Sem custas, por não devidas.
(Texto elaborado e revisto pelo relator).
Évora, 5 de Julho de 2016
José Proença da Costa (relator)
António Clemente Lima
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[1] Ver, Código de Processo Penal anotado e comentado, 12ª ed., pág. 605.
[2] Ver, Acórdão da Relação de Coimbra, de 14.04.2010, no Processo n.º 81/09.1GCLSA-A.C1.
[3] Ver, Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. I, Comentário ao art.º 152.º, § 4.
[4] Ver, A Tutela Penal Especial Reforçada Da Violência Doméstica, págs. 14 e 15.
[5] Ver, O Direito Penal Passo a Passo, Vol. I, págs. 205.
[6] Ver, Violência Doméstica- Novo Quadro Legal e Processual Penal, Revista do C.E.J., n.º 8, págs. 305.
[7] Ver, Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, págs. 405 e Ac. Rel. Porto, de 296.09.2012, no Processo n.º 176/11.1SLPRT.P1.
[8] Ver, Ac., de 29-01-2003, e bem assim os Acórdãos da mesma Relação de 13.06.2007 e de 28.01.2010, no Processo n.º 361/07.0GCPBL.C1.
[9] Ver, Ac. S.T.J., de 6.04.2006, no Processo 1167/06.
[10] Ver, ainda, Acórdão da Relação do Proto, de 8 de Outubro de 2014, no Processo n.º 956/10.5PJPRT.P1.
[11] Ver, Acórdão da Relação de Lisboa, de 7 de Dezembro de 2010, no Processo n.º 224/05.4GCTVD.L1-5.
[12] Ver, Acórdão do S.T.J., de 2.04.2008, no Processo n.º 07P4197 e o Acórdão do mesmo Tribunal, de 10.05.2006, no Processo n.º 06P1190.