INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO DE CONTRATO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
Sumário

I - Para que se verifique o fundamento de resolução incondicional do negócio em benefício da massa insolvente, a que alude o artigo 121.º, n.º 1, alínea h), do CIRE, não basta a verificação dos dois primeiros requisitos - a temporalidade e o acto onerosos -, sendo ainda necessário que as obrigações assumidas por quem veio a ser declarado insolvente nesse período temporal, excedam manifestamente as da contraparte.
II - Não se mostrando verificado o preenchimento deste último requisito de que a lei faz depender a resolubilidade dos negócios onerosos, somos reconduzidos à regra geral da validade dos negócios onerosos, precisamente porque estes, em regra, envolvendo uma contrapartida patrimonial para o devedor, não acarretam prejuízo para a massa insolvente, isto a não ser que se venham a demonstrar os requisitos da resolução condicional.
III - Para tal, necessário se torna o preenchimento cumulativo dos três requisitos indicados no artigo 120.º do CIRE: - i) os actos têm de ter sido praticados ou omitidos dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência; - ii) os actos têm que ser prejudiciais à massa; - iii) tem que existir má fé do terceiro.
IV - Tendo a resolução em benefício da massa insolvente sido efectuada pelo Administrador de Insolvência com base em factos cuja existência foi ilidida na acção de impugnação instaurada para o efeito, não pode esta deixar de proceder.

Texto Integral



Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:

I – RELATÓRIO
1. AA intentou a presente acção de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, sob a forma de processo comum contra a Massa Insolvente da Sociedade BB, SA, pedindo que seja anulada, por não provada, a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre o Impugnante e a Insolvente em 01.02.2013, operada pelo Administrador de Insolvência, mantendo-se o aludido contrato em vigor, até ao seu termo.
Em fundamento, alegou, em síntese, que celebrou com a insolvente um contrato de arrendamento rural tendo por objecto uma área de 681,33 Ha, o que equivale a 68.133 m2, contrato relativamente ao qual se comprometeu a pagar a renda anual de € 30.000,00 (trinta mil euros), o que tem cumprido, daí não resultando qualquer prejuízo para a massa insolvente pois tal valor corresponde ao valor de mercado para este tipo de arrendamentos;
Mais invocou que não se verifica a má-fé do terceiro porquanto desconhecia que a senhoria se encontrava em situação de insolvência, eminente ou não, ou o (alegado) carácter prejudicial do acto ou sequer do início do processo de insolvência, tal como não se verifica o alegado pressuposto da al. h), do n.º 1 do art.º 121.º do CIRE na medida em que o contrato de arrendamento em causa não constitui uma obrigação para a insolvente que exceda manifestamente a obrigação assumida pela contraparte porque, mais uma vez, a renda convencionada corresponde ao valor correcto e aplicado no mercado imobiliário para este tipo de arrendamento (rural).

2. Regularmente citada, a massa insolvente veio contestar, pedindo que seja julgada improcedente, por não provada, a presente impugnação e, em consequência, seja declarada válida e eficaz a resolução em benefício da massa insolvente, com efeitos a partir de 14.02.2014.
Para tanto, invocou, em síntese, não existir qualquer contrato de arrendamento rural válido pois que tal contrato terá sido declarado nas Finanças após a declaração de insolvência, sendo o mesmo nulo por falta de objecto, uma vez que não se encontra suficientemente discriminado no contrato quais as limitações, em concreto da área arrendada, podendo ser qualquer parte da herdade que o arrendatário entenda; que o arrendamento em causa é prejudicial para a massa insolvente porquanto o valor da primeira renda não reverteu para a massa insolvente, o contrato representa uma oneração injustificada do património da devedora e por isso dificulta, põe em perigo ou retarda a satisfação dos credores, para além de gerar um infundado direito de preferência a favor do autor na alienação do respectivo imóvel.
Alegou, ainda, não existirem sinais de efectiva exploração agrícola do prédio em causa pelo autor; o valor mínimo de venda do prédio era de € 15.000,00 por hectare pelo que o valor fixado para a renda é manifestamente prejudicial, sendo a vantagem obtida pela devedora desproporcional à vantagem atribuída ao autor, sendo ainda certo que deduzindo ao valor da renda anual estipulado, do qual a devedora apenas receberia efectivamente € 22.500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros), o valor anual dos impostos a pagar sobre os imóveis, pouco ou nada restará para a massa ou para os credores; sendo que nunca os representantes legais da herdade informaram o Administrador da Insolvência da existência de um contrato de arrendamento e deveriam tê-lo feito.
Mais aduziu que, à data da celebração do contrato de arrendamento rural, o autor conhecia a situação de insolvência da devedora e mesmo a própria existência do processo em juízo.
3. O autor respondeu à invocada excepção nulidade do contrato de arrendamento, pedindo a sua improcedência, bem como a do demais alegado pela ré.
4. Foi proferido despacho saneador em 18.06.2015, dispensando a audiência prévia, fixando o objecto do processo e enunciando os temas da prova.

5. Realizada a audiência de julgamento, em 04-03-2016 foi proferida sentença que terminou com a seguinte decisão:
«Pelo exposto, julgando a presente acção integralmente procedente, declaro inválida e, consequentemente, sem nenhum efeito, a declaração de resolução do contrato de arrendamento celebrado entre AA e a Sociedade BB, S.A., tendo como objecto a área de 681,33 hectares, correspondente a parte rural da mesma, mantendo-se válido e eficaz o referido contrato de arrendamento rural».

6. Não se conformando com a sentença proferida, a Massa Insolvente interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
«1. A douta sentença recorrida julgou integralmente procedente a ação de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente, não dando como provados factos que ficaram demonstrados na audiência de discussão e julgamento e dando como provados factos que não assentaram em qualquer suporte probatório, padecendo de erro na apreciação da prova.
2. O ponto 1.4 da matéria assente devia constar dos factos não provados por ser contraditório com o ponto 1.8, cuja prova decorreu de documento emitido pelo Serviço de Finanças, onde se encontra inscrito o prédio em causa nestes autos e que perentoriamente esclareceu que não há qualquer contrato de arrendamento que onere o imóvel entre os sujeitos passivos Sociedade BB e AA.
3. Os pontos 1.22 e 1.24 foram incluídos na matéria assente quando foi produzida prova em sentido oposto. O recorrido por se tratar de uma pessoa confessadamente experiente na agricultura e na agro-pecuária sabia que ao comprar a vacada toda da Herdade – a sua única fonte de rendimento – a colocaria em situação de não gerar mais rendimentos;
4. Sabia igualmente, por falar com as pessoas que estavam na herdade, designadamente a testemunha CC e com o seu amigo também testemunha DD que, à data da compra da vacada, aquela sociedade estava já em incumprimento com os trabalhadores e com os bancos!
5. O recorrido e as testemunhas CC e DD confessaram conhecer as dificuldades económico-financeiras da Sociedade BB que já se verificavam muito antes da celebração do contrato de arrendamento aqui em causa.
6. E, como dispõe o artigo 3º, n.º 1 do CIRE, “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.”
7. O douto tribunal deveria ter interpretado tais declarações e depoimentos à luz das regras de experiência comum e do critério de normalidade ínsito estruturalmente no princípio de boa-fé a que estão obrigados os intervenientes em contratos, quer na fase de negociação, quer na sua conclusão (art.º 227°do CCiv.).
8. Por sua vez, o recorrido devia ter atuado na celebração do contrato de arrendamento aqui em causa segundo regras da boa-fé nos termos do mesmo normativo legal (art.º 227º do CCiv.), o que não fez, tendo atuado ao abrigo dos seus únicos interesses – comprar a vacada toda, mantê-la a título gratuito em imóvel que não lhe pertencia durante, pelo menos, 4 (quatro meses) e posteriormente ao abrigo de um contrato de arrendamento quase gratuito!
9. Assim, o ponto 1.22 da matéria assente devia ter a seguinte redação: O autor conhecia que a insolvente se encontrava em situação de insolvência; e o ponto 1.24 devia ter a seguinte redação: O autor verificou sinais que evidenciavam que a insolvente pudesse estar em situação de insolvência.
10. Na mesma senda, deviam os pontos 2.4, 2.5, 2.24 e 2.37 dos factos não provados ser inseridos na matéria assente!
11. A prova do ponto 2.4 dos factos não provados bastava-se com a mera consulta dos autos principais, designadamente com a consulta da citação efetuada à insolvente!
12. Ou seja, o recorrido confessou factos que significavam ou que não podiam deixar de significar, para uma pessoa experiente na agricultura e na agro-pecuária como alegadamente diz ser, a incapacidade financeira da senhoria.
13. Também o ponto 1.30 da matéria assente não tem amparo na prova produzida, porquanto, com exeção do recorrido (principal interessado na procedência da ação e em particular, no montante fixado a título de renda), nenhuma das testemunhas afirmou achar razoável e justo o valor fixado a título de renda.
14. E não proceda o entendimento do douto tribunal a quo no sentido de afastar ou não ponderar as avaliações juntas aos autos, pelo facto de as mesmas respeitarem a avaliações para venda e não para arrendamento. Isto porque, se um hectare tem um valor mínimo de venda de € 15.000,00, como pode o mesmo hectare ser arrendado ANUALMENTE pelo valor de 44,03?!
15. Os pontos 2.6, 2.10 e 2.15 dos factos não provados, encontram-se confessados pelo próprio recorrido que afirmou que não ocupa só a parte pastorícia da Herdade, ocupa igualmente a parte social, designadamente uma habitação, onde se encontra a habitar o seu vaqueiro que dela tira todas as suas utilidades sem que suporte quaisquer despesas, pois é a insolvente que paga a eletricidade!
16. A relação existente entre a insolvente e o recorrido era pelo menos à data do contrato aqui em causa de muita confiança, pois só assim se percebe que o recorrido tenha referido no seu depoimento que assim que a insolvente precisasse da desocupação da herdade o mesmo ocorreria imediatamente sem que tal fosse reduzido a escrito no intitulado contrato de arrendamento rural e só assim se compreende que o recorrido permanecesse com o gado na herdade a título gratuito durante, pelo menos, 4 (quatro) meses, tal como só assim se compreende que no contrato aqui em análise não esteja consagrada o uso da parte social a título gratuito!
17. Por fim, deveriam ter-se por provados os pontos 2.30, 2.31, 2.32 e 2.33 dos factos não provados, pois tal é, também, confessado pelo recorrido que afirma que pelo menos os senhores CC e EE, trabalhadores da insolvente, viviam na Herdade antes da declaração de insolvência e lá continuaram após a declaração de insolvência tal como o vaqueiro do recorrido.
18. Da matéria assente deviam ser excluídos os pontos: 1.4, 1.27, 1.30, 1.38 e 1.39;
19. Da matéria assente deviam constar os seguintes fatos:
- A declaração de insolvência foi requerida por credor, tendo a petição inicial dado entrada em juízo em 18-01-2013;
- A sociedade insolvente foi citada em 23-01-2013;
- A sociedade insolvente deduziu oposição em 04-02-2013;
- A ter sido celebrado e participado o contrato de arrendamento rural aqui em causa, a sociedade devedora, à data da sua celebração, tinha pleno conhecimento de que se encontrava em situação de insolvência, ainda que iminente e já sabia que a mesma tinha sido requeria (cfr. data da citação) – ponto 2.4 dos factos não provados;
- Tal como igual conhecimento tinha o aqui autor – ponto 2.5 dos factos não provados;
- Ao celebrar o contrato de arrendamento rural a devedora e senhoria bem sabia, sem que o pudesse desconhecer, que não podia fazê-lo, e que, se o fizesse, estaria a onerar indevidamente um património valioso, apenas com o fito de prejudicar a massa insolvente e os seus credores, ao obstar à venda do imóvel em causa nas melhores condições de mercado, isto é, livre e devoluto de pessoas e bens - ponto 2.6 dos factos não provados;
- Ao que acresce o baixo ou diminuto valor fixado para o valor da renda anual (considerando os valores patrimoniais dos prédios, os valores de mercado dos mesmos prédios constantes de avaliações conhecidas da insolvente e dos seus legais representantes à data que alegadamente foi celebrado o contrato de arrendamento) – ponto 2.10 dos factos não provados;
- O preço acordado é uma vantagem injustificada e sem correspectivo para a massa insolvente e credores – ponto 2.15 dos factos não provados;
- O contrato de arrendamento rural foi celebrado em data em que a insolvente já havia sido citada no âmbito do processo de insolvência em que figurava como requerida – ponto 2.24 dos factos não provados;
- É público que os legais representantes e trabalhadores da Herdade entram e saem do mesmo quando e como entendem, a várias horas do dia, guardam bens pessoais, usando-o para dele tirar e fruir todas as utilidades que tal prédio proporciona – ponto 2.30 dos factos não provados;
- Os legais representantes da insolvente e os respectivos trabalhadores permanecem e permanecem gozando e fruindo, de uma maneira geral, de todas as utilidades que o mesmo lhes pode proporcionar, plantando, tratando e explorando as árvores de fruto, pastos e outras utilidades, limpando terrenos – ponto 2.31 dos factos não provados;
- E, no que respeita aos prédios urbanos implantados na Herdade, é público que os representantes legais da insolvente e os respectivos trabalhadores neles se têm mantido a título precário – ponto 2.32 dos factos não provados;
- Sem qualquer relação contratual que não seja o mero comodato, entrando e saindo do mesmo quando e como entendem, a várias horas do dia, ali tomando refeições, tratando das roupas, guardando bens pessoais, usando-o para dele tirar e fruir todas as utilidades que tal prédio proporciona, por mera condescendência da dona e legítima possuidora do mesmo – a insolvente – ponto 2.33 dos factos não provados;
- O A. conhecia a situação económico-financeira da devedora, isto é, sabia da sua situação de insolvência, ainda que iminente – ponto 2.37 dos factos não provados.
20. A resolução operada pelo Administrador de insolvência cumpre com os requisitos exigidos pelo artigo 120º do CIRE, designadamente: temporalidade; prejudicialidade dos atos praticados e má-fé!
21. Quanto ao primeiro, o contrato de arrendamento terá sido celebrado em 01-02-2013, sendo que o processo de insolvência deu entrada em juízo em 18-01-2013, a devedora foi citada em 23-01-2013 e apresentou a sua oposição em 04-02-2013, pelo que o contrato de arrendamento aqui em causa foi celebrado depois da entrada do processo de insolvência em juízo!
22. Em consequência do anterior, encontra-se igualmente verificado o requisito da má-fé nos termos do artigo 120º, n.º 5 do CIRE), pois decorre da prova produzida de forma inequívoca que a recorrida e a insolvente sabiam que esta há muito se encontrava em situação de insolvência – ainda que iminente!
23. Por fim, o negócio teve por objeto um negócio prejudicial à massa insolvente que só beneficiou o recorrido que arrendou 681,33 hectares de uma herdade com 1.033,56 hectares, ou seja, arrendou quase a totalidade da herdade pelo valor de € 30.000,00, o que corresponde a uma renda anual por hectare de € 44,03 (quarenta e quatro euros e três cêntimos), quando um hectare da mesma herdade tem um preço de venda de € 15.000,00 (quinze mil euros).
24. Diga-se ainda que se tratou de um negócio em que a insolvente assumiu obrigações que excederam manifestamente as que foram assumidas pelo recorrido – cfr artigo 121º, n.º 1 do CIRE!
25. O recorrido beneficiou da herdade durante pelo menos, 4 (quatro) meses a título gratuito, e utiliza ainda na presente data a título gratuito a parte social da herdade, fruindo de todas as suas utilidades, sem que pague qualquer quantia a título de renda e/ou de despesas de eletricidade, água e gás, que correm, todas elas, por conta da insolvente!
26. A prova produzida em audiência conduz necessariamente a uma decisão diversa da proferida, designadamente de sentido de concluir pela validade e eficácia da declaração de resolução do contrato de arrendamento celebrado entre a Sociedade BB e o AA.
27. Por outro lado, a sentença recorrida é nula nos termos do artigo 615º, n.º 1, al. d), in fine, por conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, pois que a matéria assente constante dos pontos 1.38 e 1.39 não se consubstancia em factos controvertidos nos autos e, por isso, não podem integrar a sentença recorrida!
Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Ex.as doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência ser declarada válida e, consequentemente, eficaz, a declaração de resolução do contrato de arrendamento celebrado entre o recorrido e a Sociedade BB, S.A., que teve por objeto 681,33 hectares do prédio rústico denominado Herdade, inscrito na matriz predial rústica, sob o artigo 5º da secção M.M1.M2, com a área de 1.033,56 hectares.
Tudo com custas e demais despesas a cargo do recorrido».

7. O Autor apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

8. Por despacho proferido a fls. 210 e 211, a Mm.ª Juíza entendeu não se verificar a arguida nulidade da sentença.

9. Observados os vistos, cumpre decidir.

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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se limita pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo evidentemente daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, as questões submetidas a apreciação no presente recurso são as de saber se:
- deve ser alterada a matéria de facto, nos termos pretendidos pela Recorrente;
- se verifica a nulidade arguida;
- se verificam os requisitos da resolução em benefício da massa insolvente.
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III – Fundamentos
III.1. – De facto
1. Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1.1 Em 01.02.2013, o Impugnante, na qualidade de 2.º outorgante, acordou por escrito, com a Sociedade BB, S.A., na qualidade de primeira outorgante, representada por FF, na qualidade de Director Delegado, um documento denominado “Contrato de Arrendamento Rural”
1.2 Desse documento consta que:
“1 - O primeiro Outorgante é legítimo possuidor do prédio rústico denominado Herdade inscrito na matriz predial rústica, sob o artigo n.º 5 da secção M.M1-M2, com área de 1.033,56 Ha.
2 - Pelo presente contrato o primeiro Outorgante dá de arrendamento ao segundo, a área de 681,33 Ha.
3 - a) O presente contrato é celebrado pelo prazo de 7 anos, supondo-se sucessivamente renovado por igual período de tempo, nos termos da lei, caso não seja denunciado por nenhuma das partes.
b) A denúncia deverá ser efectuada por comunicação escrita, com a antecedência de 18 meses em relação ao termo do prazo ou da sua renovação caso seja efectuada pelo primeiro Outorgante, ou de um ano caso seja efectuada pelo segundo Outorgante.
4 - A renda anual é de trinta mil euros, paga anualmente em casa do senhorio ou do seu representante, no primeiro dia a que respeita o início do contrato, sendo actualizada anualmente com base no coeficiente das rendas do INE.
5 - A área arrendada é destinada exclusivamente à exploração agro-pecuária do arrendatário, que reconhece que o mesmo realiza cabalmente o fim a que é destinado, não podendo ele dar-lhe outro uso, nem sublocar, subarrendar, emprestar ou ceder por comodato, total ou parcialmente ou ceder a sua posição contratual, sem autorização escrita do senhorio.
6 - Quaisquer obras ou benfeitorias que o segundo Outorgante realize nas parcelas arrendadas terão de ser previamente autorizadas por escrito, pelo primeiro Outorgante, ficando as mesmas a pertencer ás parcelas objecto do presente contrato, sem que o segundo Outorgante possa reclamar, com base nas mesmas, qualquer indemnização ou alegar o direito de retenção.
7 - Em tudo o que estiver omisso regulam as disposições legais aplicáveis.
8 - Este contrato é lavrado em quadriplicado, sendo um exemplar para cada uma das partes, um para entrega no Serviço de Finanças e outro nos Serviços da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo.
9 - O presente contrato produz efeitos desde 01 de Fevereiro de 2013.”
1.3 A Sociedade BB, S.A. foi declarada insolvente por sentença de 22.02.2013.
1.4 O contrato de arrendamento celebrado entre o Impugnante e Insolvente foi registado no Serviço de Finanças, em 26.02.2013.
1.5 Em 27.02.2013, o AI remeteu notificação aos representantes legais da devedora FF e GG do seguinte teor: “Ex.mos Senhores,
Na qualidade de administrador de insolvência nos autos em referência, em que foi declarada a insolvência “Sociedade BB, S.A.”, e na sequência do conteúdo da douta sentença que ordenou a imediata apreensão dos elementos de contabilidade e todos os bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos, detidos ou cedidos, venho solicitar a V. Ex.as se dignem colocar à minha disposição tais elementos com a maior brevidade.
Foi ainda ordenada a entrega dos documentos a que se refere o art.º 24.º, n.º 1 do CIRE.
Assim sendo, aguardo que V. Ex.as procedam em conformidade com o constante na sentença referida, com a maior urgência, a fim de se proceder à imediata apreensão da contabilidade e de proceder à junção dos documentos referidos aos autos.
Sem outro assunto de momento, apresento os meus cumprimentos.”
1.6 O contrato de arrendamento em causa nestes autos foi comunicado telefonicamente ao AI em 27.01.2014 pelo agora impugnante, AA.
1.7 Na mesma data (27.01.2014) o A. remeteu cópia do referido contrato de arrendamento por email ao AI,
1.8 Por fax com data de 30.01.2014 o Serviço de Finanças informou o administrador da insolvência o seguinte:
“Exmº Senhor
Informo que após efectuadas as buscas necessárias, neste Serviço de Finanças, verificou-se nesta data, não haver qualquer contrato de arrendamento que onere o imóvel indicado, entre os sujeitos passivos Soc. BB e AA. (…)”.
1.9 O AI procedeu à sua resolução por carta registada com aviso de recepção, datada de 06 de Fevereiro de 2014, com o seguinte teor:
“M. Ref.ª: Tribunal judicial -. Secção Única – proc. Nº 1613.7TBMRA – Insolvência de “Sociedade BB”
Assunto: Resolução de negócio (artigos 120º e 121º do CIRE).
Ex.mo. Senhor,
Pela presente notificação, deverá V. E.xa. ficar ciente do seguinte:
1. Por sentença de 22/02/2013, nos autos n.º 16/13.7TBMRA, que correm termos na Secção Única do Tribunal Judicial, foi declarada insolvente a “Sociedade BB.”
2. No âmbito do referido processo fui nomeado administrador de insolvência.
3. Nessa qualidade e no passado dia 27-01-2014, através de telefonema e de email recebidos de V. Ex.a, tomei conhecimento da alegada existência de um contrato de arredamento rural, em que figuram como partes, V. Ex.a como arrendatário e a Sociedade BB como senhoria, que teve por objecto a área de 681,33 Há, do prédio rústico denominado Herdade, inscrito na matriz rústica sob o artigo 5, da secção M-M1-M2, com a área de 1.033,56 Há, pelo prazo de 7 (sete) anos, contratando uma renda anual de € 30.000,00 (trinta mil euros).
4. O referido contrato de arrendamento rural terá sido celebrado em 01-02-2013.
5. Da análise à cópia do referido contrato que V. E.xa anexou ao email acima referido verifica-se que ali existe a configuração do que parece ser um carimbo de entrada do dito documento nos Serviços de Finanças, com a data de 26.02.2013.
6. Como é do conhecimento de V. E.xa., a sociedade (senhoria) foi declarada insolvente em 22/02/2013, nos autos que têm o nº 16/13.7TBMRA e que correm termos na Secção Única, do Tribunal Judicial, como supra se referiu;
7. A declaração de insolvência foi requerida pelo credor Banco HH por requerimento dado entrado em 18/01/2013;
8. A sociedade insolvente foi citada em 23/01/2013 e deduziu oposição em 04/02/2013.
9. Em 14/02/2013 foi realizada a primeira sessão da audiência de discussão e julgamento, que continuou no dia 22/02/2013, data em que também foi proferida a sentença de declaração de insolvência, como supra já se referiu.
10. Na verdade, o contrato de arrendamento rural, do que pode ler-se da cópia do documento que me foi dada a conhecer, terá sido celebrado em data em que a sociedade insolvente já havia sido citada no processo da sua insolvência (01/02/2013).
11. Além disso, ainda por referência à cópia do contrato aqui em causa, o contrato terá sido participado ao Serviço de Finanças, em data posterior à da declaração de insolvência da senhoria (ocorrida em 26/02/2013).
12. Além de mais e não obstante estar aposto no contrato de arrendamento rural o que supostamente será o carimbo do Serviço de Finanças, o certo é que de acordo com a informação prestada por aquele serviço, não existe qualquer contrato de arrendamento sobre os imóveis da insolvente!
13. Ou seja, a ter sido celebrado e participado o contrato de arrendamento rural aqui em causa, a sociedade devedora, à data da sua celebração, tinha pleno conhecimento de que se encontrava em situação de insolvência, ainda que eminente e já sabia que a mesma tinha sido requerida nos autos acima identificados (cfr. data da citação);
14. Ao celebrar o contrato de arrendamento rural com V. E.xa, a devedora e senhoria bem sabia, sem que o pudesse desconhecer, que não podia fazê-lo, e que, se o fizesse estaria a onerar indevidamente um património valioso, apenas com o fito de prejudicar a massa insolvente e os seus credores.
15. Por outro lado, nos termos do contrato de arrendamento rural aqui em causa terá sido acordado o pagamento de uma renda anual de € 30.000,00 (trinta mil euros);
16. O facto é que o valor da primeira renda, a ter sido pago por v. E.xa (o que não se admite), não reverteu para a massa insolvente, nem está demonstrada na contabilidade daquela o recebimento de tal montante, o que, só por si, representa um injustificado prejuízo para a massa insolvente e respectivos credores.
17. O contrato de arrendamento rural, celebrado entre V. E.xa (arrendatário) e a Sociedade Agrícola BB, declarada insolvente em 22/02/2013, representa uma oneração injustificada do património da devedora e, por isso, dificulta, põe em perigo ou retarda a satisfação dos credores da insolvência; além de gerar um infundado direito de preferência a favor de V. exa. Na alienação dos respectivos imóveis, ao que acresce o baixo ou diminuto valor fixado para o valor da renda anual (considerando os valores patrimoniais dos prédios, os valores de mercado dos mesmos prédios constantes de avaliações conhecidas da insolvente e dos seus legais representantes à data em que alegadamente foi celebrado o contrato de arrendamento); a que se junta ainda o facto de não haver quaisquer sinais de efectiva exploração agrícola dos prédios em causa, bem como o facto de jamais ter sido dado a conhecer ao administrador de insolvência a existência do aqui em crise contrato de arrendamento rural, nas diversas vezes em que o mesmo esteve presente ou representado no local.
18. Assim, o valor estabelecido para a renda anual é manifestamente reduzido, podendo mesmo qualificar-se como irrisório, e não representa nenhuma vantagem para a massa, nem para os credores, e configura um prejuízo sem justificação para a massa insolvente. É, pois, manifestamente desproporcional a vantagem atribuída a V. E.xa. pelo contrato que aqui se põe em causa, sem qualquer vantagem correspectiva equilibrada a favor da massa insolvente.
19. Nos termos do artigo 120º do CIRE, tais actos presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, por terem sido realizados por V. E.xa e pela sociedade insolvente em data em que já conheciam a situação de insolvência e, mais grave do que isso, em data em que já sabiam do processo de insolvência (cfr. artigo 120º, n.ºs 4 e 5, al. c) do CIRE).
20. Assim notifico V. Ex.a de que o referido contrato de arrendamento rural se considera resolvido com a recepção da presente notificação, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 120º, 121º, alínea h), do CIRE.
21. Fica ainda V. Ex.a notificado de que a massa insolvente é a legal possuidora dos prédios constantes do contrato ora resolvido, configurando esbulho qualquer acção de V. Ex.a que ponha em causa a mesma posse.
22. Mais se notifica neste acto de que V. Ex.a poderá, querendo e no prazo de 3 (três) meses, impugnar a presente resolução, nos termos do artigo 125º do CIRE. (…)”
1.10 O A. remeteu ao AI, em 11 de Fevereiro de 2014, a seguinte comunicação:
“Exmo. Sr.,
Em 1 de Fevereiro de 2013 celebrei com a Sociedade BB S.A. o contrato de arrendamento, cuja cópia se anexa, tendo nessa data procedido ao pagamento anual da renda acordada.
Vencendo-se no dia 1 de Fevereiro de 2014 o pagamento da minha dívida, contactei V. Ex.a no sentido de efectuar o pagamento tendo sido o mesmo recusado.
Atento a tal facto procedi ao depósito da renda anual, no montante de 22.500€, à ordem da Sociedade BB S.A., anexando o comprovativo de depósito bem como o respectivo cheque visado.
Venho, assim dar conhecimento a V. Ex.a deste facto, na qualidade de administrador de insolvência da sociedade locadora, colocando-me ao dispor de V. Exa. para qualquer esclarecimento que julgue necessário. (…)”.
1.11 Em resposta àquela missiva, o AI informou por carta de 4 de Março de 2014 o seguinte:
“M. Ref.ª: Tribunal judicial – Secção Única – proc. Nº 16/13.7TBMRA – Insolvência de “Sociedade BB”
Ex.mo Senhor,
Recebi a comunicação de vª. Ex.ª datada de 11 de Fevereiro de 2014 a qual mereceu a minha melhor atenção.
Contudo e como já é do conhecimento de Vª. Ex.ª procedi à resolução do alegado arrendamento rural, reiterando o conteúdo da respetiva comunicação.
Como Vª. Ex.ª assume que tem vindo a usufruir das utilidades do imóvel desde há cerca de 1 ano, entendo que a massa insolvente há-de ser compensada por tal facto, remetendo para posterior momento o acerto de contas.
Sem outro assunto de momento, apresento os meus cumprimentos. (…)
1.12 O autor e a insolvente já vinham celebrando negócios antes da declaração da insolvência desta, designadamente de compra e venda de gado.
1.13 Em Outubro de 2012 o autor adquiriu à insolvente gado no valor de € 169.600,00 (cento e sessenta e nove mil e seiscentos euros).
1.14 O pagamento daquele valor foi feito por dois cheques, , emitidos à ordem da Sociedade BB, S.A. um no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), com data de 19.10.2012 e outro pelo valor de € 119.600,00 (cento e dezanove mil e seiscentos euros), com data de 22.10.2012.
1.15 Tais cheques foram levantados da conta da Sociedade II & Filhos, Lda, em 23.10.2012, sediada no Banco JJ.
1.16 Do relatório de avaliação elaborado pela sociedade LL, Lda. que teve por objeto a Herdade, resulta o valor de mercado mínimo em caso de venda de € 5.832.000,00 (cinco milhões, oitocentos e trinta e dois mil euros).
1.17 Tal avaliação ponderou o valor do património imobiliário considerando não só o valor actual como todos os direitos futuros, designadamente a capacidade de gerar rendimento.
1.18 A Comissão de Credores, em ata de 16 de Abril de 2014, fixou o valor mínimo de venda de € 8.769.500,00 (oito milhões, setecentos e sessenta e nove mil e quinhentos euros).
1.19 Da avaliação do prédio junta aos autos da Oposição à insolvência (como documento n.º 4), verifica-se que o valor mínimo de venda do prédio (para exploração agrícola) era de € 15.000,00 por hectare.
1.20 Na data de assinatura do contrato de arrendamento, o autor pagou à insolvente, por meio de cheque bancário, o montante de € 22.500,00 (€ 30.000,00 – 25% retenção na fonte), referente à primeira renda acordada.
1.21 Tal cheque foi levantado da conta sobre o qual foi sacado.
1.22 O autor desconhecia, que a insolvente se encontrava em situação de insolvência.
1.23 A Insolvente nunca referiu ao autor a situação económica em que se encontrava.
1.24 O autor não verificou quaisquer sinais que evidenciassem que a insolvente pudesse estar num processo de insolvência.
1.25 A insolvente deixou o autor ter o gado que este lhe comprara durante alguns meses após o negócio e respectivo pagamento, na Herdade.
1.26 Foi a insolvente, na pessoa do Senhor José Machado, que abordou o autor sobre a possibilidade de lhe arrendar aquela área.
1.27 O prédio em causa preenchia as necessidades da exploração comercial (Agro-pecuária) do autor que visitou vários terrenos tendo sido o prédio da insolvente o que melhor se encaixava para o seu modelo de negócio.
1.28 O autor comunicou à insolvente o seu interesse em arrendar uma parte da sua propriedade para a exploração da sua actividade;
1.29 A insolvente negociou o acordo com o autor, sem nunca ter referido ou demonstrado que se encontrava numa situação de Insolvência ou de que, a celebração do contrato de arrendamento entre os dois pudesse causar qualquer prejuízo, a si ou a terceiros.
1.30 A renda paga pelo autor pelo arrendamento do prédio da insolvente, € 30.000,00 (trinta mil euros), está em consonância com os valores aplicados pelo mercado onde se insere este tipo de arrendamento (Agro-pecuária).
1.31 A área arrendada ao autor corresponde apenas à parte rústica do prédio e encontra-se delimitada pelo olival e pela parte social.
1.32 O autor, ao arrendar a herdade à insolvente, fê-lo por interesse comercial e não como forma de conluio com a insolvente para evitar a venda da Herdade para pagamento dos credores desta.
1.33 Em 12 de Dezembro de 2014, o autor dirigiu carta registada com aviso de recepção ao Senhor administrador da insolvência com o seguinte teor:
“Assunto: Contrato de Arrendamento – Soc. BB
Exmo. Sr. Dr.,
Na sequência da reunião ocorrida nas instalações do Banco e na sequência do contacto telefónico havido com V. Exa., venho por este meio apresentar proposta para resolução da questão que nos opõe:
1. Tal como disse na reunião havida, celebrei um contrato de arrendamento de absoluta boa fé e desconhecendo totalmente a situação jurídica da sociedade proprietária da herdade.
2. Tendo sido informado que haveria um interessado na aquisição da herdade, admito revogar o contrato de arrendamento, pois não pretendo obstaculizar tal alienação.
3. Contudo, como referi, tenho cerca de 400 (quatrocentas) cabeças de gado e não consigo sair da herdade antes do mês de Abril de 2015.
4. Nesta medida, a minha proposta é no sentido de revogar o contrato de arrendamento e deixar a propriedade totalmente livre e desocupada na data da escritura de compra e venda a favor de terceiro.
5. No âmbito do presente acordo a minha proposta é, ainda, não me ser cobrada a renda devida uma vez que não existe da parte de V. Exas intenção de proceder ao pagamento de indemnização pela revogação do contrato. Devo, também referir que a minha presença na herdade beneficia em termos de apresentação pois, assumirei, como o fiz até aqui toda a manutenção necessária e prevenção dos riscos a que a mesma está sujeita (incêndio, vandalização, etc).
6. Informo, ainda, tal como já referido na nossa reunião, que realizei benfeitorias na propriedade que pretendo, naturalmente, ser ressarcido.
7. Finalmente, solicito que, na qualidade de arrendatário, me seja dado o direito de preferência na venda da propriedade.
8. Sem outro assunto. (…)”
1.34 Em 29 de Janeiro de 2015, o autor remeteu carta registada com aviso de recepção ao Senhor Administrador de Insolvência, com o seguinte teor:
“Assunto: Contrato de Arrendamento – Soc. BB
Exmo. Sr. Dr.,
A minha comunicação de 18/12/2014 não apresenta qualquer proposta de reconhecimento de inexistência de arrendamento rural sobre parte da Herdade da Insolvente, como V. Exa. afirma.
O que eu lhe propus foi a celebração de um acordo de revogação do contrato de arrendamento existente entre mim e a insolvente, partindo do princípio que existiriam propostas de aquisição da Herdade e que, a existência de um arrendamento sobre parte da Herdade poderia prejudicar tal alienação.
Nessa medida, o sentido da minha comunicação de 18/12/2014 foi o de alcançar um acordo entre as partes e que fosse benéfico para ambos os lados e nunca o de reconhecer a inexistência do arrendamento rural sobre a Herdade.
Acresce que, a renda anual se vence no próximo dia 1 de Fevereiro.
Nessa medida, ficarei a aguardar a comunicação de V. Exa. com máxima urgência, dada a proximidade da data de pagamento da renda, tal como refere no último parágrafo, para proceder ao depósito de renda ou, para a celebração do acordo de revogação do contrato de arrendamento.
Sem outro assunto (…)”.
1.35 Em 06 de Fevereiro de 2015, o autor dirigiu ao Senhor administrador de insolvência nova carta, registada com aviso de recepção com o seguinte teor:
Assunto: Contrato de Arrendamento – Soc. BB
Exmo. Sr. Dr.,
Acuso recepção da sua carta de 03 de Fevereiro de 2015.
A proposta que faz na sua comunicação de 03 de Fevereiro de 2015 não é, de todo aceitável, uma vez que existe um contrato de arrendamento rural entre mim e a Soc. BB, logo o acordo teria de passar pela revogação do contrato, tal como falado na reunião que tive com o meu advogado com a Comissão de Credores e V. Exa.
Como já tive oportunidade de dizer, não tenho intenção de prejudicar a alienação da Herdade a um qualquer investidor, no entanto, a resolução desta questão tem de ser efectuada de uma forma equilibrada para ambas as partes, não sendo, de todo, uma forma equilibrada e justa a proposta que faz na sua comunicação de 3 de Fevereiro de 2015.
Assim sendo, não podendo eu aceitar os termos da sua proposta, aguardo as suas instruções relativamente ao pagamento da renda.
Sem outro assunto. (…)”
1.36 O contrato de arrendamento rural é bom para a Herdade porquanto mantém o monte em uso e arranjado; por haver gado a pastagem não cresce, o que de Verão evita os incêndios e o arrendatário mantém as vedações e gradagens em toda a herdade, junto à estrada, à sua custa.
1.37 Desde que o impugnante lá está a propriedade está mantida e não desvalorizada.
1.38 O autor propôs à ré abandonar a Herdade, sem exigir qualquer contrapartida, apenas o pré-aviso com 30 dias de antecedência (para lhe dar tempo de retirar o gado), caso surgisse comprador para a mesma.
1.39 A ré não aceitou tal proposta.
2. E foram considerados não provados os seguintes factos:
2.1 Os legais representantes da devedora esclareceram apenas o AI de que a única situação passível de embaraçar a liquidação seria a dos trabalhadores e das famílias que, alegadamente, ali viveriam, nunca se referindo a qualquer outra relação contratual com terceiros, nomeadamente ao contrato de arrendamento rural aqui em apreço.
2.2 É falso que o contrato de arrendamento rural tenha sido celebrado em 01-02-2013.
2.3 Tal contrato foi escrito e assinado em data posterior à da declaração da insolvência.
2.4 A ter sido celebrado e participado o contrato de arrendamento rural aqui em causa, a sociedade devedora, à data da sua celebração, tinha pleno conhecimento de que se encontrava em situação de insolvência, ainda que iminente e já sabia que a mesma tinha sido requerida (cfr. data da citação).
2.5 Tal como igual conhecimento tinha o aqui A.
2.6 Ao celebrar o contrato de arrendamento rural a devedora e senhoria bem sabia, sem que o pudesse desconhecer, que não podia fazê-lo, e que, se o fizesse, estaria a onerar indevidamente um património valioso, apenas com o fito de prejudicar a massa insolvente e os seus credores, ao obstar à venda do imóvel em causa nas melhores condições de mercado, isto é, livre e devoluto de pessoas e bens.
2.7 O valor da primeira renda, a ter sido pago, não reverteu para a massa insolvente, nem está demonstrado na contabilidade da sociedade devedora o recebimento de tal montante, o que, só por si, representa um injustificado prejuízo para a massa insolvente e respectivos credores.
2.8 O contrato de arrendamento rural aqui em análise representa uma oneração injustificada do património da devedora e, por isso, dificulta, põe em perigo ou retarda a satisfação dos credores da insolvência, na medida em que consubstancia um encargo sobre o imóvel que impede que quem venha a adquirir o imóvel respectivo não possa utilizá-lo na sua plenitude, no período de cerca de 7 (sete) anos.
2.9 Gera um infundado direito de preferência a favor do A. na alienação dos respectivos imóveis.
2.10 Ao que acresce o baixo ou diminuto valor fixado para o valor da renda anual (considerando os valores patrimoniais dos prédios, os valores de mercado dos mesmos prédios constantes de avaliações conhecidas da insolvente e dos seus legais representantes à data em que alegadamente foi celebrado o contrato de arrendamento).
2.11 Os valores de renda anual para uma propriedade similar à que se alega como objecto do contrato de arrendamento é de cerca de € 175.200,00 (cento e setenta e cinco mil e duzentos euros).
2.12 O valor de renda a considerar entre aquelas partes contratantes não poderia ser inferior a € 117.250,00 por ano (€ 175.000,00x67%).
2.13 O valor acordado de € 30.000,00 configura um prejuízo à massa insolvente e aos credores de, pelo menos, € 87.250,00 (oitenta e sete mil, duzentos e cinquenta euros), correspondente à diferença entre o valor de mercado e o valor contratado (117.250,00 - 30.000,00), sem contar com os demais danos decorrentes da redução do valor de mercado em caso de venda do imóvel e enquanto se mantiver o arrendamento.
2.14 O que representa um prejuízo directo da diferença entre o valor de mercado da renda para o valor da renda contratado, pelo período de duração do mesmo (7 anos) de € 610.750,00 (seiscentos e dez mil, setecentos e cinquenta euros), pelo menos.
2.15 O preço acordado é uma vantagem injustificada e sem correspectivo para a massa insolvente e credores.
2.16 Não há quaisquer sinais de efectiva exploração agrícola ou pecuária dos prédios em causa.
2.17 Não é possível identificar quais os 681,33 ha em causa no contrato que tanto pode ser a parte norte, como a parte sul, como a parte que envolve os edifícios do casario principal da herdade, como partes desgarradas e de diversas localizações descontínuas dentro da herdade.
2.18 Como nada foi estipulado no contrato quanto a esta questão, poderá o A. vir a invocar que no objecto do contrato se incluem, designadamente, as habitações existentes no prédio.
2.19 Não obstante se referirem 681,33 ha dos 1033,88 ha, como objecto do contrato, o rendeiro dispõe do que quiser no interior da herdade.
2.20 O prejuízo directo para a massa insolvente e para os credores é de € 145.000,00 (cento e quarenta e cinco mil euros) anuais, representando um prejuízo total directo da diferença dos valores de renda de mercado com a renda contratada [(175.000,00–30.000,00) x 7 = 1.015.000,00] de € 1.015.000,00 (um milhão e quinze mil euros).
2.21 Essa realidade implicaria que a rentabilidade a fixar a título de renda para a senhoria (a massa insolvente) nunca haveria de ser inferior aos valores correntes do arrendamento de uma herdade completa, incluindo-se o seu potencial de exploração turística de uso dos imóveis ali existentes.
2.22 Admitindo ainda que o valor de mercado para a exploração agrícola pudesse ser um valor equilibrado de renda para uma propriedade exclusivamente destinado ao fim do referido arrendamento, o certo é que ambas as partes sabiam que o arrendamento truncava a exploração global e, por conseguinte, limitava o valor da transacção comercial no mercado imobiliário da totalidade da propriedade.
2.23 A manter-se pelo prazo do mesmo, o arrendamento implica que a avaliação da herdade para efeitos de investimentos no âmbito do turismo seja sempre condicionada pela não utilização daquele espaço físico durante esse prazo.
2.24 O contrato de arrendamento rural foi celebrado em data em que a insolvente já havia sido citada no âmbito do processo de insolvência em que figurava como requerida.
2.25 A devedora ao receber o montante constante do cheque junto pelo A. aos autos, fez do mesmo seu e não o entregou à massa insolvente.
2.26 O arrendamento rural não existia em 27 de Fevereiro de 2013 (data da carta acima referida à insolvente e seus representantes para prestarem todas as informações relevantes),
2.27 Foi pública e notória para todos quantos se relacionavam com periodicidade na Herdade, que o AI se deslocou à mesma em 28 de Abril de 2013, para proceder à apreensão de bens.
2.28 Nessa data, o legal representante da devedora convocou até uma reunião com todos os trabalhadores da sociedade que estiveram presentes.
2.29 Que acompanharam a identificação e visita da herdade.
2.30 É público que os legais representantes e trabalhadores da Herdade entram e saem do mesmo quando e como entendem, a várias horas do dia, guardam bens pessoais, usando-o para dele tirar e fruir todas as utilidades que tal prédio proporciona.
2.31 Os legais representantes da insolvente e os respectivos trabalhadores permaneceram e permanecem gozando e fruindo, de uma maneira geral, de todas as utilidades que o mesmo lhes pode proporcionar, plantando, tratando e explorando as árvores de fruto, pastos e outras utilidades, limpando terrenos.
2.32 E, no que respeita aos prédios urbanos implantados na Herdade, é público que os representantes legais da insolvente e os respectivos trabalhadores neles se têm mantido a título precário.
2.33 Sem qualquer relação contratual que não seja o mero comodato, entrando e saindo do mesmo quando e como entendem, a várias horas do dia, ali tomando refeições, tratando das roupas, guardando bens pessoais, usando-o para dele tirar e fruir todas as utilidades que tal prédio proporciona, por mera condescendência da dona e legítima possuidora do mesmo – a insolvente.
2.34 A tudo acresce ainda que, deduzindo ao valor de renda anual estipulado (€ 30.000,00), do qual a devedora apenas receberia efectivamente € 22.500,00, o valor anual de impostos a pagar sobre os imóveis (IMI), pouco ou nada restará para a massa nem para os credores.
2.35 O valor pago à devedora de € 22.500,00, não o foi a título de 1ª renda do contrato de arrendamento rural, mas a título de preço do gado comprado por essas datas pago através do cheque n.º 7300000757, do Banco JJ, em 01/02/2013.
2.36 O A. era um conselheiro da devedora no âmbito dos negócios e gestão de gado.
2.37 O A. conhecia a situação económico-financeira da devedora, isto é, sabia da sua situação de insolvência, ainda que iminente.
2.38 O autor tenha consultado a certidão permanente do prédio de onde resulta que sobre o mesmo incidiam não só 2 hipotecas como 2 penhoras à data em que alegadamente foi celebrado o contrato – circunstâncias que, pelo menos, indiciavam a situação económica e financeira da Sociedade.
2.39 Com o intuito de adquirir uma situação de vantagem relativamente aos demais interessados na aquisição do imóvel, sabendo que, com isso, beneficiaria de direito de preferência.
2.40 Também sabiam, as partes contratantes, que ao celebrarem o referido contrato de arrendamento rural, estariam a gerar obstáculos à livre venda do imóvel em causa no âmbito da insolvência, nomeadamente por gerar o desinteresse dos potenciais compradores em pagarem o preço de mercado da herdade, sabendo que, durante pelo menos sete (7) anos não poderiam dar-lhe o destino livre que entendessem.
2.41 Para os credores, apenas se antecipa o avolumar dos valores dos seus créditos, tanto pelo aumento do serviço das suas dívidas (juros e encargos), como pela impossibilidade de recuperarem uma substancial parte dos seus créditos durante um longo período de tempo (pelo menos 7 anos).
2.42 O A. diz que visitou a herdade, gostou e arrendou-a pelo preço que quis, fazendo crer que não conhecia a herdade e que a terá arrendado sem ponderar, por impulso.
2.43 O contrato escrito não corresponde nem à vontade das partes, nem ao conteúdo que as mesmas tentaram derramar no seu clausulado.
2.44 O A. não agiu de boa-fé nos preliminares, na celebração, nem na execução do contrato, pois que não demonstra ter havido qualquer negociação prévia ou discussão de pormenores do contrato.
2.45 O A. sabia que o mero facto de se apresentar como rendeiro de uma parte alíquota da herdade equivale a apresentar-se como rendeiro da sua totalidade.
2.46 Bem sabendo ainda que o valor de renda estipulado é muito inferior aos valores de mercado e bem sabendo também que embaraçava a recuperação dos créditos dos credores da “sua senhoria” ao gerar a repulsa de compradores potenciais da herdade.
*****
III.2. – O mérito do recurso
III.2.1. – Da impugnação da matéria de facto
Pretende a Recorrente ver reapreciada por este Tribunal da Relação, a matéria de facto que indicou, invocando que a sentença recorrida julgou integralmente procedente a acção de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente, não dando como provados factos que ficaram demonstrados na audiência de discussão e julgamento e dando como provados factos que não assentaram em qualquer suporte probatório, padecendo de erro na apreciação da prova.
A impugnação da matéria de facto pela ré, ora Recorrente, deve considerar-se efectuada com observância dos ónus a respectivo, cargo previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, cumprindo consequentemente verificar se existem ou não razões para modificar a matéria de facto nos termos pretendidos.
Como é sabido, nesta apreciação, os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo[4].
Comecemos, então, por apreciar a questão relativa à alteração da matéria de facto, antes de mais, na parte referente aos indicados pontos que a recorrente pretende que devem considerar-se não provados.
Invoca primeiramente a Recorrente em sede de alegações que o ponto 1.4. da matéria assente devia constar dos factos não provados por ser contraditório com o ponto 1.8, cuja prova decorreu de documento emitido pelo Serviço de Finanças, onde se encontra inscrito o prédio em causa nestes autos e que peremptoriamente esclareceu que não há qualquer contrato de arrendamento que onere o imóvel entre os sujeitos passivos Sociedade BB e AA.
Porém, não lhe assiste razão no pretendido.
Efectivamente, diz-se no ponto 1.4. da decisão que «o contrato de arrendamento celebrado entre o Impugnante e Insolvente foi registado no Serviço de Finanças, em 26.02.2013», e no ponto 1.8. que «por fax com data de 30.01.2014 o Serviço de Finanças de Moura informou o administrador da insolvência do seguinte: Informo que após efectuadas as buscas necessárias, neste Serviço de Finanças, verificou-se nesta data, não haver qualquer contrato de arrendamento que onere o imóvel indicado, entre os sujeitos passivos Soc. BB e AA. (…)”.
Ora, a matéria constante do ponto 1.8. foi invocada pela ora Ré no sentido afirmado, constando nos autos tal documento, razão pela qual a mesma, sendo verdadeira, sempre deveria ter sido considerada provada, mais que não fosse para obviar a que a alegação da ré nesse sentido fosse considerada como destituída de fundamento, e passível de configurar comportamento processual censurável da sua parte, o que não existiu a este respeito.
E, por seu turno, o ponto 1.4., se devidamente enquadrado, não é contraditório com este porquanto, desde a apresentação do contrato com a petição inicial, constava aposto no mesmo um carimbo da repartição de Finanças a atestar ter sido recebido nessa data. Mantendo o Autor essa afirmação e tendo sido prestado depoimento pela testemunha CC a este respeito, afirmou que: “Mandatário do Autor – O contrato foi assinado, quem é que, este contrato foi registado nas Finanças?
Testemunha – Foi registado nas finanças.
Mandatário do Autor – Quem é que o registou?
Testemunha – Fui eu que o fui registar.
Mandatário do Autor – Foi o senhor que o foi registar.
Testemunha – Sim, sim.
Mandatário do Autor – Portanto, não tem dúvida nenhuma disso? É que levantou-se aqui a questão se o contrato tinha sido assinado e se tinha sido registado.
Testemunha – Foi, foi assinado e foi registado nas finanças”.
Ora, tal depoimento foi prestado de forma espontânea, circunstanciada e segura, razão por que a respectiva credibilidade não nos parece que esteja de algum modo posta em causa, no sentido de ter ele próprio procedido à entrega de tal contrato na repartição respectiva. Acresce que o autor solicitou e juntou aos autos certidão comprovativa da realidade da certificação aposta no contrato, portanto, com teor diverso daquela informação que havia sido prestada ao Senhor Administrador da Insolvência, e precisamente no sentido constante do ponto 1.4.
Assim, concordamos e subscrevemos a fundamentação da matéria de facto expressa na sentença recorrida a este respeito, nos seguintes termos: «A análise do documento (que é o mesmo) de fls. 22 e 23 e 58 dos autos, junto quer pelo autor quer pela ré com o carimbo do Serviço de Finanças e bem assim a certidão de fls. 127 verso a 128 junta pelo autor, permitem concluir pelo registo do contrato de arrendamento aqui em causa naqueles serviços e na data nele aposta, ou seja, 26.02.2013, não servindo para invalidar este documento a declaração de fls. 52 verso emitida pelo mesmo Serviço de Finanças, informando que após buscas ali efectuadas, não foi encontrado qualquer contrato de arrendamento entre as partes, uma vez que o carimbo e a certidão provenientes deste Serviço de Finanças demonstram a sua existência e estes documentos não foram impugnados pela ré, fazendo prova plena daquilo que atestam, como também foi afirmado em audiência de julgamento pela testemunha CC, empregado de escritório da Sociedade BB, ter sido encarregado pelo seu patrão FF de ir registar tal documento nas Finanças o que fez e na data no mesmo aposta (1.4 e 1.8).
Desde já se consigna que o seu depoimento se revelou objectivo, espontâneo e seguro, devidamente alicerçado pela respectiva razão de ciência, o que fez merecer por parte do Tribunal toda a credibilidade».
Improcede, pois, a pretendida alteração de qualquer um dos indicados pontos da matéria de facto.
Em segundo lugar, a Recorrente pretende que os pontos 1.22 e 1.24 foram incluídos na matéria assente quando foi produzida prova em sentido oposto. Assim, em seu entender, o Recorrido (corrige-se o lapso da menção a Recorrente), por se tratar de uma pessoa confessadamente experiente na agricultura e na agro-pecuária sabia que ao comprar a vacada toda da Herdade – a sua única fonte de rendimento – a colocaria em situação de não gerar mais rendimentos; e sabia igualmente, por falar com as pessoas que estavam na herdade, designadamente a testemunha CC e com o seu amigo também testemunha DD que, à data da compra da vacada, aquela sociedade estava já em incumprimento com os trabalhadores e com os bancos! Aduz ainda que o recorrido e as testemunhas CC e DD confessaram conhecer as dificuldades económico-financeiras da Sociedade BB que já se verificavam muito antes da celebração do contrato de arrendamento aqui em causa, donde conclui que o tribunal deveria ter interpretado tais declarações e depoimentos à luz das regras de experiência comum e do critério de normalidade ínsito estruturalmente no princípio de boa-fé a que estão obrigados os intervenientes em contratos, quer na fase de negociação, quer na sua conclusão (art.º 227°do CCiv.).
Diz-se nos indicados pontos da matéria de facto que «o autor desconhecia, que a insolvente se encontrava em situação de insolvência» e que «o autor não verificou quaisquer sinais que evidenciassem que a insolvente pudesse estar num processo de insolvência».
A este respeito consta a seguinte fundamentação de facto «para além de negado pelo autor de forma credível, as testemunhas DD e CC declararam que, à altura da celebração do contrato de arrendamento, ninguém sabia da situação de insolvência da Sociedade BB, tendo inclusive o próprio empregado de escritório da ora insolvente CC afirmado só ter tido conhecimento, através do seu advogado e em Abril de 2013, na data limite para reclamar créditos, sendo que DD avançou como explicação para tal, o facto de ser vergonhoso entrar em insolvência, procurando-se a todo o custo manter as aparências.
Ora, se o empregado de escritório da ora insolvente que não nega saber que havia pagamentos em atraso, mas que apenas tem conhecimento da insolvência da Sociedade em finais de Abril de 2013, não é exigível, nem razoável afirmar que o autor, terceiro à sociedade e aos negócios da mesma, tivesse conhecimento dessa situação ou sequer das dificuldades económicas que a mesma atravessa a que acresce o facto de não existir nos autos, qualquer outro elemento de prova que permita concluir em sentido contrário».
Conforme refere a Recorrente, a convicção do Tribunal, quer de primeira instância, quer da Relação, não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, e sendo evidentemente apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas.
Ora, «[o] “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular - a fundamentação em matéria de facto -, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência.
O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cfr.,v.g., acórdão do Supremo Tribunal de 30 de Janeiro de 2002, proc. 3063/01)» [5].
Ora, a lógica e raciocínio expressa na fundamentação supra transcrita, são absolutamente compatíveis com as regras da experiência, desde logo pela singela mas evidente razão exposta pela testemunha DD. De facto, sendo comum que as pessoas que interagem com uma sociedade ou com um indivíduo que está a passar por dificuldades económicas saibam da respectiva existência, por exemplo, porque aqueles têm dificuldades em pagar pontualmente, porque podem pedir uma maior dilação ou a satisfação do que devem em prestações, ou mesmo porque podem confidenciar que pretendem vender alguns bens que possuam para satisfazer as obrigações que querem mesmo cumprir, tal não significa necessariamente que estejam em situação de insolvência.
No caso dos autos, tendo a testemunha que, salienta-se, à data era empregado de escritório da insolvente, referido que apenas teve conhecimento da situação de insolvência quase no final do prazo para reclamar os respectivos créditos, sendo, digamos assim, da «casa» e tendo naturalmente acesso a mais informação do que o ora recorrido, por que razão havia este de saber de tal situação? Note-se, aliás, que o argumento da Recorrente quanto à compra do gado é reversível. Se havia necessidade de vender o gado, designadamente para satisfazer outras obrigações ou, pela razão referida nas suas declarações pelo Recorrido, de que o insolvente não seria propriamente pessoa vocacionada para esta área de negócio, então se este não queria que o comprador se aproveitasse de alguma necessidade premente de liquidez, não teria qualquer interesse em que o mesmo soubesse disso, para que o preço oferecido não fosse, por exemplo, inferior ao devido.
Como assim, entendemos que a fundamentação expressa está de acordo com as declarações prestadas pelo Recorrido e com os depoimentos das testemunhas, integral e atentamente ouvidos, e apreciados segundo as regras da experiência comum, não impondo o facto de conhecerem a existência de dificuldades económicas, decisão diversa da que foi tomada e que não vemos qualquer razão válida para alterar.
Pelo exposto, improcede também a requerida alteração quanto aos indicados factos.
Seguidamente, pretende a Recorrente que os pontos 2.4, 2.5, 2.24 e 2.37 dos factos não provados devem ser inseridos na matéria assente, afiançando que a prova do ponto 2.4 dos factos não provados se bastava com a mera consulta dos autos principais, designadamente com a consulta da citação efectuada à insolvente.
Considerando que tal elemento relativo à citação não se encontrava junto ao presente recurso, a ora Relatora determinou a respectiva junção, ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 1, alínea d), do CPC, isto porque, tratando-se de factos de que o juiz tem conhecimento por via das suas funções, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea c), do CPC, devem os mesmos ser considerados pelo juiz.
Assim, juntos aos autos os elementos solicitados em 26-08-2016, - cópia do requerimento inicial da insolvência; da citação da sociedade insolvente; e da oposição deduzida –, não pode deixar de ter razão a Recorrente quanto ao facto não provado em 2.4, ainda que não concretamente com o teor no mesmo constante:
«2.4 A ter sido celebrado e participado o contrato de arrendamento rural aqui em causa, a sociedade devedora, à data da sua celebração, tinha pleno conhecimento de que se encontrava em situação de insolvência, ainda que iminente e já sabia que a mesma tinha sido requerida (cfr. data da citação)».
Como vimos, o contrato foi efectivamente celebrado e participado e a sociedade devedora, à data da sua celebração tinha já conhecimento de que contra si pendia o processo de insolvência. De facto, conforme decorre dos aludidos documentos, o requerimento inicial deu entrada em juízo em 18-01-2013; em 22-01-2013, foram expedidas as cartas para citação; o aviso de recepção foi assinado em 23-01-2013 por CC; em 25-01-2013, foi expedida notificação com a advertência de a citação não ter sido efectuada na própria pessoa, também para FF; a sociedade deduziu oposição à insolvência em 04-02-2013, tendo a procuração aos Ilustres mandatários da mesma tendo sido subscrita por FF.
Portanto, é absolutamente seguro que, quando em 01-02-2013 FF subscreveu, em representação da sociedade ora insolvente na qualidade de senhoria, o contrato de arrendamento rural cuja resolução é por via desta acção impugnada, não podia deixar de saber que a instituição bancária havia dado entrada em juízo do requerimento para a declaração da insolvência da Sociedade que representou em ambos os actos supra referidos, e no mesmo dia.
Assim, excluiu-se da matéria de facto não provada o facto 2.4, aditando-se à matéria de facto provada o seguinte facto:
À data da celebração do contrato de arrendamento rural aqui em causa, a sociedade devedora tinha pleno conhecimento de que havia sido requerida a respectiva insolvência.
Porém, pelas razões supra referidas, não pode concluir-se que «igual conhecimento tinha o aqui A.», conforme consta do facto não provado 2.5., que se mantém como tal.
Aduz ainda a Recorrente que também o ponto 1.30 da matéria assente não tem amparo na prova produzida, porquanto, com excepção do recorrido (principal interessado na procedência da acção e em particular, no montante fixado a título de renda), nenhuma das testemunhas afirmou achar razoável e justo o valor fixado a título de renda, mas esta última afirmação, salvo o devido respeito, não corresponde à prova efectivamente resultante da audiência de julgamento.
Ora, consta desse referido ponto que «1.30 A renda paga pelo autor pelo arrendamento do prédio da insolvente, € 30.000,00 (trinta mil euros), está em consonância com os valores aplicados pelo mercado onde se insere este tipo de arrendamento (Agro-pecuária)».
Diz a Recorrente que, desde logo, não procede o entendimento do tribunal a quo no sentido de afastar ou não ponderar as avaliações juntas aos autos, pelo facto de as mesmas respeitarem a avaliações para venda e não para arrendamento. Isto porque, se um hectare tem um valor mínimo de venda de € 15.000,00, como pode o mesmo hectare ser arrendado anualmente pelo valor de 44,03?!
A este respeito, para além do já referido supra quanto à matéria referente ao conhecimento pelo autor da situação de insolvência da sociedade, expressou-se na sentença recorrida que «Analisada que se mostra a documentação junta aos autos pelas partes, resta referir que as declarações do autor e a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, foi toda no mesmo sentido sem que ao tribunal surgisse qualquer dúvida quanto à sua credibilidade e por esse motivo deu como provados os factos descritos em 1.6, 1.12, 1.22 a 1.32.
Como já se referiu as declarações de parte do autor, prestadas nos termos supra expostos foram completadas pelas testemunhas DD, CC e MM que, também como supra exposto falaram daquilo de que tinham conhecimento directo e motivado pela participação que cada um teve nesta dinâmica contratual, portanto, no exercício das funções que desempenhavam na altura, relevando o facto de que quer DD quer CC serem, à data trabalhadores da ré.
Foram unânimes em afirmar a ocorrência da venda do gado pelo Senhor FF ao autor e porque este paga bem e a horas, tendo em conta negócios anteriormente realizados, com a particularidade de ter deixado que o gado permanecesse alguns meses na Herdade, a título de favor ao autor; a abordagem por parte de FF ao autor, através da testemunha CC com o intuito de lhe arrendar uma parte da herdade quando se apercebeu que a mesma, ficando vazia lhe traria maiores preocupações e daí e existência do contrato de arrendamento rural; os pagamentos efectuados pelo autor à ordem da Sociedade BB que esta testemunha viu receber e foi depositar, sendo certo que nenhuma destas testemunhas considerou o negócio prejudicial à Herdade ou abaixo do valor de mercado, tendo inclusive MM afirmado que, no âmbito da sua actividade de contabilista e pelo facto de ter outros clientes com a mesma actividade que o autor e que celebram contratos de arrendamento rural, os valores em causa estarem consonantes com a época que se vive e a actividade exercida pelo autor e objecto do contrato, isto é, a agro-pecuária.
Acresce ainda que, também resultou provado que a área arrendada ao autor para exercício da sua actividade de agro-pecuária se encontra devidamente delimitada, não restando dúvidas, para quem conhece a propriedade de que a delimitação é feita pelo olival e pela parte social da mesma e bem assim pelo próprio relevo do terreno, ficando o autor com a exploração da restante parte rural equivalente a 681,33 Ha, o que o mesmo respeita e se encontra devidamente delimitada dentro da Herdade.
O tribunal ficou assim esclarecido quanto à dinâmica do negócio em causa e quanto à boa fé do autor que mais não fez do que, dentro da sua área de actividade, celebrar um negócio que lhe convinha e que lhe foi proposto pela ora insolvente, desconhecendo a situação económica em que a mesma se encontrava e não tendo obrigação de a conhecer.
Por outro lado ainda, não logrou a ré provar, como lhe competia, que toda a actuação da insolvente ou dos seus adminstradores se desenvolveu no sentido de prejudicar a ora insolvente e bem assim os seus credores, querendo celebrar um negócio que sabia ser ruinoso ou desproporcional aos benefícios que do mesmo retiraria.».
Ora, ouvidas atentamente as declarações do autor e os depoimentos prestados pelas indicadas testemunhas, uma vez mais não podemos deixar de concordar com o entendimento expresso no citado excerto da decisão recorrida, que é absolutamente fiel ao que foi afirmado por aqueles, também fielmente reproduzido na parte relevante para fundar o raciocínio lógico expendido, nas contra-alegações do Recorrido, que teve o cuidado de ilustrar com os excertos dos depoimentos mais representativos do que cada um disse, o bem fundado da convicção da Senhora Juíza nesta matéria.
De facto, nas declarações prestadas o Autor explicou ao Tribunal a razão pela qual negociou o valor de renda do contrato de arrendamento em € 30.000,00 (trinta mil euros), argumentando com o tipo de terreno em causa e com o tipo de exploração que efectua, comparando de forma espontânea com outros arrendamentos que tem e designadamente outro mais recente em que paga € 40.000,00 de renda por menos hectares, mas que é mais rentável do que este porque neste prédio existe uma área muito extensa de pinhal que não é aproveitável para as pastagens, enfim, aduzindo pormenorizadamente argumentos que se nos afiguram credíveis, no sentido de que o valor da renda constante no contrato de arrendamento está em consonância com os valores de mercado para este tipo de exploração.
Acresce ainda que, as restantes testemunhas que depuseram sobre o valor da renda corroboraram as declarações prestada pelos Recorrido sobre esta matéria, referindo que o valor da renda era razoável para o fim para o qual foi celebrado o contrato de arrendamento entre o Recorrido e a Recorrente, isto é, para a agro-pecuária, dizendo mesmo a testemunha CC que se fossem vendidas só as pastagens, como por vezes acontecia, o valor ainda seria menor.
Na verdade, tanto o Autor como a testemunha DD, que salienta-se, trabalhou na propriedade durando vários anos, conhecendo muito bem a herdade e os seus limites, explicaram claramente que somente a área de pastoreio foi arrendada, estando perfeitamente delimitada pelo Olival, pela zona social e pela zona já considerada de floresta, pelo que não restam dúvidas de que a área arrendada não integra a área social, daí que esta não possa ser computada para a adequação do valor deste arrendamento rural com fim agro-pecuário.
Assim, das declarações do Recorrido resultou que a área que foi arrendada, e que corresponde aos 681,33 Há, é fisicamente delimitada pelo Olival e pela zona social. Tudo o resto, é zona de pastoreio e foi essa parte que arrendou. Mais explicou que junto do INGA as zonas são classificadas como pastoreio, ou como olival, estando toda a área identificada com elementos físicos que permitem determinar onde começa e onde acaba a parte do pastoreio e só esta corresponde à área arrendada ao Recorrido.
Acresce que, estas declarações foram corroboradas pelo depoimento da testemunha DD que assim explicou esta matéria:
«Mandatário do Autor – A questão que eu lhe punha era esta, porque é que a herdade não é alugada toda? Não é arrendada toda, é apenas uma parte e portanto se isto é possível, se é possível nós distinguirmos? Se o senhor sabe se lhe disserem o que é pastoreio, o que é Olival, se isto é facilmente detectável?
Testemunha – É, boa parte do olival, digamos que o olival está posto a em isso tem um nome que eu não me recordo agora, está posto em fila, portanto o olival esta perfeitamente disposto numa fila de oliveiras não é? E outra coisa é o olival disperso. O olival que está metido em filas certas está vedado, não é? Tem uma cerca. Depois, isso terá não sei talvez 200, 250 hectares, e depois há um bocado de olival disperso que já não está metido em, ou parte dele não estará metido em cercas não é? E depois tem uma parte ainda de florestação que também está metido em cercas portanto estão perfeitamente divididos por cercas.
Mandatário do Autor – Portanto, esta área dos seiscentos e tal hectares daquilo que conhece a propriedade é correspondente à área de pastoreio.
Testemunha – Sim. Eu não tenho, quer dizer mais hectare menos hectare é isso mais ou menos, sim. Tirando o olival mais a área da florestação é isso que dá seiscentos e…»
Portanto, pensamos que ficou perfeitamente clara a área concreta que está em causa.
Aduz-se também que a comparação que a Recorrente pretende fazer com a avaliação do valor de cada hectare para efeitos de renda, salvo o devido respeito, não tem o alcance que lhe pretende dar. Desde logo, porque uma percentagem de rendimento em arrendamento rural não tem seguramente o mesmo valor que, por exemplo, um arrendamento urbano. Depois, porque tendo a Recorrente invocado um concreto valor para demonstrar que este valor da renda contratual era irrisório, o certo é que não arrolou qualquer prova testemunhal, ou mais correctamente, arrolou mas prescindiu da respectiva audição, e não requereu a realização de quaisquer meios de prova, designadamente a pericial para avaliação do valor da renda devida pelo espaço arrendado para o fim agro-pecuário a que se destina e não outro, designadamente a exploração turística. Assim, tendo a prova produzida pelo Recorrido sido convincente e nada existindo que a coloque em causa, não se vê que a avaliação que a Recorrente refere, efectuada como já dito para efeitos de venda da propriedade que, como dito, tem características para exploração de um empreendimento turístico, por si só possa impor decisão diversa, quando toda a demais prova é concordante e de forma fundamentada, com explicação circunstancial credível.
Conclui-se, pois, inexistir qualquer razão que imponha decisão diversa quanto ao sobredito ponto da matéria de facto.
Pretende depois a Recorrente que os pontos 2.6, 2.10 e 2.15 dos factos não provados, encontram-se confessados pelo próprio recorrido.
Nos referidos pontos consta que:
«2.6 Ao celebrar o contrato de arrendamento rural a devedora e senhoria bem sabia, sem que o pudesse desconhecer, que não podia fazê-lo, e que, se o fizesse, estaria a onerar indevidamente um património valioso, apenas com o fito de prejudicar a massa insolvente e os seus credores, ao obstar à venda do imóvel em causa nas melhores condições de mercado, isto é, livre e devoluto de pessoas e bens.
2.10 Ao que acresce o baixo ou diminuto valor fixado para o valor da renda anual (considerando os valores patrimoniais dos prédios, os valores de mercado dos mesmos prédios constantes de avaliações conhecidas da insolvente e dos seus legais representantes à data em que alegadamente foi celebrado o contrato de arrendamento).
2.15 O preço acordado é uma vantagem injustificada e sem correspectivo para a massa insolvente e credores».
Atenta a fundamentação supra quanto à manutenção do ponto 1.30 relativo ao valor da renda, é evidente que não se pode dar como provado tal facto e, por esta via, o seu oposto, sob pena de indevida contradição.
Assim, sem necessidade de maiores considerações, improcede a alteração pretendida.
Por fim, entende a Recorrente que deveriam ter-se por provados os pontos 2.30, 2.31, 2.32 e 2.33 dos factos não provados, pois tal é, também, confessado pelo recorrido que afirma que pelo menos os senhores CC e EE, trabalhadores da insolvente, viviam na Herdade antes da declaração de insolvência e lá continuaram após a declaração de insolvência tal como o vaqueiro do recorrido.
Consta desses pontos o seguinte:
- É público que os legais representantes e trabalhadores da Herdade entram e saem do mesmo quando e como entendem, a várias horas do dia, guardam bens pessoais, usando-o para dele tirar e fruir todas as utilidades que tal prédio proporciona – ponto 2.30 dos factos não provados;
- Os legais representantes da insolvente e os respectivos trabalhadores permanecem gozando e fruindo, de uma maneira geral, de todas as utilidades que o mesmo lhes pode proporcionar, plantando, tratando e explorando as árvores de fruto, pastos e outras utilidades, limpando terrenos – ponto 2.31 dos factos não provados;
- E, no que respeita aos prédios urbanos implantados na Herdade, é público que os representantes legais da insolvente e os respectivos trabalhadores neles se têm mantido a título precário – ponto 2.32 dos factos não provados;
- Sem qualquer relação contratual que não seja o mero comodato, entrando e saindo do mesmo quando e como entendem, a várias horas do dia, ali tomando refeições, tratando das roupas, guardando bens pessoais, usando-o para dele tirar e fruir todas as utilidades que tal prédio proporciona, por mera condescendência da dona e legítima possuidora do mesmo – a insolvente – ponto 2.33 dos factos não provados;
Começamos desde já por afirmar que a Recorrente quando diz que é público, não deve estar a referir-se à definição dos factos públicos e notórios que podem ser atendidos pelo juiz mesmo sem terem sido alegados, já que, evidentemente os factos transcritos não têm tal jaez.
Ora, sendo certo que o Autor referiu nas suas declarações que alguns trabalhadores ainda ali se encontram a viver, fê-lo para se referir à questão de que tal era até útil para a segurança da propriedade - como nos parece ser evidente: uma propriedade abandonada está, em princípio, mais sujeita a eventuais crimes contra o património -, e nunca para sequer deixar implícito alguma dessas utilidades pertencia ao arrendamento que efectuou. Em momento algum foi falado que os legais representantes da insolvente o faziam nem que tinham lá bens pessoais e tudo o mais ali referido que a Massa Insolvente invocou mas que oportunamente não provou, não resultando de modo algum os factos descritos provados em face da prova adquirida em julgamento.
Ademais sempre se dirá que, declarada a insolvência, os poderes de administração são agora do Senhor Administrador da mesma. Portanto, nunca poderia considerar-se que a tolerância da prática dos referidos actos fosse depois da mesma imputada aos anteriores administradores. Se o Senhor Administrador da Insolvência entende que os factos que alegou ocorrem e considera que os mesmos são prejudiciais à massa insolvente, tem poderes de actuação para fazer cessar toda a utilização que não se enquadre no âmbito do contrato, ponderando se é ou não mais benéfico para a segurança e apresentação da propriedade, que existam actos de fruição que eventualmente a conservem, ou suportar o custo de quem o faça.
Improcede, portanto, a alteração pretendida.
Pretende ainda a Recorrente que da matéria assente deviam ser excluídos os pontos: 1.4, 1.27, 1.30, 1.38 e 1.39.
Apreciaremos apenas os pontos 1.38 e 1.39 porquanto os demais já foram objecto de oportuna decisão no local próprio em que a respectiva alteração foi invocada.
Assim, os factos em questão referem o seguinte:
1.38 O autor propôs à ré abandonar a Herdade, sem exigir qualquer contrapartida, apenas o pré-aviso com 30 dias de antecedência (para lhe dar tempo de retirar o gado), caso surgisse comprador para a mesma.
1.39 A ré não aceitou tal proposta.
Sobre esta matéria, conta a seguinte fundamentação:
«Por outro lado e ainda relacionada com a questão dos valores acordados entre as partes no contrato de arrendamento rural aqui em causa e o direito de preferência que o autor possa beneficiar na venda da mesma, a verdade em que se provou quer em audiência de julgamento quer pela leitura dos documentos de fls. 141 a 143 que o autor não pretende causar qualquer prejuízo ou constituir qualquer obstáculo na venda da Herdade, tomara haver compradores para a mesma! E demonstrativo disso é o autor pagar atempadamente as rendas e manter a Herdade em bom estado de conservação! (1.33, 1.34 e 1.35 ) e bem assim ter proposto sair da Herdade com um pré aviso de 30 dias, sem exigir qualquer contrapartida, caso surgisse comprador para a mesma (1.38 e 1.39), o que, inexplicavelmente, não foi aceite.”
Ora, não só o Recorrido, nas suas declarações, explicou que sempre se tinha disponibilizado ao Senhor Administrador da Insolvência para sair da Herdade, assim que a Recorrente tivesse um comprador, e mediante o aviso prévio necessário a retirar o gado do local, pois nunca quis nem quer causar qualquer prejuízo à Recorrente, como tais declarações se encontram corroboradas pelas cartas juntas aos autos que o Recorrido enviou ao Sr. Administrador de Insolvência, das quais resulta efectivamente a manifestação de tal disponibilidade para sair da Herdade, resultando ainda da resposta do Sr. Administrador de Insolvência que não foi demonstrada abertura para resolver consensualmente esta questão. E consta efectivamente a palavra, inexplicavelmente, certamente porque não tendo havido tal abertura, houve a carta de resolução do contrato de arrendamento em benefício da massa precisamente com o fundamento do prejuízo que a massa insolvente teria ao existir um arrendatário na Herdade.
Desta sorte, atento o princípio da aquisição processual e o disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea a) do CPC, estamos perante factos instrumentais que resultaram da instrução da causa e, como tal, podiam ser, como foram, considerados pela Senhora Juíza, não tendo sido cometida qualquer nulidade, porque os mesmos não são factos essenciais, dependentes da alegação das partes, nem complementares, sobre os quais tenha que ser dada às partes a oportunidade de se pronunciarem.
Nestes termos, improcede também a pretendida alteração à matéria de facto relativamente aos indicados artigos.
*****
III.2.2. – Da regra geral de manutenção do contrato de arrendamento
Antes de entrarmos na análise da verificação ou não do direito de resolução do contrato de arrendamento rural em apreço, em benefício da massa insolvente, cumpre proceder ao enquadramento geral quanto ao referido tipo de contratos quanto o insolvente é o locador.
A este respeito importa ter presente o que dispõe o artigo 109.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18-03, de acordo com o qual:
“1 – A declaração de insolvência não suspende a execução de contrato de locação em que o insolvente seja locador, e a sua denúncia por qualquer das partes apenas é possível para o fim do prazo em curso, sem prejuízo dos casos de renovação obrigatória.
2 – Se, porém, a coisa ainda não tiver sido entregue ao locatário à data da declaração de insolvência, é aplicável o disposto no n.º 5 do artigo anterior, com as devidas adaptações.
3 – A alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância”.
“Visto no seu conjunto, pode dizer-se que o regime definido no art.º 109.º é dominado pela ideia de tutela do locatário, estranho à situação de insolvência do locador”[6].
Este preceito regula, assim, as situações em que, como no caso em apreço, o locador foi declarado insolvente, decorrendo do mesmo que a regra é a manutenção dos contratos de arrendamento, garantindo que mesmo a situação em que venha a ocorrer a alienação do local arrendado no âmbito do processo de insolvência, não retira, em princípio, ao locatário os direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil, remetendo, portanto, e de forma genérica, para a mesma.
Assim sendo, podemos concluir que, no caso em apreço, atenta a data de celebração do contrato de arrendamento (1-2-2013) o preceito em referência garante ao locatário a tutela que lhe é conferida pelo Novo Regime do Arrendamento Rural[7], aprovado pelo DL n.º 294/2009, de 13 de Outubro, que entrou em vigor 90 dias após a data da sua publicação, cujo regime se aplica obrigatoriamente e na íntegra, a todos os contratos de arrendamento rural celebrados a partir da data da respectiva entrada em vigor, aplicando-se nos casos omissos no diploma, sucessivamente, as regras respeitantes ao contrato de locação e as regras dos contratos em geral, previstas no Código Civil (cfr. artigos 39.º, 42.º e 44.º do citado diploma).
Desta forma, não sendo o caso em apreço subsumível ao regime excepcionado no n.º 2 do artigo 109.º do CIRE, que rege unicamente para o caso em que a coisa locada não tenha ainda sido entregue ao tempo da declaração de insolvência - situação em que, por via do disposto no artigo 108.º, n.º 5, do CIRE, tanto o administrador de insolvência como o locador podem resolver o contrato, sendo lícito a qualquer deles fixar ao outro um prazo razoável para o efeito -, é reconduzível à regra geral do n.º 1, ou seja, da não suspensão da execução do contrato de arrendamento em que o insolvente seja locador.
De facto, este preceito garante ao locatário a manutenção da posição contratual, mesmo nos casos em que se verifica a própria transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel, nos exactos termos em que a mesma lhe é garantida pelo artigo 20.º, n.º 1, do NRAR, de acordo com o qual, o arrendamento não caduca (…) pela transmissão do prédio, e ainda pelo artigo 1057.º do Código Civil[8], que se refere à transmissão da posição do locador, estatuindo que “[o] adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo”.
Ora, como é sabido, é precisamente o preceituado neste artigo que tem estado no cerne da discussão sobre a natureza jurídica do direito do arrendatário[9], dividindo a doutrina entre os que consideram tratar-se de um direito real[10] e os que sustentam estarmos perante um direito pessoal de gozo[11].
Efectivamente, o art.º 1057.º do CC consagra o princípio-regra de que a situação jurídica do locatário subsiste, não obstante a alienação do direito com base no qual o contrato foi celebrado, havendo unicamente uma modificação subjectiva quanto à pessoa do locador.
“Trata-se de um caso em que um contrato, celebrado entre duas partes, acaba por vincular um terceiro, que nada teve a ver com a celebração daquele contrato e que nem sequer interveio na estipulação das suas cláusulas, mas que, por força da aquisição da coisa sobre a qual o contrato incide, se vê obrigado a cumprir os seus termos”[12].
Este é o regime regra aplicável à alienação do imóvel por acto do senhorio e que, por maioria de razão foi acolhido pelo artigo 109.º do CIRE como regra quando é declarada a insolvência do locador.
Claro está que esta regra comporta excepções. Assim, se a relação arrendatícia for constituída depois da penhora do locado, esta será inoponível à execução, nos termos do disposto no art.º 819.º do CC, pelo que a venda judicial do arrendado não determinará a transmissão para o adquirente da posição de senhorio[13]. O mesmo acontecendo, em nosso entender, quando o contrato de arrendamento é celebrado após a constituição da hipoteca, caso em que caduca com a venda executiva, sendo então aplicáveis os art.º 819.º e 824.º, n.º 2, este por analogia, e não o art.º 1057.º, todos do CC[14]. Por fim, somente se o arrendamento for anterior ao registo da hipoteca/penhora não caduca, antes se opera a transmissão da posição contratual do senhorio, nos termos do art.º 1057.º do CC, podendo o locatário defender o seu direito contra o adquirente mesmo em venda judicial[15], porquanto já não se justifica a tutela que os supra referidos artigos estabelecem para aqueles credores que vêem onerado o imóvel hipotecado por acto do devedor posterior à constituição do seu direito.
Efectuado este enquadramento relativamente ao regime de regra, é tempo de analisar a situação excepcional prevista relativamente à resolução do contrato em benefício da massa insolvente.
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III.2.3. Da resolução em benefício da massa insolvente
Conforme decorre da matéria de facto supra descrita, o Senhor Administrador de Insolvência, procedeu à resolução de contrato, invocando os artigos 120.º e 121.º do CIRE, notificando o arrendatário nos seguintes termos:
«1. Por sentença de 22/02/2013, nos autos n.º 16/13.7TBMRA, que correm termos na Secção Única do Tribunal Judicial, foi declarada insolvente a “Sociedade BB.”
2. No âmbito do referido processo fui nomeado administrador de insolvência.
3. Nessa qualidade e no passado dia 27-01-2014, através de telefonema e de email recebidos de V. Ex.a, tomei conhecimento da alegada existência de um contrato de arredamento rural, em que figuram como partes, V. Ex.a como arrendatário e a Sociedade BB como senhoria, que teve por objecto a área de 681,33 Há, do prédio rústico denominado Herdade, inscrito na matriz rústica sob o artigo 5, da secção M-M1-M2, com a área de 1.033,56 Há, pelo prazo de 7 (sete) anos, contratando uma renda anual de € 30.000,00 (trinta mil euros).
4. O referido contrato de arrendamento rural terá sido celebrado em 01-02-2013.
5. Da análise à cópia do referido contrato que V. E.xa anexou ao email acima referido verifica-se que ali existe a configuração do que parece ser um carimbo de entrada do dito documento nos Serviços de Finanças, com a data de 26.02.2013.
6. Como é do conhecimento de V. E.xa., a sociedade (senhoria) foi declarada insolvente em 22/02/2013, nos autos que têm o nº 16/13.7TBMRA e que correm termos na Secção Única, do Tribunal Judicial, como supra se referiu;
7. A declaração de insolvência foi requerida pelo credor Banco HH por requerimento dado entrado em 18/01/2013;
8. A sociedade insolvente foi citada em 23/01/2013 e deduziu oposição em 04/02/2013.
9. Em 14/02/2013 foi realizada a primeira sessão da audiência de discussão e julgamento, que continuou no dia 22/02/2013, data em que também foi proferida a sentença de declaração de insolvência, como supra já se referiu.
10. Na verdade, o contrato de arrendamento rural, do que pode ler-se da cópia do documento que me foi dada a conhecer, terá sido celebrado em data em que a sociedade insolvente já havia sido citada no processo da sua insolvência (01/02/2013).
11. Além disso, ainda por referência à cópia do contrato aqui em causa, o contrato terá sido participado ao Serviço de Finanças, em data posterior à da declaração de insolvência da senhoria (ocorrida em 26/02/2013).
12. Além de mais e não obstante estar aposto no contrato de arrendamento rural o que supostamente será o carimbo do Serviço de Finanças, o certo é que de acordo com a informação prestada por aquele serviço, não existe qualquer contrato de arrendamento sobre os imóveis da insolvente!
13. Ou seja, a ter sido celebrado e participado o contrato de arrendamento rural aqui em causa, a sociedade devedora, à data da sua celebração, tinha pleno conhecimento de que se encontrava em situação de insolvência, ainda que eminente e já sabia que a mesma tinha sido requerida nos autos acima identificados (cfr. data da citação);
14. Ao celebrar o contrato de arrendamento rural com V. E.xa, a devedora e senhoria bem sabia, sem que o pudesse desconhecer, que não podia fazê-lo, e que, se o fizesse estaria a onerar indevidamente um património valioso, apenas com o fito de prejudicar a massa insolvente e os seus credores. (…)
15. Por outro lado, nos termos do contrato de arrendamento rural aqui em causa terá sido acordado o pagamento de uma renda anual de € 30.000,00 (trinta mil euros);
16. O facto é que o valor da primeira renda, a ter sido pago por v. E.xa (o que não se admite), não reverteu para a massa insolvente, nem está demonstrada na contabilidade daquela o recebimento de tal montante, o que, só por si, representa um injustificado prejuízo para a massa insolvente e respectivos credores.
17. O contrato de arrendamento rural, celebrado entre V. E.xa (arrendatário) e a Sociedade BB, declarada insolvente em 22/02/2013, representa uma oneração injustificada do património da devedora e, por isso, dificulta, põe em perigo ou retarda a satisfação dos credores da insolvência; além de gerar um infundado direito de preferência a favor de V. exa. Na alienação dos respectivos imóveis, ao que acresce o baixo ou diminuto valor fixado para o valor da renda anual (considerando os valores patrimoniais dos prédios, os valores de mercado dos mesmos prédios constantes de avaliações conhecidas da insolvente e dos seus legais representantes à data em que alegadamente foi celebrado o contrato de arrendamento); a que se junta ainda o facto de não haver quaisquer sinais de efectiva exploração agrícola dos prédios em causa, bem como o facto de jamais ter sido dado a conhecer ao administrador de insolvência a existência do aqui em crise contrato de arrendamento rural, nas diversas vezes em que o mesmo esteve presente ou representado no local.
18. Assim, o valor estabelecido para a renda anual é manifestamente reduzido, podendo mesmo qualificar-se como irrisório, e não representa nenhuma vantagem para a massa, nem para os credores, e configura um prejuízo sem justificação para a massa insolvente. É, pois, manifestamente desproporcional a vantagem atribuída a V. E.xa. pelo contrato que aqui se põe em causa, sem qualquer vantagem correspectiva equilibrada a favor da massa insolvente.
19. Nos termos do artigo 120º do CIRE, tais actos presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, por terem sido realizados por V. E.xa e pela sociedade insolvente em data em que já conheciam a situação de insolvência e, mais grave do que isso, em data em que já sabiam do processo de insolvência (cfr. artigo 120º, n.ºs 4 e 5, al. c) do CIRE).
20. Assim notifico V. Ex.a de que o referido contrato de arrendamento rural se considera resolvido com a recepção da presente notificação, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 120º, 121º, alínea h), do CIRE.
21. Fica ainda V. Ex.a notificado de que a massa insolvente é a legal possuidora dos prédios constantes do contrato ora resolvido, configurando esbulho qualquer acção de V. Ex.a que ponha em causa a mesma posse.
22. Mais se notifica neste acto de que V. Ex.a poderá, querendo e no prazo de 3 (três) meses, impugnar a presente resolução, nos termos do artigo 125º do CIRE. (…)”
Cabe, portanto, e antes de mais verificar se estão preenchidos os pressupostos da resolução incondicional ou, caso aqueles se não preencham, os da resolução condicional, invocados pelo Senhor Administrador de Insolvência[16].
Conforme desde logo se assume no preâmbulo do citado DL n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, na nota 41 «“prevê-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico - a «resolução em benefício da massa insolvente» -, que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de atos prejudiciais a esse património”. O que se justifica na medida em que “a finalidade precípua do processo de insolvência - o pagamento, na maior medida possível, dos credores da insolvência - poderia ser facilmente frustrada através da prática pelo devedor, anteriormente ao processo ou no decurso deste, de atos de dissipação da garantia comum dos credores: o património do devedor ou, uma vez declarada a insolvência, a massa insolvente”. Posto o que “importa apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham ainda na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles atos, que se mostram prejudiciais para a massa”[17].
Tal faculdade de resolução foi concedida, de forma incondicional, relativamente aos atos taxativamente apontados no artigo 121º do CIRE[18], desde que praticados dentro de certo prazo que anteceda o início do processo de insolvência, que varia, conforme o tipo de ato, entre seis meses e dois anos.
Pode ainda ser atuada, o que é regulado no artigo 120º, relativamente a atos praticados dentro dos quatro anos anteriores a essa data, desde que sejam prejudiciais à massa e o terceiro neles interveniente esteja de má-fé. Por depender da verificação de requisitos, vem-se chamando a esta, por contraposição aquela outra, resolução condicional.
O legislador fez questão de delinear o alcance desses pressupostos. No nº 2 daquele artigo, o de atos prejudiciais à massa, que são «os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência». No nº 5, fez corresponder a má-fé ao «conhecimento, à data do ato, de qualquer das seguintes circunstâncias: a) de que o devedor se encontrava em situação de insolvência; b) do carácter prejudicial do ato e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente; c) do início do processo de insolvência».
No apuramento desses dois requisitos, foram contempladas presunções.
No nº 3, presumiram-se prejudiciais à massa, juris et de jure, os atos dos tipos referidos no artigo 121º. O que só interessará, como é óbvio, para os que foram praticados para lá do prazo estabelecido para a resolução incondicional e até aos 4 anos anteriores ao início do processo de insolvência.
No nº 4, estabeleceu-se a presunção, juris tantum, da má-fé do terceiro, «quanto a atos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data» (fim de citação).
No caso em apreço, o Senhor Administrador da Insolvência declarou resolvido em benefício da massa o contrato de arrendamento rural em apreço, com fundamento que reportou aos artigos 121.º, alínea h) e 120.º, nºs 4 e 5, alínea c) do CIRE, devidamente indicados na carta de resolução, bem como os fundamentos de facto em que assentou o referido enquadramento jurídico.
De facto, na carta de resolução enviada ao arrendatário, o Senhor Administrador de Insolvência deu cumprimento ao dever de ali enunciar os fundamentos de facto suficientes para permitir àquele compreender as razões que a motivaram, bem como a justificação de direito em que apoiou a pretensão resolutiva, os quais constituem requisito essencial da validade das mesmas, exactamente à semelhança do que ocorre nas normais situações de resolução do contrato, porquanto só assim se possibilita efectivamente que o impugnante, sendo caso disso, possa contrariar, ponto por ponto, os factos em que a resolução assenta[19], conforme aconteceu nos presentes autos.
Comecemos, pois, por analisar o primeiro dos indicados preceitos, tendo presente desde logo que, atenta a previsão ínsita no 3.º do artigo 120.º do CIRE, a prática de qualquer um dos tipos de actos referidos no artigo 121.º, presume-se prejudicial à massa, sem admissão de prova em contrário, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos ali contemplados.
Ora, no caso em apreço, temos a invocação respeitante ao enquadramento do negócio celebrado na alínea h) do n.º 1 do artigo 121.º, com fundamento no facto de as obrigações assumidas no contrato de arrendamento pelo senhorio, excederem manifestamente as da contraparte, o arrendatário, ora autor na presente acção.
De facto, dispõe o referido preceito legal que são resolúveis em benefício da massa insolvente, sem dependência de quaisquer outros requisitos, os actos a título oneroso realizados pelo insolvente dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte.
Atenta a materialidade provada, não restam quaisquer dúvidas sobre o preenchimento da primeira parte do preceito, porquanto o contrato de arrendamento é um contrato oneroso, e a sua celebração pelo insolvente ocorreu dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência, no caso, menos de um mês antes do seu decretamento e, como visto, já depois de o insolvente ter sido citado para a acção.
Porém, como da respectiva literalidade também ressalta, para a verificação deste fundamento de resolução incondicional do negócio, em benefício da massa insolvente, não basta a verificação dos dois indicados requisitos, sendo ainda necessário que as obrigações assumidas por quem veio a ser declarado insolvente nesse período temporal, excedam manifestamente as da contraparte.
Os factos tendentes a demonstrar a desproporcionalidade entre as obrigações assumidas foram invocados na carta de resolução, designadamente quando ali se refere que «o valor estabelecido para a renda anual é manifestamente reduzido, podendo mesmo qualificar-se como irrisório, e não representa nenhuma vantagem para a massa, nem para os credores, e configura um prejuízo sem justificação para a massa insolvente. É, pois, manifestamente desproporcional a vantagem atribuída a V. E.xa. pelo contrato que aqui se põe em causa, sem qualquer vantagem correspectiva equilibrada a favor da massa insolvente».
Porém, impugnado esse fundamento de resolução por via desta acção, veio a verificar-se que, ao contrário do alegado pelo Senhor Administrador da Insolvência, tal manifesta desproporcionalidade não se provou pelas razões já explanadas supra na fundamentação da decisão sobre a impugnação da matéria de facto, uma vez que a massa insolvente não demonstrou que o valor da renda anual seja manifestamente reduzido ou irrisório e muito menos qual o diferente e maior valor que a mesma devia ter, sendo certo que uma das principais alterações introduzidas pelo Novo Regime do Arrendamento Rural foi precisamente o da livre estipulação da renda por acordo entre as partes.
Nestes termos, não se mostra verificado o preenchimento do requisito de que a lei faz depender a resolubilidade dos negócios onerosos, daí que sejamos reconduzidos à regra geral da validade dos negócios onerosos, precisamente porque estes, em regra, envolvendo uma contrapartida patrimonial para o devedor, não acarretam prejuízo para a massa insolvente[20], isto a não ser que se venham a demonstrar os invocados requisitos da resolução condicional.
Atentemos, pois, nos demais fundamentos de resolubilidade invocados com base na outra modalidade de resolução, a denominada resolução condicional prevista no artigo 120.º do CIRE, de cuja previsão relativa aos princípios gerais da resolução em benefício da massa insolvente resulta ser necessário demonstrar o preenchimento cumulativo dos três requisitos ali indicados para que os negócios celebrados pelo insolvente possam ser resolvidos. Assim:
- i) os actos têm de ter sido praticados ou omitidos dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
- ii) os actos têm que ser prejudiciais à massa, considerando-se como tais os que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência (nºs 1 e 2);
- iii) tem que existir má fé do terceiro, entendendo-se como tal o conhecimento, à data do acto, de qualquer das seguintes circunstâncias:
a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;
b) Do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência eminente;
c) Do início do processo de insolvência (nºs 4, 1ª parte e 5).
No caso em apreço, como já visto, o contrato oneroso em apreço foi celebrado dentro do prazo referido, mas pelas sobreditas razões não ficou demonstrada a respectiva prejudicialidade à massa, isto porque, não se provou que o mesmo tivesse sido celebrado por um valor menor do que o de mercado para o tipo de arrendamento em causa. Donde, tratando-se de requisitos cumulativos, sempre improcede, desde já, a pretensão recursória.
Não obstante, sempre se dirá que da factualidade provada também não resultaria provada a má-fé do terceiro. De facto, não se provou que este conhecesse quer a situação de insolvência do devedor quer a existência do processo, à data da celebração do contrato de arrendamento rural.
Finalmente, também não se verifica situação que se enquadre na segunda parte do n.º 4 do referido artigo, que faça presumir a má-fé quanto a actos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.
Isto porque, a pessoa especialmente relacionada com o mesmo, se reporta à previsão ínsita no artigo 49.º do CIRE, sendo absolutamente evidente que não foi alegado e, por tal, não poderia ser provado, qualquer facto de onde pudesse resultar o respectivo enquadramento em qualquer um dos números do referido preceito legal.
Desta sorte, não tendo a ora Recorrente demonstrado também -os pressupostos necessários ao preenchimento dos requisitos da resolução condicional, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do presente recurso.
*****
III.2.4. Síntese conclusiva:
I - Para que se verifique o fundamento de resolução incondicional do negócio em benefício da massa insolvente, a que alude o artigo 121.º, n.º 1, alínea h), do CIRE, não basta a verificação dos dois primeiros requisitos - a temporalidade e o acto onerosos -, sendo ainda necessário que as obrigações assumidas por quem veio a ser declarado insolvente nesse período temporal, excedam manifestamente as da contraparte.
II - Não se mostrando verificado o preenchimento deste último requisito de que a lei faz depender a resolubilidade dos negócios onerosos, somos reconduzidos à regra geral da validade dos negócios onerosos, precisamente porque estes, em regra, envolvendo uma contrapartida patrimonial para o devedor, não acarretam prejuízo para a massa insolvente, isto a não ser que se venham a demonstrar os requisitos da resolução condicional.
III - Para tal, necessário se torna o preenchimento cumulativo dos três requisitos indicados no artigo 120.º do CIRE: - i) os actos têm de ter sido praticados ou omitidos dentro dos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência; - ii) os actos têm que ser prejudiciais à massa; - iii) tem que existir má fé do terceiro.
IV - Tendo a resolução em benefício da massa insolvente sido efectuada pelo Administrador de Insolvência com base em factos cuja existência foi ilidida na acção de impugnação instaurada para o efeito, não pode esta deixar de proceder.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar improcedente o presente recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
*****
Évora, 22 de Setembro de 2016


Albertina Pedroso [21]


Francisco Xavier


Maria João Sousa e Faro







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[1] Instância Local, Moura, Secção Competência Genérica, Juiz 1
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Francisco Xavier;
2.º Adjunto: Maria João Sousa e Faro.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC, sendo aplicável aos termos do presente recurso o texto decorrente do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, por estar em causa decisão recorrida posterior a 1 de Setembro de 2013 – cfr. artigos 5.º, 7.º, n.º 1 e 8.º.
[4] Cfr. neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição Revista e Actualizada, pág. 313; e na jurisprudência de forma meramente exemplificativa, Ac. STJ de 24-05-2012, processo n.º 850/07.7TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Acórdão do STJ de 25.01.2006, proferido no Processo n.º 05P3460, e disponível em www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Reimpressão 2009, pág. 409, nota 6.
[7] Doravante abreviadamente designado NRAR.
[8] Doravante abreviadamente designado CC.
[9] Seguiremos de perto na fundamentação a posição que defendemos nas anotações aos artigos 1051.º e 1057.º in Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 3.ª ed., Quid Juris, 2009, págs. 266 a 268, em co-autoria com Laurinda Gemas e João Caldeira Jorge.
[10] Esta posição foi defendida por OLIVEIRA ASCENSÃO, in Direito Civil, Reais, 5.ª ed., Coimbra Editora, págs. 536 e ss., e MENEZES CORDEIRO, in Da Natureza do Direito do Locatário, Separata da Revista da Ordem dos Advogados, 1980, pág. 363. Porém, este autor reviu esta sua posição, in A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3.ª ed. Almedina, págs. 72 e 73.
[11] Esta é a posição clássica, claramente maioritária, sendo sufragada por GALVÃO TELES, in Arrendamento, págs. 305 e ss., PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª ed., Coimbra Editora, pág. 365, PEDRO ROMANO MARTINEZ, in Obrigações, pág. 160 e ss., JANUÁRIO GOMES, in Constituição da relação de arrendamento urbano: sua projecção na pendência e extinção da relação contratual, Almedina, pág. 122 e ss. ANDRADE MESQUITA, in Direitos Pessoais de Gozo, Almedina, pág. 163, HENRIQUE MESQUITA, in Obrigações Reais e Ónus Reais, MENEZES LEITÃO, in Arrendamento Urbano, 2.ª ed., Almedina, pág. 16, e CLÁUDIA MADALENO, in A Vulnerabilidade das Garantias Reais, Coimbra Editora, pág. 284. Sobre a qualificação do contrato de arrendamento como contrato obrigacional e o problema da natureza jurídica do direito do arrendatário, cfr. MENEZES LEITÃO, ob. cit. págs. 15 a 17.
[12] Cfr. CLÁUDIA MADALENO, ob. cit. pág. 276.
[13] Cfr. neste sentido, exemplificativamente, Acs. STJ de 20-11-2003, Revista n.º 3431/03-2.ª; de 11-10-2005, Revista n.º 2361/05; de 17-04-2007, Revista n.º 867/07, disponíveis em www.stj.pt, Sumários de Acórdãos.
[14] Cfr. neste sentido, ARAGÃO SEIA, in Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 7.ª ed., Almedina, pág. 341, podendo ver-se para uma explicação das diferentes situações possíveis, o Ac. do TRC de 09-10-2012, relatado pela ora Relatora no processo n.º 1734/10.7TBFIG, e disponível em www.dgsi.pt.
[15] Cfr. neste sentido, Ac. STJ de 07-04-2005, Revista n.º 2107/04, disponível no indicado sítio do STJ.
[16] Adopta-se nesta parte a fundamentação exposta no Acórdão proferido no processo n.º 267/13.4TBSRP-E.E1, em que a ora Relatora é 1.ª adjunta e o ora 1.º Adjunto, é 2.º adjunto.
[17] Aspeto realçado no Ac. do STJ de 12.07.2011, proc. 509/08.8TBSCB-K.C1.S1, in www.dgsi.pt, tal como os demais acórdãos adiante citados: “ o instituto da resolução em benefício da massa insolvente consagrado, de forma indelével e impressiva, no CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas), visou conferir uma maior eficácia e celeridade aos actos de recuperação de bens que estivessem no património do devedor insolvente e que tivessem sido desviados do fim a que se destina o processo de insolvência, qual seja o de dar satisfação, na medida das forças do património, dos créditos existentes à data da declaração da insolvência”.
[18] São deste Código todos os artigos adiante citados sem menção de origem.
[19] Cfr. neste sentido, Acórdãos do STJ de 17.09.2009, proc. 307/09.1YFLSB, de 25.02.2014, proc. 251/09.2TYVNG-H.P1.S1, de 29.04.2014, proc. 251/09.2TYVNG-R.P1.S1, e da RP de 07.10.2013, proc. 251/09.2TYVNG-I.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt, e também citados no indicado Acórdão do TRE.
[20] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, Quid Juris 2009, pág. 435.
[21] Texto elaborado e revisto pela Relatora.