LOCAÇÃO FINANCEIRA
INSOLVÊNCIA
Sumário

I – A declaração de insolvência não suspende os contratos de locação em que o insolvente seja o locatário, mantendo estes plena vigência exceto se denunciados pelo administrador da insolvência.
II – Nestes contratos, não denunciados, só a falta de pagamento de rendas ou alugueres posteriores à declaração de insolvência constituem causa de resolução.
III – O procedimentos cautelares não constituem o meio processual adequado para o locador obter a restituição, ainda que provisória, de bens que se mostrem apreendidos (ou devam sê-lo) para a massa insolvente.

Texto Integral


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório.
1. AA Ldª intentou contra BB, Ldª procedimento cautelar comum.
Alegou, em síntese, que celebrou com a Requerida um contrato de aluguer operacional (renting) de um veículo automóvel, que após ter tomado conhecimento da declaração de insolvência desta, notificou a Administradora da insolvência para optar pelo cumprimento ou não cumprimento do contrato e que na ausência de resposta considerou recusado o cumprimento do contrato, do que deu conhecimento à Administradora e à Requerida, por cartas registadas de 8/2/2016, com a indicação que se encontrava em dívida a quantia de € 15.377,85 a título de alugueres vencidas e não pagos e a quantia de € 13.522,06, a título de indemnização pelos alugueres vencidos.
A resolução do contrato determina a restituição imediata do veículo objeto do contrato, o que não veio a ocorrer não obstante os insistentes e variados esforços da Requerente, com a consequente impossibilidade de dispor do veículo e a sua desvalorização e depreciação, pois continua a ser utilizado pela requerida.
Conclui pedindo que lhe seja entregue o veículo automóvel, após a sua apreensão pela autoridade policial competente.
Citada a Requerida, na pessoa da Administradora da insolvência, não deduziu oposição.

2. Foi proferida decisão que considerou indiciariamente provados os factos articulados no requerimento inicial e, a final, indeferiu a providência, com recurso à seguinte fundamentação:
A requerente notificou o Sr. Administrador da Insolvência (AI) para no prazo de 15 dias de pronunciar nos termos dos artigos 102.º, de onde claramente se infere que não resolveu, até à declaração da insolvência, o contrato que invocou.

Ora, após a declaração de insolvência do locatário, a A. não pode requerer a resolução do contrato com base na falta de pagamento de rendas ou alugueres respeitantes a período anterior à data daquela declaração (artigo 108.º, n.º 4, alínea a), do CIRE).

Por outro lado, a falta de pronúncia do Sr. AI equivale à recusa e concede-lhe os direitos previstos no artigo 102.º, n.º 3, do CIRE, sem prejuízo do direito à separação de bens.

Temos, assim, que após a declaração de insolvência, a requerente apenas poderá lograr obter a restituição dos bens no quadro do previsto nos artigos 141.º e 146.º do CIRE. Ou seja, o procedimento cautelar não é o meio adequado para a restituição dos bens à requerente (vide, numa situação de locação financeira, Ac. TRE de 16-12-2014, Rel. Francisco Xavier, dgsi.pt, e jurisprudência aí citada).

Portanto, a requerente não dispõe do direito – que poderia brotar de uma resolução – e não escolheu a via adequada para a almejada restituição.

Assim sendo, impõem-se o indeferimento deste procedimento cautelar comum.”

3. Recurso.
É desta decisão que a Requerente recorre, exarando as seguintes conclusões que se reproduzem:
“A. O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz de Direito, que julgou improcedente a providência cautelar intentada pelo ora recorrente.

B. O recorrente instaurou contra BB, procedimento cautelar comum, pedindo a apreensão e a entrega da viatura automóvel de marca CC, de matrícula 00-XX-00 C. Para fundamentar a sua pretensão alegou que, no exercício da sua atividade celebrou com o requerido o contrato Quadro de Aluguer Operacional (Renting) com nº de cliente 48733888 do qual deriva o contrato Individual de Renting com o número 703560, composto de "Condições Gerais", e de "Condições Particulares", no qual deu de aluguer ao requerido, a referida viatura de matrícula 33-OH-81, e, em contrapartida a mesma estava obrigado ao pagamento de 48 rendas mensais.

D. Alegou o recorrente que após ter tomado conhecimento da declaração de insolvência do requerido, foi remetida carta registada nos termos do art.102º do CIRE à Sra. Administradora de Insolvência, a fim da mesma se pronunciar sobre a opção de cumprimento ou não cumprimento do referido contrato.

E. Carta essa que foi entregue conforme AR que se junto aos autos.

F. Sucede que pese embora as insistências efetuadas pelo Requerente, nunca houve resposta à referida carta por parte da Sra. Administradora de Insolvência.

G. Pelo que, o Requerente a 8 de Fevereiro de 2016 remeteu novas cartas registadas para a Requerida bem como para a Sra. Administradora de Insolvência considerando recusado o cumprimento do Contrato Individual de Renting 703560, face à ausência de resposta da Sra. Administradora de Insolvência à carta de 21/07/2015.

H. As cartas remetidas para a Requerente vieram ambas devolvidas com a indicação de “não atendeu”, conforme AR.

I. A carta remetida para a Sra. Administradora de Insolvência foi entregue, conforme print dos CTT.

J. Ora com a resolução do contrato nos termos da Cláusula 18º do Contrato Quadro, ficou o Locatário/ Requerido obrigado à restituição imediata da viatura locada ao Requerente, bem como ao pagamento dos Alugueres vencidos e não pagos e ao pagamento de indemnização de 50% do capital vincendo.

K. Mais alegou que o referido veículo automóvel, apesar dos insistentes e variados esforços da requerente, não lhe foi devolvido pelo requerido, que a isso estava obrigado nos termos da Cláusula 18ª das "Condições Gerais" do contrato.

L. Mais alegou o requerente que procurou obter a restituição do veículo, através de outras diligências, nomeadamente contacto telefónico e pessoal na morada do requerido, bem como contactos telefónicos para a Sra. Administradora de Insolvência, os quais resultaram infrutíferos.

M. Alegou ainda o recorrente, que a não entrega da viatura pela recorrida, lhe vem causando prejuízos, pela desvalorização anual da viatura pelo decurso do tempo, não podendo dispor da mesma de tirar dela qualquer rendimento no âmbito da sua atividade comercial.

N. Realizada a citação, não foi deduzida oposição, tendo o douto Tribunal á quo, proferido sentença no qual indeferiu o presente procedimento cautelar comum.

O. O douto Tribunal à quo considerou indiciariamente provados os seguintes com relevo para a decisão a proferir em II – Fundamentação, os factos articulados no requerimento inicial com base na confissão ficta da Requerida e na documentação apresentada pela Requerente.

P. O douto tribunal à quo fundamentou ainda a sua decisão considerando que até à declaração de insolvência a Requerente não havia resolvido o contrato.

Q. Sustentando que “após a declaração de insolvência não pode a Requerente requerer a resolução do contrato com base na falta de pagamento das rendas respeitantes ao período anterior à data daquela declaração”.

R. Acrescendo que “a falta de pronúncia do Sr. AI equivale à recusa e concede-lhe os direitos previstos no artigo 102º nº3 do CIRE, sem prejuízo do direito à separação de bens”.

S. Concluindo que “o procedimento cautelar não é o meio adequado para a restituição dos bens à requerente” e “ a requerente não dispõe do direito – que poderia brotar de uma resolução – e não escolheu a via adequada para a almejada restituição

T. Aplicando o direito, veio o douto Tribunal proferir sentença julgando improcedente a providência cautelar por considerar que este não é o meio adequado para a restituição dos bens à requerente nos termos dos artigos 102º, 108º e 141º a 146º do CIRE.

Contudo e,

U. Salvo o devido respeito, que é muito, não pode o ora Recorrente concordar com a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, pois faz uma errada aplicação do direito aos factos nos presentes autos.

V. Os procedimentos cautelares constituem medidas judiciais preventivas e urgentes com a finalidade de evitar o “periculum in mora”, isto é, o perigo de que a morosidade própria de uma normal ação judicial acabe por inviabilizar, na prática, o direito de que o requerente da providência se arroga. Têm por fim assegurar os resultados práticos da ação, evitar prejuízos graves ou antecipar a realização de um direito, conciliando na medida do possível, o interesse da celeridade com o da ponderação.
W. Ainda nesse sentido, o Prof. Castro Mendes definia-os como “o processo que permite que o tribunal possa decretar uma composição provisória do litígio, que permite esperar pela sua composição definitiva, e demonstrada que seja uma probabilidade séria da existência do direito.” In Direito Processual Civil, 1980, 1ªedição, p. 297.
X. “O decretamento de uma providência cautelar não especificada depende, porém da concorrência dos seguintes requisitos: probabilidade séria da existência do direito ameaçado; que haja justo e fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; que ao caso não convenha nenhuma das providências cautelares tipificadas no Código de Processo Civil; que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado e que o prejuízo da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.
Y. De referir que no domínio da prova destes requisitos, basta demonstrar uma mera probabilidade séria da existência do direito, não se exigindo o mesmo grau de convicção e de certeza jurídica que, naturalmente, se requer na prova dos fundamentos da ação.
Z. Provada a probabilidade séria da existência do direito ameaçado e mostrando-se suficientemente fundado o receio da sua lesão, a providência deverá ser decretada.
AA. Da factualidade provada indiciariamente, em concreto propriedade da viatura entendeu porém o Doutro Tribunal a quo que o meio adequado para a restituição do bem não é este.
BB. Com o devido respeito, não pode o recorrente concordar com o douto Tribunal à quo porquanto o fim visado com o presente procedimento é apenas e exclusivamente a recuperação da viatura objeto do contrato e não o ressarcimento de valores de rendas.
CC. A viatura é propriedade da Requerente conforme documentos juntos aos autos.
DD. Não se encontrando o mesmo com registo a favor da massa insolvente, não existe fundamento salvo o devido respeito para uma ação nos termos o artigo 141º do CIRE.
EE. Não sendo o bem objeto do procedimento cautelar um bem da massa insolvente, nada obsta à instauração de providência quanto a este.
FF. Ainda no âmbito do procedimento cautelar foi nomeada Agente de Execução face à frustração da citação da Requerida na pessoa da sua Administradora de Insolvência.
GG. Defende o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que “I - Não tendo o veículo automóvel cuja apreensão é requerida no âmbito de providência cautelar - de entrega judicial de bem locado – sido apreendido em processo de insolvência do locatário, não integrando portanto a massa insolvente, não existe fundamento legal que obrigue o locador, para o reaver e obter o desapossamento do bem, a lançar mão das reclamações do artº 141º, do CIRE;
Acrescentando,
HH. “Finalmente, recorda-se ainda que, como decorre o artº 141º, do CIRE, as disposições relativas à reclamação de créditos são igualmente aplicáveis à reclamação e verificação do direito de restituição, a seus donos, dos bens apreendidos para a massa insolvente, e bem assim, à reclamação destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos ( cfr. nº 1, alíneas a) e c), do artº 141º).
E,
II. “Postas estas breves considerações, e revertendo agora ao caso presente, manifesto é que in casu, e no âmbito da providência instaurada pela apelante, não visa ela [já o reclamou no lugar adequado, a fazer fé no alegado no artº 12º, do requerimento inicial ] a defesa de um qualquer crédito sobre a requerida, isto por um lado, e, por outro, não tem a providência por desiderato, outrossim, a separação da massa insolvente de um qualquer bem que da mesma faça parte, e que, pelo administrador da insolvência, tenha sido apreendido (cfr. artº 150º, do CIRE)”.
JJ. “Ao invés, no âmbito da providência ora em análise, mais não pretende a apelante que , ao abrigo do disposto no artº 21º, do DL nº 149/95, de 24 de Junho, obter a entrega imediata de bem locado - em razão de contrato de locação financeira - ao locador e no seguimento da extinção do contrato base por resolução, sendo que, por sinal/curiosidade, o contrato de locação financeira pode precisamente ser resolvido, quer com a dissolução ou liquidação da sociedade locatária, quer com a verificação de qualquer dos fundamentos de declaração de falência do locatário ( cfr. artº 18º, do DL nº 149/95)”
Concluindo,
KK. “De tudo o acabado de expor, manifesto é, assim, que a providência da qual emerge a apelação ora em sindicância não se dirige para a apreciação de questão relativa a bem compreendido na massa insolvente, ou sequer, para a prolação de decisão cujo resultado possa, de algum modo, vir a influenciar o valor da referida massa.”
LL.“Destarte, porque apenas se justifica concluir pela impossibilidade da lide quando o direito e/ou crédito do requerente da providência pode e deve ser defendido no âmbito de uma instância “falimentar”, encontrando portanto a respetiva satisfação fora do esquema da providência pretendida (1), o que não é de todo o caso, nada obsta portanto ao prosseguimento da providência, antes pelo contrário.”
Assim,
MM. Não pode o recorrente, salvo o devido respeito concordar com a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, o qual fez uma errada aplicação do direito aos factos nos presentes autos. Com efeito,
NN. A requerida foi declarada insolvente em 2014.
OO. A requerente notificou o Sr. Administrador de Insolvência nos termos do artigo 102º do CIRE, conforme ficou demonstrado na providência cautelar e do silêncio deste resultaram as consequências previstas no nº2 do mencionado preceito legal, ou seja o Sr. Administrador de Insolvência recusou o cumprimento do contrato.
PP. Tal recusa de cumprimento é equiparada ao incumprimento definitivo, uma vez que a manifestação inequívoca de vontade de não cumprir o contrato é equiparada à sua resolução.
QQ. Assim, ressalta que a resolução do contrato de Aluguer Operacional (Renting) celebrado entre a Requerente e a Requerida se resolveu por efeito ope legis e em data posterior à declaração de insolvência, não sendo aplicável o disposto no nº4 do artigo 108º do CIRE.
RR. Devidamente resolvido o contrato, mostra-se inequívoco o direito da Requerida em que o veículo lhe seja restituído.
SS. A natureza facilmente depreciável e ocultável do objeto permitem concluir pela existência do periculum in mora necessário à procedência do presente procedimento cautelar, ao que acresce a recusa reiterada da Requerida em proceder à entrega do mesmo.
TT. Encontrando-se preenchidos os requisitos de que depende o decretamento da providência.
Saliente-se por último,
UU. A propriedade do bem locado, por via do contrato, não se transmitiu para o locatário, mantendo-se na propriedade do locador.
VV. Sendo certo que constitui na esfera jurídica do locatário um conjunto de direitos, estes só se mantêm até à resolução do contrato o que in casu se efetivou de forma válida.
WW. A douta sentença recorrida ao julgar improcedente o presente procedimento cautelar viola o disposto nos artigos Artigos 362º/1 e 368/1 do Código Processo Civil, bem como dos artigos 102º, 108º e 141º a 146º do CIRE.
Termos em que deverá ser revogada a decisão proferida, como é de Justiça.”
Não houve lugar a resposta.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.


II. Objeto do recurso.
O objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, excetuadas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as questões de conhecimento oficioso (artºs. 635º, nº3, 639º, nº1 e 608º, nº2, todos do Código de Processo Civil).
Vistas as conclusões da motivação do recurso, importa decidir: -(i) se a Requerente demonstra a probabilidade séria da existência do direito; - (ii) se a providência cautelar é o meio processual adequado à obtenção da restituição do veículo.

III. Fundamentação.
1. Factos.
Relevam para a decisão os seguintes factos articulados no requerimento inicial (complementados pelos documentos para que remete) julgados indiciariamente provados, por remissão, pela decisão recorrida:
a) No exercício da sua atividade, em 14/1/2014, a Requerente celebrou com a Requerida um contrato que denominaram de aluguer operacional (renting), nos termos do qual declararam respetivamente dar de aluguer e tomar de aluguer o veículo automóvel, marca CC, com a matrícula 00-XX-00, mediante o pagamento de 48 rendas mensais, no valor de € 829,16 cada uma, acrescidas de Iva.
b) Na referida data, a Requerente entregou o veículo à Requerida e esta declarou havê-lo recebido.
c) Nos termos da cláusula 16º do referido contrato: - “O locatário deverá proceder à restituição do veículo …”
d) E nos termos da cláusula 18ª do mesmo contrato: - “(1) O locador poderá resolver o contrato individual de aluguer sempre que o locatário incorra em incumprimento definitivo de alguma das suas obrigações, o que se verificará após o envio pelo locador ao locatário de comunicação indicando as obrigações do locatário não cumpridas pontualmente e intimidando-o ao respectivo cumprimento em 8 (oito) dias, sem que o locatário proceda ao cumprimento pretendido nesse prazo; … - (4) No caso de resolução do contrato individual de aluguer pelo locador nos termos previstos nos nºs. precedentes, o locatário deverá: - (a) Proceder à imediata devolução do veículo dele objeto nos termos previstos na cláusula 15ª, não sendo neste caso aplicável o disposto no nº 5 da referida cláusula; - (b) Proceder ao imediato pagamento dos alugueres vencidos e não pagos, acrescidos de juros de mora; - (c) Proceder ao imediato pagamento de um montante indemnizatório igual a 50% da soma dos alugueres vincendos, sem prejuízo do direito do locador de exigir a reparação integral dos seus prejuízos.”
e) Em 21/7/2015, após haver tomado conhecimento da declaração de insolvência da Requerida, a Requerente enviou à Administradora da insolvência, uma carta registada, designadamente com os seguintes dizeres:
“O insolvente BB Ldª é locatário no âmbito de um contrato individual de renting em que é locadora a AA, Ldª.
O contrato individual de Renting tem o nº 703560 e por objeto a viatura de marca CC de matricula 00-XX-00.
O contrato foi celebrado pelo prazo de 48 meses.
Pelo que nos termos do disposto no artº 102º, nº2 do CIRE, somos a notificar Vº Exª, para no prazo de cinco dias, exercer a opção de cumprimento ou não cumprimento do contrato de Locação Financeira supra referido”.
f) A carta supra referida não obteve qualquer resposta.
g) Em 8/2/2016, a Requerente remeteu cartas registadas para a Requerida e para a Administradora da insolvência com o seguinte teor:
“Tendo em conta a ausência de resposta de V.Exª, nos termos do Artº 102º do CIRE, relativamente à carta de 21/7/2015, referente ao Contrato Individual de Renting nº 703560, venho pelo presente informar que considero recusado o cumprimento do mesmo, nos termos do nº2 do artº 102º do CIRE.
Assim, e uma vez que a situação debitória face ao contrato em epígrafe não foi regularizada, comunico em nome do nosso representado AA Ldª, que consideramos automaticamente resolvido o Contrato Individual de Renting nº 703560, nos termos da cláusula 18ª das “Condições Gerais” do referido contrato.
Por força da cláusula 18ª das “Condições Gerais” do contrato impede sobre o locatário a obrigação de entrega imediata do equipamento locado, bem como a obrigação do pagamento dos alugueres vencidos e não pagos, acrescidos dos juros de mora, e ainda uma indemnização igual a 50% da soma dos alugueres vincendos.
O montante em dívida, de acordo com a cláusula 18ª das “Condições Gerais” dos constratos é de:
- Alugueres vencidos e não pagos € 15.377,85;
- Indemnização 50% alugueres vincendos € 13.522,06
O veículo automóvel de marca CC, de matrícula 00-XX-00, deverá ser imediatamente restituído ao ora credor.”
h) O veículo continua a ser utilizado no dia a dia e não foi restituído à Requerente não obstante contactos telefónicos havidos com a Requerida e a Administradora da insolvência e contactos pessoais com a Requerida.
i) No processo da insolvência, a Requerente não foi ressarcida das rendas em dívida.
j) A Requerida foi declarada insolvente em 7/5/2014 (doc. junto aos autos de fls. 53 a 55).

2. Direito
A decisão recorrida indeferiu a providência por razões de substancia e por razões de forma - a requerente não dispõe do direito que poderia brotar de uma resolução e não escolheu a via adequada para a almejada restituição - ou seja, considerou que a Requerente não demonstra a probabilidade séria da existência do direito e que o meio processual utilizado não é ajustado à pretendida restituição do veículo.

E isto porque, consignou, “após a declaração de insolvência do locatário, a A. não pode requerer a resolução do contrato com base na falta de pagamento de rendas ou alugueres respeitantes a período anterior à data daquela declaração (artigo 108.º, n.º 4, alínea a), do CIRE) e porque “após a declaração de insolvência, a requerente apenas poderá lograr obter a restituição dos bens no quadro do previsto nos artigos 141.º e 146.º do CIRE.”

A Requerente diverge, em síntese, na consideração que o veículo é de sua propriedade, não é um bem da massa insolvente, pelo que inexiste fundamento para recorrer ao procedimento de restituição de bens anotado pela decisão recorrida e o contrato mostra-se validamente resolvido “por efeito ope legis e em data posterior à declaração de insolvência, não sendo aplicável o disposto no nº4 do artigo 108º do CIRE.

2.1. Se a Requerente demonstra a probabilidade séria da existência do direito.

O deferimento do procedimento cautelar comum, facultado ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, fora os casos de esbulho violento (artº 379º, do CPC), pressupõe, a demonstração pelo requerente da existência do direito ou, pelo menos, da aparência deste (prova sumária) e do justo receio de que alguém venha a praticar atos capazes de lhe causarem lesão grave e de difícil reparação (artºs artº 362º, nº1, 384º, nº1 e 368º, nº1, todos do CPC.
A Requerente fundamentou a probabilidade séria da existência do direito na resolução do contrato celebrado com a Requerida, por incumprimento desta.
Tal contrato – atento o que consta das alíneas a) a c) dos factos provados - configura um contrato de aluguer de longa duração, do aludido veículo automóvel, que se rege pelas cláusulas estipuladas pelas partes (no contrato individual e no contrato-quadro, como expressamente previsto na cláusula 2ª deste último) e, subsidiariamente, pelas normas do DL 354/86, de 23/10, que estabelece o regime de exploração da indústria de aluguer de veículos automóveis sem condutor e do Código Civil relativas, em primeira lugar, ao contrato de locação (com exceção das que são específicas do contrato de arrendamento) e, em segundo lugar, aos contratos em geral.
Ao abrigo desta disciplina é inquestionável que a Requerente tinha o direito de resolver o contrato por falta de pagamento pontual das rendas pela Requerida e de obter desta a restituição do veículo – cfr. alínea d) dos factos provados; a Requerente, no entanto, pretendeu resolver o contrato após a declaração de insolvência da Requerida – cfr. alíneas e) a g) e j) dos factos provados – ou seja, à data da declaração de insolvência da Requerida, o contrato de aluguer de longa duração estava em plena vigência.
O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1] (a que pertencerão os artigos infra indicados sem qualquer menção de proveniência) estabelece um regime imperativo (artº 119º, nº1) relativamente aos contratos de locação em que o locatário, como é o caso, é o insolvente que se afasta, aliás, da regra geral que consagra quanto a outros negócios bilaterais em curso à data da insolvência, em que não haja ainda total cumprimento tanto pelo insolvente como pela outra parte; enquanto o cumprimento destes, em princípio, fica suspenso (artº 102º, nº1), os contratos de locação em que o insolvente seja o locatário não se suspendem com a declaração de insolvência, sem prejuízo do administrador da insolvência os poder denunciar, exceto no caso em que o locado se destina à habitação do insolvente (artºs 108º, nºs 1 e 2, do CIRE).
Não obstante a declaração de insolvência, os contratos de locação em que o insolvente seja o locatário mantêm plena vigência, exceto se denunciados pelo administrador da insolvência, o que se compreende; destinando-se a insolvência, em primeira linha, “à satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente” (artº 1º), a manutenção dos contratos de locação em que o insolvente seja o locatário, vigentes à data da declaração da insolvência, podem emergir como indispensáveis a tal desiderato sobretudo tendo em vista que se reportarão, em regra, a imóveis ou equipamentos imprescindíveis ao exercício da sua atividade e, assim, à recuperação da empresa compreendida na massa insolvente e daqui a lei conceda ao administrador da insolvência, enquanto representante da massa insolvente, a faculdade de denunciar, ou não, tais contratos, conforme os interesses desta.
Assim, o procedimento usado pela Requerente, concedendo ao administrador da insolvência um prazo para declarar se optava ou recusava o cumprimento do contrato – cfr. al. e) dos factos – ao abrigo do disposto no artº 102º, enquanto procedimento preliminar da resolução, não tem aplicação no caso, precisamente porque estando em causa um contrato de locação é aplicável o regime previso pelo artº 108º.
Norma que não prevê, como previa o CPC de 1961, na ausência de denúncia do contrato de locação o pagamento das rendas pelo administrador da insolvência [No caso de ser mantido o arrendamento da casa, estabelecimento ou armazém do falido, as rendas serão pagas integralmente pelo administrador da falência – artº 1197º, nº2 do CPC de 1961], nem tal se afigura necessário pois não se vê como se poderiam manter os contratos de locação não denunciados pelo administrador da insolvência sem o pagamento das respetivas rendas ou alugueres; neste sentido, em anotação ao artigo 169º, do CPEREF, Carvalho Fernandes e João Labareda reportando-se ao nº2 do citado artº 1197, referem: “Este comando não transitou para a nova lei, segundo cremos, não por o legislador pretender alterar o regime anterior, mas por o considerar desnecessário. Na verdade, seria de todo desrazoável que a manutenção do contrato não envolvesse a necessidade do seu cumprimento pontual.”[2] .
Excecionado o caso da locação ter por objeto a casa de habitação do insolvente, que beneficia de um regime próprio (artº 108º, nº2), o administrador da insolvência deverá pagar pontualmente as rendas ou alugueres relativas aos contratos de locação, não denunciados, em que o insolvente é o locatário, constituindo a falta de pagamento destas, nos termos gerais, causa de resolução do contrato.
Mas a falta de pagamento das rendas ou alugueres dos contratos de locação em que o insolvente seja o locatário, respeitantes ao período anterior à data de declaração de insolvência não conferem o direito à resolução do contrato (artº 108º, nº4); relativamente a estas, o locador encontra-se em pé de igualdade com os demais credores da insolvência devendo reclamá-las a fim de ver graduado o respetivo crédito.
No caso dos autos, a Requerente não discrimina as datas de vencimento dos alugueres cujo incumprimento alega como causa de resolução do contrato, não alega se são anteriores ou posteriores à declaração de insolvência; aliás, não alega, no requerimento inicial, os alugueres em dívida e só por remissão para a carta a que alude a al. g) dos factos provados se depreende que em 8/2/2016 se encontravam vencidos e não pagos alugueres no montante de € 15.377,85.
Não demonstrando a Requerente que os alugueres são posteriores à data da declaração de insolvência não se pode concluir pela resolução do contrato, porque os alugueres vencidos e não pagos antes desta data não são causa de resolução do contrato.
Por ser assim, a Requerente não demonstra, pelo menos, a aparência do direito a que se arroga e, como tal, a providência não merece proceder, como se decidiu.

2.2. Da (in)idoneidade do meio utilizado para obter a restituição do veículo.
Decretada a insolvência, procede-se à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente (artº 149º, nº1), a qual abrange todo o património do devedor à data da insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (artº 46º, nº1), neles se incluindo os bens de que o insolvente fosse mero possuidor em nome alheio [como implicitamente resulta do artº 141º, nº1, al. a)] como é, enfim, o caso dos bens locados cujos contratos de locação vigoravam à data de declaração de insolvência sendo o insolvente locatário.
A reclamação e verificação do direito de restituição a seus donos, dos bens apreendidos para a massa insolvente, mas de que o insolvente fosse mero possuidor em nome alheio deverá seguir o procedimento relativo à reclamação e graduação de créditos (artº 141º, nº1); o que se compreende pois tendo sido (ou devendo sê-lo) o bem objeto de locação apreendido para a massa insolvente, enquanto eventual instrumento para a recuperação da empresa compreendida nesta, só a massa insolvente o poderá restituir e não o devedor que o deixou (ou deveria deixar) de possuir e caso tal restituição não ocorra por iniciativa do administrador da insolvência (141º, nº3), a verificação do direito à restituição terá que ser reconhecida e ordenada nos termos e condições prescritos para a reclamação de créditos [neste sentido, Ac. desta Relação de 16/12/2014, citado, aliás, pela decisão recorrida e Ac. da RC de 21/3/2013, assim sumariado: “1. O locador de bens (veículos automóveis) pode solicitar que sejam separados da massa insolvente e lhe sejam restituídos, independentemente de não estarem apreendidos à ordem dos autos de insolvência. 2. O exercício desse direito terá de ser deduzida em competente reclamação, segundo as regras aplicáveis para a reclamação de créditos, sujeita ao contraditório, nos prazos e condições para tal estabelecidos e não pelo meio de mero requerimento. 3. E ainda que expirado esteja o prazo para tal, nos termos do artigo 146.º, 1 e 2, do CIRE, poderá ainda fazê-lo em ação para tal instaurada, uma vez que, conforme n.º 2 deste preceito, o direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo.”][3]

Em conclusão, a Requerente não demonstra a aparência do direito a que se arroga e ainda que assim não fosse, a providência cautelar que interpôs não é o meio processual adequado à restituição do bem objeto de contrato de locação vigente à data da declaração de insolvência da Requerida.

Termos em que improcede o recurso, restando confirmar a decisão recorrida.


Custas.
Porque vencida no recurso, incumbe à Requerente o pagamento das custas (artº 527º, nº1, do CPC).

Sumário:
I – A declaração de insolvência não suspende os contratos de locação em que o insolvente seja o locatário, mantendo estes plena vigência exceto se denunciados pelo administrador da insolvência.
II – Nestes contratos, não denunciados, só a falta de pagamento de rendas ou alugueres posteriores à declaração de insolvência constituem causa de resolução.
III – O procedimentos cautelares não constituem o meio processual adequado para o locador obter a restituição, ainda que provisória, de bens que se mostrem apreendidos (ou devam sê-lo) para a massa insolvente.

IV. Decisão:
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 22/9/2016

Francisco Matos

Tomé Ramião

José Tomé de Carvalho










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[1] Aprovado pelo D.L. nº 53/2004, de 18 de Março, alterado pelos Decretos-Leis 200/2004, de 18/8, 76-A/2006, de 29/3, 282/2007, de 7/8, 116/2008, de 4/6 e 185/2009, de 12/8 e pela Lei nº 16/2012, de 20/4.
[2] CPEREF anotado, Quid Juris, pág. 393.
[3] Disponíveis em www.dgsi.pt