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CORRESPONDÊNCIA
VIOLAÇÃO
REQUISITOS
PRONÚNCIA
QUALIFICAÇÃO
ALTERAÇÃO
Sumário
I) Resultando inequivocamente da matéria considerada indiciariamente demonstrada que as arguidas, sem consentimento da assistente, entregaram ao jornal “O Público” uma cópia dum documento (guardado em suporte informático), relativamente ao qual tinham livre acesso mas que não o podiam divulgar, como o fizeram, impõe-se que sejam pronunciadas não pela prática de um prática de um ilícito de subtracção de documento, p. e p. pelo artº 259º, nº 1 do Código Penal de que vinham acusadas, mas antes pelo cometimento do crime de violação de correspondência ou de telecomunicações p. e p. pelo artigo 194º, nº 3 do CP. II) Tratando-se de uma alteração da qualificação jurídica para um crime mais leve (sanção menos gravosa) não se justifica o cumprimento do nº 1 do artigo 358º do CPP.
Texto Integral
Após conferência, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
No 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, as arguidas, Fátima F..., Deolinda A... e Elisabete T..., foram acusadas, em co-autoria, da prática de um crime de subtracção de documento, p. e p. pelo artº 259º, nº 1 do Código Penal.
Vieram requerer a abertura da instrução, finda a qual se decidiu a sua não pronúncia, essencialmente nos seguintes termos: “- Da conjugação da prova produzida é pacífico que o relatório em apreço e que se encontra junto aos autos a fls. 109 a 115 foi enviado para a Associação através de fax e os faxes eram acessíveis à globalidade dos trabalhadores e colaboradores da Associação como pela própria Vice-Presidente foi reconhecido, embora a pessoa incumbida de receber os faxes e de lhe dar o respectivo encaminhamento era a arguida Fátima. Também é inquestionável que o relatório em apreço foi recebido na PME através de fax através do sistema informático intranet, sob a forma de ficheiro informático, tendo a arguida Fátima imprimido uma cópia do mesmo. Com base na cópia obtida e depois de terem deixado de prestar serviço para a ofendida, denunciaram as irregularidades que alegadamente se patenteavam no referido relatório às autoridades judiciais e judiciárias competentes, como pelas mesmas foi admitido, dele deram conhecimento aos órgãos de comunicação social, designadamente ao Jornal "Público" a quem forneceram uma cópia do relatório em apreço como foi afirmado pela testemunha Ana A..., e que resulta da notícia publicada no dia 06 de Março de 2007, no Jornal "Público" (cfr. fls. 9). Resulta da matéria indiciária que as arguidas obtiveram a cópia do documento e utilizaram-no para fundamentar as suspeitas de alegadas irregularidades e ilegalidades praticadas pêlos órgãos estatutários da Associação em causa.”
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Inconformada, a ofendida Associação da Pequenas e Médias Empresas recorre desta decisão, pois entende que: 1ª - A Meritíssima Juíza do Tribunal de que se recorre entendeu que a subtracção de documento implica a afectação da capacidade probatória do documento em questão, o que não sucedeu no caso dos presentes autos. 2ª - No seu entender, as arguidas limitaram-se a obter uma cópia do documento, mantendo incólume o ficheiro informático, que se manteve na esfera jurídica da Assistente, ora recorrente. 3ª - Não restam dúvidas que o bem jurídico protegido com este tipo legal de crime é efectivamente a função probatória do documento que, in casu, não foi afectada. 4ª- Todavia, a conduta não deixa de ser punível mesmo que seja ainda possível obter um original do documento ou uma cópia com capacidade probatória. 5ª - Neste caso, no entanto, estaremos, não em face do crime consumado mas porventura de uma tentativa que é punível (nº 2 do artº 259º do Cód. Penal). 6ª- Parece estar perfeitamente indiciado nos autos que as arguidas agiram com intenção de causar prejuízo à Recorrente. 7ª – Está dado como indiciado na decisão instrutória, entre outras coisas que “Na posse deste relatório as três arguidas decidiram, para além do mais, enviá-lo ao Jornal “O Público” dando origem à publicação de uma notícia, no dia 06/03/2007 onde a Associação é visada e expressamente referenciado o aludido relatório”. 8ª – Não se entende como é que o envio do relatório, obtido, como também se diz na decisão recorrida, contra a vontade e sem o consentimento da ofendida, para o jornal “O Público”, se compagina com a conclusão extraída que as arguidas apenas visaram “denunciar às autoridades competentes situações que consideraram tratar-se de irregularidades ou que se traduziriam na prática de condutas criminais.” 9º - Ao procederem da forma descrita, parece ser bastante óbvio que mais não quiseram senão fazer sair uma notícia que claramente prejudicaria o bom nome da Recorrente. 10ª - Pelo que se torna patente que as arguidas praticaram o crime de que vinham acusadas, na forma tentada, motivo pelo qual deveria ter sido proferido despacho de pronúncia em conformidade. 11ª - O modo como as arguidas obtiveram o documento em questão e a sua consequente entrega ao jornal “O Público”, a não se entender ter sido feito com a prática dum crime de subtracção de documento na forma tentada, sempre teria sido feito com a prática dum crime de violação de correspondência ou telecomunicações, previsto e punido pelo artigo 194º nº 3 do C. Penal. 12ª - Está indiciado que houve obtenção do documento contra a vontade e sem consentimento da ofendida. 13ª - Ora, se houve obtenção desta forma, é evidente que a sua divulgação a um órgão de comunicação social também foi feita sem consentimento da entidade a quem era dirigido o tal documento. 14ª - Não existe qualquer justificação, nem qualquer estado de necessidade que afaste a culpa das arguidas, de modo a entender-se como sendo justificável o sacrifício dos direitos de personalidade da Recorrente, protegidos por esta norma legal, às mãos de qualquer interesse das arguidas. 15ª - O número 1 do artigo 194º do C. Penal pune a intromissão no documento, o nº 3 pune a sua divulgação, independentemente de quem violou a correspondência. 16ª - Do que se conclui que sempre as arguidas deveriam ter sido pronunciadas por um crime de violação de correspondência e telecomunicações. 17ª - Para tanto, a Meritíssima Juíza de Instrução deveria ter alterado a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, uma vez que o Tribunal é livre para dar aos factos o enquadramento jurídico-penal que julgue adequado. 18ª - Sendo os mesmos factos que constam da acusação, aplicar-se-ia o disposto no artº 358º nº 3 do C. P. Penal, sendo ainda certo que, in casu, nem sequer deveria ter sido dado cumprimento ao disposto no nº 1 desse artigo, por remissão do aludido nº 3. 19ª - É que a alteração da qualificação jurídica resulta precisamente de factos alegados pela defesa no seu requerimento de abertura de instrução. 20ª – Assim, atento o disposto no nº 2 do artº 358º do C. P. Penal, não seria sequer necessária a comunicação às arguidas ou concessão de prazo para preparação de defesa. 21ª – Pelo que deveriam ter sido pronunciadas as arguidas pela prática de um crime de violação de correspondência ou telecomunicações. 22ª - A douta recorrida sentença violou o disposto no artº. 259º nº 2 do C. Penal, ao não pronunciar as arguidas pelo crime de que vinham acusadas, na forma tentada. 23ª - A não ser assim, pelos motivos expostos, sempre teria o Tribunal que ter alterado a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, em cumprimento do disposto no artº 358º nº 3 do C. P. Penal, pronunciando as arguidas por um crime de violação de correspondência ou telecomunicações, p. e p. pelo artº 194º nº 3 do C. Penal. Violou a douta recorrida decisão desta forma, estes dois preceitos legais.
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O Ministério Público, na 1ª instância, defende a procedência parcial do recurso, aderindo à convolação para o crime de violação de correspondência, p. e p. pelo artº 194º, nº 3 do Código Penal.
Nesta Relação, o Ilustre Procurador Geral-Adjunto vai no mesmo sentido.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
Conforme se vê da decisão recorrida, são os seguintes os factos indiciados: - A arguida Fátima exerceu até Fevereiro de 2007 o cargo de secretária de direcção da "Associação das PME - Pequenas e Médias Empresas de Protugal com sede nesta cidade de Braga; - A arguida Deolinda exerceu até Fevereiro de 2007 as funções de técnica administrativa na aludida Associação; - A arguida Elisabete exerceu o cargo de consultora comercial na referida Associação até Fevereiro de 2007. - Antes da cessação dos respectivos contratos com a aludida Associação as três arguidas, agindo em comunhão de esforços e intenções apropriaram-se de uma cópia do relatório elaborado pelo Programa Operacional do Centro, relativo a uma acção de controle efectuada por esse organismo à referida Associação, facto facilitado pelas funções que ali exerciam; - O referido documento fora dirigido por fax para os serviços da Associação e recepcionado pela arguida Fátima cuja função compreendia a recepção e distribuição dos faxes entrados na Associação; - Na posse deste relatório as três arguidas decidiram, para além do mais, enviá-lo ao Jornal "Público" dando origem à publicação de uma notícia, no dia 06/03/2007 onde a Associação é visada e expressamente referenciado o aludido relatório. - As arguidas obtiveram a cópia do referido relatório contra a vontade e sem o consentimento da ofendida.
A este propósito, o Digno Procurador-Adjunto, na sua resposta, pronuncia-se nos termos que a seguir se transcrevem, enquanto com eles se concorda plenamente: Em face desta matéria, bem andou, em nosso entender, a Mª Juíza de Instrução “ a quo” ao não pronunciar as arguidas pelo crime de subtracção de documento p. e p. pelo artigo 259º, nº 1 do CP, de que vinham acusadas. Na verdade, ressalta à evidência da matéria de facto apurada que as arguidas não se apropriaram do documento propriamente dito (relatório elaborado pelo Programa Operacional do Centro, relativo a uma acção de controle efectuada por esse organismo à Associação ora recorrente), mas tão só extraíram uma cópia de tal documento (que fora transmitido via intranet e se encontrava guardado em ficheiro informático, a que elas tinham livre acesso), que divulgaram ao jornal “O Público” . Sendo certo que a cópia obtida pelas arguidas deixou incólume o documento, que permaneceu guardado em ficheiro informático no controlo da assistente. Como é bem consabido, no crime de subtracção de documento “o bem jurídico protegido não é, pois a segurança no tráfico-probatório em geral, mas a faculdade probatória enquanto bem jurídico individual e disponível, que a titularidade do documento confere”. Cfr. Comentário Conimbricense do CP, Tomo II, pag. 712. As arguidas não lesaram este bem jurídico, porque as respectivas condutas não preenchem nenhuma das modalidades de conduta descritas no tipo de subtracção de documento em apreço, como bem se escalpelizou na douta decisão em crise. Se a conduta das arguidas não lesou, por qualquer forma, o bem jurídico protegido pelo tipo de crime de subtracção de documento, não vemos como sustentar a pretensão da assistente que as mesmas condutas integram a tentativa deste crime. A própria assistente não o esclarece, sendo, por isso, infundamentada esta sua pretensão. II Porém e salvo o devido respeito por opinião contrária, já entendemos que lhe assiste razão na subsunção que faz dos memos factos ao crime de violação de correspondência ou telecomunicações, p. e p. pelo art° 194° n° 3 de C. Penal Prescreve ao artigo 194º do Código Penal: 1. Quem, sem consentimento, abrir encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e lhe não seja dirigido, ou tomar conhecimento, por processos técnicos, do seu conteúdo, ou impedir, por qualquer modo, que seja recebido pelo destinatário, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. 2. Na mesma pena incorre quem, sem consentimento, se intrometer no conteúdo de telecomunicações ou dele tomar conhecimento. 3. Quem, sem consentimento, divulgar o conteúdo de cartas, encomendas, escritos fechados, ou telecomunicações a que se referem os números anteriores, é punido com a pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. O texto deste artigo resulta da revisão operada pelo Decreto Lei 48/95, de 15 de Março, e uma das novidades foi, precisamente, o de autonomizar como ilícito crime o que anteriormente constituía apenas uma agravação da pena prevista para o crime de violação de correspondência, pela abertura de encomenda, carta ou outro escrito fechado, sem consentimento (cfr. artigo 182º, do Código Penal aprovado pelo DL 400/82, de 23.09). Ou seja, a partir dessa revisão, o desvalor da acção traduzido na divulgação do conteúdo de uma carta ou qualquer outro escrito, sem consentimento, passou a merecer uma incriminação directa e autónoma, sendo indiferente saber se foi ilícito o processo da sua obtenção, o que, no dizer de Manuel da Costa Andrade (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Vol. I, pag. 763), está “em consonância com a estrutura normal dos crimes de devassa que, em princípio, tanto compreendem a intromissão indevida na área de reserva como o alargamento indevido no universo de pessoas a tomar conhecimento”. Cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 28 de Junho de 2004, proc.718/04.2, in WWW.DGSI.pt/
No caso dos autos, resulta inequívoco da matéria considerada indiciariamente demonstrada que as arguidas, sem consentimento da assistente/ora recorrente, entregaram ao jornal “O Público” uma cópia do documento em causa (relatório elaborado pelo Programa Operacional do Centro). Embora as arguidas tivessem livre acesso a tal documento (guardado em suporte informático) não o podiam divulgar, como o fizeram. Não se vislumbra nenhuma causa justificativa para o facto, muito menos a pretensa denúncia de irregularidades a um órgão da comunicação social, pois, como é bem consabido, não é a entidade competente para as investigar. Assim, deveriam as arguidas ter sido pronunciadas pelo crime p. e p. pelo artigo 194º, nº 3 do CP. Porque esta alteração da qualificação para crime mais leve (sanção menos gravosa) não se justificava o cumprimento do nº 1 do artigo 358º do CPP. Cfr. neste sentido Ac.s do STJ de 12.11.2003 – proc. 1216/03, de 10.3.04 – proc. n.º 4024/03, de 17.7.02 (com sumário em www.dgsi.pt) e de 6.4.2006, com transcrição no mesmo sítio e, na doutrina, entre outros, Simas Santos, Alteração Substancial dos Factos, BMJ 423 - 9 e Quirino Duarte Soares, CJ STJ II, 3, 24.
Perante esta douta análise, apenas cabe dizer-se que o acesso que as arguidas tinham ao citado documento era um acesso por virtude e para o exercício das suas funções, limitado, pois, a uso interno, pelo que nada as autorizava a recolher simples cópia, fosse com que finalidades fosse, exceptuando, eventualmente, para fins de denúncia criminal, junto das autoridades competentes (cf. artº 31º, nº 1 do Código Penal e 244º do C.P.Penal.
Qualquer órgão de comunicação social, mesmo nos tempos que correm, não é, nem pode ser, entidade com competência para conhecer de denúncias criminais, pois toda e qualquer investigação que fizer, sempre será investigação jornalística.
As arguidas bem podiam ter accionado a “denúncia” jornalística sem fazerem uso da citada cópia, a qual, como já se disse, foi extraída abusivamente, ou seja, sem consentimento da sua legítima destinatária e detentora.
Assim, é evidente que, com a divulgação indiciada, se mostram preenchidos os elementos típicos do crime de violação de correspondência ou de telecomunicações, p. e p. no citado artº 194º, nº 3 do Código Penal, pelo qual deverão todas as arguidas ser pronunciadas.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em se julgar o recurso procedente e, por consequência, revogando-se a decisão recorrida, ordena-se que o Tribunal a quo a substitua por outra que, no âmbito, e sem prejuízo do artº 308º do C.P.Penal, pronuncie todas as arguidas pelo citado crime.
Sem custas.