DESPACHO DE PRONÚNCIA
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
AUDIÇÃO DAS PARTES CIVIS
VALORAÇÃO DA PROVA
Sumário


I - Quando se fala de alteração de factos na pronúncia está pressuposto que os factos são diferentes e há variação relevante na sua descrição em confronto com os constantes da acusação.

II - A definição legal de alteração substancial dos factos consta do art.º 1 al. f) do Código de Processo Penal e tem um sentido normativo. É entendida como tal, aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

III - Como resulta claro do normativo supracitado, os requisitos crime diverso ou agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, são alternativos e não cumulativos, bastando, para que ocorra alteração substancial, a verificação de qualquer deles. E não releva toda e qualquer diversidade, só releva o crime diverso quando a diversidade resulta de uma alteração essencial do sentido da ilicitude do comportamento.

IV - A audição das partes civis na qualidade de testemunhas em violação do disposto no artigo 133.º, n.º1, al. c), do CPP, não é prova proibida ou processada mediante método proibido, pelo que sobre tal meio de prova não recai qualquer proibição de valoração. Daí que, constituindo uma mera irregularidade, fica sanada se não for invocada no próprio ato.

Texto Integral


Acordam, precedendo conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I

1. Na secção criminal – J1 - da instância local de Faro, da Comarca de Faro, foi submetido a julgamento em processo comum, perante juiz singular, o arguido A., melhor identificado nos autos, o qual foi pronunciado pela prática, em concurso efetivo e em autoria material, de três crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º1 e 155.º, n.º1, al. a) do Código Penal.

MC, MG e VC deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo cada um deles, a condenação deste no pagamento da quantia de € 2.000,00, a título de compensação por danos não patrimoniais sofridos pela prática do crime.

Realizado o julgamento, por sentença proferida em 30 de Novembro de 2015, foi decidido:

A) Condenar o arguido A. na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €7,00, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º1 e 155.º, n.º1, al. a) do Código Penal, na pessoa de VC;

B) Condenar o arguido A. na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de €7,00, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º1 e 155.º, n.º1, al. a) do Código Penal, na pessoa de MG;

C) Condenar o arguido José Manuel Faria na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de €7,00, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artigo 153.º, n.º1 e 155.º, n.º1, al. a) do Código Penal, na pessoa de MC;

D) Em cúmulo jurídico das penas referidas em A) e B) condenar o arguido A. na pena única de 200 dias de multa, à taxa diária de € 7,00.
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E) Julgar parcialmente provados e procedentes os pedidos de indemnização civil e, em consequência, condenar o demandado a pagar €650,00 à demandante VC e €1000,00 a cada um dos demandantes MG e MC.

2. Inconformado, o arguido veio interpor recurso daquela sentença, nos termos constantes de fls.351 a 366, pedindo a sua absolvição.

2.1 - Na sequência de convite para apresentar conclusões mais sintéticas, de modo a delimitar o âmbito do recurso, o recorrente apresentou as seguintes conclusões:

a. A testemunha AF estava presente no local e no momento das supostas ameaças dos autos, como foi reconhecido pelas declarações de MG (ata de 20-10-2015, depoimento gravado das 15 horas e 16 minutos e às 15 horas e 52 minutos), e de VC (“o Sr. Zé chegou com a esposa”, "fui falar com eles", etc.) - gravado das 14 horas e 29 minutos e o seu termo pelas 15 horas e 03 minutos, do dia 05-11-2015, conforme ata respectiva.

b. Porém a douta sentença não refere tal presença e não se pronuncia sobre o valor das declarações que em concreto a testemunha proferiu sobre os factos da acusação - o que constitui clara violação da defesa, do contraditório e das regras de julgamento;

c. A douta sentença erra quando declara que a testemunha “relatou um episódio o filho de MC e MG se tinha deslocado ao local e quando chegou “bateu com a porta do carro com tanta força que os vidros partiram”, quando, na realidade, a testemunha disse o que coincide com a experiência comum: "o irmão vem para me bater, quando chega, saiu do carro, atira com a porta do carro, "que é bruxa" (imita), quando atira com a porta do carro, os vidros do carro bruuuum, foram-se logo abaixo" (vide prova gravada (ata de audiência de 05-11-2015, depoimento iniciado a 5 horas e 05 minutos com termo pelas 15 horas e 33 minutos));

d. A referida testemunha não " precisou ter visto que “eram fezes de pessoa”, como declara a douta sentença, mas que, como decorre da gravação supra mencionada, "havia um cheiro horrível, que dava vontade de vomitar" e que não seria devido aos cães dos vizinhos, pois "há uma diferença: fezes de cão, fezes de pessoa; cão come granulado e isso não é cheiro de granulado", donde a sua inferência de que poderiam ser fezes mas de pessoa;

e. O Tribunal percepcionou mal a prova e transformou declarações congruentes sobre a matéria da acusação, numa incongruência sobre factos colaterais, que não correspondem ao que efectivamente foi declarado pela testemunha, pelo que ocorre erro ostensivo de julgamento e se viola o dever de descoberta da verdade, as regras da experiência comum e o disposto no art. 128, 1, do CPP;

f. MG e VC foram ouvidas como testemunhas – actas de 20Out2015 e 5Nov2015 – e prestaram juramento, mas são interessadas e demandantes civis, pelo que só poderiam ter sido ouvidas como declarantes, sem prestar juramento – o que constitui irregularidade - art. 133, nº 1, c) do CPP – apenas formalmente sanada;

g. A douta sentença trata sempre as demandantes como testemunhas sem valorar o interesse que elas têm na causa – do que decorre a violação de regras da experiência comum, pois exige-se a despistagem de todos os indícios que possam ter contribuído para formar o espírito dos declarantes, onde avultam o ganho de causa, a irritação pelas circunstâncias do caso (porem sal e gorduras no chão e na garagem), a pretensão de amesquinharem o arguido, movida por más relações, etc;

h. Há diferença de tratamento, desacompanhada de indicações plausíveis e suficientemente justificadas, entre a prova que o Tribunal considera interessada (o arguido que pretende a absolvição; a mulher que o defende) e a prova que o Tribunal toma por absolutamente fidedigna e credível, sem verificar do interesse que as declarantes têm na causa – o que constitui uma situação de desigualdade que afecta a imparcialidade e isenção do Tribunal e viola a presunção de inocência;

i. As declarantes, acolitadas por advogado constituído num processo que se arrasta por 2 anos e em que deduziram pedido cível, não respondem em audiência com espontaneidade, mas antes conforme as reformulações que foram fazendo, para as foram tecnicamente orientadas e não podem deixar de ter uma perspectiva (e um interesse);

j. O Tribunal faz errada valoração da declaração do arguido de que não tinha mau relacionamento com MC, considerando-o falso por terem discutido, pois o bom relacionamento foi corroborado pelas depoentes MG, mulher deste, e VC, filha, a qual até acrescentou que "não encontro justificação para isto" (para se darem mal), pois "eram vizinhos com relações próximas" e dá exemplos (gravação supra mencionada), e por AF, que relatou que o arguido disse a MC "vamos falar de futebol... temos uma idade avançada, não temos nada que entrar em discussões" (depoimento supra referido);

k. A douta sentença faz errada citação da contestação, onde não se declara que o demandante MC era surdo, para criar uma contradição com a afirmação do arguido, em audiência, de que conversava com ele, pois apenas no art. 9 do requerimento de abertura da instrução se tece argumento meramente lógico sobre o modo de realização da ameaça a um surdo;

l. Nos autos abundam documentos e declarações em que se reconhece que o arguido fala, que lê os lábios dos interlocutores, que tem aparelho auditivo, como aliás consta do douto despacho que recebe a acusação, dos autos de inquirição em sede de inquérito, das declarações de todos os declarantes, como supra referido, como é da experiência comum conversarmos com surdos;

m. A declarante MG declarou em audiência que o arguido, na discussão sobre os maus cheiros, motivo pelo qual a abordara, lhe disse ipsis verbis: "Ai eu dou fogo a isto, dou fogo a esta merda toda, desculpe mas foi assim que ele disse, eu prego-lhe fogo a esta merda toda e aí eu fiquei em pânico" (depoimento gravado supra citado);

n. A expressão dar fogo à casa, constante do facto provado nº 3, é uma conclusão interessada das demandantes, apesar de terem reconhecido que a conversa se deu num espaço comum e que "a casa (das ofendidas) está muito mais alta", e a depoente V:"a casa está a mais de dois metros de altura, num barranco" (gravações supra identificadas);

o. A expressão levada ao ponto 3 da matéria de facto é uma construção linguística elaborada, imprópria da linguagem verbal e dum quadro de discussão entre vizinhos (lhe, pronome pessoal dativo, não vem a propósito, quando acrescentado da totalidade "esta toda"), que visa, capciosamente, identificar uma casa, a que pertence à demandante, quando a mais próxima, a que podia referir-se por "esta", era a do próprio arguido;

p. A modificação da expressão constante da acusação efectuada na audiência de julgamento (alteração dos factos…) não corresponde à prova gravada e às declarações das demandantes;

q. A depoente G. explicitou, na gravação supra referida: fomos ver se ele acabava com aquilo (deitar sal e gorduras, motivo da discussão), ele pegava e eu lavava, como ele não acabou, fomos obrigados a fazer (queixa) ", e a depoente V: "tentei fazer as pazes, a ver se eles acalmavam, a ver se eles deixavam de pôr sal e porcarias... durante dois ou três dias não fizeram nada e depois começaram a pôr outra vez" (gravações supra identificadas);

r. Portanto, não foi a ameaça, mas o comportamento dos vizinhos relativamente à zona comum, o sal e as gorduras, que determinaram a acção dos demandantes, tanto mais que a suposta ameaça ocorrera meses antes da queixa;

s. Os demandantes venderam a casa após obras, dois anos decorridos sobre os factos, passando então a morar com a filha (vide depoimento da demandante V) - donde se comprova que não deixaram a casa por medo do arguido;

t. A declarante V (declara “pensei que a ameaça era para o meu pai, mas as palavras soaram no plural, uma pessoa fica sempre naquela” (vide gravação supra identificada) não é convincente em fazer-se vítima, pelo que não pode declarar-se ameaçada;

u. O arguido e a testemunha AF declararam não ter sido proferidas as expressões ou os gestos declaradas provadas, o que não foi tido em conta;

v. A douta sentença não contém elementos subjectivos do crime de ameaça, pois não basta dar por provado que o arguido quis meter medo aos demandantes, sendo necessária a intenção de causar um mal futuro na pessoa ou nos bens de outrem, como melhor esclarece o douto acórdão do Tribunal da relação do Porto, de 11-07-2012, proc. 1087/11.6PCMTS.P1;

w. A acusação descreve um anúncio de mal iminente, desacompanhado da intenção do agente, sendo certo que a expressão “eu mato-os”, proferida contra dois numa discussão, não tem qualquer elemento de futuridade, por si só;

x. A douta sentença declara (a final) que “o arguido não agiu friamente, mas antes sempre num estado de exaltação”, o que pressupõe uma discussão acesa, grave, altamente perturbadora, donde pressupõe imediatismo e iminência de uma actuação;

y. A expressão do facto nº 6 não é bastante para integrar ameaça, além do mais, por não esclarecer se foi dirigida ao visado, se o visado a viu, se o visado se dirigia ao arguido ou se discutia com ele;

z. A douta sentença faz uma sucessão de inferências, que violam as regras da lógica e do direito: como não provou uma acção do arguido, supõe a intenção de meter medo; e como o medo ocorreu também no futuro, presume que a intenção extravasa o momento de exaltação, com o que viola o disposto no crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art.º 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a).

Termos em que deve ser revogada a douta sentença e o arguido absolvido, com o que se fará JUSTIÇA!

2.2 - O recurso foi admitido por despacho de 18 de Janeiro de 2016 (v. fls.367).

2.3 - O Ministério Público respondeu ao recurso nos termos constantes de fls.371 a 375, sustentando a sua improcedência, concluindo nos seguintes termos:

1- O recorrente impugna a matéria de facto, com vista a fazer valer convicção diferente, impondo o seu próprio raciocínio e julgamento, esquecendo a o princípio da livre a apreciação da prova contido no artigo 127º e 355, ambos do Cód. Proc. Penal.

2- A decisão recorrida encontra-se bem fundamentada, não apontaram os recorrentes qualquer argumento válido que a possa abalar.

3- A matéria de facto apurada baseia-se na prova produzida em audiência de julgamento -prova testemunhal e documental- e a razão de conferir mais crédito a uns depoimentos em detrimento de outros encontra-se devidamente fundamentada.

4- Pelo que não existem fundamentos para alterar a convicção do julgador que assistiu à prova e percepcionou o material probatório, tendo em conta as regras da experiência de vida.

Termos em que se conclui sufragando a posição adoptada pela Mmª Juiz “a quo” na douta sentença sindicada, julgando-se o recurso interposto pelo recorrente improcedente, como é de toda a JUSTIÇA.

3. O arguido interpôs ainda recurso do despacho que indeferiu a arguição de nulidade do despacho de pronúncia, o qual foi admitido, para subir com o recurso que viesse a ser interposto da decisão final e tendo neste último recurso manifestado interesse no conhecimento daquele, há que dele conhecer.

3.1 - Neste recurso formulou as seguintes conclusões:

“ a. O arguido requereu a abertura da instrução, alegando que os factos acusatórios não preenchiam os elementos típicos da norma incriminadora (art. 155, nº 1, do CP) e os requisitos processuais atinentes (art. 283 do CPC) (futuridade e circunstâncias), sendo manifestamente insuficientes para sujeitar o arguido a julgamento;

b. Alegou também que não fora ouvido sobre dois dos crimes (dos quais não houve queixa ou participação), nem questionado sobre a sua relação com os ofendidos, sobre as circunstâncias dos factos, motivações, actos subsequentes ou sobre as questões em litígio;

c. A matéria constante dos arts 8, 9 e 10 da douta acusação é conclusiva e não suportada em factos;

d. O Meritíssimo JIC veio a tecer considerações sobre tais elementos do tipo de crime em sede de fundamentação do douto despacho de pronúncia, valorando em especial o facto de os intervenientes (arguido e ofendidos) serem vizinhos e de manterem quezílias não resolvidas, as quais relevariam para consubstanciar aquele receio de futuridade da ameaça, que se efectivaria (enquanto ameaça) precisamente pela relação de vizinhança.

e. Tais considerações incorporam matéria inovadora, não constante da acusação, repescada do inquérito sem contraditório e sem possibilidade de exercício do direito de defesa, pois não haviam sido consideradas ou alegadas por qualquer interveniente na instrução ou no debate instrutório, nem o arguido fora ouvido sobre as mesmas;

f. Ora, o arguido tem direito a que os factos que lhe são imputados – todos os que se destinam a preencher os elementos do tipo de crime – constem do libelo acusatório de forma clara e devidamente concretizada, de modo a que possa exercer o seu direito de defesa e o contraditório;

g. O Meritíssimo JIC traz à pronúncia factos que não foram tidos em conta na acusação (elemento de futuridade e supostos litígios), sem que o pudesse fazer, enquanto juiz das garantias – e tanto mais quando o próprio despacho considera que a omissão de audição do arguido prejudica o contraditório exigível na fase de instrução;

h. Mas os novos factos não foram elencados na pronúncia, que se fez por remissão para a acusação, pelo que continuaram sem preenchimento os elementos de facto que devem integrar o tipo de crime;

i. Fundamentando indícios e não os levando à pronúncia, com efeito surpresa e sem audição do arguido, o despacho de pronúncia violou o princípio do acusatório, o direito de defesa e o disposto nos arts. 283 e 308 do CPP e o art. 32 da Constituição da República Portuguesa;

j. A nulidade foi oportunamente suscitada, mas não acolhida, donde o fundamento do presente recurso.

Termos em que deve ser declarada a nulidade do douto despacho de pronúncia, com o que se fará JUSTIÇA! “

3.2 - O recurso foi admitido, por despacho de 04-05-2015, e discordando do regime de subida atribuído ao recurso, o arguido reclamou para esta Relação de Évora, sem êxito.

3.3 – O Ministério Público, junto do tribunal recorrido, apresentou resposta a este recurso nos termos constantes de fls.224 a 226, pugnando pela manutenção do despacho recorrido, tendo apresentado as conclusões seguintes:

“1 – Tendo sido o arguido pronunciado pelos factos constantes da acusação para a qual se remeteu expressamente no douto despacho de pronúncia, não se pode afirmar que o arguido foi pronunciado por factos diferentes dos constantes da acusação, pelo que não estamos, no presente caso, perante a nulidade mencionada no artigo 309.º, n.º1, do Código de Processo Penal;

2 – Decorre dos artigos 277.º, n.º1 e 120.º, n.º2, do Código de Processo Penal e do entendimento expresso no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 1/2006, de 2 de Janeiro, que o interrogatório do arguido – sendo conhecido o seu paradeiro – é obrigatório e a sua falta constitui nulidade;

3 – No presente caso o interrogatório do arguido existiu, embora não tenha sido confrontado com alguns dos factos pertinentes à acusação e pronúncia pelo que não se pode falar na aludida nulidade;

4 – O douto despacho recorrido não violou nenhuma das disposições legais mencionadas pelo recorrente, pelo que deverá ser integralmente mantido.”

4. Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, teve vista dos autos e emitiu o douto parecer de fls.402 e 403, apenas referente ao recurso interposto da sentença, salientando não ter o recorrente cumprido com a exigência consagrada no n.º1 do artigo 412.º do CPP, por não serem as Conclusões do recurso sintéticas e precisas. Contudo, sendo apreensível o objeto, manifestou o entendimento de que o recorrente se limitou a realçar a divergência entre os depoimentos por si prestados e os prestados pelos ofendidos e testemunhas, não indicando “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados”, não cumprindo, desse modo, com o estatuído no artigo 412.º, n.º3 e 4 do CPP, pelo que deve improceder a pretensão manifestada pelo recorrente.

5. Cumprido o disposto no n.º2 do artigo 417.º do CPP, o arguido não usou do direito de resposta.

6. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência, cumprindo agora decidir:

II – Delimitação do objeto dos recursos.

É consabido que o objeto de qualquer recurso é extremado pelo teor das conclusões que cada recorrente extrai da correspondente motivação, conforme o n.º 1 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, sem prejuízo para a apreciação das questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer [v. Ac do STJ de 3.2.99, BMJ 484, pág 271; Ac do STJ de 25.6.98, BMJ 478, pág. 242; Ac do STJ de 13.5.98, BMJ 477, pág. 263; Simas Santos/Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, pág. 48; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 320 e 321].

Das conclusões, supra transcritas, com referência à motivação dos recursos, resulta que o recorrente, no que concerne ao recurso interlocutório, invoca a nulidade do despacho de pronúncia, e no que concerne ao recurso da sentença, põe em causa a matéria de facto e o direito, como melhor se explicitará adiante, pois, por uma questão de lógica e de preclusão, conhecer-se-á, em primeiro lugar, do recurso do despacho de pronúncia, porquanto, da eventual procedência deste, pode ficar prejudicado o conhecimento do recurso interposto da sentença.

1 - O despacho recorrido é do seguinte teor:

A. alega existir nulidade da decisão instrutória:
a) Porque trouxe à pronúncia factos que não foram tidos em conta na acusação, ou seja, futuridade, não o podendo fazer, pois que lhe está vedado completar a insuficiência do inquérito ou dos factos descritos na acusação, não concretizando, no entanto, esses novos factos no despacho de pronúncia, continuando sem preencher os elementos de facto que devem integrar o crime em causa;

b) O arguido não foi ouvido no inquérito quanto a dois dos crimes que lhe foram imputados;

c) Uma das testemunhas não se declarou ameaçada;

d) Tendo já decorrido dois anos desde a data dos factos, nenhuma das ameaças foi concretizada;

Cumpre apreciar e decidir:
Elucida com clareza o artigo 309.º do Código de Processo Penal que a decisão instrutória só é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento de abertura de instrução.

Este é o único vício da decisão instrutória cominado com nulidade, sendo esta sanável, pois tem de ser arguida no prazo de 8 dias contados da data da notificação da decisão – cf. n.º2 do aludido artigo.

Por alteração substancial dos factos entende-se aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis – cfe. Art. 1.º do CPP.

Compulsada a acusação e a pronúncia não verificamos que nela tenha ocorrido qualquer alteração substancial dos factos ou mesmo sequer alteração dos factos. Na verdade, na decisão instrutória pronunciou-se o arguido nos exatos termos da acusação, para a qual se remeteu em termos factuais, tal como permite o artigo 307.º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal. Não se compagina, com o devido respeito, como uma pronúncia que remete em termos factuais para a descrição narrada na acusação pode configurar uma alteração substancial dos factos. No segmento da fundamentação da decisão de factos são explicitados os motivos que levam à pronúncia do arguido e neles não são descritos quaisquer factos. Na verdade, o arguido defende-se em julgamento, da descrição dos factos narrados na pronúncia, a qual pode ser feita por remissão para a acusação, como foi o caso. Nesta medida, o arguido não pode invocar argumentos ou fundamentos da decisão instrutória para se socorrer de uma alteração substancial dos factos, até porque nela não estão narrados factos.

Naufraga, por isso, a nulidade da decisão instrutória, com base em alteração substancial dos factos.

As demais nulidades avançadas, as quais já tinham sido suscitadas no requerimento instrutório, já foram objecto de pronúncia na decisão instrutória. Por outro lado, não configuram elas qualquer nulidade da decisão instrutória. Com efeito, a não audição do arguido quanto a dois crimes, não constitui nulidade do inquérito e da acusação, como se decidiu na decisão instrutória, pelo que o despacho de pronúncia não enferma de qualquer vício.

No que concerne às demais questões suscitadas pelo arguido, elas não são mais do que discordância quanto aos fundamentos da decisão instrutória, sobre a existência a não existência de indícios, pelo que não encerram qualquer nulidade.

Termos em que o despacho de pronúncia não enferma de qualquer nulidade. (…)”

1.1 - Conhecendo:
Quando se fala de alteração de factos na pronúncia está pressuposto que os factos são diferentes e há variação relevante na sua descrição em confronto com os constantes da acusação. A alteração pode ser substancial e não substancial.

A definição legal de alteração substancial dos factos consta do art.º 1 al. f) do Código de Processo Penal e tem um sentido normativo. É entendida como tal, aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Como resulta claro do normativo em causa, os requisitos crime diverso ou agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, são alternativos e não cumulativos, bastando, para que ocorra alteração substancial, a verificação de qualquer deles. E não releva toda e qualquer diversidade, só releva o crime diverso quando a diversidade resulta de uma alteração essencial do sentido da ilicitude do comportamento.

É pacífico que há recurso do despacho que indeferiu a arguição de nulidade da pronúncia do arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou assistente ou no RAI, art.º 309.º e 310.º n.º3, do Código de Processo Penal. Mesmo assim importa vincar que nesse caso o despacho de pronúncia não é recorrível. O artigo 310.º, n.º 1 do CPP dispõe que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.

E o Tribunal Constitucional nas vezes que foi chamado a pronunciar-se a respeito desta norma, considerou-a constitucionalmente admissível, por não configurar uma restrição desproporcionada do direito ao recurso em processo penal, que o legislador, em benefício da celeridade processual, determine a irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação, bem como irrecorribilidade da decisão instrutória na parte em que decide questões prévias ou incidentais àquele despacho de pronúncia.

Na base dessa jurisprudência constante [1]está o pressuposto de que a natureza meramente provisória do juízo de imputação de factos susceptíveis de integrarem a prática de crime que resulta da decisão instrutória de pronúncia permite que qualquer vício ou nulidade que a afete possa sempre ser ainda devidamente conhecido na fase subsequente de julgamento, concretamente em dois momentos: na sentença que vier a ser proferida após o encerramento da audiência de julgamento ou em sede de recurso a interpor da sentença seja desfavorável ao arguido.

Por isso que apenas se pode recorrer do despacho que indeferiu a arguição de nulidade da decisão instrutória com fundamento na alteração substancial dos factos descritos na acusação do MP ou do assistente ou no requerimento de abertura de instrução do assistente, pois apenas este configura uma acusação alternativa.

Consequentemente, sendo a pretensa nulidade outra que não a de pronúncia por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução, não é admissível recurso do despacho que a indeferir.

Assim, o conhecimento do recurso interlocutório está limitado à questão da alteração substancial dos factos da acusação deduzida pelo Ministério Público, não podendo este tribunal conhecer do mérito da acusação ou de eventuais nulidades do inquérito.

No caso dos autos, afigura-se-nos ser patente a falta de razão do recorrente, porquanto o despacho de pronúncia não operou qualquer modificação dos factos da acusação, já que se limitou, nesta matéria, a remeter para os factos enunciados na acusação pública de fls.118 a 120 - cf. fls.179 – como permitido pelo artigo 307.º, n.º1 e 3 do CPP.

Por conseguinte, o recurso interlocutório admitido é manifestamente improcedente e, como tal, deve ser rejeitado, nos termos do disposto no artigo 420.º, n.º1, al. a) do CPP, sancionando-se o recorrente nos termos do n.º3 do mesmo preceito legal.
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2. Na sentença recorrida foram considerados provados e não provados os seguintes factos:

2.1 – Factos provados:

1 - A e MG residiam ambos no Sítio…, Estoi, encontrando-se as residências de ambos muito perto uma da outra.

2 – A. e MG tiveram várias discussões relacionadas com os maus cheiros e a limpeza do caminho situado junto às respectivas residências.

3 - No dia 20 de Maio de 2013, cerca da hora do almoço, junto das residências já identificadas, no decurso de uma discussão, A. dirigiu a MG a expressão “eu dou-lhe fogo à casa e a esta merda toda”.

4 - Em Outubro de 2013, durante a manhã, junto das residências já referidas, VC, filha de MG, chamou a atenção a A. para este não colocar sal junto da residência pertença dos seus pais.

5 - Enquanto os dois estavam a conversar, chegou MC, pai de VC e marido de MG.

6 - Ao ver o vizinho a chegar, como o mesmo tem um problema auditivo, fez um gesto com a mão a atravessar o pescoço, querendo com o mesmo significar que lhe cortava o pescoço.

7 - De seguida, dirigiu a VC e MC a expressão “eu mato-os, eu mato-os”.

8 – A. quis amedrontar e inquietar VC e MC, fazendo com que estes tivessem medo de que o arguido os pudesse matar, o que efectivamente conseguiu.

9 – A. quis amedrontar e inquietar MG, fazendo com que esta tivesse medo de que o arguido lhe destruísse a moradia onde residia, de valor não concretamente apurado mas seguramente superior a €20.400,00, o que efectivamente conseguiu.

10 - O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Do pedido de indemnização civil, provou-se que:

Quanto a MC
11 - O ofendido MC sofre de patologia cardíaca, sendo portador de prótese valvular aórtica e dispositivo de ressincronização ventricular e acentuada dilatação ventricular esquerda.

12 - O arguido sabia que MC sofria de doença cardíaca e, ainda assim, não se absteve de proceder contra aquele, a sua esposa e filha da forma descrita na acusação pública, conformando-se com o agravamento do seu estado de saúde.

13 - Mercê da conduta do arguido, MC ficou assustado, perturbado, angustiado, inquieto e com medo, receando pela sua própria vida e temendo pela sua família.

14 - Passou a ter medo de sair de casa e encontrar o arguido.

15 - Passou a trancar todas as portas e janelas.

16 - E mandou vedar a sua casa e colocar câmaras de videovigilância.

17 - Nas noites que se seguiram aos factos, o ofendido teve dificuldades em dormir.

Quanto a VC:

18 - Mercê da conduta do arguido descrita em 4. a 7., VC sentiu medo, inquietação, angústia e nervosismo.

19 - E temeu pela sua vida e pela vida do seu pai.

20 - Nas noites que se seguiram aos factos, a ofendida teve dificuldades em dormir.

21- Razão pela qual sentiu cansaço e ficou irritável.

Quanto a MG:

22 - Em consequência da conduta do arguido descrita em 3., a ofendida temeu que o arguido destruísse a moradia onde residia.

23 - Sentiu medo e inquietação ao sair de casa.

24 - E juntamente com o seu marido mandou vedar a casa e colocar câmaras de videovigilância.

Mais se provou que:

25 - Mercê da conduta do arguido acima descrita e do receio que sentiam, MC e MG deixaram de residir na casa onde moraram durante 17 anos, em data não concretamente apurada e não anterior a 30 de Março de 2015.

26 - O arguido não tem antecedentes criminais.

27 - É electricista reformado, auferindo quantia mensal não concretamente apurada mas não inferior a €1.000,00.

28 - Apesar de se encontrar reformado, continuou a deslocar-se com periodicidade não concretamente apurada a Angola, para trabalhar como coordenador de geradores, mediante rendimento médio mensal não inferior a €1.000,00.

29 - Quando se desloca a Angola, fica em casa da filha.

30 - Vive com a esposa e a neta, em casa própria.

31 - A esposa do arguido trabalha, auferindo o rendimento mensal de €495,00.

32 - Tem como habilitações literárias o antigo 7.º ano de escolaridade, apesar de ainda ter estudado durante mais 2 anos no instituto de electricista.

2.2 - Factos não provados:
De relevo para a decisão da causa, não se provou que:

A) O estado de saúde de saúde do ofendido agravou-se em virtude da conduta do arguido descrita na acusação, com episódios de arritmias cardíacas.

B) O mencionado em 13. e 17. mantém-se até hoje.

C) Mercê da conduta do arguido, o ofendido MC sofreu vergonha e um trauma do qual tenta recuperar.

D) Mercê da conduta do arguido, VC continua a temer pela sua vida e pela vida do seu pai.

E) É pessoa doente, fisicamente fraca e sem capacidade de resistir a qualquer dos demandantes.

F) É pessoa respeitada e respeitadora, impoluta e cumpridora das regras.

2.3 – O Tribunal recorrido fundamentou o julgado em matéria de facto nos seguintes termos:

“A convicção do tribunal fundou-se na apreciação crítica de toda a prova produzida em audiência de julgamento, à luz das regras da experiência (art.º 127.º do CPP).

Uma vez que foram trazidas ao tribunal duas versões opostas sobre os factos que se discutem nos autos, antes de passarmos à concretização da formação da convicção do tribunal relativamente a cada um deles, consideramos adequado fazer uma breve referência à fiabilidade das pessoas ouvidas na audiência de julgamento.

Começando pelo arguido, para além de se afigurar que as suas declarações foram prestadas de forma manifestamente comprometida com a posição processual que ocupava, aquilo que relatou não se afigurou, na generalidade, verosímil ou compatível com a normalidade do acontecer (como quando referiu que não tinha más relações de vizinhança com MC e esposa, mas apesar disso, depois da primeira discussão que tiveram, os vizinhos vedaram a casa e puseram câmaras e, mais tarde, chamaram a polícia, que o foi identificar).

Para além disso, o tribunal não pôde deixar de notar que as declarações que o arguido prestou não se mostraram apenas em contradição com aquilo que disseram as testemunhas MG e VC, mas inclusivamente com aquilo que o próprio havia afirmado na sua própria contestação, designadamente na parte em que disse ao tribunal que MC falava consigo normalmente e não tinha nenhum problema de audição, quando naquela peça processual alegou que o alegado ofendido era “surdo”, sendo esse o motivo pelo qual entendia que não poderia ter sido ameaçado por uma expressão verbal.

No que tange à testemunha AF, esposa do arguido, o seu depoimento mostrou-se tão pouco isento, fantasioso e contrário àquilo que são as regras da experiência comum, que o tribunal não considerou digno de crédito nada do que a mesma declarou.

Recordando as alegações do I. mandatário do arguido, no sentido de que não se cumprem as exigências de fundamentação quando se diz que uma testemunha não foi credível, sem que o tribunal tenha procurado demonstrar no decurso do seu depoimento que aquilo que diz não pode ser verdade ou entra em contradição com aquilo que já disse anteriormente, entendemos pertinente a menção às partes do depoimento de AF em que a mesma relatou um episódio o filho de MC e MG se tinha deslocado ao local e quando chegou “bateu com a porta do carro com tanta força que os vidros partiram”, ou quando disse que era a filha dos ofendidos que punha sal na casa dos pais quando os ia visitar ou até mesmo quando afirmou que as discussões com os vizinhos tiveram lugar por causa do mau cheiro das fezes que os vizinhos atiraram de dentro de um balde para o caminho, precisando ter visto que “eram fezes de pessoa”. Ora, estas afirmações são tão inverosímeis e contrárias à normalidade do acontecer que, por si só, condicionaram a forma como o tribunal valorou o demais declarado pela testemunha que as proferiu, excluindo a fiabilidade e credibilidade do seu depoimento, independentemente de este não estar ou não em contradição com aquilo que disse anteriormente.

Em contraponto com o arguido e a testemunha AF, MG e VC depuseram de forma espontânea, razoável e lógica e não deixaram de reconhecer os problemas que tiveram com os vizinhos quando relataram ao tribunal os episódios que se discutem nos autos, razão pela qual o tribunal atribuiu crédito àquilo que declararam.

Concretizemos.
Na medida em que as declarações de todas as pessoas ouvidas em audiência de julgamento foram convergentes quanto ao facto de o arguido e os ofendidos MG e MC serem vizinhos à data dos factos que se discutem na acusação pública, deu-se como provado o facto n.º 1.

No que tange aos motivos pelos quais o arguido e os vizinhos se desentenderam, tanto aquele como MG transmitiram a ideia de que a limpeza do caminho teria estado na origem dos conflitos, embora o arguido tenha negado discussões por causa dos cães: aquele disse que um dia a vizinha parecia estar a varrer um líquido com um cheiro horrível junto à sua residência e afirmou que depois de a questionar sobre a origem daquele cheiro, MG lhe disse que era do cão; esta relatou um primeiro episódio em que o arguido a abordou e a questionou sobre o motivo pelo qual ela lhe “jogava” coisas para a parede, ao que lhe respondeu que nunca tinha “jogado” nada contra a sua parede, explicando que se em algum momento o tal líquido atingira a parede daquele tinha sido enquanto limpava o caminho.

Concatenando os meios probatórios que antecedem, o tribunal deu como provado o facto n.º 2.

No que tange ao facto n.º 3, o tribunal deu-o como provado com base no depoimento de MG, que explicou que foi depois de abordada pelo arguido acerca de lhe jogar coisas para a parede de casa que aquele se dirigiu a ela e lhe disse “dou-lhe fogo à casa e a esta merda toda”, o que a deixou em pânico e fez com que nunca mais tivesse levado os cães à rua.

Corroborando o depoimento de MG, VC afirmou que antes de Outubro de 2013 a mãe lhe tinha contado que o arguido lhe disse que lhe punha fogo à casa. Embora a expressão de que se recordava “pego fogo a esta merda toda” não fosse absolutamente igual à relatada por MG, isso não retirou credibilidade ao declarado por nenhuma delas, na medida em que já decorreram mais de 2 anos sobre a data dos factos e mais estranho e menos genuíno se afiguraria que passado este tempo ambas se recordassem “ipsis verbis” da mesma expressão.

A prova dos factos n.º 4 e 5 extraiu-se da articulação entre as declarações prestadas pelo arguido e o depoimento prestado por VC.

Apesar de o arguido ter negado que se dirigiu a MC, fazendo um gesto com a mão a atravessar o pescoço, como querendo significar que lhe cortava o pescoço e, bem assim, que de seguida se dirigiu àquele e a VC dizendo “eu mato-os” (factos n.º 6 e 7), o tribunal convenceu-se de ambos esses factos com base no depoimento prestado de forma segura, espontânea e verosímil por VC, que, depois de confirmar o gesto e as palavras constantes da acusação pública, explicou que não pensou que o arguido os fosse matar naquele momento, mas, tal como o pai, ficou inquieta, até por aquele já ter dito anteriormente à sua mãe que pegava fogo à casa.

Se é certo que o Ministério Público prescindiu da inquirição de MC em atenção aos seus problemas cardíacos, tal circunstância não obstou à demonstração dos factos que lhe diziam respeito, porquanto a lei processual penal não exige a inquirição do ofendido sobre tais factos e a prova produzida acerca deles na audiência de julgamento se afigurou espontânea, segura e credível, por contraponto com as declarações do arguido, que se revelaram em contradição com aquilo que o próprio afirmara na sua própria contestação.

A propósito da matéria de facto sobredita, cumpre acrescentar que o arguido nunca admitiu ter dito “eu mato-os” a MC e VC e, muito menos, disse que ao proferir tal expressão tinha a finalidade de se defender de qualquer ataque. Assim, e por tal finalidade hipotética também não se ter extraído de nenhum dos demais elementos probatórios produzidos na audiência de julgamento, o tribunal não poderia dar como provado que o arguido proferiu aquela expressão em jeito defensivo, ao contrário do que preconizou o I. mandatário do arguido nas suas alegações, para a eventualidade de se dar como provado o proferir daquela expressão.

Apreciando à luz das regras da experiência comum a factualidade objectiva que resultou provada e as declarações de MG e VC, o tribunal firmou a convicção de que ao actuar da forma supra descrita o arguido quis amedrontar e inquietar os ofendidos, como amedrontou e inquietou, agindo de forma livre, e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei (factos n.º 8 a 10).

Conjugando o teor dos documentos juntos aos autos de fls. 148 a 153 com os depoimentos de MG e VC, que confirmaram os problemas cardíacos de que MC padece, deu-se como provado o facto n.º 11.

Considerando as boas relações que todos os inquiridos declararam existir entre os vizinhos até data anterior à data dos factos e o teor dos depoimentos prestados, deu-se como igualmente como provado o facto n.º 12.

Por não resultar dos documentos médicos apresentados o agravamento do estado de saúde do ofendido após os factos descritos na acusação pública, o tribunal não ficou absolutamente convencido do agravamento daquele em virtude da conduta do arguido (facto A).

Na medida em que o arguido admitiu que os vizinhos mandaram colocar câmaras de vigilância depois das primeiras “conversas” acerca do cheiro no caminho e, por seu turno, MG afirmou que tanto ela como o marido, com medo que o arguido concretizasse as ameaças, andaram a fazer medicação para dormir, mandaram colocar câmaras de videovigilância e aquele passou a trancar portas e janelas e a ter medo de sair de casa, deram-se como provados os factos n.º 14 a 17 e 24.

O receio e as consequências sofridas por MC, MG e VC foram relatados por estas de forma que se afigurou verdadeira e em consonância com a normalidade do acontecer, levando o tribunal a dar como provado o facto n.º 13.

De todo o modo, por não ser razoável nem compatível com as regras da experiência comum que o estado de inquietação, receio e ansiedade se perpetuasse até ao presente, designadamente quando os ofendidos deixaram de ser vizinhos do arguido, ficou por provar o facto B.

Também não se provou que o ofendido MC sofreu vergonha e um trauma do qual tenta recuperar (facto C), por essas afectações psicológicas também não terem sido confirmadas, nem constituírem factos notórios decorrentes de situações como as que se discutem nos autos.

Com base no declarado por VC, que os confirmou, deram-se como provados os factos n.º 18 a 21.

Por não ser compatível com as regras da experiência que tal estado se perpetuasse até hoje, também não se deu como provado que VC tema até hoje pela sua vida e pela vida do seu pai (facto D).

Atento o teor das declarações prestadas por MG, deram-se como provados os factos n.º 22 a 24, por aquela confirmados.

A prova do facto n.º 25 extraiu-se da concatenação entre os depoimentos prestados pelas testemunhas VC e MG, as declarações do arguido e os documentos juntos aos autos pela defesa, após lhe ser comunicada a alteração não substancial dos factos que antecede.

A prova da ausência de antecedentes criminais do arguido (facto n.º 26) assentou no CRC junto a fls. 269.

Finalmente, para dar como provadas as condições pessoais e económicas do arguido (factos n.º 27 a 32), o tribunal estribou-se nas declarações daquele, que, nesta parte, não foram contrariadas por qualquer outro elemento de prova e se mostraram razoáveis.

Pese embora a defesa tenha alegado que o arguido é pessoa doente e fisicamente fraca, tal não se mostrou em consonância com a afirmação do arguido no sentido de que apesar de reformado continua a deslocar-se periodicamente a Angola para trabalhar e, como tal, quedou-se indemonstrado o facto E.

O facto F ficou por provar por não ter sido produzida prova testemunhal idónea para o efeito, sendo certo que, como dissemos, nada do que a testemunha AF declarou se afigurou merecedor de credibilidade.”

3. O recorrente, no recurso que interpôs da sentença, manifesta o propósito de recorrer de facto e de direito.

Do reexame da matéria de facto:

Do disposto nos artigos 410.º, n.º 2, 428.º e 431.º do CPP decorre que a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação é admissível em dois patamares distintos.

Num primeiro, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, para aferição dos vícios previstos no primeiro daqueles preceitos que decorram do texto da decisão: conforme resulta “expressis verbis” de tal preceito, os vícios em causa têm que resultar da própria decisão recorrida na sua globalidade (por si só ou conjugado com as regras da experiência comum), sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos. Num segundo, no contexto mais amplo do recurso da matéria de facto que permite a modificação dessa matéria em razão de prova produzida. Neste âmbito o que se pretende é a reapreciação da prova produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelo n.º3 e 4 do artigo 412.º do CPP.

Já no primeiro de tais patamares a reapreciação da decisão de facto visa aferir da verificação de erros de julgamento que se infiram do seu próprio texto, e tão só - e bem assim da sua coerência interna e concludência, que podem estar comprometidas por motivos diversos, correspondentes aos vários vícios previstos no citado artigo 410.º n.º 2 – vícios cujo conhecimento é aliás oficioso, competindo a qualquer Tribunal de recurso mesmo nos casos em que o conhecimento do recurso se restrinja à matéria de direito conforme decorre da jurisprudência fixada no douto acórdão do STJ com o nº 7/95 de 19.10.1995, in DR I série-A de 28.12.1995.

Em matéria de vícios, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, cumprirá desde já dizer que, apesar de tudo o que tem sido dito e redito pacificamente na jurisprudência e na doutrina, continua a ignorar-se o melhor desses ensinamentos e a trazer aos recursos sempre o mesmo tipo de argumentação quanto à tipificação desses vícios.

Confunde-se sistematicamente o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova e errado enquadramento jurídico; confunde-se o da al. b) - (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação ou até com contradições entre depoimentos ou declarações; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas ou ainda com um errado enquadramento jurídico. E, como se tal não bastasse, só raramente se não faz tábua rasa da invocação de vícios fora do quadro resultante do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência.

Como refere o Prof. Germano Marques da Silva, relativamente ao vício prevenido na al. a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, «É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida (itálico e sublinhado do relator).

Daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º), que é insindicável em reexame da matéria de direito.

Assim, um tal vício só pode ter-se como evidente quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida.

Ocorre este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.

O erro notório é o erro ostensivo, de tal modo evidente, que não passa despercebido ao comum dos observadores ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta (cf. Ac STJ de 31.1.90,CJ,1990 Tº I, p 24 e Prof. Germano M. Silva, in Curso P.P., vol. III, 326, Editª. Verbo, 1994). Ou na expressão comentada de Simas Santos e Leal Henriques, in Recurso em Processo Penal, 4ª ed., Rei dos Livros, “... Trata-se de uma falha grosseira e ostensiva, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si (...) que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis…”.

Integram este vício os erros sobre factos notórios, neles se incluindo os factos históricos do conhecimento geral, a consideração como provados de factos que ofendem as leis da natureza (leis da física ou da mecânica) ou da lógica. Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição de cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos (cf. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, III, pág.259; CASTRO MENDES, Do Conceito de Prova, pág.711; VAZ SERRA, Provas, BMJ 110, pág.61 e ss.). O erro notório na apreciação da prova a que se refere o artigo 410.º n.º 2 al. c) do Código de Processo Penal só existe, quando a convicção do julgador (fora dos casos de prova vinculada) for inadmissível, contrária às regras elementares da lógica ou da experiência comum. Para além disso, a sua essência, consiste em que para existir como tal, terá de se retirar de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O vício de erro notório na apreciação da prova, só pode verificar-se relativamente aos factos tidos como provados e não provados e não às interpretações ou conclusões de direito com base nesses factos.

Lendo a motivação e as conclusões do recurso chega-se à conclusão que o recorrente não convoca a existência destes vícios, mas antes a errada valoração da prova e a sentença não patenteia a existência de tais vícios.

Terá ocorrido erro de julgamento da matéria de facto que importe modificação do julgado?

Decorre do disposto no artigo 428.º, n.º 1, do CPP que as relações conhecem de facto e de direito, acrescentando-se no artigo 431.º que “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.

Nesta conformidade e para se proceder à revisão da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente indicar os factos impugnados (i), a prova de que se pretende fazer valer (ii), identificando ainda o vício revelado pelo julgador aquando da sua motivação na livre apreciação da prova (iii).

Convém, no entanto, deixar claro que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso.

Por outro lado, o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal “a quo”, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente. Neste sentido, entre outros, o Acórdão do STJ de 10-01-2007, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, acessível in www.dgsi.pt.

Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia e possibilita-se o seu conhecimento por esta Relação [cf. Ac. do STJ de 8 de Novembro de 2006, in CJ/Acórdãos do STJ, ano XIV, tomo 3, pág.222 e ss]. [2]

Isto significa que a nossa tramitação recursiva, quanto à sua natureza, foi bastante clara em estruturar os recursos como uma fase complementar da inicial, mediante uma concepção limitada do recurso. Não se alinhou, por isso, numa estruturação dos recursos como uma fase independente da inicial, através de uma concepção plena do recurso, em que tudo se pode discutir, como se o julgamento na instância recorrida de nada valesse.

Assim, o legislador pretende que o recorrente identifique claramente os erros de julgamento que aponta à decisão factual da 1ª instância, indicando os pontos que reputa incorretamente julgados na decisão proferida [3] e os meios probatórios que sustentam a sua censura.

Como foi afirmado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, o registo da prova produzida em audiência visa assegurar um verdadeiro e efetivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, mas acrescentando-se que essa garantia “nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”. E que “o objeto do 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova (que, aliás, embora em menor grau, sempre ocorreria, mesmo com a gravação em vídeo da audiência) ”.

A reapreciação da matéria de facto por parte desta Relação, tem um campo muito restrito, limitado, tão só, aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada. Com efeito, não se trata de um segundo julgamento até porque as circunstâncias não são as mesmas, na 1.ª e na 2.ª instância. Naquela impera a oralidade e a imediação na produção da prova.

A intervenção da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação. A jusante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.

Não basta, pois, que não se concorde com a decisão dada, pois é necessária a demonstração da existência de erro na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efetivamente, no caso, foram produzidos, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, está em melhor posição para poder apreender as emoções, a sinceridade, a objetividade, a isenção, as contradições, as solidariedades, as pequenas cumplicidades, entre muitas outras, avaliando o mais corretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.

Só perante uma situação de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão é que haverá erro de julgamento; situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, por estarmos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, que não compete a este tribunal (ad quem) sindicar.

Forçoso se torna concluir que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação apenas cabe, pois, um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal “a quo” lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou.

Para que possa ser atendido neste Tribunal a divergência quanto ao decidido em 1ª instância na fixação da matéria de facto, deverá ficar demonstrado pelos meios de prova indicados pelo recorrente, a ocorrência de um erro na apreciação do seu valor probatório, exigindo-se, contudo e para tanto, que tais elementos de prova sejam inequívocos quanto ao sentido pretendido por quem recorre.

A verdade processual – não a verdade ontológica, mas aquela que resulta do processo e por isso sujeita a todas as limitações a que o tribunal está sujeito na sua busca – é o resultado probatório processualmente válido, ou seja, a convicção de que certa alegação singular de facto é justificavelmente aceitável como pressuposto da decisão, por ter sido obtida por meios processualmente válidos.

A lei processual não impõe a busca da verdade absoluta, porque sabe que este sempre seria um objetivo inalcançável: a verdade obtida, com todas as limitações nos métodos e meios, é uma verdade histórico-prática, uma determinação humanamente objectiva de uma realidade humana.

A valoração da prova por declarações e testemunhal depende do seu conteúdo, mas também do modo como os mesmos são assumidos pelos declarantes e testemunhas, da forma como são transmitidos ao tribunal, das circunstâncias relevantes, da postura, do comportamento. Tudo isto, afinal, releva para efeitos de atribuição da credibilidade a um determinado depoimento.

Momento fundamental em processo penal é o julgamento com o objetivo de produzir uma decisão que comprove, ou não, os factos constantes do libelo acusatório e, assim, concretizar, ou não, a respectiva responsabilidade criminal. Nessa concretização, o julgador aprecia livremente a prova produzida, com sujeição às respectivas regras processuais de produção, aos juízos de normalidade comuns a qualquer cidadão, bem como às regras de experiência que integram o património cultural comum, extraindo de seguida, as conclusões inerentes à aplicação do direito.

Já ENRICO ALTAVILLA escrevia que "o interrogatório, como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" (Psicologia Judiciária, vol. II, Coimbra, 3.ª ed., pág. 12).

Não é pelo facto de esta ou aquela testemunha ou o arguido apresentar determinada versão, que esta passa a impor-se ao Tribunal. A análise da prova produzida em julgamento supõe uma apreciação crítica, não sendo o tribunal um mero recetor de declarações ou depoimentos produzidos em julgamento.

Os julgadores têm de raciocinar quando analisam a prova produzida em julgamento, o que devem fazer com recurso às regras da lógica, da ciência, da experiência comum, consoante os casos, cabendo-lhes determinar se esta ou aquela prova merece ou não crédito. O importante é que o tribunal se convença da veracidade daquela prova e que esse convencimento se imponha de forma objectiva e racional. Mal iria o Estado de Direito se apenas os crimes presenciados ou confessados em julgamento fossem punidos.

Como exemplarmente se afirmou em acórdão proferido em 8.2.99 na 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do recurso de apelação do processo n.º 1/99, vindo do Tribunal de Circulo de Chaves, de que foi relator o então Exmo. Desembargador, Dr. Mário Cruz, “a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente”.

O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis.

Num primeiro aspeto, trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova. Tal depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (por exemplo, a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível, referente à valoração da prova, intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios. Agora, as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”.

Como salientado pelo Digno Magistrado do Ministério Público, o recorrente não dá cabal cumprimento, quer na motivação, quer nas conclusões, ao preceituado no artigo 412.º, n.º3 e 4 do CPP, não indicando “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”.

De facto, o recorrente, limita-se a por em causa a valoração conferida pelo tribunal às declarações prestadas por MG e VC, que foram ouvidas como testemunhas, quando deveriam tê-lo sido como declarantes, por serem demandantes no pedido cível que deduziram contra o arguido, contrapondo a versão dos factos por si sustentada e pela testemunha AF, sua mulher – conclusões a.) a u.).

Tem razão o recorrente quanto à audição das demandantes cíveis como testemunhas, pois, a lei impede de depor, nessa qualidade, as partes civis – artigo 133.º, al. c) do CPP. Na verdade, às partes civis apenas podem ser tomadas declarações a requerimento seu ou do arguido ou sempre que a autoridade judiciária o entender conveniente, ficando sujeitas ao dever de verdade e a responsabilidade penal pela sua violação, ainda que não prestem juramento – cf. n.º1, 2, 3 e 4 do artigo 145.º e artigo 347.º, n.º1, ambos do CPP.

Porém, como se disse no acórdão da Relação de Coimbra, de 19-12-2001, de que foi relator o ora Juiz Conselheiro Oliveira Mendes, in CJ ano XXVI, tomo 5, pág. 57, “A audição do assistente e da parte civil na qualidade de testemunha em violação do disposto no artigo 133.º, n.º1, al. b) e c), do CPP, não é prova proibida ou processada mediante método proibido, pelo que sobre tal meio de prova não recai qualquer proibição de valoração. Daí que seja uma mera irregularidade a invocar no próprio ato”. No mesmo sentido, o acórdão da Relação do Porto de 5 de Dezembro de 2001, relator Esteves Marques, na mesma CJ, a fls.230 a 232.

Com efeito, em matéria de invalidade da prova há que distinguir entre regras de produção de prova, proibição de produção de prova e proibição de valoração de prova. A prova obtida através de método proibido é insuscetível de valoração pelo tribunal. A prova obtida contra legem, mas através de método não proibido, pode ser valorada sempre que susceptível de se obter através de meio ou procedimento conforme à lei, suposto, evidentemente, que a irregularidade do ato de produção de prova não haja sido arguida no próprio ato, sendo intempestiva a sua invocação apenas em sede de recurso.

Assim, não estava o tribunal recorrido impedido de valorar as declarações prestadas pelas demandantes cíveis, segundo as regras da experiência e a sua livre convicção – art. 127.º do CPP.

Diz ainda o recorrente que a sentença não se pronuncia sobre o valor das declarações que em concreto a testemunha AF proferiu sobre os factos da acusação – o que constitui clara violação da defesa, do contraditório e das regras do julgamento.

Sem razão, porém.

Em primeiro lugar, a fundamentação da matéria de facto não constitui um averbamento de tudo o que foi dito em audiência. Ao motivar, o tribunal tem de dar a conhecer “as razões – necessariamente racionais e objetivas – da decisão (…) O tribunal dará cumprimento à norma, tendo em conta o art. 205.º da CRP, ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência e ao expor as razões de forma objectiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e porque é que outras não serviram (…) Ela destina-se a justificar, de forma racional e objectiva, a convicção formada” (Sérgio Poças, Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Rev. Julgar, nº3).

Impõe-se que o tribunal indique os motivos por que preferiu uma versão dos factos em detrimento de outra.

Ora, concorde-se, ou não, com a valoração da prova, o certo é que o tribunal recorrido se pronunciou sobre o depoimento da referida testemunha, não lhe atribuindo qualquer credibilidade, como resulta da motivação supra transcrita, que aqui se reaviva.

“No que tange à testemunha AF, esposa do arguido, o seu depoimento mostrou-se tão pouco isento, fantasioso e contrário àquilo que são as regras da experiência comum, que o tribunal não considerou digno de crédito nada do que a mesma declarou.

Recordando as alegações do I. mandatário do arguido, no sentido de que não se cumprem as exigências de fundamentação quando se diz que uma testemunha não foi credível, sem que o tribunal tenha procurado demonstrar no decurso do seu depoimento que aquilo que diz não pode ser verdade ou entra em contradição com aquilo que já disse anteriormente, entendemos pertinente a menção às partes do depoimento de AF em que a mesma relatou um episódio o filho de MC e MG se tinha deslocado ao local e quando chegou “bateu com a porta do carro com tanta força que os vidros partiram”, ou quando disse que era a filha dos ofendidos que punha sal na casa dos pais quando os ia visitar ou até mesmo quando afirmou que as discussões com os vizinhos tiveram lugar por causa do mau cheiro das fezes que os vizinhos atiraram de dentro de um balde para o caminho, precisando ter visto que “eram fezes de pessoa”.

Ora, estas afirmações são tão inverosímeis e contrárias à normalidade do acontecer que, por si só, condicionaram a forma como o tribunal valorou o demais declarado pela testemunha que as proferiu, excluindo a fiabilidade e credibilidade do seu depoimento, independentemente de este não estar ou não em contradição com aquilo que disse anteriormente.

Em contraponto com o arguido e a testemunha AF, MG e VC depuseram de forma espontânea, razoável e lógica e não deixaram de reconhecer os problemas que tiveram com os vizinhos quando relataram ao tribunal os episódios que se discutem nos autos, razão pela qual o tribunal atribuiu crédito àquilo que declararam.”

Ainda a que tal não nos considerássemos obrigados, face ao incumprimento pelo recorrente do preceituado no artigo 412.º, n.º3 e 4 do CPP, por ainda ser percetível a sua pretensão e a bem da verdade, ouvimos toda a prova gravada, nos termos do artigo 412.º, n.º6 do CPP, chegamos à conclusão que ela não impõe uma diferente leitura quanto aos factos que foram considerados como integrantes dos crimes de ameaça e que constam dos itens 3, 6, 7, 8, 9 e 10, da acusação e da sentença.

As objeções aportadas pelo recorrente baseiam-se em alegadas imprecisões constantes da fundamentação da matéria de facto, apoiadas em afirmações isoladas proferidas em audiência.

O recorrente, ao longo da motivação e das curtas transcrições que faz, nem sequer atenta no disposto no artigo 412.º, nº 6, do C. P. Penal, uma vez que, ao abrigo deste dispositivo legal, este tribunal ad quem pode, e deve, atender às declarações prestadas em audiência na sua totalidade, de modo seguido, sequencial e lógico, sem síncopes, sem ver apenas passagens cirurgicamente transcritas, ou, dito de outro modo, sem um olhar “interessado” e parcial.

Cumpre dizer, ainda, que a existência de pequenas contradições, de ínfimas deficiências explicativas, e de algumas divergências de pormenor, nas declarações produzidas, no âmbito de um processo de natureza criminal, por uma pessoa que presenciou um determinado episódio - sobretudo quando essa pessoa é vítima dos factos praticados pelo agente do crime -, não é necessariamente sintoma do carácter inverídico do respetivo conteúdo, podendo ser, bem pelo contrário, demonstrativa da sua natureza não estereotipada e da sua espontaneidade.

Por último, e ao contrário do que parece entender o recorrente, as declarações dos ofendidos, mesmo quando estão constituídos assistentes nos autos, ou mesmo quando são apenas demandantes civis (como acontece in casu), podem fundamentar, só por si, uma determinada decisão fáctica, a qual, depois, conduz a uma decisão condenatória do arguido. Não existe aqui, como se nos afigura óbvio, a necessidade de uma qualquer outra especial prova, como se esta fosse catalogada (exigindo-se testemunhas presenciais, ou perícias rigorosas, ou documentos, etc.).

O registo da prova, contra o que pode pensar quem nunca foi solicitado a apreciar com critério, isenção e seriedade a prova, está ainda algo longe de dar uma ideia segura da valia dos depoimentos. Pois que (como diz um conhecido provérbio) se “quem vê caras não vê corações”, muito menos corações vê quem não chega a ver caras….Num depoimento o tribunal analisa conjugadamente as razões de ciência da testemunha com o seu tom de voz, as hesitações, a seriedade, a exaltação ou não com que viveu o facto, a postura corporal e outros "elementos racionalmente não explicáveis". Daí resulta a credibilidade ou não de um testemunho.

Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reações imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerado em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador. Daí que em termos semióticos, a comunicação vá para além das palavras e mesmo estas devem ser valoradas no contexto da mensagem em que se integram.

Se é certo que a decisão de facto do tribunal recorrido assentou essencialmente nas declarações das ofendidas, não existe qualquer impedimento legal nesse sentido.

No antigo sistema da certeza legal ou da prova legal prevalecia o brocardo testis unus, testis nullus (voix d’un, voix de nul, para os franceses), onde uma só testemunha não valia como prova. Hoje essa regra não tem cabimento no regime da livre apreciação da prova, pois admite-se até uma condenação com base num único testemunho. Por outro lado, muitas vezes vários testemunhos não são suficientes para uma sentença condenatória. Portanto, o que importa não é o número de testemunhas, mas a credibilidade do respetivo depoimento e o critério com que o julgador o aferirá.

Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dos tribunais superiores [4], a reconstituição processual da realidade histórica de certo facto humano não é ou dificilmente poderá ser a expressão precisa e acabada de um qualquer meio de prova e particularmente da prova testemunhal, dadas as naturais dificuldades em se reproduzir fiel e pormenorizadamente o que foi percecionado ou vivenciado, geralmente de forma passageira e ocasional, muito antes da audiência de discussão e julgamento, local privilegiado para a produção e discussão das provas.
Muito menos podem os vários depoimentos ser entendidos isoladamente, retirando-os do respetivo contexto, apenas com base em frases transcritas num mero suporte documental e em certas imprecisões de algum dos testemunhos – por vezes justificáveis desde logo pelas circunstâncias dialéticas em que são produzidos, durante o interrogatório cruzado, formal, surgindo sempre um novo elemento em cada questão suscitada por cada um dos sujeitos processuais. Questões já de si formuladas dentro da perspetiva antagónica e por vezes conflituante de acordo com a posição de cada sujeito processual.

A demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade do facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função social de instrumento de paz social e de realização de justiça. A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador (judici fit probatio) um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto [cf. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 434].

O tribunal recorrido explicou por que razões valorou os depoimentos das ofendidas em detrimento das declarações prestadas pelo arguido e pela testemunha AF.

É certo que, ouvido o depoimento prestado pela testemunha AF, não resulta que ela tenha dito, com referência a um episódio em que terá ocorrido a participação do irmão da ofendida VC, que os vidros do carro daquele tenham ficado partidos quando este bateu com a porta do carro (supostamente ao fechá-lo), pois apenas terá dito que tais vidros se foram abaixo, exemplificando como um bruá. Porém, já o mesmo não acontece quanto à afirmação de que as fezes que supostamente terão sido atiradas contra a sua porta não seriam fezes de pessoa. Na verdade, ela excluiu que fossem fezes de cão, tendo afirmado que viu o ofendido MC a lançar um balde com fezes e urina, pelo que é de concluir que se tratava de fezes e urina de pessoa e não de cão. E foram muitas as vezes em que isso aconteceu, segundo referiu a mesma testemunha, que imputou ainda à ofendida V. o lançamento de sal para a garagem dos pais, ainda que tenha referido nunca ter presenciado aquela a fazê-lo.

O que o arguido refere na al. j) das suas conclusões esquece o antes e o depois. O bom relacionamento que existiu entre o arguido e os queixosos (vizinhos com relações próximas) terminou após várias discussões relacionadas com os maus cheiros e a limpeza do caminho situado junto às respectivas residências, pelo que não se vislumbra que o tribunal recorrido tenha errado nesta matéria.

Aliás, o tribunal recorrido reconhece que houve bom entendimento anterior ao referir “Considerando as boas relações que todos os inquiridos declararam existir entre os vizinhos até data anterior à data dos factos e o teor dos depoimentos prestados, deu-se como igualmente como provado o facto n.º 12.”

A testemunha AF, tal como o arguido, não explicaram de forma credível e plausível os motivos dos desentendimentos que levaram os ofendidos a fecharem e vedarem a sua habitação e a colocarem câmaras de vigilância e, posteriormente, após longos anos de vizinhança, a venderem a casa e a saírem do local, o que só pode resultar do mau ambiente motivado pelas ameaças e as atitudes do arguido, pois ninguém gosta de viver onde não se sente bem, onde não sente segurança, pelo que bem andou a senhora juíza ao desvalorizar as declarações por eles prestadas.

Diga-se, ademais:

Quanto ao referido em k., é certo que apenas no artigo 9.º do requerimento de abertura da instrução – e não na contestação – o arguido afirma que o ofendido MC era surdo, mas não vemos relevância nesse lapso para a decisão.

O referido na conclusão p. extrai-se das declarações da demandante MG.

As interpretações que o recorrente extrai das palavras que lhe são imputadas, nomeadamente as referidas em n. e o. das conclusões do recurso – referidas ao ponto 3 dos factos provados - , como referindo-se à sua própria casa são, salvo o devido respeito, absurdas.

A circunstância da então habitação dos ofendidos se situar num plano superior não representa em termos das regras da experiência comum qualquer impossível à execução do mal anunciado, caso o arguido o decidisse levar por diante.

Ora, quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia, como no caso em apreciação, numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende as regras da experiência comum.

Na concreta situação dos autos, o tribunal objetivou e motivou o seu convencimento da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (a processualmente válida), através de uma via suficientemente racionalizável, em que assumiu compreensível relevo a fundamentação da decisão de facto que se transcreveu, onde é perfeitamente perceptível o raciocínio lógico-dedutivo seguido e as razões de credibilidade (ou de falta dela) que mereceram as declarações e depoimento supra assinalados prestados em audiência de julgamento.

Por isso não faz sentido falar em violação do princípio da presunção de inocência ou do in dubio pro reo.

O princípio “in dubio pro reo” só atua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexato conhecimento da realidade objetiva ou subjetiva” (Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615). A violação deste princípio exige a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido (cfr. v.g., o Ac. do STJ de 29-4-2003, proc.º n.º 3566/03-5ª, rel. Simas Santos, in www.pgdlisboa.pt/).

Por isso que para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição não baste, como parece pretender o recorrente, que tenha havido versões díspares ou mesmo contraditórias.

Para que se imponha ao tribunal a aplicação deste princípio é necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador - e não no das partes - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que há-de ser razoável e insanável. Ora, em momento algum resulta da sentença recorrida que o tribunal tivesse tido qualquer dúvida sobre factos relevantes e tenha decidido contra o arguido/recorrente, nem da decisão recorrida resulta que o seu não uso seja censurável.

Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, o acervo factológico em causa não justifica a formulação de juízo valorativo diferente do assumido pelo tribunal a quo, mantendo-se, nos precisos termos a matéria de facto que o mesmo tribunal deu por provada, improcedendo também o recurso nesta parte.

4. Enquadramento jurídico-penal dos factos provados:

Na sentença recorrida foi referido, a esse propósito, o seguinte:
Considerando os factos provados, importa fazer o devido enquadramento jurídico-penal dos mesmos. O arguido vem acusado pela prática de três crimes de um ameaça agravada, p. e p. pelo art.º 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do Cód. Penal.

Dispõe o art.º 153.º, n.º 1 do Cód. Penal que “[q]uem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Atenta a configuração do tipo e o seu enquadramento sistemático, podemos afirmar que o bem jurídico protegido pela incriminação é a liberdade de decisão e de acção, já que a ameaça, ao provocar um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afecta, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade. Há, efectivamente, uma conexão íntima entre a paz individual e a liberdade de decisão e de acção.[5]

No que tange aos elementos constitutivos do tipo objectivo de ilícito, dir-se-á que as seguintes as características essenciais do conceito de ameaça: (1) anúncio de um mal (2) que configure a prática de um ilícito típico, (3) que seja futuro (não iminente) e (4) cuja ocorrência dependa da vontade do agente.

O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual, de tal forma que dever-se-á ter em conta as características de personalidade do agente e as circunstâncias em que a mesma é proferida no sentido de averiguar se, face às mesmas, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”), bem como, concomitantemente, as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada, exigindo-se, ainda, que, em concreto, seja adequado a produzir tais efeitos (crime de perigo concreto).

Como refere o Professor Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 344, “ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não intimidado)”.

No que concerne ao tipo subjectivo de ilícito, trata-se de um crime essencialmente doloso, sendo absolutamente irrelevante que o agente tenha, ou não, a intenção de concretizar a ameaça.

Bastará, pois, que o agente, sejam quais foram as suas motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz é susceptível de constranger.[6]

Revertendo tais considerações ao caso concreto, resultou provado que o arguido disse a MG que lhe puxava pegava fogo à casa em Maio de 2013 e disse a MC e VC que os matava, depois de ter feito um gesto com a mão a atravessar o pescoço para ser entendido por este, por ele ter problemas auditivos (factos provados 4, 6 e 7), sendo que, inequivocamente, tanto uma como outra expressão (e gesto) significam um anúncio de um mal futuro para a vida e bens patrimoniais alheios de valor elevado (no que tange à ameaça de pegar fogo à residência de MG).

Assim sendo, é forçoso concluir que a ameaça proferida foi apropriada, dentro de um critério de razoabilidade próprio do homem médio ou comum, a criar um estado de medo, persistente no tempo, dada a repetição das condutas.

De resto, mais resultou provado que, ao dirigir-se aos ofendidos como referido, quis o arguido, amedrontá-los e inquietá-los, o que veio a suceder (factos provados 8 e 9).

Atentas as concretas expressões proferidas pelo arguido e o circunstancialismo em que as mesmas foram proferidas, entendemos que se mostram integralmente verificados os elementos objectivos do tipo de ameaça.

A propósito, resta-nos dizer que acompanhamos o entendimento expresso no acórdão do TRG de 18/11/2013,[7] segundo o qual “há anúncio de mal futuro sempre que as palavras susceptíveis de provocarem medo ou intranquilidade não tiverem sido proferidas na iminência da execução do crime anunciado, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa.”

Ora, no caso em apreço, não resulta dos factos provados que o arguido tenha proferido as ameaças que se discutem nos autos na iminência de execução do crime anunciado e, por isso, é de entender que todas as expressões dirigidas aos ofendidos encerram um anúncio de mal futuro e não de um mal actual.

Por outro lado, provou-se que o arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar medo e inquietação aos ofendidos e que a sua conduta era proibida e punível por lei (factos provados 8 a 10).

Em face disso, mostra-se igualmente preenchido o elemento subjectivo do tipo legal de ameaça.

Por conseguinte, inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa e mostrando-se preenchidos, por três vezes, os elementos objectivos e subjectivos do crime de ameaça agravada, impõe-se a condenação do arguido pela sua prática, em concurso efectivo (art.º 30.º, n.º 1 do Cód. Penal).”

O recorrente nas conclusões vertidas em v.) a z.) põe em causa a subsunção jurídica dos factos ao crime de ameaça, dizendo, além do mais, que a acusação descreve um anúncio de mal iminente, desacompanhado da intenção do agente, sendo certo que a expressão “eu mato-os”, proferida contra dois numa discussão, não tem qualquer elemento de futuridade, por si só.

Mantendo-se intocado o quadro factológico, adiantamos, desde já, que não podemos deixar de concordar com o enquadramento jurídico levado a cabo pela Meritíssima Juíza do Tribunal recorrido, pois estão presentes todos os elementos constitutivos dos crimes de ameaça.

Apenas algumas notas em relação ao crime de ameaça, já expostas no âmbito do acórdão proferido em 06-09-2011, no processo n.º428/09.0PBELV.E1, com o mesmo relator, acessível in www.dgsi.pt.

O tipo legal de crime de ameaças está inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal e visa sancionar, inequivocamente os ataques ou afetações ilícitas da liberdade individual, pretendendo tutelar a liberdade de decisão e de ação.

Ameaçar, etimologicamente, significa prometer ou pronunciar um mal futuro, de anunciar a intenção de praticar, no futuro, um ato maléfico. Mal futuro que se contrapõe a um mal passado. O anúncio de um mal que se projetaria no passado não constitui ameaça.

Assim, a expressão “eu já no dia 24 deste mês era para o matar com uma carrinha” dirigido pelo arguido ao ofendido, por ser uma ameaça de ação em tempo passado não tem objetivamente, de forma inequívoca, o sentido de uma ameaça para o futuro, pelo que não integra o crime de ameaça” (Ac. da Rel. do Porto de 6-7-2000, proc.º n.º 0010392, rel. Marques Pereira, in www.dgsi.pt)

Mas o futuro é o tempo que há-de vir, aquilo que vai ser ou acontecer num tempo depois do presente (Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário da língua Portuguesa Contemporânea, I vol., 2001, pág. 1846), o tempo que se segue ao presente, o que está por vir, que há-de ser, que deverá estar, que há-de acontecer, suceder (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, 2003, tomo IV, pág. 1828), aquilo que há-de vir (José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Lisboa, 1991, vol. III, pág. 170), que está para ser, que está por acontecer (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 2004, pág. 803).

A propósito do crime de ameaça, escreve-se no Comentário Conimbricense do Código Penal Tomo I, pág. 343. "São três as características essenciais do conceito de ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente. O mal tanto pode ser de natureza pessoal (p. ex., lesão da saúde ou da reputação social) como patrimonial (p. ex., destruição de um automóvel ou danificação de um imóvel). O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal objeto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo ato violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coação, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex. haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de-te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: “vou-te matar já”. Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos da tentativa (cf. artº22º-2 c)). Indispensável é, em terceiro lugar, que a ocorrência do " mal futuro" dependa (ou apareça como dependente) da vontade do agente".

Como observou o Prof. Figueiredo Dias na comissão de revisão do Código Penal, em Actas e Projecto da Comissão de Revisão do Código Penal, Ministério da Justiça-1993, Rei dos Livros, pág. 500, “… o que se exige para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas circunstâncias, não sendo necessário que em concreto se chegue a provocar o medo ou inquietação. Por exemplo: preenche o tipo, o indivíduo que ameaça outro com uma arma, embora este esteja no interior de uma casa perfeitamente defendido da acção, pois tal acção é normalmente adequada quer do ponto de vista do agente quer do que é geralmente reconhecido”.

Isto é, como salienta Taipa de Carvalho, após a revisão de 1995 o tipo penal de ameaça deixou de ser um crime de resultado e de dano, como sucedia na versão originária do de 1982, para passar a ser um crime de mera atividade e de perigo.

Conforme refere este autor, “… não se exige, hoje, a ocorrência do dano (efectiva perturbação da liberdade do ameaçado), mas também não basta (diferentemente do código alemão) a simples ameaça da prática do crime, exigindo-se, ainda, que esta ameaça seja, na situação concreta, adequada a provocar medo ou inquietação.”

Atendendo à classificação dogmática dos crimes de perigo em crimes de perigo abstrato, de perigo abstrato-concreto e concreto, afigura-se-nos estarmos perante um crime de perigo abstrato-concreto, que também pode ser designado pelas noções próximas de crimes de aptidão ou de perigo hipotético, pois o tipo, “… não se limita a descrever uma conduta genericamente perigosa, de acordo com dados estatísticos ou regras de experiência da vida quotidiana, como sucede nos crimes de perigo abstracto, nem exige a comprovação de uma situação concreta de perigo para um ou vários bens jurídicos, desligada mas objectivamente imputável á acção, como acontece nos crimes de perigo concreto.”. Ou seja, não faz parte do tipo a efectiva lesão do bem jurídico protegido (por isso não é um crime de dano), nem a efectiva colocação em perigo do bem jurídico protegido (por isso não será um crime de perigo concreto), mas também não basta a ameaça com a prática de algum dos crimes a que se reporta o n.º1 do art. 153.º do C. Penal, para o preenchimento do tipo.

O legislador não se limitou a escrever no tipo uma conduta genericamente perigosa, de acordo com dados ou regras da vida da experiência quotidiana, como sucede nos crimes de perigo abstracto; exige ainda ao intérprete e aplicador do direito, – como é próprio dos tipos em que o legislador usa expressões do género ”idóneo para lesar”, “susceptível de prejudicar”, “apto a causar dano"- a comprovação no caso concreto de uma aptidão da acção para atingir aqueles bens jurídicos. “Produz-se desta forma uma combinação na acção de elementos abstractos e concretos de perigo, concentrados na acção, de tal sorte que o perigo nem está abstractamente contido na “ratio legis” [como nos crimes de perigo abstracto], nem surge tipicamente exposto como evento [como sucede nos crimes de perigo concreto], mas apresenta-se como uma qualidade intrínseca à acção.”

Os crimes de abstracto-concreto admitem a possibilidade de a perigosidade da conduta ser objeto de um juízo negativo, que exclua a tipicidade da conduta.

No que respeita ao tipo do art. 153.º do Código Penal, exige-se a comprovação no caso concreto, da aptidão genérica das ameaças contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual, para provocar medo ou inquietação ou prejudicar a liberdade de determinação de pessoa determinada.

A comprovação desta aptidão genérica no caso concreto, corresponde ao juízo de adequação de que fala o tipo legal, o qual deve aferir-se de acordo com um critério objetivo-individual, usando a terminologia do Prof. Taipa de Carvalho, mas atribuindo-lhe um significado não totalmente coincidente.

Objetivo, na medida em que a adequação da ameaça, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, deve ser aferida pelo critério do homem comum, da generalidade das pessoas, e não de acordo com um critério subjetivo, ou seja, segundo as convicções ou valores do agente, que se impusesse averiguar caso a caso. Individual, porque a adequação da ameaça há-de ser aferida face às características psíquicas e mentais do ameaçado e não da generalidade das pessoas ou de determinadas categorias de pessoas. Isto é, dado o carácter individual do bem jurídico tutelado pelo tipo do art. 153.º (liberdade de decisão e de acção), o que está em causa é a perigosidade particular da acção e não a sua perigosidade geral, contrariamente ao que sucede relativamente aos bens jurídicos supra-individuais.

Daí que possa concluir-se com Taipa de Carvalho que, “… a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado).”

Por outro lado, a adequação da ameaça, de que depende a verificação do perigo típico, é um conceito normativo e não naturalístico, como referido supra, visto que o juízo de perigo é perspetivado, não como um juízo sobre um curso causal real, «mas sobre uma relação causal possível (provável)», pois o perigo significa «a probabilidade cognitiva de produção de um determinado acontecimento danoso», «um juízo fundado na experiência geral, no conhecimento objetivo das leis que regulam os acontecimentos, que exprime o receio fundado da lesão de um bem jurídico».

À conclusão sobre a probabilidade de produção do acontecimento danoso, isto é, à conclusão sobre a verificação do perigo, há-de chegar-se, como refere o Prof. Augusto Silva Dias, através de uma prognose póstuma, ou seja, de um juízo de idoneidade realizado posteriormente, mas reportado ao momento da acção e não, – como sempre terá de ser num crime de perigo concreto – a partir da análise de uma situação real de perigo, conceptualmente distinta da situação de lesão do bem jurídico.

Em suma, as ameaças a que se reporta o art. 153.º do C. Penal são adequadas, quando o juiz, colocando-se no momento da acção e fazendo apelo às regras da experiência comum e aos conhecimentos de que dispõe, sobre a pessoa do ameaçado e demais circunstancialismo relevante (com base no conjunto da factualidade provada), puder concluir que aquelas ameaças são concretamente idóneas para provocar, na pessoa ameaçada, medo ou inquietação ou prejudicar a sua liberdade de determinação.

Assim, cabe ao juiz verificar da existência do perigo, de comprovar positivamente a presença de uma possibilidade séria de lesão, que no caso se traduz na adequação da acção para lesar o bem jurídico (a liberdade de decisão e de acção), como aludido, dispensando-se a demonstração da efectiva colocação em perigo, contrariamente ao que sucedia no art. 155.º da versão originária do C. Penal de 1982, sem prejuízo da possibilidade de a perigosidade da conduta ser objeto de um juízo negativo, que exclua a tipicidade da conduta, como referido supra.

No caso, a sentença recorrida não se afasta desta concepção do tipo legal.

A questão que se coloca é se estamos perante o anúncio de um mal iminente ou futuro.

Como doutamente se refere no acórdão da Relação de Guimarães de 18-5-2009, relatado pelo Exmo. Desembargador Cruz Bucho, acessível in www.dgsi.pt/jtrg, “o mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer. Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há-de ser, que há-de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer. É claro que sendo o mal iminente poderemos estar perante uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é do respectivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, actos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico.

Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.
Quando alguém afirma que “vou-te matar”, poderemos estar perante uma tentativa de homicídio, de tentativa de coacção, que consomem naturalmente a ameaça, ou perante um crime de ameaças.


Tudo depende da intenção do agente.

É que, para haver tentativa não basta a prática de actos de execução é necessário que esses actos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º1).

Aliás, algumas linhas à frente do excerto acima citado e que tantas incompreensões têm gerado, o próprio Prof. Taipa de Carvalho esclareceu que “Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cf. art. 22º-2-c) – op. cit. § 7, pág. 343 (itálico nosso).

Se, por exemplo, o agente não tem intenção de matar, aquela expressão, não integra um acto de execução de um crime de homicídio, mas integra claramente um crime de ameaças, verificados os demais pressupostos deste tipo de crime, nomeadamente a consciência do agente da susceptibilidade de provocação de medo ou intranquilidade [cfr. neste sentido, v.g., o Ac. da Rel. de Lisboa de 17-6-2004,proc.º n.º 3525/04, rel. Almeida Cabral “(…) o agente que no calor de uma discussão, de natureza familiar, diz para a vítima em tom sério ‘mato-te’, comete o crime de ameaças previsto no art.º153º do Cód. Penal)”,in www.pgdlisboa.pt), o Ac. da Rel. do Porto de 5-1-2000, proc.º n.º 0040533, rel. Pinto Monteiro, em que estavam em causa as expressões “sua filha da puta, eu rebento-te os cornos” e “mato-vos a todos, seus filhos da puta” dirigidas pela arguida à assistente, o Ac. da Rel. do Porto de 25-8-1999, proc.º n.º 9910861, em que estava em causa a conduta da arguida que intimidou a assistente, encostando à cabeça desta uma pistola que sabia não estar municiada, ao mesmo tempo que disse que a matava e que já tinha sete palmos à conta dela de sepultura”, ambos in www.dgsi.pt,], sendo certo que a motivação da ameaça como crime autónomo é irrelevante [neste último sentido cfr. Taipa de Carvalho, cit., §5, pág. 342 e §26, pág. 351, e o Ac. da Rel. do Porto de 18-9-2002, proc.º n.º 0110489, rel. Baião Papão (“Para integrar o elemento subjectivo deste ilícito o que releva é a consciência do agente da susceptibilidade de provocação de medo ou intranquilidade, sendo irrelevante que o agente tenha ou não a intenção de concretizar a ameaça”)].

Nem se diga, como já vimos escrito, que a expressão “eu mato-te” traduz um mal iminente e por isso conforma um acto de execução do crime de que afinal o agente desistiu, não prosseguindo a sua conduta. É que, aquela desistência tem por efeito que a tentativa deixa de ser punível. Mas o que deixa de ser punível é a tentativa de homicídio, sendo o agente punido por ameaça, ofensa à integridade física, coacção, etc, se, em determinadas circunstâncias, os actos de execução integrarem a prática de tais ilícitos [assim, no confronto com os crimes de coacção (artigos 154º, 155º, 156º, 163º, 347º) e de extorsão, o Prof. Taipa de Carvalho assinala que o crime de ameaça cede perante os crimes de coacção e de extorsão, “salvo se em relação a estes se verificar uma desistência relevante da tentativa, e aquele se tiver consumado (isto é a ameaça tiver chegado ao conhecimento do destinatário) ”, op. cit., §29, pág. 351].

Nem se diga, ainda, que se o mal for iminente a ameaça do mal ou entra no campo da tentativa ou, não entrando, logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ter ficado o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali por diante.

A circunstância de o espaço temporal que medeia entre o mal anunciado e a certeza da sua não consumação ser maior ou menor pode ser relevante para efeitos de determinação da medida da pena, mas é indiferente para efeitos de incriminação.

O que se exige é tão-somente que a ameaça, o anúncio do mal futuro, seja susceptível de afectar a paz individual ou a liberdade de determinação. Se essa susceptibilidade se prolonga mais ou menos no tempo é irrelevante para efeitos de incriminação.

Se o visado não ficou condicionado nas suas decisões e movimentos dali por diante é, igualmente, irrelevante. O que é decisivo é que, ainda que por momentos breves, o anúncio daquele mal, depois não concretizado, fosse susceptível de afectar aqueles bens jurídicos, fosse capaz de gerar medo, inquietação ou de prejudicar a liberdade de determinação.

Acresce que no caso em apreço a expressão proferida não foi “vou-te matar já”, mas sim “vou-te acabar com a vida”, e a ausência do advérbio “já” sempre retiraria iminência ao mal ameaçado…”

Em conclusão:

Torna-se, pois, necessário que a ameaça anuncie um mal futuro não imediatamente exequível que, objectiva e subjetivamente, seja idóneo a provocar medo ou inquietação na pessoa do ameaçado e que a sua concretização apareça como apenas dependente da vontade do agente que a profere. Não sendo necessário que o destinatário tenha efetivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade de determinação. Basta que as palavras ou sinais feitos tivessem essa potencialidade. [8]

“Tudo o que não seja execução iminente ou em curso – caso de uso de violência – é futuro, em termos de anúncio de causação de um mal, sendo indiferente que a expressão usada seja “agora”, “hoje”, amanhã ou para o ano.

Futuro é todo o tempo compreendido naquele em que é proferida a expressão que anuncia o mal que o seu autor diz que será causado, não acompanhada, esta, de actos correspondentes à sua simultânea ou absolutamente imediata concretização. Ou seja, sempre que alguém dirija a outrem uma expressão verbal – ou de outra natureza – de anúncio de causação de um mal, não acompanhando essa acção com os actos de execução correspondentes – permanecendo inativo em relação à execução do mal anunciado –, todo o tempo que durar essa inação e se mantiver a possibilidade de o mal anunciado se concretizar é o futuro, em termos de interpretação da expressão em causa.” (Neste sentido, e que também perfilhamos, o acórdão da Relação de Guimarães de 07/01/2008, relatado pelo Desembargador Ricardo Silva no proc. 1798/07-2, cessível em www.dgsi.pt.).

À luz destas considerações, os ditos e gestos do arguido, no contexto em que foram produzidos e de acordo com o juízo objetivo-individual acima referido, são de molde a ser consideradas pela generalidade das pessoas, pelo “homem comum”, como adequadas a provocar nos ofendidos, medo ou inquietação pela sua vida e bens (casa), como efectivamente aconteceu.

E, tendo o arguido agido voluntária e conscientemente, com o propósito de causar temor e inquietação nos ofendidos, nos termos que se deram por provados, e sabendo que a sua conduta era proibida por lei, afigura-se-nos inequívoca a prática dos crimes de ameaça agravada por que foi condenado, pelo que improcede a pedida absolvição

Concluímos, pois, que também do ponto de vista da qualificação jurídica dos factos, não se verifica erro de julgamento a censurar ao tribunal a quo.

E não tendo sido questionada a medida da pena, questão que o legislador considera autónoma para efeitos de recurso [cf. artigo 403.º n.º2, al. d) e f) do CPP], nada nos resta do que manter a sentença recorrida.

Em razão da sucumbência, cumpre ao arguido-recorrente o pagamento das custas, nos termos prevenidos no artigo 513.º n.ºs 1 e 3 do CPP e no artigo 8.º, n.º9, do RCP.

III – Decisão

Desta sorte e pelos expostos fundamentos, decidem os Juízes desta Secção Criminal, em:

A) Rejeitar, por manifestamente improcedente, o recurso interlocutório interposto pelo arguido A. do despacho que lhe indeferiu a nulidade do despacho de pronúncia e, de harmonia com o disposto no n.º3 do artigo 420.º do CPP, vai condenado na importância correspondente a 3 UC;

B) Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo recorrente da decisão final, mantendo, em consequência, a douta sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s.

(Processado por computador e integralmente revisto pelo relator)

Évora, 2016-10-25

Fernando Ribeiro Cardoso

Gilberto Cunha
__________________________________________________
[1] - Vide Acórdão do TC n.º 482/2014, de 25 de Junho de 2014.

[2] - Como se refere neste aresto, “Impugnada, em sede de recurso, a matéria de facto fixada em 1.ª instância, a Relação não pode eximir-se à respectiva apreciação, a pretexto de que o modo como aquele tribunal procedeu à apreciação da prova constituir matéria não sindicável, por respeitar ao princípio da livre apreciação da prova. O tribunal da Relação, em sede de fundamentação do seu acórdão, terá necessariamente que abordar especificamente cada uma das provas e correspondentes razões indicadas, salvo naturalmente aquelas cuja consideração tiver ficado prejudicada, sob pena de omissão de pronúncia, conducente à nulidade de tal aresto.”

[3] - Como diz o Prof. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição, a pág. 1144, «a especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado.»

Também Damião da Cunha, Caso Julgado Parcial. Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção Num Processo de Estrutura Acusatória, Porto 2002, Publicações Universidade Católica, p. 529, diz que “… o ponto de facto deve ter correspondência num «ponto» do dispositivo da sentença (nas questões que nela estão contidas). Pelo que (…) o «ponto de facto» que é impugnado (por ser considerado incorretamente decidido) é aquele que, se tivesse sido corretamente decidido (na ótica do recorrente), teria conduzido à alteração da decisão (absolutória ou condenatória) ou à alteração da medida da pena.”

[4] - Vide, entre outos, o acórdão desta Relação de Évora de 06-04-2006, proferido no processo n.º44/06 – 1, e o acórdão da Relação de Guimarães de 29-01-2007, in processo n.º 2053/06 – 1, acessíveis in www.dgsi.pt

[5] Taipa de Carvalho “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, p. 342.

[6] Cfr. Acórdão do TRC de 22/10/2008, processo 282/07. 7GAALB.C1, disponível em www.dgsi.pt.

[7] Processo n.º 52/11.8GBFLG.G1, disponível em www.dgsi.pt.

[8] - Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, págs. 412 e 67- 68.