TRÂNSITO EM JULGADO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
Sumário


I – Após o trânsito em julgado do acórdão condenatório jamais podem ser invocadas ou oficiosamente conhecidas quaisquer nulidades, mesmo as insanáveis, cometidas em fase anterior do processo.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora
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I- Relatório
AH, condenado a cumprir pena de dezasseis anos de prisão, veio recorrer do despacho que lhe indeferiu requerimento visando a anulação de todo o processado (nomeadamente as notificações que foram feitas a tal advogado, nelas se incluindo a notificação do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25-11-2014 que o condenou na pena de prisão já mencionada), após a suspensão pela Ordem dos Advogados em Janeiro de 2012 do mandatário a quem outorgara procuração (MG).

Apresenta as seguintes conclusões:

“1- Tendo sido cancelada a inscrição como Advogado em 12/01/12, o Sr. Dr. MG, era-lhe inexigível pratica qualquer acto processual sob pena de estar a cometer um crime de usurpação de funções previsto e punido pelo artº. 368º. do CPC.

2- Todos os actos subsequentes não lhe dizem respeito e são ineficazes em relação ao Recorrente.

3- Além do mais, o Tribunal “a quo” tomou conhecimento dessa sanção nos termos do artº. 137º. Do Estatuto da Ordem dos Advogados.

4- Dos actos não resulta que o Arguido tenha sido notificado dos actos processuais praticados após o cancelamento da inscrição do Sr. Dr. MG.

5- É inconstitucional a interpretação feita pelo Tribunal do artº. 48º. do CPC no sentido de que um advogado tenha a inscrição cancelada não existe fundamento para declarar nulos e de nenhum efeito todos os actos processuais após aquela determinação.

6- Incumbia ao Tribunal “a quo” notificar o Arguido para incumbir novo mandatário. Não o tendo feito, violou o artº. 32º. da CRP

7- O despacho recorrido deve ser substituído que ordene a ineficácia dos actos após o cancelamento a que alude a conclusão 1”.
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O Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência, invocando o seguinte:

“… entende o Ministério Público, ao invés do que sustenta o ora recorrente, que não se verifica in casu a arguida nulidade.

Com efeito, como aliás se refere no douto despacho em crise, a Ordem dos Advogados veio esclarecer os autos de que efetivamente o Dr. MG tem a sua inscrição cancelada na OA desde 20/01/2012, não podendo exercer atos próprios de advogados desde essa mesma data.

O que significa que o mesmo causídico deixou de poder representar regularmente o arguido ora recorrente desde 20/01/2012, ou seja, em data anterior à decisão proferida pelo Tribunal de Relação de Évora que condenou o mesmo AH a 16 anos de prisão – decisão essa que data de 25/11/2014.

Todavia, essa irregularidade verificada na inscrição do mesmo advogado na Ordem dos Advogados não tem quaisquer repercussões na marcha processual dos presentes autos, não existindo ainda fundamento legal para que se considerem inexistentes ou nulos todos os atos praticados pelo mesmo causídico.

É que o cancelamento da inscrição do mesmo advogado na Ordem dos Advogados – que de facto se verificou a partir de 20/01/2012 – não consubstancia de nenhuma forma que seja uma situação de falta, insuficiência ou irregularidade de mandato.

Com efeito, no caso dos autos o advogado em questão, não obstante ter a sua inscrição cancelada pela respectiva Ordem, exerceu o mandato judicial no âmbito de uma procuração forense absolutamente regular e que à partida não enfermava de quaisquer vícios.

E, até ao momento em que o juiz determine que o Advogado em causa não pode continuar a intervir no processo – por lhe ter sido comunicado, por exemplo, o cancelamento da respectiva inscrição na Ordem – o mesmo causídico nomeado ou constituído no mesmo processo mantém a plenitude das suas funções.

Por outro lado, a situação em questão não consubstancia a nulidade insanável prevista na al. c) do artigo 119º do C.P.P., uma vez que o advogado em causa – mesmo com sua inscrição cancelada pela respectiva Ordem – não deixou de estar presente em todos os atos em que a lei processual penal exigia a comparência do defensor do arguido.

Além de que o requerimento do arguido a suscitar a nulidade do processado por falta de mandato regular deu entrada no dia 05/02/2016 (vide fls. 5806 a 5808), tendo a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora transitado em julgado, relativamente ao arguido ora recorrente, já em 13/01/2015.

Pelo que, mesmo a considerar-se que a invocada irregularidade do mandato configuraria uma nulidade insanável que invalidaria todo o processado após o cancelamento da inscrição do causídico em 20/01/2012 – entendimento que não perfilhamos de todo, como acima se deixou dito – tal situação ficaria de qualquer forma coberta ou sanada pelo trânsito em julgado da mesma decisão do TR de Évora – o que significa que transitada em julgado aquela decisão, já não podem ser invocadas ou oficiosamente conhecidas quaisquer nulidades, mesmo aquelas que a lei qualifica de insanáveis...”.

Nesta Relação, o Exº Procurador-Geral Adjunto colocou o seu visto.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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II- Fundamentação
Despacho recorrido (transcrição)

“AH, arguido nos autos, condenado a cumprir pena de dezasseis anos de prisão, alegando, em síntese, que o mandatário a quem outorgou procuração (MG) foi suspenso, sem o seu conhecimento, da Ordem dos Advogados em 1.1.2012, veio requerer a anulação de todos os atos praticados após tal suspensão, nomeadamente as notificações que foram feitas a tal advogado, nelas se incluindo a notificação do acórdão do Tribunal da Relação de Évora que o condenou na pena de prisão já mencionada.

Pedida informação à Ordem dos Advogados, veio a mesma esclarecer que, efetivamente, o Sr. Dr. MG, tem a sua inscrição cancelada na Ordem dos Advogados desde 20.1.2012, não podendo exercer atos próprios de advogados desde essa data (cf. fls. 5857).

Dada vista ao Ministério Público para se pronunciar, nada foi requerido.

Cumpre decidir.

Em face da informação prestada pela Ordem dos Advogadas acima mencionada, resulta indubitável que Sr. Dr. MG deixou de poder representar regularmente o arguido AH desde 20.1.2012, ou seja, em data anterior à decisão proferida pelo tribunal da Relação de Évora que condenou o arguido AH a dezasseis anos de prisão, o qual data de 25.11.2014 (cf. fls. 5478).

Conforme referido no acórdão da Relação do Porto de 9.2.2015[1], a cujo entendimento nos acolhemos:

I - Há que fazer a destrinça entre mandato e procuração: mandato é um contrato, a procuração é um ato unilateral. O mandato e a procuração podem coexistir ou andar dissociados: aquele sem esta, esta sem aquele, sendo que, aquela apenas representa a exteriorização desses poderes: mais não é que o meio adequado para exercer o mandato.

II - Embora a epígrafe do artigo 40.º do anterior CP Civil (atual artigo 48.º), seja “falta, insuficiência e irregularidade do mandato” do que aí se cura é da falta de procuração e da sua insuficiência ou irregularidade e não um qualquer vício que afete o contrato de mandato que lhe subjaz que nem precisa de ser junto aos autos.

III - Só os licenciados em Direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados podem, em todo o território nacional, praticar atos próprios da advocacia (artigo 61.º, nº 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados

IV - Se o advogado exerceu o mandato judicial, conferido por procuração regular, sem a sua inscrição estar em vigor na respetiva Ordem é patologia que só reflexamente poderá ter repercussão no processo respetivo e de forma alguma se poderá afirmar que se trata de uma situação de falta, insuficiência ou irregularidade de mandato.

V - O estatuto da OA regula tal situação referindo que as penas disciplinares iniciam a produção dos seus efeitos no dia seguinte àquele em que a decisão se torne definitiva (artigo 168.º do EOA) e ainda que, os que transgredirem o preceituado no n.º 1 do artigo 61 do EOA (não inscrição) serão excluídos do processo por despacho do juiz, ou do tribunal, proferido oficiosamente, a reclamação dos conselhos ou delegações da OA ou a requerimento dos interessados, e o transgressor será inibido de nela continuar a intervir.

VI - Trata-se de um poder-dever que impende sobre o juiz de inibir o transgressor de continuar a intervir no processo a partir do momento em que tal situação lhe é comunicada, e não se vislumbra motivo pelo qual os atos praticados anteriormente por advogado constituído com base numa relação de confiança deverão ser objeto de desconfiança processual.

VII- Até ao momento em que o juiz o determina, o advogado nomeado ou constituído mantém a plenitude das suas funções, não existindo fundamento legal para que se considerem inexistentes ou nulos todos os atos processuais praticados pelo advogado e por consequência sejam repetidos, antes se aproveitando toda a sua atividade, que foi exercida em nome e em representação do mandante.

No mesmo sentido se pronuncia o acórdão da Relação de Porto de 29.1.2014[2], em cujo sumário se lê:

Tendo o defensor sido nomeado e mantido o exercício da sua representação e assistência de forma regular, uma superveniente crise nas suas relações com a Ordem que integra, e sequente aplicação de sanção (de suspensão) por esta, é patologia que só reflexamente poderá ter repercussão no processo penal, e de forma alguma se poderá afirmar que se trata de uma situação de falta de advogado relevante como nulidade principal”.

Ainda no mesmo sentido se pronunciou acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.4.2010[3]:

II. De facto, o art. 64.º do CPP estabelece no n.º 1 que é obrigatória a assistência do defensor nos recursos ordinários ou extraordinários [n.º 1]; mas a inobservância do aí preceituado não constitui a nulidade insanável que o requerente pretende, pois só é tratada como tal a falta ou ausência do arguido ou do seu defensor nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência.

No Código de Processo Penal Comentado, referido na nota de rodapé n.º 3 acrescenta-se, relativamente a tal acórdão, que não constitui a nulidade da alínea c) do artigo 119º, do CPP, a circunstância de o requerente (no caso analisado pelo acórdão requerente de habeas corpus), ter constituído como mandatário quem, embora apresentando-se como advogado, se encontrava suspenso do exercício da profissão, por decisão disciplinar da Ordem dos Advogados.

Acresce que o requerimento do arguido a suscitar a nulidade do processado por falta de mandato regular deu entrada no dia 5.2.2016 (cf. fls. 5806), tendo o Tribunal da Relação de Évora transitado em julgado relativamente ao arguido requerente em 13.1.2015 (cf. fls. 5742).

Ora, conforme se refere no já citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.4.2010:

IV - De todo o modo, mesmo as nulidades insanáveis, que a todo o tempo invalidam o ato em que foram praticadas e os atos subsequentes, ficam cobertas pelo trânsito em julgado da decisão, o que significa que, transitada em julgado a decisão, jamais podem ser invocadas ou oficiosamente conhecidas quaisquer nulidades, mesmo aquelas que a lei qualifica de insanáveis.

Assim sendo, ainda que se entenda que não se está perante mera irregularidade, mas nulidade insanável, o certo é que tal nulidade foi invocada após o trânsito em julgado do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora e, como tal, considerar-se sanada.

Por todo o exposto, julga-se improcedente a nulidade invocada pelo arguido.

Notifique-se e, após trânsito, emitam-se mandados de condução ao estabelecimento prisional relativamente ao arguido em causa”.
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Apreciando
Analisando o recurso cumpre dizer de forma sintética que não assiste qualquer razão ao recorrente.

De facto o despacho recorrido não merece qualquer censura, sendo bem claro na apreciação do caso e estribando-se ademais no que constitui jurisprudência uniforme e reiterada sobre casos deste jaez que cita com toda a adequação.

Ou seja, por um lado a situação constatada mais não traduz que eventual irregularidade há muito sanada pelo decurso do tempo, jamais sendo sequer subsumível à nulidade insanável prevista no art. 119º, al. c) do CPP.

Por outro lado, verificando-se o trânsito em julgado do acórdão que condenou o recorrente em 13-1-2015, jamais podem ser invocadas ou oficiosamente conhecidas posteriormente quaisquer nulidades mesmo as insanáveis.

Finalmente, não se detecta qualquer inconstitucionalidade em tal orientação jurisprudencial - que, aliás, o condenado, ora aqui recorrente, tão pouco fundamenta ou escalpeliza, limitando-se a referi-la de forma manifestamente conclusiva e irrelevante - sendo certo, contudo, que o Tribunal Constitucional no respectivo acórdão 146/2001, de 28-3, já considerou não padecer de qualquer inconstitucionalidade a interpretação no sentido de que mesmo a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. c) do CPP não pode ser declarada depois de transitada em julgado a decisão final condenatória.

Improcede, consequentemente, o recurso.

III- Decisão
Nos termos expostos, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.
Évora, 10/1/2017

ANTÓNIO CONDESSO
MARIA LEONOR BOTELHO
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[1] Disponível em texto integral, in www.dgsi.pt

[2] Disponível em texto integral, in www.dgsi.pt

[3] Referido in Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva de cinco juízes conselheiros, 2014, Almedina, pp.392 e cujo sumário pode ser consultado in www.dgsi.pt (processo nº 21/07.2SULSB-E.S1).