DECLARAÇÃO DE CONTUMÁCIA
SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
CONTRADITÓRIO
Sumário


I - O contraditório consiste na obrigatoriedade de ouvir o arguido (ou outro interveniente processual) antes de ser tomada uma decisão que pessoalmente o afecte. Corporiza a garantia efectiva de que a todo o sujeito afectado por uma decisão é dada a possibilidade de ser previamente ouvido e de se poder pronunciar sobre as questões que lhe disserem respeito. Permite também que esse sujeito contribua activamente para que o tribunal decida melhor.

II - Independentemente de se saber se a audição do arguido precedentemente à decisão sobre uma separação de processos se tornaria obrigatória, o certo é que a eventual preterição de contraditório sempre configuraria aqui mera irregularidade processual, não arguida em devido tempo.

Texto Integral


Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo n.º 23/12.7GDCUB, da Comarca de Beja (Cuba), foi proferido despacho a declarar cessada a contumácia relativamente ao arguido M, a determinar a devolução do processo aos serviços do Ministério Público a fim de ser dado cumprimento ao disposto no artigo 336º, n.º 3, do CPP, e a ordenar a separação de processos relativamente a co-arguido contumaz JR.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido M., concluindo:

“a. A decisão de separação de processos deveria ter sido precedida de prévia consulta ao arguido, para efeitos de exercício do contraditório, de modo a evitar a prolação de uma decisão surpresa – o que constitui nulidade, atento o disposto no art. 3, nº 3 do CPC, aplicável ex vi do art. art. 4 do CPP;

b. O arguido arguiu a nulidade de falta de notificação e requereu a instrução, pelo que ficou esta sanada, nos termos do disposto nos arts 121, nº 2, e 336, nºs 2 e 3, ambos do CPP;

c. O douto despacho recorrido, com a criação desnecessária de formalismos e procedimentos, violou o disposto nos arts 122 e 123 do CPP;

d. A competência para ordenar a separação de processos não cabe ao juiz de julgamento, nos presentes autos, uma vez que o procedimento adequado impunha a remessa dos autos ao juiz de instrução – e só este teria competência para o efeito;

e. O douto despacho recorrido violou o princípio da vinculação temática do Tribunal, como violou o regime regra da conexão de processos e o art. 30 do CPP;

f. O Tribunal deveria ter ordenado os devidos procedimentos de notificação do arguido ainda contumaz, em prol da regularização da nulidade de falta de notificação, pois há nos autos informação de que o arguido vive na EU;

g. A separação de processos fragiliza a posição do filho, ora recorrente, tornando-o responsável autónomo por uma atuação de que foi mero sequaz, pelo que a justiça deve sobrelevar a proteção do menor em vez da simples celeridade;

h. Nos termos do douto acórdão desta Veneranda Relação, de 22/06/2012, proferido no proc. 26/08.6IDSTBA.E1, “a separação de processos deve ser exercida de forma deveras restritiva”. Nos presentes autos não se justifica, pelo que deve ser revogada.”

O Ministério Público respondeu ao recurso no sentido da improcedência, concluindo:

“1.ª O Douto Despacho recorrido, que determinou a separação de processos, tem por fundamentação as alíneas b), c) e d) do artigo 30.º do Código do Processo Penal, verificando-se devidamente preenchidos os seus pressupostos.

2.ª Caso a separação de processos não tivesse sido determinada, existiria um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, atento o prazo prescricional e para o interesse do ofendido.

3.ª Acresce que pela circunstância do co-arguido ter sido declarado contumaz, o ora recorrente seria arguido por um tempo indeterminado, sujeito a termo de identidade e residência, sem data previsível para ser sujeito a julgamento, o que se revela incompatível com o direito constitucionalmente previsto no artigo 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

4.ª A decisão judicial de separação de processos não carece de concordância do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado, sendo impugnável através de recurso.

5.ª Na fase de julgamento, a competência para a separação dos processos é ordenada pelo juiz presidente, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado.

6.ª A declaração de contumácia de um co-arguido, tem como consequência a separação de processos, quanto ao arguido não contumaz tendo em vista o seu julgamento em separado, como ocorreu no caso em apreço.

7.ª Deste modo, o despacho recorrido não violou os artigos 122.º e 123.º do Código do Processo Penal, ou outro preceito legal.”

Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer, pronunciando-se também no sentido da confirmação do despacho.

Não houve resposta ao parecer. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. O despacho recorrido é o seguinte:

“Por despacho de fls. 274 a 275, foram os arguidos JR e M declarados contumazes, perante a impossibilidade de notificação do despacho que designou dia para realização de audiência, porquanto não prestaram Termo de Identidade e Residência, em cumprimento do disposto pelo artigo 335º do Código de Processo Penal.

Em face da informação que antecede e conforme documento de fls. 298, verifico que o arguido M. já prestou TIR nos presentes autos.

Atentas as finalidades próprias da declaração de contumácia, e uma vez que o arguido M. prestou termo de identidade e residência, declaro a caducidade da declaração de contumácia relativamente a este arguido, nos termos do disposto no artigo 336, nº1, do Código de Processo Penal.

Cumpra o disposto no artigo 337º, n.º 6 do Código de Processo Penal. Remeta ao Registo Criminal. Notifique e comunique.

Ponderando que o arguido JR foi igualmente declarado contumaz, em face da informação que antecede, sendo desconhecido o seu paredeiro, entendo que essa situação pode prolongar por tempo indefinido e imprevisível o julgamento do co-arguido M.

Por outro lado, representaria tal circunstância grave risco para a pretensão punitiva do Estado (e particular) no que a este arguido concerne, pois, quanto a este, não ficará o prazo prescricional suspenso.

Pelos expostos fundamentos, determino tenha lugar a separação de processos, no que respeita ao arguido JR, para o que deverá ser extraída certidão integral dos autos, com a sua consequente distribuição e autuação – cfr. art.º 30.º, n.º 1, alínea b), 1.ª parte, alíneas c) e d) e 31.º, alínea b), do Código de Processo Penal. Notifique.

Apesar de ter sido feito constar nos autos, a fls. 185, que, então, se mostravam efectuadas todas as notificações e que havia decorrido o prazo para requerer instrução, a verdade é que, por razões de coerência e lógica de raciocínio, não tendo o arguido prestado anteriormente Termo de Identidade e Residência, não podemos considerar validamente efectuada a notificação da acusação ao arguido.

Nestes termos e para que possa ser dado cumprimento ao disposto no artigo 336.º n.º 3 do Código de Processo Penal, determino a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público, para os fins ali enunciados”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões a apreciar respeitam ao princípio do contraditório e à separação de processos.

Do princípio do contraditório

Começa o recorrente por invocar a violação do princípio do contraditório, pretensamente assente na circunstância de a decisão recorrida (na parte em que se ordenou a separação de processos) não ter sido “precedida de prévia consulta ao arguido para efeitos de exercício do contraditório, de modo a evitar a prolação de uma decisão surpresa”. Sempre na sua visão, o procedimento adoptado consubstanciaria nulidade, “atento o disposto no art. 3, nº 3 do CPC, aplicável ex vi art. 4º do CPP.”

Sucede que a norma invocada, do ordenamento processual civil, nunca seria aplicável, dado inexistir, em concreto, qualquer lacuna que competisse integrar ao abrigo do art. 4º do CPP. O Código de Processo Penal prevê expressamente o princípio do contraditório em inúmeros dos seus preceitos e ao longo das várias fases do processo, princípio com tutela constitucional expressa mas para os actos instrutórios e para o julgamento (art. 32º, nº5 da CRP).

O contraditório consiste na obrigatoriedade de ouvir o arguido (ou outro interveniente processual) antes de ser tomada uma decisão que pessoalmente o afecte. Corporiza a garantia efectiva de que a todo o sujeito afectado por uma decisão é dada a possibilidade de ser previamente ouvido e de se poder pronunciar sobre as questões que lhe disserem respeito. Permite também que esse sujeito contribua activamente para que o tribunal decida melhor.

Alega o recorrente que, no presente caso, a preterição do contraditório constituiria nulidade processual. Mas independentemente de se saber se a audição do arguido precedentemente à decisão sobre uma separação de processos se tornaria obrigatória, o certo é que a eventual preterição de contraditório sempre configuraria aqui mera irregularidade.

Casos há em que a preterição pode configurar nulidade insanável, como sucede por exemplo no caso da falta de audição de arguido prevista no art. 495, nº2 do CPP (por força do art. 119º, al. c), do CPP). Mas constituirá irregularidade quando a concreta ilegalidade não for cominada por lei como nulidade, sanável ou não (art. 118º, nºs 1 e 2 do CPP).

É o que sucede no caso presente. Ou seja, a ocorrer aqui ilegalidade, esta traduzir-se-ia em irregularidade processual.

E não se tratando assim de nulidade ou de vício insanável, mas tão só de irregularidade não arguida em tempo - podendo claramente tê-lo sido -, não se conhece da eventual preterição de contraditório. A irregularidade, a existir, não se mostra invocada nos três dias subsequentes àquele em que o arguido teve conhecimento da decisão (art. 123º, nº1, CPP).

Da separação de processos

O recorrente insurge-se contra a separação de processos, argumentando que o despacho recorrido violou “o princípio da vinculação temática do Tribunal”, “violou o regime regra da conexão de processos e o art. 30º do CPP”, e que “a competência para ordenar a separação de processos não cabe ao juiz de julgamento uma vez que o procedimento adequado impunha a remessa dos autos ao juiz de instrução e só este teria competência para o efeito”

Mas fá-lo infundadamente.

Na verdade, o tribunal ordenou a separação de processos justificadamente, ao abrigo do disposto no art. 30º do CPP, cujo nº 1, al. d) preceitua que “o tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação de (…) processos sempre que (…) houver declaração de contumácia (…)”.

Como o Ministério Público bem refere na resposta ao recurso, também o “grave risco para a pretensão punitiva do Estado” prevista na alínea b) do nº 1 do mesmo art. 30º, ocorre aqui. Pois esta alínea, como continua avisadamente o mesmo magistrado, “tem no seu fundamento a consideração de circunstâncias que impõem melhor fluidez no tratamento do processo, necessária aos interesses de prevenção geral e do ofendido e compreende a prescrição do procedimento criminal (no mesmo entendimento Henriques Gaspar em anotação ao artigo 287.º do Código do Processo Penal, in AA.VV., Código de Processo Penal Comentado, Coimbra, Almedina, 2014, p. 107, AA.VV., Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Código do Processo Penal – Comentários e Notas Práticas, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 74 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p. 110).”

Por último, e ainda com o Ministério Público, “a competência para a separação dos processos na fase de julgamento é ordenada pelo juiz presidente, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado (no mesmo entendimento Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p. 111).

A verificação dos fundamentos da separação de processos pressupõe uma discricionariedade vinculada no sentido da ponderação das finalidades da conexão de processos e as imposições que apontam para a separação e, em caso de se considerar verificado o juízo sobre o pressuposto, a separação deve ser determinada (conforme Henriques Gaspar em anotação ao artigo 287.º do Código do Processo Penal, in AA.VV., Código de Processo Penal Comentado, Coimbra, Almedina, 2014, p. 108).”

Encontrando-se contumaz o co-arguido, contrariamente ao que sucede com o recorrente, tomou o tribunal a decisão que legalmente se impunha, sendo competente para a proferir o juiz que a proferiu. Ou seja, o juiz titular do processo na fase em que este se encontrava: o juiz de julgamento.

E como o Ministério Público mais uma vez acertadamente remata, “o entendimento explanado cumpre as garantias de processo penal constitucionalmente consagradas, nomeadamente o artigo 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa: «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.»

Caso a separação de processos não tivesse sido determinada, o ora recorrente estaria por tempo indeterminado, com a qualidade de arguido, sujeito à medida de coacção de termo de identidade e residência com todas as obrigações daí decorrentes e na expectativa da incerteza do momento em que os factos pelos quais está acusado serão julgados. A declaração de contumácia de um co-arguido tem a consequência da separação de processos em relação ao arguido não contumaz com vista ao seu julgamento em separado, evitando, assim, o atraso desmurado do julgamento de qualquer dos arguidos e o interesse em evitar os efeitos da contumácia ou da ausência do arguido ou de alguns deles e a conveniência na sua separação (no mesmo entendimento Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p. 110 e AA.VV., Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Código do Processo Penal – Comentários e Notas Práticas, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 75). Deste modo, verifica-se que a separação de processos acautela o interesse dos ofendidos e a pretensão punitiva do Estado por evitar a prescrição do procedimento criminal quanto ao arguido, impedir a demora no julgamento do ora recorrente, com as devidas consequências que daí advêm e, perante a declaração de contumácia do coarguido, a separação constitui uma conveniência para o arguido e um respeito pelos seus direitos constitucionalmente consagrados.”

Para concluir, de referir que carecem de qualquer sentido as seguintes conclusões do recurso: “o arguido arguiu a nulidade de falta de notificação e requereu a instrução, pelo que ficou esta sanada, nos termos do disposto nos arts 121, nº 2, e 336, nºs 2 e 3, ambos do CPP” e que o “despacho recorrido, com a criação desnecessária de formalismos e procedimentos, violou o disposto nos arts 122 e 123 do CPP”. Pois o recorrente, simultaneamente, estaria aqui a arguir uma nulidade e a pretender a anulação do despacho que afinal a reconheceu e declarou. Pretenderia supostamente agilizar o processo e evitar retrocessos a momento anterior à abertura de instrução, mas foi o recurso que obstou à continuação do debate instrutório e à prolação da decisão instrutória.

Já relativamente à conclusão de que “o Tribunal deveria ter ordenado os devidos procedimentos de notificação do arguido ainda contumaz, em prol da regularização da nulidade de falta de notificação, pois há nos autos informação de que o arguido vive na EU”, chama-se a atenção para a fixação de jurisprudência plasmada no acórdão do STJ de 26-03-2014: «Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente que se fixam em 4UC (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/5 e Tab. III RCP).

Évora, 10.012017

Ana Maria Barata de Brito

Maria Leonor Vasconcelos Esteves