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PROCESSO DE INVENTÁRIO
PROCESSO COMUM
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
CONTRADIÇÃO ENTRE O PEDIDO E A CAUSA DE PEDIR
Sumário
I – Sendo o processo de inventário o meio próprio para pôr termo à comunhão hereditária, não é o único e exclusivo para determinar a qualidade de herdeiro e de cônjuge meeiro. II- São cumuláveis em ação declarativa, com processo comum, o pedido de declaração e reconhecimento do Autor como titular do direito à meação e quinhão hereditário na herança aberta pelo óbito da sua falecida esposa, e a condenação dos réus no reconhecimento de tal facto, considerando que com a referida ação se pretende que seja reconhecida e declarada a nulidade de um contrato de compra e venda de um imóvel pertencente à herança, celebrado pelo 1º réu com base numa procuração do autor alegadamente falsa. III – Não existe contradição entre a causa de pedir e o pedido se os autores qualificam como inexistente um contrato de compra e venda que, a provarem-se os factos alegados, é nulo nos termos do artigo 892º do Código Civil.
Texto Integral
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO AA e BB, instauraram a presente ação declarativa, com processo comum, contra CC e mulher, DD, EE, FF e GG, pedindo que:
- Seja judicialmente declarado e reconhecido o Autor como o titular do direito à meação e quinhão hereditário na herança aberta pelo óbito da sua falecida esposa, HH, ocorrido a 24/08/2004, no Barreiro, direito esse incidente sobre os prédios descritos no artigo 7º da petição inicial, nomeadamente sobre o prédio transacionado pelo 1º réu, e condenados todos os réus a reconhecerem tal facto;
- Seja judicialmente reconhecido e declarado que a procuração que constitui o “Doc. 4” junto com a petição inicial é falsa;
- Seja judicialmente reconhecido e declarado que o contrato de compra e venda celebrado entre o 1º e o 4ºs réus, titulados pela escritura abaixo indicada, é inexistente, por virtude da ausência de qualquer declaração negocial por parte do autor a tanto dirigida;
- Seja judicialmente reconhecido e declarado que a escritura de 10/02/2014, a folhas 27, do Livro 57-E, do Cartório Notarial a cargo do Notário, Dr. Luís Manuel Figueiredo Branco, é falsa e consequentemente nula e de nenhum efeito;
- Seja consequentemente ordenado o cancelamento de quaisquer registos, que com base na mesma tenham sido requisitados, nomeadamente o de aquisição lavrado pela Ap. 2262, de 11/02/2014;
- Sejam condenados os réus a pagarem solidariamente aos autores uma indemnização compensatória por todos os danos, despesas e prejuízos causados em consequência dos seus atos e por virtude das vendas em causa, a liquidar em execução de sentença.
Alegaram, para tanto, em síntese, que o autor marido foi casado com a falecida HH no regime da comunhão geral de bens, tendo aquela deixado como herdeiros, além do autor, o 1º réu (CC), tendo ainda a falecida feito testamento no qual instituiu herdeiro da sua quota disponível o autor, sendo a herança do dissolvido casal composta pelos imóveis identificados no artigo 7º da petição inicial, sucedendo que por escritura de 10.02.2014, o 1º réu declarou vender ao 4º réu (GG), que por sua vez declarou comprar, pelo preço de € 40.000,00, um dos referidos imóveis, mais precisamente o imóvel onde os autores residem, ou seja, a fração autónoma designada pela letra “F”, correspondente ao 2º andar esquerdo do prédio sito na Rua …, da freguesia e concelho de Portimão, tendo o 1º réu declarado agir por si e como procurador do seu pai, o aqui autor marido, a que é falso pois nunca o autor outorgou a procuração em causa, resultando da mesma anomalias quanto à residência, bilhete de identidade e segundo apelido do autor, pelo que a 3ª ré (FF), notária que lavrou a procuração em causa, não podia ter aceite a procuração como válida, acrescendo o facto de a fração vendida pelo 1º réu ser a casa de morada dos autores, pelo que sempre seria necessário o consentimento da autora.
Citados os réus, contestaram a 3ª ré e o 4º réu.
A 3ª ré alegou que não se verificava qualquer circunstância que lhe permitisse recusar a prática do ato que lhe foi solicitado, pois não se tratava de um ato nulo ou que não coubesse na sua competência de notária ou que a mesma estivesse impedida de praticar, além de que a parte efetuou os preparos devidos, e não havia dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais dos intervenientes, concluindo pela sua absolvição do pedido.
O 4º réu impugnou a generalidade da factualidade alegada pelos autores, afirmando desconhecer e não ter obrigação de conhecer os factos articulados na petição inicial, por não se tratar de factos pessoais ou de que deva ter conhecimento, concluindo pela sua absolvição do pedido e, caso assim não se entenda e seja procedente o pedido formulado pelos autores, sejam os mesmos e os co-réus, 1º e 2ª Ré, condenados a pagar solidariamente uma indemnização compensatória pelos prejuízos causados ao réu.
Concluída a fase dos articulados e junta ao processo certidão da sentença que declarou a insolvência dos 1ºs réus, foi proferido despacho saneador, em que o Mm.º Juiz a quo, no que a economia do recurso diz respeito, decidiu:
- não admitir «a cumulação de pedidos no que ao primeiro pedido de declaração e reconhecimento do Autor como titular do direito à meação e quinhão hereditário na herança aberta pelo óbito da sua falecida esposa, direito esse incidente sobre os prédios elencados em 07 da petição inicial, nomeadamente sobre o ora transaccionado pelo Réu filho, e condenação todos os RR a reconhecerem tal facto»;
- julgar «verificada a exceção dilatória de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolvo da instância os réus».
Inconformados, os autores apelaram do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as seguintes conclusões (transcrição):
«01 - Em ordem a assegurar a legitimidade do cônjuge sobrevivo, meeiro e herdeiro, como tal já devidamente habilitado por escritura notarial junta aos autos, nada obsta a que se peticione o reconhecimento dessas suas duas qualidades, em relação aos bens da herança, de modo a justificar a sua intervenção processual e o interesse em demandar em ação de declaração de nulidade da venda de bens da herança, efetuada a terceiros pelo outro interessado na herança, usando, para tanto, procuração daquele declaradamente falsificada.
02 - O mencionado pedido pode ser feito em ação com processo comum e nos tribunais comuns, por se não encontrar fora das competências destes e o processo ser o próprio, sobretudo se cumular com os subsequentes pedidos de declaração do reconhecimento da falsidade da procuração e da nulidade do negócio jurídico, por ausência de poderes do pretenso mandatário para efectuar a venda em causa.
03 - Alegados factos que consubstanciam a falsidade da procuração e a subsequente completa ausência de poderes do pretenso mandatário para efectuar a declaração negocial para a venda, não existe falta de causa de pedir nem contradição desta com o pedido de declaração de nulidade da escritura pública de compra e venda, uma vez que o negócio, que pretende formalizar, é igualmente nulo.
04 - Sem prejuízo, atento o princípio da economia processual, deverão aproveitar- se os atos praticados na ação e, caso se entenda que a petição enferma de vícios, configurando exceções dilatórias, como é o caso, convidar a parte a corrigi-las.
Nestes termos
E demais de Direito que V. Exas. Mui doutamente suprirão, deverá revogar-se a douta sentença recorrida e substitui-la por outra que, reconhecendo a razão aos recorrentes, ordene o prosseguimento da ação com a sua normal tramitação até final.
Assim decidindo, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608°, n° 2, 635°, nº 4 e 639°, n° 1, do CPC), as questões a decidir consubstanciam-se em saber:
- se os autores podem cumular o pedido de reconhecimento do autor como titular do direito à meação e quinhão hereditário na herança aberta por óbito da sua falecida esposa, com o pedido de condenação dos réus no reconhecimento desse facto;
- se inexiste falta de causa de pedir ou contradição desta com o pedido de declaração de nulidade da escritura pública de compra e venda do imóvel em causa, geradora da ineptidão inicial;
- se os autores deviam ser convidados a corrigir eventuais vícios da petição inicial.
III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS
Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
O DIREITO Da cumulação de pedidos
Escreveu-se no despacho saneador recorrido:
«Com os demais pedidos, os Autores cumulam o pedido de declaração e reconhecimento judiciais do Autor como o titular do direito à meação e quinhão hereditário na herança aberta pelo óbito da sua falecida esposa, HH, e que esse direito incide sobre os prédios elencados em 07 da petição inicial, nomeadamente sobre o transaccionado pelo CC, e condenados todos os Réus a reconhecerem tal facto. Este pedido é, na substância, pelo menos no que respeita à primeira parte, próprio de processo de inventário. Nos termos da Lei nº 23/2013, de 5.3, designadamente art.º2.º, n.º1, o processo de inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária ou, não carecendo de se realizar a partilha, a relacionar os bens que constituem objecto de sucessão e a servir de base à eventual liquidação da herança. É no inventário que deve ser feita a habilitação dos sucessores do falecido, e é no inventário que se determina a composição dos quinhões hereditários que aí se reconhecerem definidos. Trata-se, pois, o pedido dos Autores de pretensão que remete para o processo de inventário. O processo de inventário, nos termos do artigo 3.º, da referida Lei, compete ao cartório notarial sediado no município do lugar da abertura da sucessão; é ao cartório notarial que compete o processamento dos actos e termos do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra. Declarar e reconhecer o Autor como titular de quinhão hereditário na herança aberta por óbito da esposa falecida, herança à qual concorre, como parece decorrer do alegado, com o Réu filho, é questão que claramente é a apreciar em sede de processo de inventário. Os Autores pretendem salvaguardar a posse e a propriedade da casa onde residem, e, de acordo com o peticionado, logo beneficiando do resultado de um início de partilha, pelo reconhecimento de quinhão hereditário do Autor em bens de herança indivisa. De acordo com o alegado, o Autor entende ser titular de sua meação nos prédios, por força do regime de bens, e depois ainda cabendo-lhe o respectivo quinhão hereditário em cada um dos mesmos. Acontece é que, não existindo ainda a partilha dos bens que compõem o referido acervo hereditário, o Autor não pode pleitear por eles em seu nome; o que está em causa em primeira linha não é a titularidade de partes de bens pelo Autor, mas sim o acervo hereditário que necessita de ser partilhado, e em relação ao qual, por si, o Autor não tem qualquer poder de disposição autónomo. Segundo o referido artigo 3.º, no seu n.º7, ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado apenas compete praticar os actos que, nos termos da lei em causa, sejam da competência do juiz – o que não é o caso, pois não se trata aqui de praticar qualquer um desses actos. Donde, decorre que o tribunal judicial não é competente para reconhecer e declarar o Autor como titular de direito à meação e quinhão hereditário relativamente a bens não partilhados, que constituem acervo hereditário de herança indivisa. E, nesse aspecto, quanto aos bens a partilhar, tanto o Autor como o outro herdeiro estão em igualdade de circunstâncias, isto é, podem e devem diligenciar pela partilha dos bens. Mas estes, pelo menos em parte, são da herança, que não pode ficar pura e simplesmente arredada da resolução da situação em causa. É verdade que apenas parte dos bens é da herança; mas sem que essa parte esteja definida e atribuída, o Autor não pode pretender actuar como se fosse o único dono dos imóveis. Perante o petitório como ele se apresenta, com os fundamentos correspondentemente aduzidos, o que ressalta é que, com a presente acção, os Autores pretendem conseguir a resolução de várias questões, e, de caminho, até conseguir a definição de um quinhão hereditário relativo a partilha de bens em herança indivisa – o que nesta sede não é possível. O quinhão hereditário não é uma realidade definida em si, em é uma quota ideal de uma herança, que tem de ser preenchida. E o preenchimento dos quinhões é um acto a levar a cabo na efectivação da partilha, em sede de processo de inventário. Como cônjuge meeiro e herdeiro o Autor certamente terá parte nos imóveis da herança, mas não se sabe, até ser efectuada a partilha, como será preenchido o seu quinhão, não se sabendo até lá quais dos bens que indica na petição inicial farão parte do quinhão hereditário. Estamos perante a cumulação de vários pedidos. Para o primeiro deles o tribunal não é materialmente competente. É certo que o autor pode deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, mas apenas se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação – art.º555.º, n.º1, do Código de Processo Civil. A coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes ou a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia – art.º37.º, n.º1, do mesmo Código. Portanto, a coligação exige, como pressuposto intransponível, que o tribunal seja absolutamente competente para todos os pedidos cumulados, o que, em concreto, não se verifica neste caso. Existe, por isso, uma cumulação de pedidos que não se apresenta como legalmente admissível, por verificação de circunstância que, de forma insuprível, obsta à coligação. Pelo exposto, não se admite a cumulação de pedidos no que ao primeiro pedido de declaração e reconhecimento do Autor como titular do direito à meação e quinhão hereditário na herança aberta pelo óbito da sua falecida esposa, direito esse incidente sobre os prédios elencados em 07 da petição inicial, nomeadamente sobre o ora transaccionado pelo Réu filho, e condenação todos os RR a reconhecerem tal facto.»
Os recorrentes defendem que «em ordem a assegurar a legitimidade do cônjuge sobrevivo, meeiro e herdeiro, como tal já devidamente habilitado por escritura notarial junta aos autos, nada obsta a que se peticione o reconhecimento dessas suas duas qualidades, em relação aos bens da herança, de modo a justificar a sua intervenção processual e o interesse em demandar em ação de declaração de nulidade da venda de bens da herança, efetuada a terceiros pelo outro interessado na herança, usando, para tanto, procuração daquele declaradamente falsificada» (conclusão 1ª).
Vejamos de que lado está a razão.
O argumento essencial aduzido na decisão recorrida para rejeitar a cumulação de pedidos radica numa questão de competência, isto é, invoca-se na decisão recorrida a competência própria dos cartórios notariais para os inventários e destes processos para a determinação da qualidade de herdeiro.
Entendemos que não se decidiu bem, desde logo porque a qualidade de herdeiro pode ser determinada e provar-se por outros modos, desde logo pela habilitação de herdeiros, feita por via notarial e de acordo com o Código do Notariado.
É o caso também da habilitação feita atualmente na Conservatória do Registo Civil, através do denominado Instrumento Simplificado de Habilitações de Herdeiros e nos termos da legislação específica[1].
E, por último, temos a habilitação judicial, promovida através do incidente processual previsto nos artigos 351º e seguintes do CPC, quer para efeito de habilitação de sucessor da parte falecida ou extinta, quer para efeito de habilitação de cessionário.
Neste último caso, previu-se até a hipótese de a qualidade de herdeiro poder já estar reconhecida noutra sede, designadamente em habilitação notarial, não se podendo aqui sequer falar propriamente em incidente, porquanto um mero requerimento e a junção do documento são suficientes para promover a habilitação, fazendo-se esta nos próprios autos.
Vale isto por dizer que, sendo o processo de inventário o meio próprio para pôr termo à comunhão hereditária, não é o único e exclusivo para determinar a qualidade de herdeiro e de cônjuge meeiro.
No caso dos autos, essas qualidades resultam da certidão de óbito e da escritura de habilitação – ambas juntas com a petição inicial (cfr. fls. 23 e ss.).
Pelo que, o primeiro pedido formulado não foi mais do que a decorrência desta situação. E foi-o, tudo indica, no sentido de evidenciar a legitimidade dos autores, nomeadamente a do autor, para esta ação.
Uma leitura atenta da petição inicial e dos pedidos formulados revela que em lado algum os autores pretendem proceder à partilha ou à composição do seu quinhão nesta ação, mas sim fazer reingressar no acervo hereditário todos os bens e direitos da herança e obviamente os seus próprios, para, com o outro interessado[2] procederem à partilha e liquidação da mesma.
Ora, como bem aduzem os recorrentes na respetiva alegação, seja na qualidade de herdeiro, seja na qualidade de cabeça de casal na herança, o autor marido tem legitimidade para fazê-lo, tendo necessidade de demonstrar essas qualidades no processo para o fazer.
Podia eventualmente o Mm.º Juiz a quo, considerando que o autor marido já se encontrava devidamente habilitado e a sua qualidade de cônjuge meeiro comprovada nos autos, julgar desnecessário o pedido de declaração e reconhecimento do autor marido como titular do direito à meação e quinhão hereditário na herança aberta pelo óbito da sua falecida esposa.
Mas então deveria o Mm.º Juiz manter os restantes pedidos e reconhecer a legitimidade dos autores para a presente ação, ou fazer uso do mecanismo previsto no artigo 590º, nº 2, alínea b) e nº 4, do CPC, considerando o disposto no artigo 6º do mesmo Código.
O que não podia era não admitir a cumulação de pedidos nos termos em que o fez, pois nem o Tribunal é incompetente para conhecer do primeiro pedido formulado, nem o processo é meio impróprio para esse efeito.
Da ineptidão da petição inicial
Escreveu-se na decisão recorrida:
«Os Autores pugnam ainda pela declaração da inexistência de contrato de compra e venda, por ausência de declaração negocial por parte do Autor, e pela declaração da nulidade da escritura pública respectiva, com fundamento em falsidade. Dos termos da alegação dos Autores, ressalta precisamente a invocação da realização de contrato de compra e venda entre o Réu filho e o Réu GG. Desse contrato foi realizada a respectiva escritura pública de compra e venda, cuja certidão aliás consta de fls.31 e segs.. A inexistência é uma figura autónoma face à nulidade, para a maioria da doutrina. E está reservada para actos afectados de vício de tal forma gravoso que implica que o acto seja destituído de qualquer relevância jurídica. O negócio jurídico é inexistente “quando nem sequer aparentemente se verifica o corpus de certo negócio jurídico (a materialidade que corresponde à noção de tal negócio) ou, existindo embora na aparência, a realidade na corresponde a tal noção” (vd.Mota Pinto, em Teoria Geral do Direito Civil, 1973, p.696). No caso, o que é invocado pelos Autores é um contrato de compra e venda que foi celebrado, e se encontra titulado, inclusivamente, por escritura pública, isto é, tem existência material e foi validamente celebrado segundo a forma legal exigida. Existe, portanto, uma incompatibilidade intrínseca entre o alegado e o peticionado. Pode, como alegam os Autores, não ter existido a declaração negocial do Autor, mas o negócio efectivamente existe, material e juridicamente, e produziu efeitos, independentemente de enfermar de invalidade ou não. Verifica-se, por isso, patente contradição entre a causa de pedir e o pedido de declaração de inexistência de contrato.» No que concerne ao pedido de declaração de nulidade por falsidade da escritura pública que titula aquele contrato, também decorre da exposição da causa de pedir incompatibilidade com o pedido. Os Autores pedem a declaração da nulidade da escritura, com fundamento na falsidade, e indicam, como causa de pedir, nas suas alegações, que a escritura é nula como consequência da nulidade da procuração munido da qual o Réu filho interveio (ponto 51). As escrituras, sendo certo que são documentos autênticos, não provam a factualidade declarada pelos outorgantes, mas apenas que os mesmos proferiram tais declarações. E faz prova plena dos factos nelas atestados, com base na percepção da entidade que as elabora relativamente às declarações feitas perante si. Se estas são exactas ou não, é questão diversa. Assim também, a nulidade do documento é vício diverso da nulidade de acto inserido, apresentado, para elaboração do documento. Isto é, a alegada falsidade da procuração apresentada é vício que diz respeito a esse documento, e não ao documento lavrado pela Ré notária, a escritura. A nulidade do acto notarial tem como fundamentos únicos os reconhecidos nos artigos 70.º, e 71.º, do Código do Notariado, e neste Código não se reconhece a falsidade como fundamento de nulidade. Portanto, existe claramente falta de causa de pedir quanto a esta pretensão, pois esta apenas radica na falsidade de procuração apresentada.»
Salvo o devido respeito, não é o que se afigura no presente caso.
Na verdade, os autores procuram radicar o pedido de declaração de inexistência do contrato de compra e venda celebrado entre o 1º réu e o 4º réu, na ausência de declaração negocial por parte do autor marido, por ser falsa a procuração de fls. 45 que serviu de base à celebração da escritura pública da fração autónoma em causa.
Nos artigos 17 e seguintes da petição inicial os autores alegaram factos que consubstanciam a falsidade da dita procuração e a ausência de poderes do procurador (1º réu) para emitir a declaração negocial para a venda, pelo que não existe qualquer contradição da causa de pedir com o pedido formulado.
É certo que a provarem-se os factos alegados pelos autores haveria que aplicar ao caso o disposto no artigo 892º do Código Civil, segundo o qual se encontra ferida de nulidade a venda realizada sem poderes pelo 1º réu ao 4º réu da quota do autor sobre a fração em causa, por se tratar de venda de coisa alheia, por ilegitimidade do transmitente.
Ou seja, embora formalmente bem realizada, a venda é nula, não tendo esta nulidade qualquer relação com as nulidades formais invocadas na decisão recorrida.
Neste contexto assume pouca relevância o facto de os autores terem qualificado como inexistente o contrato celebrado, sabendo-se, ademais, que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, nº 3, do CPC).
O Mm.º Juiz a quo considerou também que ocorre a falta de causa de pedir quanto ao pedido de declaração de falsidade da procuração, sustentando que os atos notariais apenas poderão sofrer das nulidades elencadas nos artigos 70º e 71º do Código do Notariado.
Sucede, porém, que tais nulidades são meramente formais e não quaisquer outras, como aquela que é invocada nos presentes autos, em que o 1º réu, de acordo com a alegação dos autores, vendeu bens/direitos alheios, o que a provar-se acarreta, como se viu, a nulidade da venda.
Ademais, como bem observam os recorrentes na respetiva alegação, com a dita procuração nem a venda da fração autónoma em causa alguma vez poderia ser feita, sem que antes pai e filho, respetivamente autor marido e 1º réu, tivessem procedido à partilha, pois aquilo que o autor detinha na herança era uma quota ideal, como aliás, é reconhecido na decisão recorrida.
De qualquer modo, não sendo aqui o momento próprio para ajuizar sobre a procedência da ação, o certo é que os fundamentos assim alegados se mostram, no mínimo, equacionáveis sob o prisma do quadro normativo aplicável ao caso sub judice, não ocorrendo in casu a nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial.
Admitindo, porém, que a qualificação dos vícios alegados ou das suas consequências jurídicas, podem não ter sido as mais rigorosas e corretas, então deveria o Mmº Juiz a quo ter usado os poderes conferidos pelos artigos 5º, nº 3 e 6º, nº 2, do CPC, ou os poderes conferidos pelo artigo 590º, do mesmo diploma legal.
O recurso merece, pois, provimento.
Sumário:
I – Sendo o processo de inventário o meio próprio para pôr termo à comunhão hereditária, não é o único e exclusivo para determinar a qualidade de herdeiro e de cônjuge meeiro.
II- São cumuláveis em ação declarativa, com processo comum, o pedido de declaração e reconhecimento do Autor como titular do direito à meação e quinhão hereditário na herança aberta pelo óbito da sua falecida esposa, e a condenação dos réus no reconhecimento de tal facto, considerando que com a referida ação se pretende que seja reconhecida e declarada a nulidade de um contrato de compra e venda de um imóvel pertencente à herança, celebrado pelo 1º réu com base numa procuração do autor alegadamente falsa.
III – Não existe contradição entre a causa de pedir e o pedido se os autores qualificam como inexistente um contrato de compra e venda que, a provarem-se os factos alegados, é nulo nos termos do artigo 892º do Código Civil.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos com a realização da audiência prévia ou a sua dispensa, se assim se entender, seguindo-se os demais termos processuais.
Custas pelos recorridos.
*
Évora, 12 de Janeiro de 2017
Manuel Bargado
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
__________________________________________________
[1] Os artigos 210.º-A a 210.º-R do Código do Registo Civil, dedicados aos procedimentos simplificados de sucessão hereditária, foram aditados pelo Decreto-Lei n.º 324/2007, de 28 de Setembro, com um intuito, declarado no preâmbulo do diploma, de reduzir obstáculos burocráticos e de evitar deslocações desnecessárias, oferecendo-se a possibilidade de os atos e formalidades relacionados com a sucessão hereditária poderem ser efetuados num único balcão de atendimento, nas conservatórias do registo civil.
[2] Ou com o seu representante, porque, entretanto, foi declarado insolvente (cfr. certidão de fls. 170-176).