DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
INJÚRIA
ADVOGADO
HONORÁRIOS
Sumário

As afirmações ínsitas em correspondência entre advogados que se caracterizam por não serem corteses, correctas e urbanas e, nessa medida, suportarem um juízo de ilicitude civil e disciplinar não constituem necessariamente crime.
(Sumário do relator)

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:

Nestes autos de Instrução que corre termos no Tribunal Judicial de Santarém – E., I. Local, SCG, J2 - após encerramento do inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra RNHG, imputando-lhe a prática de um crime de injúria agravado, previsto e punido pelos artigos 181º e 184º do Código Penal, com referência ao art. 132º, n. 2, al. I), do mesmo diploma legal.

A assistente, MJL, aderiu à acusação pública.

A Mmª Juíza lavrou despacho a 11-05-2016 e decidiu rejeitar a acusação por manifestamente infundada ao abrigo do disposto no art. 311º, n. 2, al. a) e n. 3, al. d) do Código de Processo Penal.

Inconformados com o assim decidido vieram o Ministério Público e a assistente interpor recurso, com as seguintes conclusões.

O Ministério Público:

1. A previsão da al. d) do n.º 3 do art. 311.º do Código de Processo Penal que impõe a rejeição da acusação, só contempla os casos em que os factos nela descritos, claramente, notoriamente, não constituem crime.
2. Do mesmo modo, no âmbito daquele normativo, o Tribunal a quo não pode realizar juízos ou considerações que extrapolem a matéria factual descrita na acusação, uma vez que essa tarefa só pode ser realizada , após a análise da prova, em sede de audiência de discussão e julgamento,
3. Além disso, no presente caso, essa “proibição” é mais acentuada, uma vez que a análise da imputação do crime de injúria agravada - devidamente descrito na acusação - não se circunscreve ou limita à valoração isolada e objetiva das expressões contidas na acusação, exigindo, ainda, uma análise e valoração do circunstancialismo em que as mesmas foram proferidas.
4. Neste sentido, no caso, não podia o Tribunal ter rejeitado- como rejeitou-, de forma liminar, a acusação por entender, de forma genérica, que o arguido " exerceu o seu direito à crítica, face ao comportamento profissional da Assistente, que reputou de menos correto", já que essa análise é “alheia ao texto acusatório”, donde só poderia ser feita após a produção de prova em sede de julgamento.
5. Por outro lado, salvo o devido respeito, o Tribunal não desceu ao caso concreto, donde não sopesou e analisou, concretamente, as aludidas expressões imputadas ao arguido na acusação, limitando-se, antes, a citar Jurisprudência que versa sobre situações distintas à dos presentes autos.
6. Nesta senda e mais importante, constando no despacho acusatório- de fls. 59 a 62- que o arguido, Il.Advogado, no âmbito da sua atividade profissional, enviou uma mensagem escrita à Assistente, também ela Il.Advogada, no qual faz troça da sua inteligência (“não vou elucidá-la sobre a diferença entre uma fotocópia e um original”) e diz-lhe que :” V.Exa coloca interesses económicos à frente da independência e deontologia profissional”, encontra-se, objetivamente, verificado o preenchimento do elemento objetivo do crime de injúria agravado, uma vez que tais palavras são aptas, em concreto, a ofender a honra e consideração moral de uma pessoa digna- Advogado (ou qualquer outro profissional que se rege por um conjunto de normas ético/morais) - colocado na posição da assistente.
7. Neste sentido, os elementos típicos objetivos e subjetivos do crime de injúria agravada encontram-se devidamente descritos no despacho acusatório – cfr. fls. 59 a 62- e permitem, em abstrato, que o arguido seja condenado, em julgamento, pelo tipo de crime previsto e punido pelo artigo 181.º e 184.º, do Código Penal.
8. Por todo o exposto, o Tribunal a quo não podia rejeitar a acusação, mormente com o fundamento de que os “factos não integram a prática de crime”, pelo que violou o disposto o disposto nos artigos 311 n.º 1, 2 e 3 alíneas d), todos do Código de Processo Penal e 181.º n.º1 e 184.º, ambos do Código Penal.
Nestes termos, entendemos que o despacho recorrido- de fls. 264 a 273- deve ser revogado e substituído por outro que admita a acusação pública de fls. 59- 62, que imputa, ao arguido RNHG, um crime de injúria agravada, previsto e punido pelo artigo 181 n.º1, e 184.º, ambos Código Penal, por factos cometidos contra a pessoa de MJL, designando-se, em sequência, dia para a realização de audiência e julgamento, em cumprimento do disposto no artigo 312.º, do Código de Processo Penal.

A assistente:

1º No Processo Comum Singular n.º 642/15.0T9STR o Ministério Publico deduziu acusação contra o arguido RNHG, imputando-lhe a prática de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos arts. 181 e 184 do Código penal, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. I), do mesmo diploma legal (cfr. Fls. 59-63). A Assistente, MJL, aderiu à acusação pública (cfr. Fls. 76/77);

2º Remetidos os autos para julgamento, pelo Exm.ª Sr.ª Dr.ª Juiz foi proferido despacho de rejeição da acusação, que aqui se reproduz, alegando em suma que: “A acusação é manifestamente infundada quando, além do mais, os factos não constituírem crime (Cfr. Al. d) do n.º 3 do preceito legal supra citado)… Por tudo o exposto, ao abrigo do disposto no art.º 311, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do Código de processo Penal, decide-se rejeitar a acusação deduzida contra o arguido, por se considerar a mesma manifestamente infundada…” E, em consequência “… Indefere-se liminarmente o pedido de indemnização civil deduzido a fls. 78-84.”

3º Da acusação Pública, de Fls. 59-63, imputa o Ministério Publico ao arguido RNHG a prática de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos arts. 181 e 184 do Código penal, com referência ao art.º 132.º, n.º 2, al. I), porquanto: “…não pretendo entrar em debates jurídicos, nem tão pouco elucida-la sobre a diferença entre reconhecer uma fotocópia de outra fotocópia e uma fotocópia como sendo igual a um original…” “… porque a Sra. Dra. Coloca interesses económicos à frente da sua independência e da deontologia profissional.”

4º Ou seja, o arguido acusa a assistente de se deixar corromper por dinheiro, colocando dessa forma, em primeiro lugar interesses económicos, em detrimento da sua independência profissional e das normas que a regem profissionalmente.

5º Qual o profissional digno que não considera tais expressões uma afronta à honra, dignidade e consideração que lhe são devidas?

6º A Aqui assistente, como pessoa e profissional digna que é, considera que tais factos são uma afronta à honra, dignidade e consideração que lhe são devidas, tanto a nível profissional como pessoal.

7º O arguido teve o nítido propósito de ofender a honra, a dignidade e consideração que são devidas à assistente, o que quis e conseguiu.

8º Ao fazê-lo, causou profunda humilhação à honra, dignidade e consideração da assistente.

9º O arguido agiu livre, deliberadamente e conscientemente, com o intuito conseguido de ofender a assistente na sua honra, dignidade e consideração, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, sem nada ter feito para o evitar.

10º Dispõe o art.º 181, n.º 1, do Código Penal, que “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido (…).

11º Ora, injúria, em termos penais, “é a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém” sendo o bem jurídico lesado o da chamada honra subjetiva, ou seja, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal (vd. Leal Henriques e Simas Santos, in, “O Código Penal de 1982”, 2º Vol.).

12º A lei não exige como elemento do tipo criminal um dano ou uma lesão efetiva da honra e da consideração. Basta, para o efeito, o perigo de que aquele dano possa verificar-se. Trata-se, portanto de um crime de perigo.

13º Ora considera o tribunal a quo que as declarações escritas pelo arguido “… não são objetivamente injuriosas, mas não sendo do que o exercício do direito de critica pelo arguido, face ao comportamento profissional da assistente que reputou de menos correto. Através de tais expressões, o arguido limitou-se a mostrar o seu desagrado pela forma como a assistente lidou com a situação em apreço, pelo que apenas estão em causa juízos valorativos por ele emitidos, que mais não traduzem do que a mera expressão de uma opinião pessoal, verbalizados em termos que se atêm claramente no direito à critica que a todos assiste… Ora, todas as expressões alegadamente dirigidas pelo arguido à assistente não atingem qualquer valor sociomoral essencial. Com eles, o arguido limitou-se a formular sobre a assistente um juízo acerca da forma como esta lidou com a situação atinente à falta de pagamento de honorários de um antigo cliente seu, que considerou incorreta. Porém, com tais expressões o arguido não pôs em causa as qualidades morais essenciais da assistente nem lhe apontou qualquer defeito de caráter. As qualidades que porventura lhe negou situam-se em plano secundaríssimo, alheio a qualquer ideia de honra ou consideração como pessoa. … O arguido não ultrapassou aqueles limites que justificam a intervenção do direito penal…”; E apresenta a Mmª Juiz jurisprudência que fundamenta a decisão recorrida, que descriminaliza ditas expressões que se aplicam na vivência social, como “sacana”, “és um palhaço”… expressões que são aplicadas até em brincadeiras entre pessoas mais próximas. Ora as expressões proferidas pelo arguido em nada são equiparadas às que deram azo à jurisprudência descrita pelo tribunal a quo. A expressão proferida pelo arguido fere a honra e a consideração da assistente. Além do mais, não tinha o arguido que se “defender” da Assistente usando a expressão difamatória em causa. Porquanto, a Assistente cumpriu todos os preceitos deontológicos que tinha a cumprir na questão em apreço. Contactou o arguido, dando-lhe conhecimento que o cliente em causa a tinha informado que nada devia, pelo contrário, que o arguido é que lhe devia a ele o valor da taxa de justiça, a qual este teve que dispor por duas vezes, uma entregue ao arguido e outra à posteriori, quando o tribunal a solicitou por não ter sido entregue junto com a oposição á execução.

Em consequência do supra descrito, passou o arguido a “atacar” a Assistente persistentemente, com E-mails injuriosos, telefonemas e SMSS, de tal forma que perturbou terrivelmente a Assistente ao nível laboral e psicológico, provocando-lhe desconcentração com as suas insistentes interpelações.

O Tribunal a quo, sem conhecimento efectivo dos factos que deram azo às ditas comunicações, emitiu juízos de valor, no entendimento da assistente, sem qualquer fundamento que os suporte. Para que se faça justiça o tribunal tem a obrigação de defender os ofendidos e lesados e não desculpabilizar os arguidos.

14º Ora, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, entende a assistente que o escrito que lhe foi dirigido, formula juízos e atribui comportamentos à assistente que são atentatórios da sua honra e consideração como pessoa e profissional, devidos a qualquer profissional seja de que profissão for.

15º Acresce que a atividade cognitiva do julgador, nesta fase, não pode radicar em eventuais opiniões na apreciação que fizer de eventuais comportamentos reiterados noutros processos, como o faz o tribunal a quo, mas aferir se os factos narrados são típicos do ilícito.

16º Na acusação pública em apreço descrevem-se com suficiência os factos constitutivos do crime imputado ao arguido (escritos enviados à assistente pelo arguido com carácter injurioso), e indica a qualificação penal adequada para o tipo de ilícito em causa.

17º Tais são indícios objetivos suficientes da verificação dos factos e bastantes para submeter o arguido a julgamento.

18º Os indícios do elemento subjetivo decorrem da simples análise externa do circunstancialismo que rodeou a ação injustificada do arguido, por operação lógica, induzindo a convicção necessária da realidade, à falta de uma confissão do autor dos factos ou de outros elementos factuais a ter em conta.

19º O arguido foi interrogado, não requereu abertura de instrução, sendo que só em julgamento se poderá conhecer o mérito sobre todos os factos e provas.

20º O despacho recorrido traduz um pré-julgamento, na medida em que ignorando a prova oferecida se exime à observação e discussão da mesma em audiência de julgamento.

21º “A Acusação é formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado, é o pressuposto pela prática de determinado crime e por ele condenado, é o pressuposto indispensável da fase de julgamento e por ela se define e fixa o objeto do julgamento”, como refere o prof. Germano Marques da Silva.

22º Com as alterações introduzidas na lei penal, impediu-se, entre outras situações, que o juiz quando profere o despacho a que se refere o art.º 311, tenha um papel equivalente ao sujeito processual “Ministério Publico” fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida, explicitando, de modo claro e taxativo, os motivos que poderão levar à conclusão de se estar perante acusação manifestamente infundada.

23º A Mmª Juiz a quo não diz que as expressões constantes da acusação como tendo sido proferidas pelo arguido, não possam constituir crime, mas antes que no contexto em que foram escritas são aceitáveis.

24º Violou assim o Tribunal a quo o Principio do Acusatório. Sendo descritos na acusação factos suscetíveis de ofender a honra e consideração da assistente, não pode afirmar-se de forma inequívoca que os factos que dela constam não constituem crime.

25º A improcedência ou procedência da Acusação Publica, será um juízo que o tribunal fará na fase própria, o julgamento, devendo o Exm.ª Sra. Dra. Juiz, neste momento, limitar-se a marcar data para o efeito, pois face ao texto da Acusação não é possível afirmar que os factos nela descritos não constituem crime.

26º Ao decidir como o fez, o despacho recorrido violou as seguintes disposições: arts. 180, n.ºs 1 e 2 e 182, do Código Penal, e o art. 311, n.º 2, a) e n.º 3, d), do Código de Processo Penal.

27º Assim, o despacho recorrido deve ser substituído por outro que não considere a acusação manifestamente infundada e que designe dia, hora e local para audiência de julgamento (arts. 311 e 312 do CPP).


*

O Ministério Público apresentou resposta ao recurso da assistente.

Nesta Relação o Exmº Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência de ambos os recursos.

Observou-se o disposto no nº 2 do art. 417° do Código de Processo Penal.


*****

B - Fundamentação:

B.1 - São elementos de facto relevantes e decorrentes do processo, para além dos que constam do relatório, o teor do despacho judicial e os factos que dele constam.

É o seguinte o teor do despacho judicial de 11-05-2016:

«Dispõe o art. 311º, n. 2, al. a), do Código de Processo Penal que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.

A acusação é manifestamente infundada quando, além do mais, os factos não constituírem crime (dr. aI. d) do n. 3 do preceito legal supra citado).

Ora, in casu, a acusação pública deduzida contra o arguido é manifestamente infundada porquanto, em nosso entender, os factos nelas descritos não integram a prática do tipo de crime de injúria que lhe vem imputado.

Senão vejamos.

São imputados ao arguido, em suma, os seguintes factos:

- No dia 25 de Janeiro de 2015, enquanto Advogado e através do seu endereço de correio eletrónico, o arguido remeteu uma mensagem de correio eletrónico para o endereço de correio eletrónico pertença da Advogada MJL, com a seguinte conteúdo:

«Exma. Senhora Doutora não pretendo entrar em debates jurídicos, nem tão pouco elucidá-la sobre a diferença entre reconhecer uma fotocópia de outra fotocópia e uma fotocópia como sendo igual a um original. Será o MP que terá esclarecer sobre esse assunto. O que me interessa é que V.Exa proceda em conformidade com a deontologia profissional e mande o seu cliente pagar-me. Mas invés disso, ainda diz que viu mensagens escritas minhas que o CALOTEIRO não me deve mais nada. O meu problema, ilustre Sra. Dra., é o tempo que andarei para receber o montante que me é devido porgue a Sra. Dra. coloca interesses económicos à frente da sua independência e da deontologia profissional. Nunca assim fiz com nenhum cliente caloteira de Colegas nem colega o fez comigo (Sic). Volto a reportar o termo ameaça para os conhecimentos jurídicos que deveria ter. E uma ação de insolvência singular, não ficava bem ao seu cliente? Quantas dívidas terá esse sujeito e quantos Colegas já calotou? Quantas verdades esse mentiroso compulsivo diz? Tenho duas filhas para criar e uma mãe dependente, não pense que admito caloteiros, não tiro às minhas filhas para sustentar chico-espertos. Pelo que reitero novamente que V.Exa mande o seu cliente pagar-me. Nunca assim fiz com nenhum cliente caloteira de Colegas nem colega o fez comigo (Sic). Volto a reportar o termo ameaça para os conhecimentos jurídicos que deveria ter. E uma ação de insolvência singular, não ficava bem ao seu cliente? Quantas dívidas terá esse sujeito e quantos Colegas já calotou? Quantas verdades esse mentiroso compulsivo diz? Tenho duas filhas para criar e uma mãe dependente, não pense que admito caloteiros, não tiro às minhas filhas para sustentar chico¬espertos. Pelo que reitero novamente que V.Exa mande o seu cliente pagar-me»,

- Com o que ultrapassou, assim, os limites do respeito, da urbanidade e da obrigatória conduta de civilidade que lhe é imposto como cidadão e como Advogado, até porque sabia que as expressões que proferiu atingiam, como atingiram, MJL na sua honra e consideração.

Dispõe o art. 181º, n. 1, do Código Penal que:

Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra e consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 140 dias.

A injúria, conforme decorre do teor literal do citado preceito legai, compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém.

Honra «é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter ... »

Consideração é «o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros (M.Q P.Q - Coimbra)" - v. Código Penal Anotado por Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos, 1996, 2º volume, pág. 317.

Os processos de execução do crime de difamação podem ser vários: imputação de um facto ofensivo (ainda que meramente suspeito), formulação de um juízo de desvalor ou a reprodução de uma imputação ou de um juízo.

Como refere Beleza dos Santos, (in "Algumas Considerações Jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria", Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92 e 95), os valores jurídico-penais que o legislador quis proteger com a punição da difamação e com a injúria foram a honra e a consideração de uma pessoa: a honra diz respeito à estima, "ao não desprezo moral por si próprio, que sente em geral qualquer pessoa", a consideração, ao juízo do público, isto é, ao apreço ou não "desconsideração que os outros tenham por ele".

Como acrescenta o mesmo autor, "a honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos de o não julgar um valor negativo".

Quanto ao elemento subjetivo, muito embora parte da doutrina entenda que estes tipos exigem um dolo específico - o propósito de ofender a honra e consideração de alguém - (v., entre outros, Nelson Hungria), os nossos tribunais superiores têm sufragado o entendimento que não é exigível que haja aquela especial intenção, sendo bastante a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir ofensa à consideração de outrem.

Vem-se também entendendo, de forma unânime, que nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas aqui em apreço, tudo dependendo da intensidade da ofensa.

Como escreveu Beleza dos Santos na obra supra citada a páginas 167 «nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou a uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível (...)»,

Na verdade, aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não pode considerar difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena (v., obra citada, a páginas 165 e 166).

Foi este o entendimento seguido no Ac. da Rel. de Évora, de 02.07.1996 (in CJ, 1996, tomo IV, pág. 295), onde se lê:

«Um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável- de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético-necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração» .

Foi também este o entendimento seguido no douto Acórdão do TRP, de 14.11.2012 (proferido no processo n. 15722/10.0TDPRT, in www.dgsi-pt), no qual se diz que:

«A propósito dos crimes de injúrias e difamação a nossa jurisprudência, com destaque para esta Relação do Porto, tem vindo a aferir critérios apertados de tipificação destes ilícitos, de modo a compatibilizar os mesmos com o princípio constitucional da intervenção mínima do direito penal (18. º, n. º 2 Constituição) e com outros direitos fundamentais.

Um deles é a liberdade de expressão, que tem consagração no artigo 37.º Constituição, estabelecendo-se no seu n.º 1 que "Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações", acrescentando-se no seu n. º 2 que "O exercício desses direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura".

A par deste direito fundamental existe ainda o "direito ao bom nome e reputação" (26.º Constituição), o qual confere dignidade constitucional ao crime de difamação e de injúrias, mas estes, como já referimos, com uma incidência essencialmente pessoalíssima, porquanto tal directriz constitucional surge no âmbito da tutela constitucional da personalidade do cidadão.

Nesta conformidade, tem-se considerado como criminalmente atípicos todos aqueles casos situados naquela margem jurídico-penalmente aceitável do relacionamento social e descarregados de qualquer imputação objectivamente ofensiva da honra ou consideração de terceiros, que se limitam a expressar, ainda que em termos mais acutilantes, uma consideração crítica ou mesmo qualificativa da pessoa visada (Ac. TRP de 2002/Jun./12 (Recurso n.º 332/02), 2006/Abr./19 (Rec. n.º 5927/05-1), 2005/Dez'/07 (Rec. n.º 5154/05-1), 2005/Abr./20, 2007/Dez./19 (Rec. n.º 5118/07-1), 2008/0ut./01 (CJ IV/218); 2011/Jan./05).»

De igual forma, diz-se também no douto acórdão do TRP, de 12.06.2002 (recurso n. 332/02), que:

«É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre pessoas, Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem.

Uma pessoa que se sente incomodada por outra pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado.

Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros.

Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos em vez de garantia de paz social, que é a sua função.»

Por fim, veja-se ainda o acórdão do TRG, de 19.10.2015, proferido no processo n. 79/14.8TAEPS.G1 (in www.dgsi-pt), no qual estava em causa a expressão "Por lapso ou falta de profissionalismo", atribuído por um advogado a um funcionário judicial no âmbito de um requerimento dirigido ao juiz:

I} Decorre do preceituado nos arte 180º, do CP, que o legislador entendeu criminalizar quem atentar contra a honra e a consideração que a cada um é devida.

II) Todavia, não se pode equivaler o ataque à honra de uma pessoa ou à sua consideração, com falta de educação ou grosseria, com faltas de cortesia ou gentileza.

Porque a sociedade em que vivemos não é habitada apenas por pessoas perfeitas, existe um espetro alargado de situações com as quais nos podemos ver confrontados, que podendo não ser as mais corretas, adequadas e ajustadas não têm de ser necessariamente criminosas.

III) É o que sucede, no caso dos autos em que estão em causa juízos valorativos emitidos pelo arguido relativos à atuação de uma funcionária judicial, que mais não traduzem do que a mera expressão de uma opinião pessoal verbalizados em termos que se atêm claramente no direito à crítica que a todos assiste

IV) Por isso, não configurando os factos assentes, o crime de difamação agravado pelo qual foi o arguido condenado, impõe-se a sua absolvição.

Assim, tem vindo a ser entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores que:

- A expressão "sacana" não tem conteúdo ofensivo da honra e consideração do assistente, tratando-se de uma expressão desrespeitosa e nada educada e cortês (v. acórdão do TRC, de 23.05.2012, proferido no processo n. 241j10.2GAAN5.C1);

- O ato de chamar a alguém "maluco" não preenche o elemento objetivo do crime de injúria (v. acórdão do TRP, de 07.12.2005, proferido no processo n. 0515154);

- A expressão "és um palhaço", ainda que proferida para manifestar desconsideração, não é ofensiva da honra ou consideração do visado (v. acórdão do TRP, de 19.12.2007, proferido no processo n. 0745811).

- Não integra o tipo objetivo do crime de difamação a imputação a outrem, num contexto de afrontamento e critica à Administração de uma empresa, de "atos de gestão danosa" e "contributos para um previsível resultado falimentar da empresa" (dr. Ac. TRP, de 28.02.2007, proferido no processo n. 0640513).

- Não preenche o tipo objetivo do crime de difamação a conduta do jornalista que, em escrito publicado num jornal, dirigindo-se a um presidente de câmara municipal, a propósito de tema cultural, o apelida de energúmeno, com o sentido de indivíduo ignorante, boçal e que pratica desatinos (dr. Ac. TRP, de 31.10.2007, proferido no processo n. 0644685).

- Apelidar alguém de socialmente irresponsável ou de incumpridor traduz-se num juízo de valor depreciativo, revelador de falta de apreço pelo visado, mas não tem aptidão para o atingir na sua honra e consideração (dr. Ac. TRP, de 27.01.2016, proferido no processo n. 332j14.0TAVLG.P1).

- Atribuir a quem se imputa o incumprimento de uma dívida o epíteto de "caloteiro", ou seja, de pessoa que contrai dívidas e não pode ou não tenciona pagá-Ias, sendo uma atitude descortês, tem ainda de ser considerado nos limites da adequação à defesa da causa (dr. Ac. TRG, de 30-06-2014, proferido no processo n. 30j11.7GBAVV.G1).

- Não comete o crime de injúria quem profere a expressão "vocês são uns palhaços, não sei como o povo vos escolheu", dirigida a um presidente de Junta de Freguesia no âmbito de uma contenda motivada por questões relacionadas com a atuação dos membros da autarquia, por a mesma se traduzir num juízo de valor em que se exerce o direito de crítica (dr. Ac. TRG, de 17-02-2014, proferido no processo n. 1500j10.0GBGMR.G1).

Ora, conjugando as considerações supra tecidas com os factos descritos na acusação pública, temos de concluir que a conduta imputada ao arguido não é suscetível de integrar o crime de injúria que lhe vem imputado.

Na verdade, em nosso entender, as expressões que o arguido dirigiu, por escrito, à assistente, acima transcritas, não são objetivamente injuriosas, mais não sendo do que o exercício do direito de crítica pelo arguido, face ao comportamento profissional da assistente, que reputou de menos correto.

Através de tais expressões, o arguido limitou-se a mostrar o seu desagrado pela forma como a assistente lidou com a situação em apreço, pelo que apenas estão em causa juízos valorativos por ele emitidos, que mais não traduzem do que a mera expressão de uma opinião pessoal, verbalizados em termos que se atêm claramente no direito à crítica que a todos assiste.

Veja-se, neste sentido, o douto acórdão proferido pelo TRE, de 29.03.2016, proferido no processo nº 1481/12.5PAPTM.E1, no qual estavam em causa, entre outras, as seguintes expressões - proferidas pelo arguido em duas entrevistas, uma a um jornal e outra a uma revista, ambos de expressão nacional, onde aquele questiona a atividade do assistente, enquanto profissional do foro, e em que se entendeu não se mostrarem preenchidos os elementos típicos do crime de difamação -: «B ... acusa c... de ter "atraiçoado" a sua confiança; «diz que constituiu o advogado para o representar no processo e que c... o "enganou"; «B... está revoltado e garante ter sido enganado. Ele vai ter que se responsabilizar pela falta de profissionalismo".

Ora, todas as expressões alegadamente dirigidas pelo arguido à assistente não atingem qualquer valor sócio-moral essencial. Com eles, o arguido limitou-se a formular sobre a assistente um juízo acerca da forma como esta lidou com a situação atinente à falta de pagamento de honorários de um antigo cliente seu, que considerou incorreta.

Porém, com tais expressões o arguido não pôs em causa as qualidades morais essenciais da assistente nem lhe apontou qualquer defeito de carácter. As qualidades que porventura lhe negou situam-se em plano secundaríssimo, alheio a qualquer ideia de honra ou consideração como pessoa.

Como já se disse supra, o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa possa ter apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função.

No caso, como ficou demonstrado, o arguido não ultrapassou aqueles limites que justificam a intervenção do direito penal.

Assim, tendo sido posto em causa o carácter objetivamente ofensivo das expressões proferidas pelo arguido, temos de concluir que não se verificam os elementos essenciais do tipo de crime de injúria que lhe foi imputado, pelo que se impõe que a acusação pública contra si deduzida seja rejeitada, por manifestamente infundada.

Por tudo o exposto, ao abrigo do disposto no art. 311º, n. 2, al. a) e n. 3, al. d) do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar a acusação deduzida contra o arguido, por se considerar a mesma manifestamente infundada.

Sem custas.

Rejeitada a acusação e fundando-se o pedido de indemnização civil deduzido nos autos, por força do princípio da adesão previsto no art. 71º do Código de Processo Penal, na prática do crime de injúria que nela vinha imputado ao arguido, é evidente que a pretensão indemnizatória ficou prejudicada, não podendo ter seguimento.

Assim, indefere-se liminarmente o pedido de indemnização civil deduzido a fls. 78-84.

Sem custas, face ao valor do pedido e à isenção prevista no art. 4º, nº 1, al. n), do Regulamento das Custas Processuais.

Notifique, e, oportunamente, dê baixa e arquive.»


***

B.2 – Sendo o objecto do recurso penal delimitado pelas conclusões da respectiva motivação, a questão abordada no recurso reconduz-se a apurar se deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por despacho que receba as acusações deduzidas pelo Ministério Público e pela assistente, isto é, saber se as expressões, consabidamente ditas pelo arguido, constituem um crime de injúria.

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B.3 – Encontramo-nos no âmbito de relações entre particulares e o dissídio centra-se no direito à liberdade de expressão e na defesa da honra e consideração pessoal.

Mas esses particulares, no caso, vêm a sua conduta regulada, igualmente, pelo Estatuto da O.A. na medida em que são, ambos, advogados e o dissídio se centra na troca de correspondência sobre pagamento de honorários do arguido, sendo o suposto devedor cliente da assistente.

A questão em apreciação não pode ser vista desligada deste papel dos intervenientes numa sociedade aberta onde o direito penal é a ultima ratio de intervenção da ordem jurídica, não sendo o universo da advocacia alheio a tais realidades, não obstante com especificidades muito próprias.

No caso não se trata, portanto, de um especial ou qualificado direito de liberdade de expressão no âmbito dos media ou das questões de interesse geral stricto sensu, sim um litigio entre particulares que são igualmente advogados e que agem no âmbito de interesses próprios – o arguido – e do cliente no âmbito de um mandato forense.

Ou seja, hoje, mais propriamente, desde que Portugal é membro do Conselho da Europa, [1] não é possível fazer uma análise dos tipos criminais “injúria” e/ou “difamação” sem ter presente a letra (artigo 10º, nº 1 e 2) da Convenção e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), algo que é amiúde esquecido, não obstante se tratar de normas e jurisprudência que devem ser encaradas como fontes de direito infraconstitucional – artigo 8º, ns. 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.

Ou seja, as análises dos tipos penais não se podem limitar à análise tipológica positivista, que pode ser notável, mas algo desfasada do que “ser” e do “dever-ser” jurídico-político europeu.

Este normativo convencional estipula, como obrigação directamente decorrente da sua letra e do seu espírito, a obrigação de o Estado português assegurar a plena vigência daquele princípio de liberdade de expressão, exigindo-se mesmo a implementação de medidas positivas de protecção, seja de facto, seja de direito – acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Manole e outros c. Moldávia.

Logo, é tarefa do tribunal assegurar que a liberdade de expressão é garantida através de um justo equilíbrio entre a liberdade de expressão consagrada como princípio no artigo 10º da Convenção e a reputação da pessoa em causa, enquanto direito decorrente da protecção da vida privada consagrado no artigo 8º da Convenção – acórdão Cumpana e Mazare c. Roménia (processo nº no 33348/96 de 17-12-2004), § 91.

Daqui decorre, com naturalidade, o maior peso reconhecido pela convenção e pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem à liberdade de expressão sobre a honra das pessoas, por muito que isso custe à nossa tradição jurídica e civilizacional napoleónica e à análise tipológica criminal exclusivamente positivista e tendo sempre presente que a Convenção Europeia dos Direitos do Homem se sobrepõe à legislação ordinária portuguesa.

No seu número 2 o referido artigo 10º da Convenção prevê, no entanto, condições, restrições ou sanções ou, genericamente, “ingerências” no direito de liberdade de expressão.

Estas são admitidas mas devem, no entanto, estar previstas na lei e mostrar-se necessárias numa sociedade democrática, entendidas estas como uma ingerência por “necessidade social imperiosa”, para, por referência ao caso concreto, a protecção da honra e dos direitos de outrem.[2]

Indubitavelmente o ordenamento jurídico português prevê no Código Penal o tipo penal de protecção da honra da assistente, o crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal:

1 - Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

2 - Tratando-se da imputação de factos, é correspondentemente aplicável o disposto nos ns. 2, 3 e 4 do artigo anterior.”

Aqui tal tipo penal vem qualificado em atenção à qualidade de advogada da assistente.

Estão, pois, verificadas as condições para que possam operar as restrições contidas no número dois do preceito da Convenção, no sentido de que existe lei prévia punindo a injúria.

Resta saber se a “ingerência” na liberdade de expressão (o limite injurioso e “difamatório”) se mostra justificada no caso concreto, se ela se mostra necessária numa sociedade democrática – isto é, se a defesa da honra da assistente se mostra necessária nesta concreta sociedade e pelas razões invocadas e, em caso afirmativo, qual dos valores deve prevalecer, a liberdade de expressão do arguido ou a honra da assistente.

É, pois, no contraponto destes dois interesses (ou bens tutelados, na terminologia positivisto-criminal) que a análise se deve centrar e só depois descair para os princípios “escolásticos” de análise do tipo criminal.

Porque sem ter a noção deste conflito de interesses não é possível concluir, como iremos concluir, que a interpretação do equilíbrio entre liberdade de expressão e defesa da honra deve orientar-se para uma interpretação restritiva da defesa da honra e maximizadora da liberdade de expressão, realidade que é a expressa na ordem jurídica enformada pela Convenção, como o é a portuguesa.

Ou seja, a análise dos artigos relativos à defesa da “honra” – 180º e 181º do Código Penal português só pode fazer-se (e está dependente da análise que se faça …) à luz prevalecente do artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

E começa a configurar-se uma tendência para deixar à lei civil o papel de acautelar a protecção da dignidade das pessoas afectadas pela ofensa à honra em razoável número de casos, no essencial uma concretização da ideia de ultima ratio da intervenção penal, pela constatação de que a lei civil melhor acautelará os interesses ou parte dos interesses hoje abarcados pelo tipo penal.

Tem que ser neste enquadramento geral que a questão de facto posta nos autos e o conflito entre assistente e arguido deve ser analisado.


*

B.4 – Que o dissídio entre a assistente e o arguido se situa em questões de conduta profissional entre advogados é por demais evidente. E através da emissão de juízos de valor.

Logo, estudar o enquadramento normativo correspondente é uma necessidade imperiosa.

É na Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro (Estatuto da Ordem dos Advogados) que se encontra esse enquadramento normativo, a iniciar no nº 2 do artigo 88.º que, sob a epígrafe «Integridade» converte em dever profissional um conjunto de virtudes pessoais e sociais, nos seguintes termos: “A honestidade, probidade, retidão, lealdade, cortesia e sinceridade são obrigações profissionais”.

Que encontram logo concretização num dever geral de urbanidade, estabelecido no artigo 95.º: “No exercício da profissão o advogado deve proceder com urbanidade, nomeadamente para com os colegas, magistrados, árbitros, peritos, testemunhas e demais intervenientes nos processos, e ainda oficiais de justiça, funcionários notariais, das conservatórias e de outras repartições ou entidades públicas ou privadas”.

O artigo 112.º, por seu lado, vem a particularizar ainda mais aquele acervo geral de virtudes quando se trata de regular as relações entre advogados, estatuindo que “constituem deveres dos advogados nas suas relações recíprocas: a) Proceder com a maior correção e urbanidade, abstendo-se de qualquer ataque pessoal, alusão deprimente ou crítica desprimorosa, de fundo ou de forma”.

As expressões que estão em causa são:

«Exma. Senhora Doutora não pretendo entrar em debates jurídicos, nem tão pouco elucidá-la sobre a diferença entre reconhecer uma fotocópia de outra fotocópia e uma fotocópia como sendo igual a um original. Será o MP que terá esclarecer sobre esse assunto. O que me interessa é que V.Exa proceda em conformidade com a deontologia profissional e mande o seu cliente pagar-me. Mas invés disso, ainda diz que viu mensagens escritas minhas que o CALOTEIRO não me deve mais nada. O meu problema, ilustre Sra. Dra., é o tempo que andarei para receber o montante que me é devido porgue a Sra. Dra. coloca interesses económicos à frente da sua independência e da deontologia profissional. Nunca assim fiz com nenhum cliente caloteira de Colegas nem colega o fez comigo (Sic). Volto a reportar o termo ameaça para os conhecimentos jurídicos que deveria ter. E uma ação de insolvência singular, não ficava bem ao seu cliente? Quantas dívidas terá esse sujeito e quantos Colegas já calotou? Quantas verdades esse mentiroso compulsivo diz? Tenho duas filhas para criar e uma mãe dependente, não pense que admito caloteiros, não tiro às minhas filhas para sustentar chico-espertos. Pelo que reitero novamente que V.Exa mande o seu cliente pagar-me. Nunca assim fiz com nenhum cliente caloteira de Colegas nem colega o fez comigo (Sic). »

É por demais evidente que as afirmações referidas são tudo menos corteses, correctas e urbanas e, nessa medida é certo que a matéria de facto referida, enquanto emissão de um juízo de valor, suporta um juízo de ilicitude civil e disciplinar.

Portanto, o que aqui se disputa é, na essência, a honra numa vertente de credibilidade profissional mas com especial ênfase no comportamento ético.

E as expressões serão atentatórias da honra? A resposta terá que ser obtida por referência à sua expressão objectiva – à expressão resultante do significado das palavras e expressões empregues – e tem que ser analisada no seu enquadramento profissional e social.

E nesse enquadramento as expressões empregues mais não são do que um extravasar quase furioso – revelado no texto repetitivo e agreste – de um advogado exasperado pela falta de pagamento dos seus honorários, a perder dignidade penal dada a sua minimidade e nenhuns efeitos na consideração social da assistente, ela por sua vez a defender direitos.

Não se quer dizer que não haja algum preenchimento do tipo penal, quer-se apenas concordar com a sua caraterização como “insignificância penal”, no que se reitera o decidido por esta Relação no seu acórdão de 07-12-2012 (Rel. Ana Barata Brito, proc. 488/09.4TASTB.E1).

Acórdão que não está isolado no seu posicionamento, como se constata nas lições do Prof. Beleza dos Santos, e como referido, pelo menos, no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-10-2004 (rel. Nazaré Saraiva, proc. 1467/04-1), como segue:

II – No entanto, vem-se entendendo, unanimemente, que nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts 180° e 181° do Código Penal, tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa (uma vez que os crimes de difamação e de injúria são crimes de perigo)

III – Como escreveu Beleza dos Santos «nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível (...).” V. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92°, pág. 167.

IV – Com efeito, aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não pode considerar difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena – ob. cit. págs 165 e 166.

Ou seja, numa exegese necessariamente restritiva não há formulação de juízos de valor objectivamente ofensivos da honra e consideração pessoal da assistente, como bem analisado pelo tribunal recorrido, que mereçam a intervenção do direito penal.

Não os havendo não há factos que constituam crime pelo que foi acertado o uso do disposto no artigo 311º, n. 2, al. a) e n. 3, al. d) do Código de Processo Penal.

Por isso o recurso deve improceder.


*

C - Dispositivo:

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto e em confirmar o douto despacho recorrido.

Notifique.

Custas pela assistente com 2 (duas) Ucs. de taxa de justiça.

Évora, 24 de Janeiro de 2017 (Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa (relator)

António Condesso

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[1] - Assinatura a 22 de Setembro de 1976, aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, publicada no Diário da República, I Série, n.º 236/78 (rectificada por Declaração da Assembleia da República publicada no Diário da República, I Série, n.º 286/78, de 14 de Dezembro) e com entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa a 9 de Novembro de 1978.

[2] - Acórdão Cumpana e Mazare c. Roménia, § 88 «La condition de «nécessité dans une société démocratique» commande à la Cour de déterminer si l’ingérence incriminée correspondait à un « besoin social impérieux».