VIOLAÇÃO DOS DEVERES CONJUGAIS
DIREITO DE PERSONALIDADE
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário


I - É legítimo ao cônjuge cuja lesão decorra da prática, pelo outro cônjuge, na constância do matrimónio, de factos ilícitos violadores dos deveres conjugais, que consubstanciem também a violação dos seus direitos de personalidade, demandar o cônjuge lesante, peticionando indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais da responsabilidade civil aquiliana.
II - Tal acção deve ser intentada nos tribunais comuns e é independente da dissolução do matrimónio por divórcio e, consequentemente, dos factos que serviram de fundamento à sentença que o decretou.

Texto Integral


Acordam, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc. N.º 18/16.1TBSRP
Apelação
Comarca de Beja (Serpa-IL–SCG-J1)
Recorrente: A...
Recorrido: B...

I. A... intentou a presente Acção Declarativa, sob a forma de Processo Comum, contra B..., peticionando o seguinte:
a)Considerar o Réu como único e principal culpado da ruptura da vida em comum;
b)Condenar o Réu na indemnização por danos morais na quantia de €15.000,00;
c)Condenar o Réu na indemnização por danos patrimoniais na quantia de €1.280,34;
d)Condenar o Réu no pagamento dos tratamentos de psicoterapia necessários até ao restabelecimento psicológico da A..
Alegou para o efeito, em síntese, um conjunto de factos que suportam a sua invocação da violação pelo Réu dos seus deveres conjugais e de que decorre a sua pretensão de ser ressarcida pelos danos morais e patrimoniais provocados pela descrita conduta do ora Réu.

Efectuado julgamento foi proferida Sentença, em que se decidiu o seguinte:
“Nos termos e com os fundamentos expostos:
Julgo improcedente a invocada excepção de incompetência absoluta do Tribunal;
Julgo improcedente a acção, absolvendo o Réu dos pedidos contra si formulados pela Autora.
…”

Inconformado com tal decisão, veio a Autora interpor recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
1) A ora Recorrente intentou uma ação de responsabilidade por factos ilícitos, que conduziram à rutura da vida em comum. Esta ação tem como fundamento a violação dos deveres conjugais e só pode ser pedido, em ação autónoma, nos termos gerais do direito, com base nos artigos 1792º, n.º1 e art.º 496º n.º1, do Código Civil.
2) A Autora reclama do Réu uma indemnização por danos morais no valor de quinze mil euros, porquanto, em síntese, os comportamentos desrespeitosos da sua integridade física e moral assumidos pelo Réu e a violação pelo mesmo dos deveres conjugais, foram a causa única e exclusiva da separação, bem com uma indemnização por danos patrimoniais, por violação do dever de assistência, designadamente, o valor despendido com os tratamentos médicos.
3) A Sentença recorrida considerou que: "A questão jurídica a resolver consiste em saber se, à luz da lei e da Jurisprudência, é possível declarar, face aos factos assentes, a culpa do Réu pela dissolução do casamento na presente acção e condená-lo no pagamento de danos patrimoniais e não patrimoniais causados à Autora."
4) Mais decidiu o Tribunal a quo que, encontrando-se as partes casadas ocorre manifesta improcedência dos pedidos formulados, porquanto, considerou que o "pedido de ressarcimento nos Tribunais comuns exige a prévia prolação de sentença de divórcio assente em tal fundamento litigioso".
5) O Tribunal a quo absolveu o Réu dos pedidos, considerando que "a tese propugnada pela Autora não tem possibilidades de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela façam a jurisprudência e a doutrina".
6) A decisão recorrida baseou-se no seguinte: "No entanto, atento o espírito da lei que alterou esta norma e a sua própria inserção sistemática, na "subsecção IV - Efeitos do Divorcio", acompanhamos a Jurisprudência que entende que o direito à reparação que persiste e que continua a ser consagrado em tal preceito, é "exclusivamente respeitante aos danos não patrimoniais causados e que são causa do divórcio" e que tiveram \1(. . .) como fundamento os concretos factos que basearam o decretamento do Divórcio Litigioso e que se encontram expressos na sentença que o decretou".
7) A recorrente não pode conformar-se com a presente decisão e vêm dela interpor recurso, porquanto, a mesma está ferida de vários vícios e violações de lei.
8) Com o devido respeito, tese acolhida pelo Tribunal a quo, é uma tese que surgiu na sequência da alteração do regime de divórcio, após a sua entrada em vigor, quando as partes na dúvida continuavam a deduzir o pedido de indemnização cível na ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge;
9) O mais recente acórdão do STJ, de de 12/05/2016, pro c. ° 2325/12.3TVLSB.L1.S1, 2. a secção, Relator Conselheiro Tomé Gomes, traça um esboço da evolução do direito matrimonial, bem como, as perspetivas doutrinais e jurisprudências que foram surgindo e o caminho que trilharam;
10) Há muito que a doutrina e jurisprudência sustentam a possibilidade de indemnização do cônjuge lesado, em ação autónoma à ação de divórcio, mesmo na constância do casamento, nos termos gerais da responsabilidade civil, sejam estes patrimoniais, morais, decorrentes da violação das obrigações conjugais ou da dissolução do matrimónio;
11) O atual 1792.º está, ao contrário do anterior, dividido em dois números. A do cônjuge cujas faculdades mentais se alteram e que sofre danos não patrimoniais com o divórcio (n.º 2) e a do cônjuge que, em qualquer caso, sofra danos provocados pelo outro cônjuge, sejam estes patrimoniais, morais, decorrentes da violação das obrigações conjugais, da dissolução do matrimónio ou outros (n.º1).
12) Ao decidir como fez, a sentença recorrida, amputou qualquer direito da Autora no sentido de vir a ser ressarcida pelo que considerou ser violador dos seus direitos;
13) A autora pretende ser indemnizada pelos danos causados com a rutura da vida em comum (referente a um período temporal e independentemente de levar ou não à dissolução do casamento), perpetuado pelo Réu, em consequência da violação dos deveres conjugais, desde logo, pela violação do dever de fidelidade, pela violação do dever de respeito, pela violação do coabitação e assistência, nomeadamente, ao expulsar a Autora do lar conjugal, ao mudar as fechaduras da residência de família e ao manter uma relação extraconjugal à vista de todos.
14) A sentença recorrida entendeu, igualmente, absolver o Réu dos pedidos, porquanto, considerou que a tese da Autora não tem possibilidades de ser acolhida face à lei em vigor e à interpretação que dela façam a jurisprudência e a doutrina.
15) Face a todo o exposto dúvidas não existem de que a tese da Autora tem muito acolhimento na doutrina e jurisprudência e, em consequência, a ação deveria ter prosseguido para audiência de julgamento.
16) Ainda assim, o Tribunal a quo, ao ter decidido como fez, nunca poderia ter absolvido o Réu dos pedidos, porquanto, decidiu que os pedidos formulados pela Autora não podiam proceder em virtude de as partes encontrarem-se casadas;
17) Ao decidir que os pedidos formulados pela Autora são improcedentes face ao facto de estarem casados, deveria ter- o que, sem conceder, se admite por mera cautela de patrocínio- absolvido o Réu da Instância.
18) A decisão recorrida interpretou e aplicou erradamente o disposto no artigo 1792 do CC;
19) A decisão recorrida interpretou e aplicou erradamente as normas substantivas e processuais aplicáveis e que levaram à absolvição do Réu do pedido;
20) A decisão recorrida é nula em virtude da deficiente motivação de facto e de direito, nos termos do artigo 615.° n. °1, alínea b) do CPC;
21) A decisão recorrida viola o princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.°, n..º2 da CRP, bem como, por violação do direito a um processo equitativo, nos termos do artigo 20.°, n.º 1 e 4, da Constituição da República.
22) A interpretação da mesma lei de forma diferente por diversos tribunais viola também os princípios da certeza e segurança jurídicas e previsibilidade, que são apanágio do princípio do Estado de direito previsto no artigo 2.° da CRP e no artigo 13.° da CRP.
23) A douta sentença recorrida padece de erro na interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis, devendo a mesma ser revogada, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
Nestes termos e nos demais de direito que V. exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, ser revogada a sentença proferida e, em consequência, ser proferido despacho destinado a identificar objeto do litígio e enunciar os temas da provai ou, embora sem conceder, caso V. exas. assim não entendam, substituída por outra que absolva o Réu da Instância.

Cumpre decidir.
II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :
a)A Autora e o Réu são casados entre si.
b)A 16 de Março de 2016, a Autora instaurou contra o Réu uma acção de divórcio, com fundamento na ruptura definitiva do casamento, nos termos do disposto no artigo 1781.°, alínea d), do Código Civil, a qual corre ainda os seus trâmites.

***
III. Nos termos do disposto nos art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, ambos do N.C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código.

As questões a decidir resumem-se, pois, a saber:
a) Se a Sentença recorrida é nula por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615º, n.º1, alínea b), do NCPC;
b) Se a sentença padece de erro de interpretação da Lei, e por isso deve ser revogada, determinando-se o prosseguimento do processo;
c) Ou, se assim não se entender, deve ser o Réu absolvido da instância.

No que respeita à primeira questão, como ensina Alberto dos Reis Alberto dos Reis, "o que a lei considera nulidade é a falta de fundamentação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade" (CPC Anotado, vol. V, pág. 140, em comentário ao art.º 668º), concepção que a doutrina e jurisprudência vêm mantendo (ver por todos Lebre de Freitas, CPC Anotado, 2008, vol. 2º, pág. 669).
Ora a Sentença recorrida está perfeitamente fundamentada, explicitando a sua posição sobre a interpretação do n.º1 do art.º 1792º do Cód. Civ. e, concluindo, em face dessa interpretação, que a lei não admite o peticionado pela Autora ao pretender a condenação do Réu no pagamento de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes da violação de deveres conjugais que a Autora lhe imputa.
Daí que improceda a arguida nulidade da Sentença.

Passando à segunda questão, importa apurar se a Sentença recorrida padece de erro de interpretação da Lei, e por isso deve ser revogada, determinando-se o prosseguimento do processo;

Esta segunda questão atém-se a saber se é legítimo ao cônjuge lesado, por via da prática, pelo outro cônjuge, na constância do matrimónio, de factos ilícitos violadores dos deveres conjugais, demandar o cônjuge lesante, peticionando indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais da responsabilidade civil aquiliana, independentemente da decretação do seu divórcio e, consequentemente, dos factos que fundamentaram a sentença que o decretou.

Enquadrando a questão da indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da violação dos deveres conjugais, importa trazer à colação o Acórdão do STJ de 12/05/2016, proferido no Proc. n.º 2325/12.3TVLSB.L1.S1, que traça um historial do quadro da responsabilidade civil no âmbito desses danos, apontando para a melhor interpretação da actual redacção do art.º 1792º do Código Civil, do seguinte teor (extracto):
“Para uma melhor determinação do quadro normativo aplicável, convém traçar um breve esboço da evolução do nosso direito matrimonial, pelo menos desde 1977, no que respeita à matéria dos deveres conjugais e ao âmbito da respetiva tutela cível.
Como é sabido, a Constituição da República de 1976, no seu artigo 36.º, n.º 3, veio consagrar, de forma plena e clara, o princípio da igualdade de direitos e deveres dos cônjuges “quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos”.
Tal proclamação traduziu-se numa directriz tendente à substituição, nas palavras de Antunes Varela, do anterior “modelo de sociedade conjugal diferenciada, assente na complementaridade dos sexos, reflectida na função específica de cada um dos cônjuges dentro da família”, por uma “sociedade funcionalmente indiferenciada ou, pelo menos, não tipicamente diferenciada, assente sobre dois novos princípios: o da igualdade de direitos e deveres dos cônjuges (igualdade jurídica) e o da direcção conjunta ou da co-direcção, quer nas relações de carácter pessoal, quer nos assuntos de natureza patrimonial”[1].
No desenvolvimento dos novos pilares constitucionais da instituição familiar, veio o Dec.-Lei n.º 496/77, de 25/11, introduzir profundas alterações no regime matrimonial constante do Código Civil de 1966, com especial realce, no que aqui releva, para os deveres dos cônjuges enunciados na então nova redação do artigo 1672.º, da qual, pela primeira vez, passou a constar, logo à cabeça, o dever de respeito, seguido dos deveres de fidelidade e de coabitação, já dantes consagrados, bem como de um novo dever de cooperação, a anteceder o também o pré-existente dever de assistência.
Ainda segundo Antunes Varela, com o destaque dado ao dever recíproco de respeito terá a lei “pretendido, à primeira vista, acentuar que sobre cada cônjuge recai um dever especial de abstenção em face dos direitos pessoais absolutos do outro”[2], o que representou, sem dúvida, um reforço da tutela da personalidade dos cônjuges, em detrimento do tradicional cunho institucional do casamento e da família.
Por outro lado, em sede do divórcio, em vez do anterior sistema de causas tipificadas no originário artigo 1778.º, o Dec.-Lei n.º 496/77 passou a distinguir duas variantes:
a) – uma primeira, fundada na violação culposa, grave ou reiterada, dos deveres conjugais em termos de comprometer a possibilidade da vida em comum, conforme o disposto na então nova redação do artigo 1779.º - divórcio-sanção;
b) – uma segunda, baseada nas situações objetivas especificamente configuradas no artigo 1781.º - em cuja alínea c) se incluía a alteração das faculdades mentais do cônjuge demandado, por mais de três anos -, reveladoras da rutura da vida em comum – divórcio-remédio.
Paralelamente, foi introduzido, de forma inovadora, o artigo 1792.º, nos termos do qual:
1 - O cônjuge declarado único ou principal culpado e, bem assim, o cônjuge que pediu o divórcio com fundamento na alínea c) do artigo 1781.º, devem reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento.
2 – O pedido de indemnização deve ser deduzido na própria acção de divórcio.
Desse modo, foi consagrado o direito a indemnização por danos não patrimoniais decorrentes do próprio divórcio, fosse a favor do cônjuge inocente ou não principal culpado com fundamento na violação dos deveres conjugais, por parte do outro cônjuge, fosse a favor do cônjuge demandado com base nas alterações das suas faculdades mentais.
Colocava-se então a questão de saber se da violação dos deveres conjugais, independentemente do divórcio, decorreria para o cônjuge lesado o direito a ser indemnizado nos termos gerais da responsabilidade civil.

Sobre esta questão, desenhavam-se duas perspetivas:
i) - uma de cariz tradicional, no sentido de negar tal direito, ancorada na tese da denominada fragilidade da garantia dos deveres conjugais, com fundamento na ideia da impossibilidade de imposição desses deveres e no carácter íntimo destes, refractários, portanto, a uma intromissão externa, à luz do princípio da auto-regulação familiar;
ii) - outra, a sustentar a possibilidade de indemnização do cônjuge lesado, em ação autónoma à do divórcio, mesmo na constância do casamento, nos termos gerais da responsabilidade civil, considerando que os direitos conjugais revestiam a natureza jurídica de direitos subjetivos, não se justificando que a sua função institucional pudesse desmerecer aquela tutela.
Em defesa da primeira perspetiva, pronunciaram-se, por exemplo, Antunes Varela e Leite de Campos. Segundo aquele autor, “as sanções contra a inobservância dos deveres conjugais, no plano das relações internas, encontram-se geralmente no direito de divórcio e no instituto da separação, sendo certo que nesse domínio se deve admitir a ressarcibilidade, tanto dos danos materiais, como dos danos morais sofridos pelo cônjuge inocente (cf. art. 1792.º, n.º 1)”[3]. Por seu turno, Leite de Campos, convocando várias razões, mormente o carácter de privacidade e de intimidade da instituição familiar, advoga que “a observância dos deveres familiares pessoais está tutelada por uma garantia mais frágil do que a dos deveres em geral”, não desencadeando, “por si, qualquer espécie de sanção para além da dissolução do vínculo ofendido”, mas não impedindo que, “no caso de um dos membros da família praticar contra outro um acto que implique responsabilidade civil ou criminal”, (…) independentemente do contexto familiar”, tal seja qualificado como facto ilícito relevante nessa sede[4].
Na linha da segunda perspetiva e, portanto, da negação da tese da “fragilidade da garantia”[5], posicionaram-se Heinrich Hörster[6] e Ângela Cerdeira[7]. Para aquele autor, «os direitos familiares pessoais – pese embora a sua natureza “sui generis” - são concebidos como direitos privados, o que significa que lhes subjaz o binómio “liberdade-responsabilidade», pelo que a lesão de tais direitos faz incorrer o lesante em responsabilidade civil pelos danos assim causados[8]. Também Ângela Cerdeira considera que os deveres conjugais se traduzem em verdadeiros poderes jurídicos de exigir o respetivo cumprimento, que não meros poderes de pretensão, como no domínio das obrigações naturais[9]. E ainda Duarte Pinheiro, depois de uma análise aprofundada, refere, em síntese, que “a despeito de conter uma vertente largamente sancionatória, o regime português dos efeitos do divórcio não torna inútil o recurso ao instituto geral da responsabilidade civil”[10]
E, em tempos mais recuados, Pereira Coelho defendia que, “para além dos alimentos, e a coberto do princípio geral firmado no artigo 2361.º do Código Civil de Seabra (correspondente ao actual artigo 483.º), o cônjuge culpado do divórcio podia ser compelido a indemnizar o outro dos danos morais e patrimoniais causados, visto os actos culposos que servem de fundamento ao divórcio ofenderem os direitos familiares pessoais do cônjuge inocente”, adiantando que é “nesta obrigação de indemnizar que estará, verdadeiramente a sanção para o não cumprimento dos deveres matrimoniais, visto o divórcio não constituir essa sanção, ainda que o cônjuge inocente possa pedir ao culpado uma indemnização pelos danos patrimoniais e morais, quer pelos resultantes directamente dos factos que servem de fundamento ao divórcio, quer pelos resultantes do próprio divórcio e que serão consequência indirecta daqueles factos”[11].
De notar que Pires de Lima e Antunes Varela, em comentário ao artigo 1792.º, na redação dada pelo Dec.-Lei n.º 496/77[12], escrevem que:
«Ainda a propósito dos danos (não patrimoniais) abrangidos pelo n.º 2 do artigo 1792.º (que não apenas, como vimos, os danos morais resultantes da própria dissolução do casamento), importa salientar que esta disposição não obsta naturalmente à ressarcibilidade, quer dos danos provenientes da violação dos deveres relativos dos cônjuges, quer da violação dos direitos absolutos de que seja titular o cônjuge ofendido (ofensas à sua integridade física ou ao seu bom nome, violações da sua propriedade, etc.).
Esses danos terão, evidentemente, que ser apreciados em acção autónoma e não na acção de divórcio, que tem como fundamental objectivo a dissolução da relação matrimonial.»
Todavia, no domínio da segunda perspetiva acima enunciada, há quem entenda que o direito a indemnização por danos não patrimoniais só terá lugar nos casos de violação simultânea ou concomitante dos deveres conjugais e dos direitos de personalidade, enquanto que outros admitem tal direito mesmo em casos de não simultaneidade ou concomitância, desde que, pela gravidade dos danos, merecessem a tutela do direito, nos termos do n.º 1 do artigo 496.º do CC[13].
No meio desta polémica, a jurisprudência dos nossos tribunais foi abrindo caminho no sentido de considerar indemnizáveis, em processo comum, os danos não patrimoniais decorrentes da violação dos deveres conjugais, independentemente de tal violação constituir ou não fundamento de divórcio ou de este ter sido pedido.
Assim, já o acórdão do STJ, de 13/03/1985, tirado em reunião conjunta de das secções cíveis, publicado no BMJ, n.º 345, páginas 414-424, doutrinava que:
«I – O artigo 1792.º do Código Civil compreende os danos não patrimoniais causados pelo próprio divórcio, devendo o respectivo pedido de indemnização ser obrigatoriamente formulado na acção de divórcio;
II – Os danos ocasionados directamente pelos factos em que se fundamenta o divórcio, sejam de natureza patrimonial ou não, podem dar lugar à obrigação de indemnizar, nos termos do artigo 483.º do Código Civil, devendo a indemnização ser solicitada em processo comum de declaração;
III – Se, em acção de divórcio, forem provados exclusivamente danos resultantes de factos em que se funda o divórcio, o tribunal não pode conceder indemnização ao cônjuge lesado, ainda que invoque o disposto no artigo 483.º em vez do artigo 1792.º»
Também o acórdão do STJ, de 26/06/1991, publicado no BMJ n.º 408, páginas 538 e segs., confirmou, em ação autónoma à do divórcio, a atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da violação culposa dos deveres conjugais de respeito e de coabitação, com base nos mesmos factos em que se fundara a sentença de divórcio.
Na mesma linha, se pronunciaram no sentido de que os danos patrimoniais ou não patrimoniais emergentes dos factos causais do divórcio são indemnizáveis nos termos gerais, mas através de processo comum e nunca na própria ação de divórcio, entre outros, os acórdãos do STJ de 15/06/ 1993[14], 08/02/2001[15], 27/05/2003[16] e de 07/10/2004[17].
De notar que, na generalidade dos arestos indicados, a questão foi abordada, nas próprias ações de divórcio, em que se considerou não ser a sede própria para deduzir tais pretensões. Só o acórdão do STJ de 26/06/ 1991 é que foi proferido em ação autónoma à do divórcio. Ao que cremos, não era então frequente a instauração deste tipo de ação autónoma, o que se deverá ao facto de a parte interessada quase sempre preferir acolher-se ao tipo de pretensão prevista no n.º 1 do artigo 1792.º.
Entretanto, a Lei n.º 61/2008, de 31/10, veio pôr termo ao divórcio litigioso fundado em violação dos deveres conjugais, consagrando o divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, por rutura do casamento, nas situações ora configuradas no artigo 1781.º do CC, ainda que não exista culpa de qualquer deles.
Do mesmo passo, a referida lei deu nova redação ao artigo 1792.º, que, sob a epígrafe Reparação de danos e inserido na subsecção intitulada Efeitos do divórcio, passou a ter a seguinte redação:
1. O cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns.
2. O cônjuge que pediu o divórcio com o fundamento da alínea b) do artigo 1781.º deve reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento; este pedido deve ser deduzido na própria ação de divórcio.
As alterações desta lei entraram em vigor a partir de 30/11/2008, não sendo aplicáveis aos processos pendentes antes dessa data.
Assim, manteve-se a indemnização pelos danos não patrimoniais resultantes do próprio divórcio, quando fundado em alterações das faculdades mentais do cônjuge requerente, por mais de um ano, a ser deduzida na própria ação de divórcio e relegou-se para ação autónoma a instaurar nos tribunais comuns a pretensão de indemnização por danos causados ao cônjuge lesado, nos termos gerais da responsabilidade civil, o que se compreende pelo simples facto de, na ação de divórcio, já não serem agora discutidas as violações dos deveres conjugais.
Embora o artigo 1792.º se encontre inserido na subsecção dos “Efeitos do Divórcio”, salvo o devido respeito, não se afigura que tal inserção sistemática se cinja às pretensões indemnizatórias ali previstas que sejam deduzidas depois da decretação do divórcio, como o sustentado na decisão da 1.ª instância. O que, fundamentalmente, ali se pretendeu foi tão só, ante a hipótese da indemnização por danos não patrimoniais decorrentes do divórcio prevista no n.º 2 daquele normativo, deixar clara a ressalva dos casos de indemnização do cônjuge lesado nos termos gerais da responsabilidade civil, a serem peticionados em ação autónoma à do divórcio, aliás na linha do que vinha sendo admitido pela jurisprudência.
Mas os termos genéricos em que ali se refere à responsabilidade civil deixam ainda em aberto a questão de saber qual o seu alcance, mormente se haverá lugar a indemnização por danos não patrimoniais exclusivamente fundada na violação dos deveres conjugais ou se apenas quando tais violações forem equacionadas, exclusiva ou concomitantemente, com a violação dos direitos absolutos de personalidade, nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do CC.
Neste novo contexto legal, uma boa parte da doutrina vem reforçando a argumentação sobre o fim da doutrina da fragilidade da garantia dos deveres conjugais e sobre a admissibilidade do direito de indemnização do cônjuge lesado pelos danos resultantes da violação dos deveres conjugais, seja em articulação simultânea com a tutela da personalidade nos termos do artigo 483.º, n.º 1, do CC, seja mesmo em casos de inexistência de tal simultaneidade, desde que a gravidade dos danos mereçam a tutela do direito, nos termos do artigo 496.º, n.º 1, do CC[18].
Também Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito da Família, Volume I, Introdução/Direito Matrimonial, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 2001, a p. 156, considerando a sua aceitação, em edição anterior, do princípio da doutrina tradicional da garantia frágil dos deveres conjugais, escrevem:
«Admitimos, porém, que o caso tivesse solução diversa se fosse pedido o divórcio ou a separação de pessoas e bens, pois a consideração da essência ética do casamento, a defesa da paz familiar e o propósito de evitar uma excessiva intervenção do Estado na vida da família, razões que poderiam justificar uma interpretação restritiva do art. 483.º em termos de nele se não abrangerem os direitos familiares pessoais, essas razões já não tinham peso depois de um dos cônjuges intentar contra o outro uma acção de divórcio ou separação.
Pensamos hoje, até, que o art.º 483.º não exclui a possibilidade de, independentemente de ter sido requerido o divórcio ou a separação de pessoas e bens, se deduzir pedido de indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela violação dos deveres do art. 1672.º - isto embora a situação raramente se verifique, pois mal se imagina que um dos cônjuges não queira divorciar-se nem separar-se e pretenda obter do outro uma indemnização desses danos. Será nesta impossibilidade ou dificuldade prática que radicará, de alguma maneira, a fragilidade da garantia que assiste aos direitos familiares pessoais.»
Mais radical no sentido da negação da tutela cível dos deveres conjugais parece ser a posição sustentada por Carlos Pamplona Corte Real / José Silva Pereira, no sentido de que “o casamento enquanto encontro de vontades atinente a uma esfera livre e íntima dos cônjuges representa um projeto de vida com larga margem de modelação por aqueles, renovado ao longo do tempo, o que será incompatível com a noção de casamento enquanto contrato e a inerente atribuição de sinalagmaticidade no exercício do afecto e a correspondente atribuição do regime jurídico previsto para os contratos de que será exemplo a inaplicabilidade do regime da resolução ou modificação das circunstâncias e a excepção de não cumprimento do contrato.”. Nessa linha, segundo aqueles autores, “os deveres conjugais não podem reconduzir-se tecnicamente a deveres jurídicos, sendo meras obrigações naturais”.[19]
No plano da jurisprudência, continua também a manter-se a linha de orientação no sentido da admissibilidade do direito de indemnização do cônjuge lesado pelos danos não patrimoniais decorrentes da violação dos deveres conjugais nos termos gerais da responsabilidade civil. Foram nesse sentido, entre outros, os acórdãos do STJ, de 09/02/20012, proferido no processo n.º 819/09.7TMPRT.P1.S1, e de 17/09/2013, proferido no processo n.º 5036/11.3TBVNG.P1.S1[20]
Neste último, considerou, em síntese, que:
«I – Com a redacção dada ao n.º 1 do art. 1792.º do CC pela Lei n.º 61/2008, de 31-10, a reparação dos danos causados ao cônjuge alegadamente lesado, quer dos resultantes da própria dissolução do casamento, quer de factos que possam ter conduzido à ruptura da vida em comum, passa a ser feita nos meios comuns, de acordo com os princípios gerais da responsabilidade civil.
II – Com excepção dos casos em que a ruptura do casamento é consequência de alterações das faculdades mentais do outro cônjuge – n.º 2 do art. 1792.º do CC -, a lei deixou de fazer qualquer distinção entre os danos resultantes da dissolução do casamento e os danos directamente resultantes de factos ilícitos ocorridos na constância do matrimónio, nomeadamente os que possam ter conduzido ao divórcio, sendo, uns e outros, pelo menos em abstracto, ressarcíveis através de acção judicial para efectivação da responsabilidade civil.
III – Numa e noutra situação, cabe ao cônjuge alegadamente lesado a demonstração de factos sustentadores da responsabilidade civil por factos ilícitos – art. 483.º do CC.
Perante esta problemática, afigura-se que será de manter essa linha de orientação, no sentido da admissibilidade do direito de indemnização do cônjuge lesado, nomeadamente pelos danos não patrimoniais, independentemente da dissolução do casamento por divórcio e mesmo na constância do matrimónio, nos termos gerais da responsabilidade civil tal como se ressalva na atual redação do n.º 1 do artigo 1792.º do CC. E, inscrevendo-se esta ressalva na linha do precedente entendimento jurisprudencial, não reveste, por isso, natureza inovatória, nada obstando a que se aplique a factos anteriormente ocorridos, como o dos presentes autos.
Com efeito, salvo o devido respeito, não se depreende do regime legal elementos decisivos para a tradicional tese da fragilidade da garantia dos deveres conjugais. Bem pelo contrário, o reforço daqueles deveres, em particular com a inclusão do dever de respeito por via do Dec.-Lei n.º 496/77, veio reforçar a tutela da personalidade de cada um dos cônjuges em detrimento do anterior modelo de sociedade conjugal diferenciada, de cunho institucionalista, que esbatia ou comprimia essa tutela ao serviço do matrimónio e da família.
Acresce que, não obstante a abolição do sistema do divórcio-sanção, fundado na violação dos deveres conjugais, o certo é que se manteve o elenco de tais direitos/deveres enunciados no artigo 1672.º do CC, sendo que essa abolição deixou de fora o sancionamento daquela violação por via da ação de divórcio.
Assim, independentemente de se discutir a natureza contratual ou não do casamento, parece inegável que a tais direitos/deveres é atribuída juridicidade bastante para assegurar o compromisso de plena comunhão de vida assumido pelos nubentes, nos termos dos artigos 1577.º e 1671.º do CC, não se divisando que a degeneração daqueles direitos/deveres em meras obrigações naturais seja adequada a acautelar os interesses dos cônjuges envolvidos nesse compromisso.
Por isso, acompanha-se a posição doutrinária de Duarte Pinheiro, quando considera que[21]:
«(…) a previsão legal de deveres a que estão reciprocamente obrigados os cônjuges tem de ser interpretada como beneficiando de sanção jurídica, não só porque ao legislador não compete pronunciar-se sobre os assuntos que são do mero foro interno dos indivíduos mas também porque a Constituição incumbe o Estado da protecção da família (…)»
Na mesma linha de raciocínio, não se afigura que o facto de a atual lei não admitir o divórcio-sanção com fundamento na violação dos deveres conjugais tenha o efeito de derrubar a tutela autónoma daqueles deveres nos termos gerais da responsabilidade civil, dantes já admitida pela generalidade da jurisprudência e por boa parte da doutrina e agora até expressamente ressalvada no n.º 1 do artigo 1792.º do CC.
Na sentença da 1.ª instância, foi seguido o entendimento adotado por Duarte Pinheiro, além de outros autores ali indicados, de que os direitos familiares pessoais revestem a natureza de direitos absolutos com eficácia erga omnes, merecendo, por isso, diretamente, a tutela prevista no artigo 483.º do CC[22].
Também Capelo de Sousa[23] salienta que
“(…) os cônjuges não alienam nas relações entre si a generalidade dos seus direitos de personalidade, pelo que, para além da inquestionável tutela civilística de bens essenciais como a vida e a integridade física nas relações entre os cônjuges, nos parecem ressarcíveis mesmo os danos não patrimoniais, desde que, v.g. a honra, a reputação, a liberdade e mesmo a intimidade, verificadas durante a vigência do casamento, que não apenas pela dissolução do casamento.”
Não se suscitará, pois, grande dúvida de que, pelo menos nos casos de concomitância da violação dos deveres conjugais e da tutela da personalidade, o mesmo é dizer, da violação dos direitos de personalidade ainda que através da violação dos direitos conjugais, assista ao cônjuge lesado o direito a ser indemnizado pelo danos daí decorrentes nos termos gerais da responsabilidade civil.
Já quando se trate de violação daqueles deveres sem concomitância com a violação dos direitos de personalidade, a solução pode parecer mais duvidosa, o que, se necessário, será aqui equacionada nas circunstâncias do caso.
…”
E mais adiante:
“Aqui chegados, resta apurar se, mesmo assim, as reiteradas violações dos deveres conjugais, a partir de 2000, imputadas ao R. com o consequente impacto na situação psíquica da A. se revelam de gravidade suficiente que mereça a tutela do direito nos termos do n.º 1 do artigo 496.º do CC.
Em primeiro lugar, há que reconhecer, como aliás se reconheceu no acórdão recorrido, que o estado psíquico da A. retratado nos pontos 1.11, 1.12 e 1.13 da factualidade provada foram consequência dos comportamentos imputados ao R. no plano dos deveres conjugais. Trata-se, pois, de matéria de facto afirmada pelas instâncias que não cumpre aqui sindicar.
Daí que teremos também de admitir que o impacto dessas violações se mostra lesivo da integridade psíquica da A., inscrevendo-se, portanto, na esfera da tutela dos seus direitos de personalidade.
Com efeito, a tutela geral da personalidade consagrada, desde logo nos artigos 24.º a 26.º da Constituição e no artigo 70.º, n.º 1, do CC, compreende, além do mais, a proteção da integridade física e moral, núcleo duro e irredutível de afirmação da dignidade da pessoa humana.
Nas palavras de Rabindranath Capelo de Sousa,[24] no que respeita ao “conteúdo do bem juscivilístico do corpo humano”:
«(…) através daquele bem jurídico são protegidos não apenas o conjunto corporal organizado mas inclusivamente os múltiplos elementos anatómicos que integram a constituição físico-somático e o equipamento psíquico do homem bem como as relações fisiológicas decorrentes da pertença de cada um desses elementos a estrutura e funções intermédias e aos conjunto do corpo, nomeadamente quando se traduzem num estado de saúde físicopsíquica.»
Ora, o alargamento dos direitos/deveres conjugais operado no artigo 1672.º do CC por via do Dec.-Lei n.º 496/77, em especial com a inclusão do “dever de respeito”, no quadro do princípio da igualdade dos cônjuges consagrado no n.º 3 do artigo 36.º da Constituição, veio, como já foi dito, conferir um reforço da tutela da personalidade dos cônjuges, em detrimento do tradicional modelo institucional do casamento e da família, o que significa que, na observância desses deveres, se impõem a cada um deles padrões de comportamento que não sejam ofensivos da esfera da personalidade do outro.
Como se destaca no acórdão do STJ, de 16/01/2014[25], acessível na página da dgsi, proferido no processo 575/05.8TBCSC.L1.S1:
«O dever de respeito, que recai sobre cada um dos cônjuges perante o outro, abrange, em primeiro lugar, os direitos inerentes à personalidade (quer como pessoa humana, quer como cidadão) que a comunhão conjugal não afecta: E estende-se ainda aos direitos inerentes à situação de casado, que cada um dos cônjuges adquire com a celebração do casamento. A partir do acto matrimonial, o cônjuge passa a não estar só na vida social, mas solidariamente ligado, numa parte essencial da sua personalidade, ao seu consorte.»
E ali se acrescenta que:
«O dever de respeito é um dever residual, nele se incluindo o dever de cada um dos cônjuges não ofender a integridade física ou moral do outro.
Cada um dos cônjuges tem, pois, o dever de não atentar contra a vida, a saúde, a integridade física, a honra e o bom nome do outro, podendo dizer-se, em síntese, que o dever de respeito abrange de modo especial a integridade física e moral do outro cônjuge.»
Ora, no caso vertente, o R., após largos anos de vida conjugal em comum - de finas de 1967 a 1982 e de, pelo menos, 1983 a 2000 -, optou por abandonar o lar conjugal, “por ter outros relacionamentos amorosos”, embora, durante esse período temporal, regressasse, episodicamente, a casa, quando lhe apetecia, designadamente na época natalícia, chegando a passar férias de verão com a A., desprezando, no entanto, o acompanhamento e crescimento das filhas.
Esta conduta reiterada, além de violadora do dever de fidelidade, de coabitação e de cooperação, revela também uma expressiva violação do dever de respeito pela A., ofensiva da sua dignidade pessoal e de cônjuge, com desprezo pela sua auto-estima.
Nestas circunstâncias, segundo os ditames da experiência comum, bem se compreende que a A. tenha sofrido grande mágoa, perdendo a alegria de viver, tornando-se pessoa triste, deprimida, vivendo fechada em casa, o que levou a que chegasse a ser submetida a consultas de psiquiatria.
Não se trata apenas de um mero desgosto nem de uma situação psíquica transitória, já que é uma situação que se manteve ao longo daquele período, como ficou provado. Nem, salvo o devido respeito, se considera que se trate de uma mera situação de “frustração e desalento decorrente do malogro das relações afectivas” inerente ao “risco próprio da vivência inter-pessoal (risco do desamor)”, como se alude na declaração de voto do acórdão recorrido.
E é precisamente esse comportamento reiterado do réu, desencadeado sem motivos justificados ou, como se provou, “por outros relacionamentos amorosos”, com a agravante de regressar episodicamente a casa sempre que lhe apetecia, que se tem por censurável e que lhe é imputável a título de culpa. Este juízo de censura não tem por base a mera opção de vida feita pelo réu de afastamento do lar conjugal, mas fundamentalmente o tê-lo feito, como o fez, sem consideração pela dignidade e auto-estima da A.
Todavia, considerando o estado psíquico em que ficou a A., sem que se tenha logrado caracterizar uma patologia depressiva profunda, como fora alegado, nem se divisando, no recorte factual apurado, que tal situação se tivesse vindo a agravar ao longo do tempo, admitindo-se até, à luz da experiência comum, que o abalo psíquico da A. tenha sido mais acentuado nos primeiros anos, não se pode acompanhar a decisão da 1.ª instância em calcular o montante indemnizatório, taxativamente, em 3.000,00 por ano durante todo o período de 11 anos.
Posto isto, perante tais circunstâncias e atentas ainda as situações económicas do R. e da A., nos termos do artigo 494.º ex vi do n.º 4 do artigo 496.º do CC, tem-se por equitativo fixar uma indemnização de € 15.000,00, considerando a data da propositura da ação e, portanto, acrescida de juros de mora, desde a citação.
…”

Do exposto no largamente citado Acórdão do STJ, no que respeita aos danos não patrimoniais em apreço, podemos concluir o seguinte:
a)Em face do disposto no n.º1 do art.º 1792º do Código Civil, na redacção dada pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, é admissível a indemnização do cônjuge lesado, por danos não patrimoniais resultantes da violação dos deveres conjugais na constância do património, em particular se essa violação constituir simultaneamente violação dos direitos de personalidade;
b)Para além disso, também é devida indemnização ao cônjuge lesado, por danos não patrimoniais resultantes da cessação do vínculo matrimonial, por divórcio;
c)Os danos não patrimoniais acima referidos, devem ser apreciados nos termos gerais da responsabilidade civil aquiliana, tendo em conta o princípio geral consagrado no art.º 483º do Cód. Civ. e a sua relevância em termos da tutela do direito, consagrada no art.º 496º do Cód. Civ.;
d)Tais indemnizações devem ser requeridas em acção própria a interpor nos tribunais comuns e independentemente do matrimónio já ter sido dissolvido, por divórcio.

Paralelamente à indemnização por danos não patrimoniais, no quadro acima traçado, pode o cônjuge lesado demandar o outro cônjuge para o pagamento dos danos patrimoniais decorrentes da prática de factos ilícitos violadores dos deveres conjugais, concomitantes aos direitos de personalidade, ocorridos na constância do matrimónio, por exemplo pela prática da violação da integridade física do cônjuge agredido, e ainda pelos danos patrimoniais decorrentes da dissolução do casamento, por divórcio (art.ºs 1792º, n.º1, 1672º e 483º, todos do Código Civil), que devem ser peticionados em acção própria a intentar nos tribunais comuns.

Concluindo, nesta parte, é legítimo ao cônjuge cuja lesão decorra da prática, pelo outro cônjuge, na constância do matrimónio, de factos ilícitos violadores dos deveres conjugais, que consubstanciem também a violação dos seus direitos de personalidade, demandar o cônjuge lesante, peticionando indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais da responsabilidade civil aquiliana.
Tal acção deve ser intentada nos tribunais comuns e é independente da dissolução do matrimónio por divórcio e, consequentemente, dos factos que serviram de fundamento à sentença que o decretou.

Aqui chegados cumpre dar uma solução ao presente recurso.

Como acima dissemos, é legítimo ao cônjuge cuja lesão decorra da prática, pelo outro cônjuge, na constância do matrimónio, de factos ilícitos violadores dos deveres conjugais, que consubstanciem também a violação dos seus direitos de personalidade, demandar o cônjuge lesante, peticionando indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, nos termos gerais da responsabilidade civil aquiliana.

Compulsada a Petição Inicial, verifica-se que a fundamentação dos pedidos de condenação do Réu por danos morais e patrimoniais assentam na invocada violação, por este, de deveres conjugais que o vinculavam na constância do matrimónio, e que se podem consubstanciar na violação dos direitos de personalidade da Autora.
Nessa medida, e atento ao que acima dissemos, a acção deve prosseguir para apreciar a bondade desses pedidos, sem prejuízo do Tribunal “a quo” vir a convidar a Autora a melhor explicitar os fundamentos da sua pretensão.

Já quanto ao pedido de considerar o Réu ser considerado o único e principal culpado pela ruptura da vida em comum, não tem qualquer cabimento na presente acção _nem tão pouco na acção de divórcio _ dadas as alterações ao regime jurídico do divórcio pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, que baniu a declaração de cônjuge culpado na ruptura da vida em comum, entre outros, pela revogação do disposto no art.º 1787º do Cód. Civil, que respeitava à Declaração do cônjuge culpado, e pela alteração da redacção do art.º 1779º do Cód. Civ., que se reportava à Violação culposa dos deveres conjugais e que hoje tem objecto completamente diverso.
Isto, apesar de se perceber a intenção da Autora de querer imputar a responsabilidade ao Réu pela violação dos deveres conjugais que levaram à ruptura da vida em comum, matéria que no âmbito da presente acção se atém à eventual culpa do Réu na violação dos deveres conjugais, que provocaram os alegados danos que a Autora vem peticionar na presente acção.

Dito isto, deve a presente acção prosseguir os seus termos, para apreciação da bondade dos pedidos de condenação do Réu a pagar à Autora as peticionadas indemnizações por danos morais e patrimoniais, incluindo nestes os relativos aos tratamentos de psicoterapia necessários até ao restabelecimento psicológico da A..
Isto, sem prejuízo, como acima dissemos e voltamos a sublinhar, o Tribunal “a quo” poder convidar a Autora a aperfeiçoar a sua Petição Inicial, melhor concretizando os fundamentos da sua pretensão indemnizatória.

Procede assim, parcialmente, o presente recurso.
***
IV. Decisão
Pelo acima exposto, decide-se:
a) Pela procedência parcial do presente recurso, revoga-se parcialmente a Sentença recorrida, determinando-se o prosseguimento da presente acção para apreciação da bondade dos pedidos de condenação do Réu a pagar à Autora as peticionadas indemnizações por danos morais e patrimoniais, incluindo nestes os relativos aos tratamentos de psicoterapia necessários até ao restabelecimento psicológico da A.;
b) No mais, pela improcedência do presente recurso, confirmando-se nessa parte, a Sentença recorrida.
Custas por Apelante e Apelado, na proporção de 1/5 pela primeira e 4/5 pelo segundo.
Registe e notifique.
Évora, 26 de Janeiro de 2017
(Silva Rato - Relator)
(Mata Ribeiro– 1º Adjunto)
(Sílvio Sousa – 2º Adjunto)