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CONDENAÇÃO EM PROCESSO CRIME
VALOR EXTRAPROCESSUAL DA PROVA
RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO
MORA
Sumário
I – O que está em causa nos arts. 623º e 624º do CPC não é, propriamente, a eficácia do caso julgado penal, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado. II - Essa definição é feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido. III - A eficácia probatória da sentença penal condenatória transitada em julgado no processo civil em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração, nos termos do artigo 623º do CPC, traduz-se assim no seguinte: em relação a terceiros, aquela sentença constitui presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime. IV - Decorre implicitamente desta norma, sob pena de não fazer sentido a ressalva dela constante quando se trate de terceiros, que, em relação aos próprios arguidos, os factos referidos na mesma norma devem ser considerados provados no processo civil. V - Provada, no processo penal, a prática dum acto criminoso que constitua ilícito civil, o titular do interesse ofendido não tem o ónus de provar na acção civil subsequente o acto ilícito praticado nem a culpa de quem o praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e do nexo de causalidade. VI - A mora decorrente da obrigação de indemnizar por factos ilícitos só se inicia com a citação do devedor/lesante, nos termos da 2ª parte do nº 3 do artigo 805.º do Código Civil.
Texto Integral
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO A..., Lda. intentou a presente ação declarativa, com processo ordinário, contra JS, pedindo que o réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 354.745,59, acrescida dos juros de mora vincendos, à taxa legal, sobre a quantia de € 118.248,53.
Alegou a autora que foi associada da Adega Cooperativa de …, CRL sendo que, em Junho de 1989, era credora da mesma pelo valor da uva vendida na campanha de 1987. A referida Adega contraiu um empréstimo obrigacionista junto dos seus associados, mediante a emissão de títulos de investimento, tendo o réu - na qualidade de gerente da autora e utilizando o saldo credor que esta dispunha sobre aquela, no montante de 7.000.000$00 – subscrito, em 1 de Julho de 1989, 14 mil títulos de investimento, sendo que 8 mil desses títulos, no valor de 4.000.000$00, foram subscritos em nome da autora e 6 mil, no valor de 3.000.000$00, em seu nome pessoal.
Mais tarde, em 14 de Fevereiro de 1990, o réu voltou a subscrever, com fundos da sociedade, mais 2.600.000$00 de títulos de investimento e, em 31 de Março de 1990, deu ordens para a Adega transferir para seu nome pessoal 2.500.000$00 de títulos inicialmente subscritos em nome da Autora, tendo em 1 de Junho de 1990 dado a mesma ordem relativamente aos restantes títulos, no valor de 1.500.000$00. Nessa mesma data, o réu voltou a subscrever, novamente com fundos da autora, mais 3.000.000$00 de títulos de investimento. Entre 1 de Dezembro de 1989 e 1 de Junho de 1996, o réu recebeu por conta dos títulos de investimento subscritos com dinheiro da autora, juros no valor global de 11.106.702$00.
Alegou, por último, que o réu veio a proceder, em 1 de Junho de 1996, ao resgate em seu benefício da totalidade dos títulos de investimento subscritos com o dinheiro da autora, no valor de 12.600.000$00, o que fez aproveitando-se do facto de ser gerente da autora, com vista a apropriar-se de dinheiro que sabia pertencer àquela, tendo-lhe causado um prejuízo em montante equivalente, sem prejuízo dos respetivos juros de mora.
O réu contestou, invocando a existência de uma questão prejudicial a ser decidida no processo nº 253/09.9TBRDD, relativa à anulação de uma deliberação social que o excluiu de sócio da autora.
Por exceção arguiu a existência de litispendência por identidade de partes, causa de pedir e pedido relativamente ao processo nº 28/2001 a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Redondo, e a prescrição do direito invocado pela autora, por terem decorrido mais de 3 anos entre a data em que as partes foram remetidas para os meios comuns em processo criminal contra o mesmo instaurado e a propositura da presente ação, e, bem assim, de mais de 20 anos desde a data da prática dos factos que lhe são imputados.
Por impugnação alegou que enquanto gerente da autora sempre deu a conhecer aos demais sócios os movimentos e fluxos financeiros da sociedade, sendo todas as despesas da sociedade suportadas pelo réu, que adiantava significativas verbas à mesma para suportar os seus encargos correntes, afirmando serem falsos os factos alegados pela autora.
A autora replicou, defendendo a improcedência das exceções deduzidas e a inexistência da invocada questão prejudicial, concluindo como na petição inicial.
Por despacho de 23.10.2013, a fls. 351-354 dos autos, não foi reconhecida a existência da invocada questão prejudicial e, em consequência, foi indeferida a suspensão da instância.
Realizou-se audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador no qual foram julgadas improcedentes as exceções de litispendência e de prescrição do direito, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou:
«Nesta conformidade, tudo visto e ponderado, decide-se: A. Julgar a acção parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente, condenar o Réu, JS, a proceder ao pagamento à Autora, A..., Lda, da quantia de €1l6.l60,75, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos contados, à taxa legal, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento; B. Julgar a acção parcialmente improcedente, por não provada, quanto ao mais e, consequentemente, absolver o Réu do demais peticionado pela Autora. C. Condenar a Autora e o Réu no pagamento das custas da acção, na proporção do respectivo decaimento.»
Inconformados, o réu e a autora apelaram da sentença, tendo finalizado a respetiva alegação com as seguintes conclusões:
Recurso do réu
«a) tendo os factos objecto dos presentes autos ocorrido até 1990, verifica-se a prescrição da pretensão formulada pela A. em juízo, na decorrência directo do determinado nos arts. 482º e 498° do Cod. Civil;
b) a tal conclusão não obsta o facto de ter corrido processo crime pelo qual o recorrente foi condenado pela pratica de crime de abuso de confiança, na medida em que, mesmo considerando o prazo prescricional crime de dez anos, não podendo o mesmo exceder o prazo e metade, sempre também o prazo de prescrição já ocorreu;
c) os arts. 674°A e 674°B do Cod. Proc. Civil não determinam, a exemplo do que se fez na sentença recorrida, uma represtinação integral probatória dos factos consignados em sede de sentença criminal, tendo de ser corroborados e aferidos á luz do art. 342º do Cod. Civil, que não pode ficar desvirtuado como elemento de repartição do ónus da prova, sendo que apenas podem ser considerados os factos confirmados em sede de processo civil que já mereceram afirmação no âmbito criminal se prova contraria lhe não for aposta e na estrita medida em que ocorreu a condenação e absolvição efectuada em sede de sentença criminal;
d) tendo, em sede criminal ocorrida a condenação do recorrente JS pela pratica de um crime de abuso de confiança e de um crime de fraude na obtenção de subsidio, processo no qual a A. também foi arguida, apenas nos elementos de conexão poderão as sentenças em si ser consideradas para fins de confirmação probatória e nunca recuperadas em absoluto, inviabilizando a consideração probatória absoluta dos pontos 8 e 9 dos factos provados;
e) foram alegados factos impeditivos da procedência da acção em sede de contestação que, por não haverem sido considerados para efeitos de produção de prova, limitaram, de forma violadora dos princípios do contraditório e da igualdade de armas, a possibilidade do recorrente de demonstrar a incoerência de génese da pretensão deduzida;
j) a sentença recorrida, salvo melhor opinião, viola os comandos legais invocados nas presentes conclusões e enferma de erro de julgamento.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, com as legais consequências, por ser de JUSTIÇA!»
Recurso da autora
«1. Tendo sido instaurado processo-crime contra o lesante - o réu - pela prática de um crime semi-público, mediante a apresentação oportuna da competente participação criminal por parte do lesado - a autora - deve entender-se que este manifestou indirecta a intenção de exercer o direito de ser indemnizado pelos prejuízos que lhe foram causados pelo lesante; nesta medida, atento o disposto no art. 323º do CC, a instauração do processo-crime interrompeu a prescrição;
2. A participação criminal, a partir do momento em que é levada ao conhecimento pessoa denunciada no processo de inquérito, constitui também uma verdadeira interpelação para o cumprimento da obrigação de indemnização pelos prejuízos causados com a conduta que lhe foi imputada, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 805º, nº 1, do cc. E é justamente por se tratar de uma verdadeira interpelação, promovida no âmbito de um procedimento judicial, que a participação criminal tem a virtualidade de uma vez apresentada, interromper o curso do prazo prescricional, nos termos do art. 323º do CC;
3. No caso dos autos, o réu tomou conhecimento dos factos participados pela recorrente no dia 9 de Julho de 2002, quando inquirido em sede de inquérito. O réu nesse acto negou os factos e apresentou a sua posição. Posteriormente, os factos participados pela recorrente foram considerados provados por sentença criminal transitada em julgado. A presente acção tem por fundamento justamente os mesmos factos. Que foram considerados provados na sentença recorrida. Face a estas circunstâncias deverá considerar-se que o réu foi interpelado nos termos e para os efeitos do art. 805º, nº 1, do CC, em 9 de Julho de 2002;
4. No auto de inquirição de 9 de Julho de 2002 (doc. 41 anexo à p.i.), o réu, de forma inequívoca e categórica, negou os factos participados pela recorrente. O réu manifestou assim vontade de não cumprir a obrigação de indemnizar a autora recorrente pelos prejuízos causados com a sua conduta. Pelo que, perante a posição do réu, reassumida várias vezes no âmbito do processo criminal (instrução, julgamento e recurso), não é exigível a interpelação prevista no art. 805º, nº 1, do CC, constituindo-se o réu em mora naquela data;
5. Os actos ilícitos que consubstanciem a prática de crime dão origem a mora do devedor «independentemente de interpelação», nos termos do art. 805º, nº 2, b) do cc. No caso concreto dos autos os valores de que o réu se apropriou são certos e Determinados, sendo conhecida também a data em que a apropriação se concretizou. A obrigação de indemnizar proveniente de facto ilícito tem, por força do disposto na alínea b) deste artigo 80Sº, um termo inicial específico, que é o da data da prática do facto ilícito. Portanto, em último caso, a contagem dos juros de mora deveria ter início nas datas nos factos provados nº 8, n) e 9.
6. A sentença recorrida violou as normas atrás referenciadas.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e consequentemente ser proferido Acórdão que revogue a sentença recorrida, na parte que respeita ao início da contagem dos juros de mora, devendo estes serem contados, à taxa legal, a partir da data em que os actos de apropriação de bens da autora pelo réu se consumaram, indicados nos factos provados nºs. 8, n) e 9 da sentença recorrida, ou, se assim não se entender, a partir do dia 9 de Julho de 2002, data em que o reu tomou conhecimento da participação criminal apresentada pela recorrente e manifestou vontade de não cumprir com a obrigação de indemnizar esta última pela sua actuação ilícita.
E assim se fará Justiça».
O recurso da autora foi admitido, mas o recurso do réu foi apenas admitido na parte em que aquele recorre da sentença final, tendo sido rejeitado, por manifesta intempestividade, na parte respeitante ao despacho saneador que decidiu de mérito a exceção perentória da prescrição do direito da autora.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - ÂMBITO DO RECURSO
As questões a decidir, na presente apelação, em função das quais se fixa o objeto dos recursos, considerando que o thema decidendum dos mesmos é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base nas disposições conjugadas dos artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4 e 639º, todos do CPC, são as seguintes:
- violação dos artigos 623º e 624º do CPC (anteriores artigos 674º-A e 674.º B);
- a partir de que momento devem ser contados os juros de mora.
III - FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos[1]:
1. Na Conservatória de Registo Comercial de … encontra-se inscrita sob a Ap. 1/820709 a constituição da sociedade A..., Lda., tendo por objecto a produção agrícola, vitícola e pecuária e a transformação e comercialização dos respetivos produtos, podendo dedicar-se a qualquer outro ramo de indústria, comércio ou atividade mediante deliberação da assembleia-geral.
2. A referida sociedade foi constituída com o capital social de 10.000.000$00, dividido em cinco quotas - uma com o valor nominal de 4.200.000$00 e as demais com o valor de 1.450.000$00 - tituladas, respetivamente, por JS e por MC, JB, JC e JJ.
3. A gerência da referida sociedade era exercida por três sócios, obrigando-se, contudo, a mesma pela assinatura conjunta de apenas dois deles.
4. Como sócios gerentes foram nomeados JS, MC e JB, tendo-se mantido a gerência dos dois primeiros até 11 de Novembro de 2000, data em que renunciaram à mesma.
5. Por acórdão proferido em 14 de Janeiro de 2009 e transitado em julgado em 2 de Junho de 2011, no processo comum coletivo n.º 1419/15.8T8EVR (antigo processo n.º 24/02.3TARDD ao qual foi apenso o processo n.º 11/98.4TARDD), foi o aqui Réu, JS, condenado pela prática - como autor material- de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.º n.ºs 1 e 4 alínea b) do Código penal e de um crime de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelos artigos 2.º, 36.º n.ºs 1 alínea a), 2, 5, alínea a), e 8 do Decreto-Lei n.º 28/84 de 20 de Janeiro na pena única de quatro anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, a que acresce a condenação automática de total restituição das quantias obtidas.
6. No referido processo também haviam sido constituídos arguidos a aqui Autora e RS que foram absolvidos dos crimes de que se encontravam acusados.
7. No referido processo a sociedade aqui Autora deduziu pedido de indemnização civil contra JS tendo sido proferido despacho, a 7 de Novembro de 2008, que remeteu a Autora para os meios cíveis comuns.
8. No referido acórdão foram considerados como factos provados, entre os demais, os que a seguir se enunciam:
a. Pelo menos a partir de 23 de Junho de 1991, foi JS que exerceu, em exclusivo, toda a gestão da sociedade “A..., Lda.”, cabendo-lhe, na prática, a iniciativa e a total responsabilidade pelas decisões concernentes à gestão da sociedade a que depois dava execução.
b. A 1 de Junho de 1989, o Réu JS dirigiu-se à sede da Adega Cooperativa de … e subscreveu catorze mil títulos de investimento, no valor total de 7.000.000$00 (sete milhões de escudos), da seguinte forma:
- 8.000 títulos de investimento, no valor de 4.000.000$00 (quatro milhões de escudos), em nome da “A..., Lda.”;
- 6.000 títulos de investimento, no valor de 3.000.000$00 (três milhões de escudos), em seu nome pessoal.
c. A referida importância de 7.000.000$00 (sete milhões de escudos) foi liquidada mediante transferência de parte correspondente do saldo credor da "A..., Lda." sobre a Adega Cooperativa de ....
d. Em 1 de Dezembro de 1989, os títulos subscritos em nome da “A..., Lda.” renderam juros no montante de 304.833$00 (trezentos e quatro mil, oitocentos e trinta e três escudos).
e. Em 14 de Fevereiro de 1990, com os fundos da “A..., Lda.”, o Réu JS subscreveu mais 2.600.000$00 (dois milhões e seiscentos mil escudos) de títulos de investimento.
f. Em 31 de Março de 1990, o Réu JS deu ordem na Adega Cooperativa de ... para transferirem para seu nome pessoal, 2.500.000$00 (dois milhões e quinhentos mil escudos) de títulos de investimento que haviam sido subscritos em nome da “A..., Lda.” em 1 de Junho de 1989.
g. Em 1 de Junho de 1990, a Adega Cooperativa de ... pagou juros ao Réu JS, sobre as duas subscrições datadas de 14 de Fevereiro de 1990 e de 31 de Março de 1990, no valor de 180.401$00 (cento e oitenta mil, quatrocentos e um escudos).
h. Em 1 de Junho de 1990, a Adega Cooperativa de ... já pagou juros à "A..., Lda." apenas sobre o capital de 1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos), no valor de 113.688$00 (cento e treze mil, seiscentos e oitenta e oito escudos).
i. Também em 1 de Junho de 1990, o Réu JS deu ordem na Adega Cooperativa de ... para transferirem para seu nome pessoal os restantes títulos, no valor de 1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos), que restaram daqueles que haviam sido inicialmente subscritos em nome da “A..., Lda.”.
J. Na mesma data, o Réu JS, também com fundos da “A..., Lda.”, subscreveu mais 3.000.000$00 de títulos de investimento.
k. Pelo que, em 1 de Junho de 1990, o Réu JS, à custa dos fundos da “A..., Lda.”, era titular dos seguintes títulos de investimento:
- títulos inicialmente subscritos em nome da “A..., Lda.” e que em duas tranches, uma de 2.500.000$00 (dois milhões e quinhentos mil escudos) e outra de 1.500.000$00 (um milhão e quinhentos mil escudos), transferiu para seu nome pessoal, com o valor global de 4.000.000$00 (quatro milhões de escudos);
- títulos subscritos em nome pessoal, em 1 de Junho de 1989, no valor de 3.000.000$00 (três milhões de escudos);
- títulos subscritos em seu nome pessoal, em 14 de Fevereiro de 1990, no valor de 2.600.000$00 (dois milhões e seiscentos mil escudos);
- títulos subscritos em seu nome pessoal, em 1 de Junho de 1990, no valor de 3.000.000$00 (três milhões de escudos).
l. Deste modo, em seu nome pessoal e à custa dos fundos da sociedade, o Réu JS, em 1 de Junho de 1990, era titular de 12.600.000$00 (doze milhões e seiscentos mil escudos) em títulos de investimento.
m. No período entre Dezembro de 1990 e Junho de 1996, o Réu JS foi recebendo os juros dos títulos inscritos em seu nome pessoal e que totalizam o montante global de 10.507.780$00 (dez milhões, quinhentos e sete mil e setecentos e oitenta escudos).
n. Em 1 de Junho de 1996 o Réu JS procedeu ao resgate dos títulos tendo a Adega Cooperativa de ... entregue àquele um cheque no valor de 13.253.405$00 (treze milhões, duzentos e cinquenta e três mil, quatrocentos e cinco escudos), correspondente a 12.600.000$00 (doze milhões e seiscentos mil escudos) de títulos em seu nome pessoal e os juros vencidos nessa data, no valor de 653.404$00 (seiscentos e cinquenta e três mil e quatrocentos e quatro escudos.
o. O Réu JS sabia que as importâncias de que se apropriou pertenciam à sociedade.
p. O Réu JS tinha perfeito conhecimento que os montantes de que se apropriara em proveito próprio ou de terceiros, bem como os bens a que deram descaminho, pertenciam à “A..., Lda.” e à atividade desta estavam destinados.
q. Agiu o Réu JS de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
9. O montante global de juros a que alude o ponto 8) m. foi pago ao Réu nos termos a seguir discriminados:
- Em 1 de Dezembro de 1990, o montante de 960.224$00;
- Em 1 de Junho de 1991, o montante de 954.976$00;
- Em 1 de Dezembro de 1991, o montante de 960.224$00;
- Em 1 de Junho de 1992, o montante de 954.977$00;
- Em 1 de Dezembro de 1992, o montante de 960.224$00;
- Em 1 de Junho de 1993, o montante de 954.977$00;
- Em 1 de Dezembro de 1993, o montante de 960.224$00;
- Em 1 de Junho de 1994, o montante de 878.754$00;
- Em 1 de Dezembro de 1994, o montante de 808.609$00;
- Em 1 de Junho de 1995, o montante de 804.191$00;
- Em 1 de Dezembro de 1995, o montante de 656.995$00; e
- Em 1 de Junho de 1996, o montante de 653.405$00.
E foram considerados não provados os seguintes factos:
A. O Réu fez seus os juros vencidos em 1 de Dezembro de 1989 no montante de 304.833$00 (trezentos e quatro mil, oitocentos e trinta e três escudos) a que alude o ponto 8) d..
B. E, bem assim, os juros vencidos em 1 de Junho de 1990 no montante de 113.688$00 (cento e treze mil, seiscentos e oitenta e oito escudos) a que alude o ponto 8) h., pagos pela Adega Cooperativa do … por conta dos títulos de investimento subscritos.
O DIREITO Questão prévia
Como se deixou exarado no relatório supra, o recurso do réu está circunscrito à parte em que o mesmo recorreu da sentença, uma vez que, por despacho transitado em julgado, o recurso não foi admitido na parte respeitante ao despacho saneador que julgou improcedente a exceção perentória da prescrição do direito da autora, mostrando-se assim prejudicada a apreciação das conclusões a) e b) do recurso.
Da violação dos artigos 623º e 624º do Código Processo Civil (artigos 674º-A e 674º-B do CPC pré-vigente).
Antes de entrarmos na análise das questões suscitada nas alíneas c) e d) da conclusões do recurso do réu, importa analisar o que vem alegado pela autora, ora recorrida, nas contra-alegações.
Diz esta que as referidas questões foram objeto de decisão no âmbito do despacho referência 24736243, de 17.11.2015 e não da sentença recorrida, pelo que o réu deveria ter impugnado no recurso o mencionado despacho e, não o tendo feito, o mesmo transitou em julgado, impedindo assim que as ditas questões possam ser apreciadas por este Tribunal da Relação.
Mas não razão a autora.
O despacho em causa, constante a fls. 737 a 745 dos autos, foi proferido na sequência do requerimento apresentado pela autora no dia agendado para a realização da audiência de julgamento, no qual aquela solicitava ao tribunal que confirmasse se os factos a que se referem os artigos 1º, 2º, 6º, 20º, 22º a 24º e 26º a 29º da petição inicial se encontravam assentes.
Entendeu o tribunal a quo que nada obstava ao conhecimento do requerido pela autora, invocando para tanto o dever de gestão processual e da economia processual na delimitação dos temas da prova.
Contudo, tal despacho não constitui nenhuma decisão de facto, a qual tem o seu lugar próprio na sentença (art. 607º, nº 3, do CPC), pelo que nada obsta ao conhecimento das questões suscitadas pelo réu nas conclusões c) e d) do recurso.
É o que faremos de seguida.
Para o réu/recorrente «os arts. 674°A e 674°B do Cod. Proc. Civil não determinam, a exemplo do que se fez na sentença recorrida, uma represtinação integral probatória dos factos consignados em sede de sentença criminal, tendo de ser corroborados e aferidos á luz do art. 342º do Cod. Civil, que não pode ficar desvirtuado como elemento de repartição do ónus da prova, sendo que apenas podem ser considerados os factos confirmados em sede de processo civil que já mereceram afirmação no âmbito criminal se prova contraria lhe não for aposta e na estrita medida em que ocorreu a condenação e absolvição efectuada em sede de sentença criminal»[conclusão c)].
Assim, «tendo, em sede criminal ocorrida a condenação do recorrente JS pela pratica de um crime de abuso de confiança e de um crime de fraude na obtenção de subsidio, processo no qual a A. também foi arguida, apenas nos elementos de conexão poderão as sentenças em si ser consideradas para fins de confirmação probatória e nunca recuperadas em absoluto, inviabilizando a consideração probatória absoluta dos pontos 8 e 9 dos factos provados» [conclusão d)].
Prossegue o recorrente dizendo que «foram alegados factos impeditivos da procedência da acção em sede de contestação que, por não haverem sido considerados para efeitos de produção de prova, limitaram, de forma violadora dos princípios do contraditório e da igualdade de armas, a possibilidade do recorrente de demonstrar a incoerência de génese da pretensão deduzida» [conclusão e)].
E concluiu afirmando que «a sentença recorrida, salvo melhor opinião, viola os comandos legais invocados nas presentes conclusões e enferma de erro de julgamento» [conclusão f)].
Escreveu-se na motivação da decisão de facto da sentença recorrida:
«No que concerne à factualidade inserta nos pontos 1) a 8) refira-se que a mesma está subtraída à livre apreciação do julgador, tal como resulta do n.º 5 do artigo 607.º do CPC, uma vez que resultou plenamente provada por documentos com força probatória plena, em concreto, pelo teor da certidão de matrícula da aqui Autora junta aos autos e pelo teor da certidão do acórdão proferido no âmbito do processo comum coletivo n.º 1419/15.8T8EVR (antigo processo n.º 24/02.3TARDD ao qual foi apenso o processo n.º 11/98.4TARDD), em que foram arguidos não só o Réu, JS, mas também a sociedade Autora. A propósito dos factos elencados sob o ponto 8) importa, ainda, referir que, tendo os mesmos sido declarados provados no processo-crime que correu termos contra o arguido, não poderiam tais factos ser objecto de discussão em processo cível em que aquele assume a posição de Réu, conforme resulta do estatuído no artigo 623.º do CPC. Já a prova da matéria de facto constante do ponto 9) dos factos provados resultou do depoimento de L… e de J… - que revelaram conhecimento directo dos factos por se encontrarem relacionados à aqui Autora e à Adega Cooperativa do …, respetivamente - e conjugado com a demais prova documental junta aos autos. Com efeito, do depoimento objectivo, sincero e imparcial das duas referidas testemunhas resultou que a Adega Cooperativa Agrícola do … procedeu ao pagamento de juros por conta dos títulos de investimento que a Autora subscreveu perante a mesma e que foi o aqui Réu que recebeu os referidos montantes. Em abono do relato apresentado atendeu o Tribunal aos documentos juntos aos autos, em concreto, às cópias dos recibos e cheques juntos a fls. 26 a 49, que atestam não só os montantes dos juros, as datas dos respectivos pagamentos e o facto de os mesmos terem sido pagos diretamente ao Réu.
Em primeiro lugar importa referir que os artigos 674º-A e 674º-B do anterior CPC tiveram como sucedâneos no novo Código de Processo Civil, respetivamente, os artigos 623º e 624º, aqui aplicáveis ex vi do artigo 5º, nº 1, da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, mas sem que isso tenha alguma consequência na análise a efetuar, pois os artigos em causa têm exatamente a mesma redação.
No que respeita à eficácia das decisões proferidas no âmbito de processos criminais, estabelece o art. 623º do CPC que «a condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração».
Por sua vez, dispõe o art. 624º do mesmo diploma que «a decisão penal transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer ações de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário» (nº 1) e que tal «presunção prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil» (nº 2).
Tal significa que, uma vez transitada em julgado, a decisão penal absolutória fundada em que o arguido não praticou os factos que lhe eram imputados constitui presunção iuris tantum de inexistência desses factos.
E dispensa aquele que tem a seu favor tal presunção de provar o facto a que ela conduz [art. 350º, nº 1, do CC], funcionando, assim, como uma forma de inversão do ónus probatório, na medida em que faz recair sobre a parte contrária a prova capaz de afastar o facto legalmente presumido (nº 2 da mesma norma).
Foi essa, aliás, a intenção do legislador aquando da Reforma do Código de Processo Civil de 1995 (Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro) quando fez constar do respetivo preâmbulo que «no que se refere à disciplina dos efeitos da sentença, assume-se a regulamentação do caso julgado penal, quer condenatório, quer absolutório, por acções conexas civis conexas com as penais, retomando um regime que, constando originariamente do Código de Processo Penal de 1929, não figura no actualmente em vigor; adequa-se, todavia, o âmbito da eficácia erga omnes da decisão penal condenatória às exigências decorrentes do princípio do contraditório, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção, ilidível por terceiros, da existência do facto e respectiva autoria».[2]
Assim, «a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado é actualmente feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido», pelo que, «quando a absolvição em processo penal se não tiver fundado no princípio in dubio pro reo, mas sim em que o arguido não praticou os factos, nomeadamente, os integrantes de contravenção causal, que lhe eram imputados, fica, na falta de prova em contrário, assente que o arguido actuou com a diligência devida, cabendo ao autor no processo civil demonstrar que assim não foi, isto é, que o arguido absolvido actuou por forma culposa».[3]
Por isso se vem fazendo notar que «o que está em causa nos arts. 674º-A e 674º-B), do C.Proc.Civil não é, propriamente, a eficácia do caso julgado penal, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado. Essa definição é feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido, invocável em relação a terceiros - isto é, em relação aos sujeitos no processo civil que não tenham intervindo no processo penal - em qualquer acção de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção».[4]
A eficácia probatória da sentença penal condenatória transitada em julgado no processo civil em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração, nos termos do artigo 623º do CPC, traduz-se assim no seguinte: em relação a terceiros, aquela sentença constitui presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime. Decorre implicitamente desta norma, sob pena de não fazer sentido a ressalva dela constante quando se trate de terceiros, que, em relação aos próprios arguidos, os factos referidos na mesma norma devem ser considerados provados no processo civil.
Assim, «provada, no processo penal, a prática dum acto criminoso que constitua ilícito civil, o titular do interesse ofendido não tem o ónus de provar na acção civil subsequente o acto ilícito praticado nem a culpa de quem o praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e do nexo de causalidade.» [5] In casu, a sentença penal que condenou o réu, fê-lo com fundamento na factualidade enunciada no ponto 8 do elenco dos factos provados supra, a qual, por isso, se tem como provada, recaindo apenas sobre a autora o ónus de provar o dano sofrido e o nexo de causalidade.
Ora, acontece que no caso em apreço se fez a prova de que o montante global de juros que o réu foi recebendo no período compreendido entre Dezembro de 1990 e Junho de 1996, dos títulos inscritos em seu nome pessoal mas com fundos da autora, no montante de 10.507.780$00, é aquele que resulta da soma dos diversos valores constantes do ponto 9 dos factos provados, o que significa que a autora provou, como lhe competia, o dano sofrido e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
E a prova da factualidade dada como assente no ponto 9 dos factos provados, resultou da apreciação conjugada da prova testemunhal e documental mencionada na motivação da decisão de facto acima transcrita, matéria de facto que não foi impugnada pelo recorrente.
Donde, a sentença recorrida, decidindo como decidiu a matéria de facto, não merece qualquer censura.
Dos juros
Pretende a autora/recorrente a revogação da sentença recorrida, na parte que respeita ao início da contagem dos juros de mora, os quais, segundo ela, devem ser contados, à taxa legal, «a partir da data em que os actos de apropriação de bens da autora pelo réu se consumaram, indicados nos factos provados nºs. 8, n) e 9 da sentença recorrida, ou, se assim não se entender, a partir do dia 9 de Julho de 2002, data em que o reu tomou conhecimento da participação criminal apresentada pela recorrente e manifestou vontade de não cumprir com a obrigação de indemnizar esta última pela sua actuação ilícita.»
A questão debate-se na confrontação constatada entre a posição da recorrente que estima serem devidos juros desde que o réu se apropriou das quantias referidas nos pontos 8, n) e 9 dos factos provados, ou pelo menos desde a data em que o réu tomou conhecimento da participação criminal apresentada pela recorrente, e a posição assumida na sentença recorrida de que os juros só são devidos a partir do momento em que o réu foi citado para a presente ação.
Escreveu-se, com toda a pertinência para o presente caso, no acórdão do STJ de 05.05.2015:[6]
«Os juros de mora são uma compensação ou reparação monetária que se estabelece ou convenciona como forma de superar eventuais perdas ou ausência de possibilidade de disponibilidade ou de ganho, relativamente a uma quantia que tinha direito a dispor, que outrem lhe devia entregar, em virtude de um acordo ou contrato, num momento estipulado, e o não fez atempadamente, por causa que lhe deve ser imputável. Os juros de mora destinam-se, assim, a reparar uma situação de atraso no pagamento, ou entrega atempada de um crédito de que alguém é detentor, ou passou a deter sobre outrem por ter criado uma situação em que o património de alguém ficou depreciado e deveria, por isso, ser compensado, como efetiva reparação de um dano causado na esfera patrimonial do lesado. A não estipulação de prazo para solvência de um crédito, por ausência de acordo ou convenção negocial, importa para o credor a necessidade de fazer chegar ao devedor a intimação de exigência no pagamento da quantia devida. Na falta de estipulação, prescreve a lei que só a interpelação do devedor para pagamento, ou solvência, do que tem a obrigação de prestar, é que começa a contar o tempo correspondente a essa reparação, ou seja, o devedor se constitui em mora (cfr. art. 805º, nº 1, do Código Civil). A mora inicia-se, no entanto, independentemente da interpelação, para além de outras situações, se a obrigação provier de faco ilícito – cfr. art. 805º, n.º 2, alínea b), do Código Civil. A incoação da mora, porém, só ocorre, em qualquer situação, a partir do momento em que o devedor tem conhecimento exacto da quantia que lhe corresponde prestar. A liquidez da obrigação constitui-se, assim, o elemento essencial donde decorre o dever de entrega da prestação certa a cargo daquele que sabe que deve uma determinada quantia a outrem e não procede á sua entrega. A não liquidez da obrigação, por indeterminação dos factores relativos à situação geradora do dever de prestar ou do facto de onde ela deriva, importa para o credor o dever de a tornar liquida e de determinar, por via de acordo ou recurso à via jurisdicional, o quantitativo certo que o devedor deve entregar para se liberar da obrigação que criou para com ele, salvo se a iliquidez não lhe deva ser imputável – cfr. n.º 3, primeira parte, do artigo 805.º do Código Civil. Tratando-se de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, “o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja mora, nos termos da primeira parte deste número” – cfr. nº 3 do artigo 805.º do Código Civil.»
A autora faz derivar a obrigação de indemnizar, a cargo do réu, da ocorrência de situações factuais que têm na sua génese a apropriação, por parte do réu, na qualidade de gerente da sociedade, de quantias monetárias pertencentes à autora, com as quais subscreveu títulos de investimento em seu nome, dos quais foi recebendo juros e que resgatou posteriormente (ponto 8 dos factos).
A factualidade donde a autora faz derivar a obrigação de indemnizar, decorrente da ilicitude e de condutas culposas por parte do réu, não se tornou segura até ao momento em que o tribunal deu como adquirido que os factos imputados ao réu – e donde emergia o seu dever de indemnizar a autora - haviam sido praticados e tinham a autoria do réu.
Com efeito, só a partir do momento em que o tribunal, por força da negação da factualidade que a autora imputava ao réu, deu como seguro e certo que a prática desses factos lhe deveria ser feita, é que surgiu a obrigação de indemnizar, a cargo deste. Ou, dito de outro modo, só com o surgimento da situação factual fixadora dos pressupostos definidores da responsabilidade civil é que o credor pode exigir ao responsável o correspondente monetário que esses factos geraram na sua esfera patrimonial.
«Só a partir do momento em que o tribunal deixou fixados esses pressupostos é que, juridicamente, o lesado tem o direito de exigir, pela constituição positiva do facto determinante da obrigação, que o lesante proceda à reparação dos danos que causou com os factos praticados. Até ao momento da fixação dos factos que consubstanciam ou constituem os pressupostos materiais da responsabilidade civil a cargo do lesante, a situação geradora ainda não se tinha tornado certa e adquirido a potencialidade de, juridicamente, poder gerar a obrigação e de o credor/lesado poder exigir do outro o ressarcimento pelos danos que lhe haveria causado e que lhe havia imputado. O momento em que surge a obrigação de indemnizar, por responsabilidade civil, só se fixa e se torna certa e segura, para o lesado, a partir do momento em que o tribunal dá como adquirido que determinado sujeito foi autor dos factos danosos que este lhe imputara e fixa o quantitativo correspondente ao valor pecuniário que essa lesão causou no património depreciado com a acção ilícita e culposa do autor da situação lesiva.» [7]
No caso em apreço, e independentemente das datas constantes do ponto 8 m) e 9 dos factos provados como sendo aquelas em que se verificaram as apropriações indevidas e ilícitas, por banda do réu, porque este havia impugnado a sua prática e/ou a natureza ilícita e culposa das mesmas, a obrigação de indemnizar só surge a partir do momento em que o tribunal fixa os factos, a sua autoria, a ilicitude da ação, o carácter culposo da conduta e cria o nexo de imputação dos factos ao lesante e determina os danos que essas condutas originaram na esfera patrimonial da autora.
Sendo assim, a obrigação de indemnizar a cargo do réu só ficará segura a partir do momento em que se fixe, com carácter inderrogável, a factualidade danosa que determina a obrigação de indemnizar, pela verificação dos pressupostos da responsabilidade aquiliana.
Neste caso, prescreve o nº 3, 2ª parte, do artigo 805º do Código Civil, que decorrendo a obrigação de factos ilícitos o momento que deve ser atendido para a constituição da mora do devedor é a citação, que a lei faz corresponder à interpelação do credor ao devedor pela obrigação de prestar uma determinada quantia a que fez corresponder os factos, ilícitos e culposos que lhe imputa e que exige lhe seja pago um correspetivo equivalente ao efeito danoso que esses factos criaram ou determinaram no seu património.
«A citação surge aqui como o momento ficcionado pelo legislador como acto pessoal de vontade interpelativo, ou expressão de uma vontade exterior do credor manifestada perante um órgão com competência para determinar e fixar a existência dos factos geradores da obrigação criada pela verificação jurídico-material de uma determinada factualidade ilícita e culposa, que a lei elege e prescreve como fonte de obrigações. É este acto de exigência de prestação decorrente de uma obrigação gerada por factos ilícitos, que levado ao conhecimento do autor dos factos lesivos, que alguém imputa a outrem, se constitui como vector interpelativo da prestação a que o lesado se sente com direito a receber e que, uma vez reconhecido pelo tribunal, deve ser eleito como momento a partir do qual o lesado tem conhecimento de que será obrigado a uma prestação de uma quantia que, apurada a factualidade que lhe é imputada, o tribunal vier a fixar, a favor de outrem.»[8]
Deste modo, e malgrado os factos donde a autora faz emergir a obrigação de indemnizar, terem ocorrido, em momento anterior, os pressupostos da responsabilidade civil que gerou essa obrigação, a cargo do réu, só ficou estabelecida com a instauração da ação destinada a exigir a indemnização pelos factos ilícitos e culposos que a demandante imputava ao réu, e só com a citação é que este tomou conhecimento de que aquela tinha a intenção de lhe exigir um valor correspondente aos danos que a sua conduta tinha criado na sua esfera patrimonial.
O momento que a lei estabelece para a constituição da mora, para estas situações – obrigação de indemnização decorrente de factos ilícitos – é a citação, de acordo com o estatuído na 2ª parte do nº 3 do artigo 805º do Código Civil, devendo ser este o momento a partir do qual o devedor fica constituído em mora.
A sentença não merece censura também no que respeita a esta questão.
Sumário:
I – O que está em causa nos arts. 623º e 624º do CPC não é, propriamente, a eficácia do caso julgado penal, mas sim a definição da eficácia probatória extraprocessual legal da sentença penal condenatória ou absolutória transitada em julgado.
II - Essa definição é feita pelo estabelecimento duma presunção ilidível da existência dos factos em que a condenação se tiver baseado, ou, simetricamente, em caso de absolvição, da inexistência dos factos imputados ao arguido.
III - A eficácia probatória da sentença penal condenatória transitada em julgado no processo civil em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração, nos termos do artigo 623º do CPC, traduz-se assim no seguinte: em relação a terceiros, aquela sentença constitui presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime.
IV - Decorre implicitamente desta norma, sob pena de não fazer sentido a ressalva dela constante quando se trate de terceiros, que, em relação aos próprios arguidos, os factos referidos na mesma norma devem ser considerados provados no processo civil.
V - Provada, no processo penal, a prática dum acto criminoso que constitua ilícito civil, o titular do interesse ofendido não tem o ónus de provar na acção civil subsequente o acto ilícito praticado nem a culpa de quem o praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e do nexo de causalidade.
VI - A mora decorrente da obrigação de indemnizar por factos ilícitos só se inicia com a citação do devedor/lesante, nos termos da 2ª parte do nº 3 do artigo 805.º do Código Civil.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedentes os recursos de apelação interpostos pela autora e pelo réu e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.
Custas de cada um dos recursos a cargo dos respetivos recorrentes.
*
Évora, 23 de Fevereiro de 2017
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião
__________________________________________________
[1] Mantém-se a identificação dos factos provados tal como consta da sentença recorrida.
[2] Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 5ª edição, Coimbra, 1982, p. 239. Na verdade, a ação penal e a ação civil são reconhecida e decisivamente distintas nos seus pressupostos fundamentais. Não há coincidência entre os pressupostos da culpa criminal e os pressupostos da indemnização civil. Nomeadamente: nem o ilícito criminal se confunde com o ilícito civil, nem a culpa criminal se pode confundir com a culpa civil, sempre, aliás, subsistindo a possibilidade de haver lugar a responsabilidade civil onde esteja de todo ausente a responsabilidade criminal, como será o caso da responsabilidade objetiva, pelo simples risco (cfr. Castanheira Neves, in Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, pp. 186, 195 e 196) – cfr. citação do acórdão do STJ de 13.11.2003, proc. 03B2998, in www.dgsi.pt.
[3] Acórdão do STJ de 13.11.2003, citado na nota anterior. No mesmo sentido, acórdão do STJ de 25.03.2004, proc. 03B4193, in www.dgsi.pt.
[4] Citado acórdão do STJ de 13.11.2003.
[5] Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 727, em comentário ao artigo 674º-A do CPC revogado.
[6] Proc. 28/2001.E1.S1, in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. o citado acórdão do STJ de 05.05.2015, que aqui seguimos de perto.
[8] Citado acórdão do STJ de 05.05.2015.