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UNIÃO DE FACTO
REGIME DE BENS
LIQUIDAÇÃO DE PATRIMÓNIO
Sumário
- por via do regime inserto no artigo 8.º, n.º 3, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, o pedido de declaração judicial de dissolução da união de facto constitui condição de procedência de acção na qual o interessado pretende exercer direitos dependentes da dissolução da união de facto. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Proc. n.º 1223/14.0TBEVR.E1
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
I – As Partes e o Litígio
Recorrente / Aurora: (…)
Recorrido / Réu: (…)
Trata-se de uma acção declarativa de condenação através da qual a Autora pretende obter a condenação do Réu a reconhecer a existência de uma situação de compropriedade relativamente à fracção autónoma designada pela letra “J” do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua (…), n.º (…), em Évora, inscrito na matriz sob o artigo (…) e descrito na CRP de Évora sob o n.º (…), da freguesia de Bacelo e ainda sob o veículo ligeiro de marca (…), com a matrícula (…), Opel, de matrícula (…), Nissan, de matrícula (…), Opel, de matrícula (…) Peugeot, de matrícula (…), compropriedade que assim deverá ser declarada, ou, em alternativa ser o Réu condenado a restituir à Autora metade do valor dos mencionados bens, em montante a liquidar em execução de sentença.
Invoca, para tanto, a aquisição dos mencionados bens com o esforço de ambos, na constância da união de facto entre as partes que veio a cessar, encontrando-se os referidos bens inscritos tão só em favor do Réu.
II – O Objecto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando a acção totalmente improcedente, absolvendo o R dos pedidos.
Inconformada, a A apresentou-se a interpor recurso, pugnando pela revogação da decisão proferida, com vista à condenação do Réu no pedido. Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«1. O presente recurso de apelação vem interposto da sentença proferida nos autos de processo comum que correram termos na Comarca de Évora - Instância Local Secção Cível - J2 sob o n.º 1223/14.0TBEVR, que absolveu o Réu dos pedidos formulados pela ora Apelante, seja no que se refere à existência de uma situação de compropriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra J do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua Dr. (…), n.º (…), em Évora, inscrito na matriz sob o artigo (…) e descrito na CRP de Évora sob o n.º (…), da freguesia de Bacelo e ainda sob o veículo de marca (…), com a matrícula (…), Opel, de matrícula (…), Nissan, de matrícula (…), Opel, de matrícula (…) e Peugeot, de matrícula (…), seja principalmente no que se refere à aplicação in casu do instituto do enriquecimento sem causa (artigo 473.º do cc), uma vez que os bens supra referidos foram sido adquiridos na constância da união de facto e suportados por ambos, embora se tenham mantido apenas na esfera patrimonial do Apelado;
2. Com efeito, salvo o devido respeito, o Tribunal “a quo" não só faz uma errada apreciação de toda a prova produzida nos autos – na medida em que os depoimentos prestados em julgamento (unicamente por testemunhas arroladas pela Apelante, além do seu próprio depoimento de parte) e demais prova impunham uma decisão diversa sobre a matéria de facto – como também aplica incorrectamente o direito – na medida em que, muito embora aflore o regime da compropriedade na situação de união de facto verificada e bem assim do instituto do enriquecimento sem causa (artigo 473.º e seguintes do CC), não os aplica em toda a sua extensão, nomeadamente por, diga-se desde já erradamente, entender ter ficado por demonstrar que a Apelante tivesse contribuído com dinheiro seu, directamente (participando com dinheiro na sua concreta aquisição) e/ou participando genericamente na economia doméstica” (contribuindo mensalmente com alguma quantia não só para as despesas comuns e correntes mas igualmente para este tipo de aquisições)";
3. Muito embora se aceite que o casamento e a união de facto se tratam de situações materialmente diferentes – pese embora a legislação que recentemente vem sendo publicada, principalmente a Lei n.º 7/2001, de 11.05; a Lei n.º 9/2010, de 31 de Maio e Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto – e o legislador ter mantido o regime da união de facto como realidade autónoma e distinta do casamento, a verdade é que a legislação portuguesa tem vindo a atribuir à convivência more uxorio cada vez mais efeitos, muitos destes semelhantes aos que são conferidos aos cônjuges. Não obstante, em nosso entender, não haver, neste âmbito, lugar a uma aplicação analógica do regime matrimonial (vedada por força do artigo 11.º do CC), já que este é constituído por algumas normas excepcionais como é o caso, designadamente, das normas em matéria de dívidas do casal;
4. Face ao vazio legislativo sobre esta matéria – e que, em nosso entender, justificaria uma intervenção legislativa – a doutrina e a jurisprudência têm analisado esta matéria, procurando encontrar soluções a partir do direito comum, na medida em que o legislador não ousou prever uma disciplina patrimonial especificamente aplicável à união de facto, originando, desta forma, um conjunto de incertezas nesta área, tão próspera em litígios, como se verifica no caso presente, e na maioria das situações em que em causa está o fim da comunhão de vida entre duas pessoas não unidas pelo matrimónio. Já que, este tipo de situações pressupõem, inevitavelmente, uma certa comunhão de esforços a nível económico (de bens e recursos) que impedem que haja uma completa cisão entre os patrimónios de cada um dos membros da união;
5. A atestar esta situação está claramente a abertura de contas bancárias cuja titularidade é repartida entre os membros da união de facto. A abertura desta (s) conta (s) conjunta (s) é mais uma forma de os unidos de facto, através do depósito de quantias provenientes do trabalho e não só (o caso de liberalidades por exemplo), criarem um património comum para fazer face aos encargos normais da comunhão de vida. E optando ambos pela modalidade de conta conjunta solidária (como é o caso dos presentes autos), qualquer um tem a faculdade de movimentar autonomamente os valores depositados, independentemente da propriedade dos mesmos (que tanto pode pertencer a ambos em quotas iguais ou diferentes ou pertencer exclusivamente a um deles). A prova da propriedade dos valores nosso entender e na falta de indicação em contrário, recair sobre eles a presunção de compropriedade prevista no n.º 2 do artigo 1403.º do CC.
Pondo isto, poder-se-á concluir, como o vêm fazendo a doutrina e a jurisprudência, ficarem subordinadas ao regime geral das relações obrigacionais e reais as relações patrimoniais entre os conviventes;
6. De facto, tal como foi já sublinhado pelo TRL (Ac. TRL de 29.11.2012), o desenrolar de uma união de facto pode implicar a constituição de um património resultante do esforço comum; atendendo à contribuição de ambos os conviventes e à realização de despesas comuns à custa do sacrifício de ambos os patrimónios, individualmente considerados ou o incremento de um dos patrimónios individuais à custa quer do património adquirido pelo esforço comum, quer do património do outro companheiro. Que é precisamente o caso dos presentes autos;
Com efeito, como sucede no caso em apreço e em muitos similares, apenas o Apelante consta no título de aquisição dos bens (imóvel e veículos) em discussão, situação que até se percebe face às particularidades de uma vivência em comum. No entanto, pode acontecer que, como é o caso, o bem (ou bens) tenha (m) sido adquirido (s) em compropriedade pois ambos os conviventes contribuíram para a aquisição do (s) mesmo (s) – quer através de uma participação directa de ambos no pagamento do preço, nomeadamente e como é o caso dos autos! através de uma conta conjunta, quer indirectamente através da contribuição prestada ao casal por aquele que renunciou à vida profissional ou a parte dela em detrimento da vida em comum (trabalho doméstico! prestação de cuidados aos filhos, etc.) – mas, no plano jurídico, apenas um deles consta no titulo aquisitivo como proprietário do bem;
7. Entendemos, aliás na esteira da jurisprudência hoje dominante (cfr. Ac. do TRP de 28.09.2009, Ac. STJ de 10.08.1992) que, durante a vigência da união de facto os bens adquiridos pelos conviventes serão próprios ou comuns, consoante tenham sido adquiridos apenas com o contributo de um ou com o contributo de ambos os conviventes, ou seja, através do esforço de ambos. O TRP entendeu que todos os bens adquiridos na vigência da união de facto se presumiam adquiridos com o esforço comum, sendo, o critério relevante, o da aquisição dos bens durante a vida em comum. Conclui o TRP que a solução aplicável em matéria de titularidade e divisão de bens se aproxima daquela que serve o regime de separação de bens no casamento, já que estamos apenas e só na presença de bens próprios ou de bens em compropriedade;
8. Como bem refere o Tribunal "a quo" na sentença de que se recorre, são pressupostos do enriquecimento sem causa:
A existência dum enriquecimento;
Obtenção desse enriquecimento à custa de outrem;
Ausência de causa justificativa para o enriquecimento;
9. A “ausência de causa justificativa é o conceito mais indeterminado" (Ac. STJ de 02.07.2009) no seio deste instituto sendo certo que a jurisprudência maioritária tem entendido que a união de facto é uma verdadeira causa justificativa da criação de um património adquirido através do esforço comum de ambos os conviventes, no âmbito da comunhão de vida.
Refere Menezes Cordeiro (2010: 274-275) que a jurisprudência tem encarado a cessação da união de facto como fundamento para a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, na modalidade de ti causa finita" ou seja, de um enriquecimento em virtude de uma causa que deixou de existir, considerando que “tudo o que tenha sido prestado, no contexto de uma união de facto, deve ser restituído quando esta acabe, caso venha a provocar um enriquecimento de um dos ex-parceiros, à custa do outro". Como sucede precisamente no caso dos presentes autos como se demonstrará à saciedade;
10. Articulando o caso dos presentes autos com os pressupostos do enriquecimento sem causa, importa referir que a existência de uma só conta conjunta solidária em nome de Apelante e Apelado (Facto Provado n.º 25) na qual eram depositados não só os rendimentos provenientes das respectivas actividades profissionais, como diversas liberalidades que resultaram provadas nos autos (nomeadamente a doação feita pelos pais da Apelante de cerca de € 15.000,00: Facto provado n.º 26) e da qual saíram todos os montantes destinados não só à amortização de dois empréstimos relacionados com créditos à habitação, mas também à aquisição do prédio urbano e dos cinco veículos em causa, registados apenas em nome do Apelado, constituiu claramente um empobrecimento do património da Apelante em virtude do enriquecimento daquele;
11. E isto, para além de todas as contribuições que a Apelante fez durante cerca de 21 anos, em que não só pagou a sua quota-parte de IMI, seguros de vida e variadíssimas despesas domésticas (Facto Provado n.º 31), como suportou sozinha todas as despesas de educação e saúde do filho do casal (Facto Provado n.º 32) e sempre, ao longo da vivência em comum, cuidou de todas as lides domésticas (Facto Provado n.º 29);
12. Cite-se ainda a mais recente Jurisprudência sobre esta matéria:
- Ac. do TRP de 07.10.2013, no qual foi entendido que "Se, na pendência da união de facto, os bens são adquiridos apenas em nome de um deles e ambos contribuíram para a sua aquisição, o companheiro, que não consta do título como proprietário poderá reaver a sua comparticipação financeira na aquisição do bem através do instituto do enriquecimento sem causa", bastando para tal "( ... ) provar a existência de um património comum resultante da união de facto". O qual, no caso em apreço, resulta provado à saciedade, não só pela existência de imóveis registados em nome de ambos – resultante de exigências relacionadas com o regime do crédito à habitação – mas principalmente devido à existência de contas conjuntas solidárias em nome dos conviventes, primeiramente no Banco (…), agência de Évora (Facto Provado n.º 25) e posteriormente também no Banco (…), Agência de Évora (Facto Provado n.º 27);
- Ac. do TRP de 06.09.2015,no qual foi entendido que “A autora terá direito apenas a metade do montante das despesas apuradas, pois que ambos os membros da união de facto (autor e 1.º réu) contribuíram para a aquisição de um património comum, já que se presume que cada um contribuiu em igual percentagem para a aquisição e construção desse património comum";
- E ainda do recentíssimo Ac. do TRL de 28.04.2016 no qual se sublinha que “(…) o convivente em união de facto, que se considere empobrecido relativamente aos bens em cuja aquisição participou, tem o direito de pedir, em acção declarativa, que o outro convivente seja condenado a reembolsá-lo, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa";
13. O Tribunal “a quo", depois de tecer diversas considerações acerca da Lei n.º 7/2001, de 11.05, avança para conclusões totalmente inaceitáveis e ultrapassadas pela mais recente jurisprudência sobre a matéria, nomeadamente da impossibilidade de se poder falar de um património comum, referindo porém que “muito embora a maior parte das vezes os bens tenham sido adquiridos com dinheiro de ambos ou, pelo menos, com o esforço de ambos;
14. Mais à frente o Tribunal “a quo”, relativamente à aplicação dos institutos da compropriedade e do enriquecimento sem causa, formula uma conclusão que, quanto a nós constitui efectivamente a questão fulcral a decidir, ou seja, de que “( ... ) a aplicação de qualquer um destes institutos supõe a prova de que o património foi obtido com o esforço dos dois unidos de facto; ainda que formalmente esse património esteja apenas no nome de um deles”;
15. Tendo sido considerado provado pelo Tribunal “a quo” que:
- Apelante e Apelado viveram em condições análogas às dos cônjuges (artigo 2020.º do cc) durante cerca de 21 anos (Factos Provado n.º 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7);
- Deste relacionamento nasceu um filho, hoje com 20 anos de idade (Facto Provado n.º 8);
- No decurso da união de facto, adquiriram duas fracções autónomas que foram registadas a favor de ambos – já que ambos outorgaram as respectivas escrituras de compra e venda com recurso a crédito à habitação – já divididas na sequência da acção especial de divisão de coisa comum que correu termos sob o n.º 1173/14.0TBEVR (Facto Provado n.º 15);
- A amortização daqueles empréstimos bancários foi efectuada através de uma conta aberta em nome de ambos, onde depositavam os proveitos das respectivas actividades profissionais e a renda de uma das aludidas fracções, arrendada a terceiros (Facto Provado n.º 25);
- Não se provou que existisse ou que o Apelado tivesse outra conta bancária além da que tinha em conjunto com a Apelante;
- Na mencionada conta foram depositados cerca de € 15.000,00 doados pelos pais da Apelante (Facto Provado n.º 26);
- Como se demonstrará adiante, o Facto Provado n.º 27, que se impugnará adiante, já que a prova efectuada em julgamento assim o impõe, infirma de grave erro na medida em que também o Apelado era titular desta conta;
- Mesmo após a cessação da união de facto, a Apelante continuou a depositar a sua quota-parte na amortização dos supra referidos empréstimos na conta do Banco … (Facto Provado n.º 28);
- A Apelante, além de sempre ter trabalhado, primeiro num talho em Évora e, posteriormente, como empregada doméstica (Facto Provado n.º 10), sempre ao longo de toda a vivência em comum, cuidou das lides domésticas, adquirindo todos os produtos necessários para o efeito (Facto Provado n.º 29);
- Como empregada doméstica, a Apelante trabalhou diversas vezes fora de horas e aos fins-de-semana (Facto Provado n.º 30);
- Sempre pagou a sua quota-parte no IMI relativo às supra citadas fracções, respectivos seguros de vida e empréstimos, além de todas as despesas domésticas à excepção da água, luz e gás (Facto Provado n.º 31);
- A Apelante sempre suportou sozinha as despesas de educação e saúde do filho do casal (Facto Provado n.º 32);
- Não resultando quaisquer dúvidas de que todos os bens que se discutem nos presentes autos – um imóvel e cinco veículos, sendo que o de menor valor foi colocado magnanimamente em nome da Apelante em 02.10.2014 e já no decurso do presente processo ... – foram adquiridos no decurso da união de facto (Factos Provados n.º 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23);
16. Com efeito, a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal “a quo" é mais que suficiente para se poder concluir que a contribuição e o esforço da Apelante, seja a nível financeiro mediante depósitos regulares em contas conjuntas com o Apelado - com o fruto do seu trabalho e beneficiando de doações de seus pais, não só de carácter monetário como se demonstrará aquando da impugnação da matéria de facto - seja cuidando sempre das lides domésticas ao longo da vivência em comum e pagando todos os produtos necessários para o efeito, seja suportando sozinha todas as despesas de educação e saúde do filho do casal, foi essencial para a obtenção de um património comum, onde terão de se incluir necessariamente todos os bens em discussão no caso sub judice, adquiridos no decurso da união de facto e se encontram formalmente apenas em nome do Apelado;
17. Havendo clara e indubitavelmente um empobrecimento da Apelante em função do enriquecimento injustificado do Apelado que assim veria o seu património altamente incrementado à custa em grande parte do esforço, diga-se quase sobre humano, da Apelante, que justifica a plena aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, já que todos os seus pressupostos se verificam;
18. Tendo resultado provado que era numa conta conjunta aberta em nome de ambos no Banco … (e, posteriormente, no …, S.A.), que os frutos das actividades profissionais de ambos eram depositados, além de algumas liberalidades dos pais da Apelante (doação de cerca de € 15.000,00) e que era desta conta que saíam todos os montantes para pagar despesas e para adquirirem fosse o que fosse, seria uma verdadeira prova diabólica e totalmente impossível de realizar, poder afirmar qual a efectiva e concreta contribuição monetária da Apelante para a aquisição dos bens em causa;
19. Chega ainda o Tribunal “a quo” à extraordinária conclusão de que se a contribuição prestada ao casal pela Apelante tivesse sido apenas prestada através do seu trabalho doméstico tudo estaria bem e o instituto da compropriedade poderia funcionar. Porém, infelizmente para a Apelante, como além de tudo o mais, recebeu doações – em dinheiro e géneros alimentícios (como se demonstrará) – e trabalhava que nem uma “escrava” fora de casa, pagando a maior parte das despesas, incluindo de educação e saúde do filho do casal (Factos Provados n.º 25, 26, 28, 29, 30, 31 e 32), então neste caso perde todo o direito aos bens adquiridos pelo Apelado através do esforço comum e por este registados apenas em seu nome;
20. O que é totalmente inaceitável tanto do ponto de vista jurídico, como do ponto de vista moral;
21. Sendo absolutamente mirabolante a conclusão do Tribunal “a quo” de que, pelo facto de a Apelante exercer uma profissão remunerada, estaria automaticamente afastada a contribuição prestada ao casal através do seu trabalho doméstico.
Sendo a este respeito paradigmático o já citado Ac. do TRC de 02.11.2010 que sublinha que “O enriquecimento tanto pode traduzir-se num aumento do activo patrimonial, como numa diminuição do activo, como, inclusive, na poupança de despesas;
22. Quanto ao veículo identificado no ponto n.º 22 da matéria provada, aceita-se que o pedido devesse ter caído relativamente ao mesmo, uma vez que o Apelado, embora no decurso já da presente acção, o colocou em nome da Apelante.
No entanto, em termos obrigacionais e de fixação de valor ao património comum, seria sempre uma questão para se aferir na sequência de uma liquidação em execução de sentença, como aliás resulta do pedido formulado pela Apelante na sua petição inicial;
23. No caso concreto, todos os pressupostos constitutivos do enriquecimento sem causa se verificam. A saber:
A existência de um enriquecimento;
Obtenção desse enriquecimento à custa de outrem;
Ausência de causa justificativa para o enriquecimento.
24. Resulta efectivamente claro que, tendo a Apelante contribuído com o seu esforço, não só económico, como doméstico, para a realização do património comum, consubstanciado essencialmente na existência de contas conjuntas nas quais eram depositadas todas e quaisquer quantias advindas ao casal e das quais saíam necessariamente todos os valores, ora para pagamento de despesas, ora para adquirir fosse o que fosse, maxime os bens em discussão neste processo, aliás prova esta em nenhuma altura infirmada pelo Apelado – e permanecendo tais bens unicamente em nome do Apelado –, existe um claro enriquecimento deste à custa do empobrecimento do património da Apelante;
25. Não relevando, salvo melhor opinião, o facto de não se ter apurado – nem tal seria sequer possível ou exigível – qual o valor concreto ou qual a participação directa e concreta com que a Apelante participou no preço de aquisição daqueles bens;
26. Com efeito, exigindo-se uma tal demonstração em casos como o presente em que existem contas conjuntas e em que ambos os conviventes participam no património comum de formas distintas, embora os bens se encontram formalmente em nome de um deles, nunca seria possível a aplicação deste instituto, por impossibilidade total de aferir o montante concreto com que cada um dos dois participou no preço de aquisição dos bens em causa;
27. Contrariamente ao Tribunal “a quo”, entendemos que o facto da decisão de adquirir os bens em causa ter partido de um ou dos dois, e qual o intuito da sua aquisição, não relevam minimamente para a possibilidade de aplicação do instituto do enriquecimento sem causa;
28. Já no que se refere à prova da deslocação patrimonial, esta resulta indubitavelmente da constatação de que os bens em causa foram registados apenas em nome do Apelante e de que os mesmos foram adquiridos no decurso da vivência em comum e à custa do património comum construído com a colaboração de ambos os conviventes;
29. De forma bastante estranha e até surreal, refere o Tribunal “a quo” na sentença não ter ficado provado que a Apelante tivesse comparticipado genericamente na economia doméstica (contribuindo mensalmente com alguma quantia não só para as despesas comuns e correntes mas igualmente para este tipo de aquisições). Concluindo, erradamente, que assim sendo nenhum crédito haverá a reembolsar àquela não podendo funcionar o instituto do enriquecimento sem causa;
30. Ora, não só a Apelante logrou fazer a prova da existência de um património comum para o qual contribuiu em larga escala e das mais diversas formas, como no que diz respeito ao dispêndio de importâncias para pagamento de "despesas comuns e correntes", ficou demonstrado que foi sempre aquela que comprou todos os produtos necessários para o casal e filho, como foi ela quem "sempre suportou sozinha as despesas de educação e saúde do filho do casal" (Factos Provados n.º 29, 31 e 32);
31. É nosso entendimento que todos os factos dados como provados são mais do que suficientes para a prolação de uma decisão justa e equilibrada, embora impusessem conclusão em sentido contrário àquele que veio a ser efectivamente tomado pelo Tribunal “a quo”;
32. No entanto, e em alguns pontos de facto que a seguir se identificarão, ou existe inexactidão na indicação de alguns deles – nomeadamente nos pontos n.ºs 25 e 26 da matéria provada – ou principalmente existe omissão de factos que resultaram provados no processo e não constam da matéria dada como provada;
33. Porque plenamente provados, deverão ser alterados e/ou aditados os seguintes factos à matéria dada como provada:
a) Que a conta indicada no ponto25 (e não no ponto 24 como descrito no Facto Provado n.º 28) serviu não só para amortização dos empréstimos, como para pagamento de todas as despesas e aquisição de tudo aquilo que fosse entendido pelo casal (depoimento de parte da Autora e do filho do casal);
b) Que a conta aberta no Banco (…), S.A. em 2006 a que se alude no Facto Provado n.º27, não foi aberta apenas pela ali Autora mas por ambos os conviventes (provado, além do mais, através do depoimento da Autora e do filho do casal);
Pelo que, nos termos do disposto na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 651.º do CPC, se requer a Vossas Excelências se dignem admitir a junção de documento emitido pela citada instituição bancária, comprovativo de que a conta a que se alude no ponto 27 foi aberta não apenas pela ora Apelante mas sim por ambos os unidos de facto (doc. n.º 1);
c) - Que os pais da Apelante doaram não só à sua filha/casal a referida importância de € 15.000,00 (Facto Provado n.º 26), como sempre forneceram os mais diversos géneros alimentícios (carne de porco, de pato, de frango, batatas, cebolas, verduras, etc.) provenientes da sua exploração agrícola e pecuária sita em (…), Montargil, onde residem (provado pelo depoimento da Autora e pelo testemunho da sua irmã Gorete);
d) Que durante o período de vivência em comum, houve largos períodos em que o Apelado, porque não tinha trabalho ou porque não queria, não exerceu qualquer actividade profissional, tendo sido a Autora quem durante tais períodos suportou sozinha todas as despesas (Factos Provados 33, 34 e 35, depoimento da Autora e testemunho do filho do casal e da irmã daquela).
34. Em suma, a Apelante fez toda a prova que lhe era possível e exigível fazer tendo em vista o funcionamento in casu dos institutos da compropriedade e essencialmente do enriquecimento sem causa; tendo havendo um claro e injustificado enriquecimento do Apelado à custa do empobrecimento daquela;
35. Foram violados, por incorrecta aplicação por parte do Tribunal "a quo'' os artigos 473º e seguintes e 1403.º e seguintes do Código de Processo Civil.»
O Recorrido apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, já que o recurso relativo à matéria de facto deve ser rejeitado (não foi formulado com observância dos requisitos legais), não resultou demonstrado que a Autora tenha adquirido a compropriedade por qualquer um dos modos legais de aquisição de tal direito, além de que não resultaram afirmados os pressupostos atinentes ao enriquecimento sem causa.
Assim, em face das conclusões da alegação da Recorrente, que definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso[1], mais considerando as questões que são de conhecimento oficioso, cumpre conhecer do seguinte:
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- da falta do pedido de declaração judicial da dissolução da união de facto;
- da qualidade de comproprietária da Recorrente relativamente aos bens identificados;
- do direito da Recorrente à restituição por via do enriquecimento sem causa.
III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª instância:
1. Autora e Réu iniciaram uma vivência em comum, como se de marido e mulher se tratassem, há cerca de 21 anos;
2. Autora e Réu residem ambos na Rua (…), n.º (…), Esquerdo, em Évora, há cerca de 18 anos e nos três anos antes residiam no Bairro do (…), Rua dos (…), n.º 2, em Évora;
3. Em comunhão de cama, mesa e habitação;
4. Dormindo na mesma cama;
5. Mantendo intimidades, afecto, carinho e relações de sexo;
6. Confeccionando e tomando refeições, na mesma mesa;
7. Aí recebendo familiares e amigos, bem como a correspondência postal;
8. Deste relacionamento nasceu (…), de 20 anos de idade;
9. Durante a vida em comum, o réu exerceu a actividade de pedreiro de construção civil, por vezes por conta de outrem, outras vezes por conta própria;
10. E a autora foi empregada num talho, em Évora e, posteriormente, foi empregada doméstica;
11. Desde 2011/2012, autora e réu continuam a viver na mesma casa, mas a autora dorme no quarto de casal e o réu dorme no sofá da cozinha;
12. Deixaram de tomar as refeições em conjunto;
13. O réu chega a passar períodos de 15 dias fora de casa, sem dar qualquer tipo de justificação para o efeito;
14. Passa os períodos de férias sozinho ou na companhia de quem entende;
15. Correu termos nesta secção a acção especial de divisão de coisa comum com o n.º 1173/14.0TBEVR, intentada por (…) contra (…), tendente à divisão de duas fracções autónomas adquiridas pelas partes na constância da união de facto e registadas na Conservatória do Registo Predial de Évora a favor de ambos, bem como dos bens móveis existentes nas respectivas fracções;
16. Por escrito lavrado por notário do Cartório Notarial de Évora, em 21 de Março de 2003, o réu adquiriu a fracção autónoma designada pela letra “J”, correspondente a garagem na cave com entrada pelo n.º (…) do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Rua Dr. (…), n.º 12, Bairro do (…), Évora, descrita na Conservatória do Registo Predial de Évora, freguesia (…), sob o n.º …/20071211 – J e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo (…), mediante o pagamento de € 20.000,00;
17. A fracção identificada em 16. encontra-se registada a favor do réu, através de aquisição por compra, segundo a apresentação (…), de 03.04.2003;
18. O veículo marca BMW, de matrícula (…), encontrou-se registado em nome do réu, de 24.11.2008 a 27.07.2014;
19. O veículo marca Opel, de matrícula (…), encontra-se registado em nome do réu, desde 09.03.2011;
20. O veículo marca Nissan, de matrícula (…), encontrou-se registado em nome do réu, de 09.03.2000 a 27.07.2014;
21. O veículo marca Opel, de matrícula (…), encontrou-se registado em nome do réu de 22.12.2009 a 27.07.2014;
22. O veículo de marca Peugeot, de matrícula (…), encontrou-se registado em nome do réu de 28.11.2011 a 01.10.2014;
23. Os veículos identificados em 16., 18. e 19. encontram-se registados em nome de (…), desde 28.11.2014;
24. O veículo identificado em 20. encontra-se registado em nome da autora desde 02.10.2014;
25. A amortização dos empréstimos bancários foi efectuada através de uma conta bancária aberta em nome de ambos, junto do Banco (…), na qual as partes depositavam alguns proveitos das respectivas actividades profissionais e as rendas da habitação que se encontrava arrendada a terceiros;
26. Foi também na mencionada conta que a autora depositou cerca de € 15.000,00 doadas pelos seus pais e destinados a auxiliar a filha na amortização dos empréstimos ou noutras despesas que entendesse necessárias;
27. Em 2006, a autora abriu conta junto do “Banco (…), S.A.”, onde passou a depositar alguns proveitos do seu trabalho;
28. Pelo menos, a partir de 2014, a autora passou a depositar mensalmente a sua quota-parte na amortização dos empréstimos para aquisição de habitação, junto da conta mencionada em 24.;
29. Ao longo da vivência em comum, a autora cuidou das lides domésticas, confeccionando as refeições, tratando da roupa, limpando a habitação e comprando os produtos necessários para o efeito;
30. A autora trabalhava como empregada doméstica, ao longo da vivência em comum, em várias casas de habitação, em Évora, muitas vezes fora de horas e aos fins-de-semana;
31. A autora pagava a sua quota-parte no IMI relativo às fracções objecto da acção identificada em 14., o seguro de vida de ambos os empréstimos bancários, todas as despesas domésticas, tirando água, luz e gás, que eram pagas pelo réu;
32. A autora sempre suportou sozinha as despesas de educação e saúde do filho do casal;
33. No ano de 2011, a autora recebeu, pelo menos, um rendimento de € 4.108,30 e o réu recebeu um rendimento de € 55.356,00;
34. No ano de 2010, o réu recebeu um rendimento de € 62.863,50;
35. No ano de 2009, o réu recebeu um rendimento de € 16.424,00.
B – O Direito
Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
A recorrente sustenta que devem ser alterados os pontos n.ºs 25 e 27 dos factos provados, bem como que deve aditar-se o fornecimento de géneros alimentícios pelos pais da Recorrente ao casal, bem como o não exercício de profissão remunerada pelo Recorrido durante largos períodos de tempo, durante a vivência em comum.
Ora, a reapreciação do julgamento relativo à matéria de facto apenas pode ter lugar desde que o Recorrente cumpra os ónus estabelecidos no art.º 640.º do CPC. A jurisprudência que vem sendo consolidada pelo STJ no que respeita ao sentido e alcance do regime inserto no art.º 640.º do CPC assenta, designadamente e no que aqui importa salientar, nos seguintes vectores:
- no recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe[2];
- servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso[3];
- existindo prova gravada, deve indicar-se com exactidão as passagens da gravação em que se funda a pretensão deduzida[4];
- não observa o ónus estabelecido no art.º 640.º do CPC o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado[5];
- o incumprimento de tais ónus – prescritos para a delimitação e fundamentação do objecto do recurso de facto – impedem a Relação de exercer os poderes-deveres que lhe são atribuídos para o respectivo conhecimento[6].
No presente recurso, a Recorrente não indica os concretos factos alegados donde pretende retirar matéria factual a incluir na factualidade provada. Para além disso, constata-se que o fornecimento de géneros alimentícios pelos pais da Recorrente ao casal e o não exercício de profissão remunerada pelo Recorrido durante largos períodos de tempo, durante a vivência em comum, nem sequer foi alegado nos articulados apresentados pela Recorrente no processo. Ora, os factos a enunciar como provados hão-de ser colhidos entre os factos essenciais que as partes alegaram[7], conforme determinado pelo art.º 552.º, n.º 1, al. d), do CPC. São esses os factos de que é lícito ao juiz conhecer (art.º 411.º do CPC), e é sobre esses que se impõe profira juízo de provado ou de não provado. Donde, não enferma de erro a decisão que não contempla como factos provados circunstâncias não alegadas pelas partes.[8]
Por outro lado, aludindo a Recorrente a prova testemunhal, que foi objecto de gravação, não são indicadas com exactidão as passagens da gravação em que seja afirmada a factualidade em causa.
Termos em que, por falta de cumprimento dos ónus estabelecidos no art.º 640.º do CPC, vai rejeitado o recurso na parte atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Da falta do pedido de declaração judicial da dissolução da união de facto
Por via do disposto no art.º 8.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio[9], sempre que um dos membros da união de facto dissolvida queira exercer direitos de natureza patrimonial sobre o património gerado na pendência da união e em resultado da mesma, estejam ou não os direitos incluídos no elenco do art.º 3.º da mencionada Lei, necessita de pedir na acção, em simultâneo, a declaração judicial da dissolução da união de facto. Trata-se de uma condição da acção destinada ao exercício do direito, qualquer que seja o instituto a que se recorre para obter o efeito patrimonial pretendido, desde que o direito exercitado tenha origem na união de facto e causa na dissolução da mesma.[10]
Uma vez que, no presente caso, a Recorrente não formulou o pedido de declaração da dissolução da união de facto entre si e o Recorrido, questão de conhecimento oficioso dada a determinação legal contida no art.º 8.º, n.º 3, da Lei n.º 7/2001, resulta desde logo comprometida a procedência da acção.
De todo o modo, e ainda que assim não fosse, outras circunstâncias de facto e de direito impedem que a Recorrente alcance os efeitos jurídicos pretendidos por via desta acção, conforme se analisará.
Assim:
Da qualidade de comproprietária da Recorrente relativamente aos bens identificados
A Recorrente pretendia obter o reconhecimento do direito de compropriedade sobre os veículos automóveis e o imóvel, identificados na p.i. Não especificou em que proporção – dado que peticionou, em alternativa, a restituição de metade do valor daqueles bens, poderá interpretar-se o pedido como referindo-se o pretendido direito de compropriedade à proporção de metade. Invocou, para tanto, que tais bens encontram-se registados em favor do Recorrido, mas que foram adquiridos com o esforço comum de ambos na constância da união de facto.[11]
A união de facto consiste na relação pessoal entre duas pessoas que estabelecem informalmente uma vida em comum em condições análogas às dos cônjuges, ou seja, em comunhão de cama, mesa e habitação. No âmbito de tal relação, podem ser angariados meios económicos e património comum, através do esforço concertado de ambos e da forma que livremente estabelecerem, ou podem ser adquiridos bens que pertençam apenas a um dos unidos de facto. «Tudo depende do que acordaram entre si, do modo como adquiriram o património, da contribuição de cada um deles para a sua aquisição.»[12]
Ora, cabe desde já salientar que o veículo automóvel de marca Nissan encontra-se registado em nome da Recorrente. Donde, é destituída de sentido a sua pretensão relativamente ao mesmo.
Relativamente aos demais bens, certo é que a participação no pagamento do preço não consiste em forma de aquisição de bens. Nos termos do disposto no art.º 1316.º do CC, «O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei.» Sendo estas as formas de aquisição da propriedade, e dado que a lei não estabelece que o pagamento do preço ou parte dele seja modo de aquisição da propriedade, é de concluir inexistir fundamento jurídico para declarar a Autora comproprietária do imóvel e dos veículos automóveis (excluindo o de marca Nissan).
Na verdade, atento o disposto no art.º 767.º do CC, a prestação tanto pode ser feita pelo devedor como por terceiro, esteja este interessado ou não no cumprimento da obrigação. Caso um terceiro, relativamente aos intervenientes no negócio, interessado no cumprimento, efectuar a prestação no lugar do devedor, poderá ficar sub-rogado nos direitos do credor, nos termos do art.º 592.º do CC.[13] Se bem que daí decorram efeitos jurídicos de índole obrigacional, certo é que o pagamento ou a participação do pagamento no preço de aquisição não contende com a aquisição do direito que resulte da celebração do negócio para os respectivos intervenientes.
Não se tratando, ainda, de caso em que o Recorrido tenha actuado, ao celebrar os negócios aquisitivos, em representação da Recorrente, a coberto de mandato firmado com esta ou título de gestão de negócios, cabe concluir que inexiste fundamento que permita afirmar ter a Recorrente adquirido a posição de comproprietária sobre os bens em causa.
Do direito da Recorrente à restituição por via do enriquecimento sem causa
Aludindo à circunstância de que os bens foram adquiridos pelo Recorrido, na constância da vivência em união de facto, com o esforço comum de ambos, a Recorrente pretende seja o Recorrido condenado a pagar-lhe metade do valor dos mesmos bens, à luz do instituto do enriquecimento sem causa.
Nos termos do disposto no art.º 473.º, n.º 1, do CC, aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. Implica na obrigação de restituir o recebido porquanto o enriquecimento é injusto, dado dever pertencer a outro segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito.[14]
Pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:
- que haja um enriquecimento de alguém;
- que o enriquecimento careça de causa justificativa;
- que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, podendo, desde logo, traduzir-se no aumento do activo patrimonial. Já a falta de causa justificativa traduz-se na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento. A falta de causa justificativa, tal como os demais requisitos, terá de ser não só alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no art.º 342.º do CC, por quem pede a restituição.[15]
Já o objecto da obrigação de restituir alcança-se do teor do art.º 479.º, n.º 1, do CC, nos termos do qual a tal obrigação compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela[16], o beneficiado não é obrigado a restituir todo o objecto da deslocação patrimonial operada ou o valor correspondente quando a restituição em espécie não for possível. Os bens podem ter perecido ou sofrido deterioração, podem ter diminuído entretanto de valor. Por conseguinte, o enriquecimento corresponderá à diferença entre a situação real e actual do beneficiado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria se não fosse a deslocação patrimonial operada.[17]
Ora vejamos.
Atentando na factualidade provada, alcança-se que não está afirmado que a Recorrente tenha contribuído com património próprio ou com rendimento por si angariado para o pagamento, em concreto, do preço de aquisição do imóvel ou de qualquer um dos identificados veículos automóveis. O que consta assente é que os proventos das actividades profissionais desenvolvidas por ambos eram depositados numa conta bancária cujo saldo era afecto à amortização de empréstimos bancários e que nessa conta a Recorrente depositou € 15.000,00 doados pelos seus pais para amortização de empréstimos e para outras despesas que entendesse necessárias; não há menção de que o imóvel ou qualquer um dos veículos automóveis tenha sido adquirido com recurso a empréstimo bancário amortizado com fundos da referida conta bancária, nem menção há de que a verba de € 15.000,00 tenha sido aplicada no pagamento do preço de aquisição de qualquer um desses concretos bens.
Assente está, tão só, que a Recorrente contribuiu, com o seu trabalho remunerado e não remunerado (as diligências domésticas que desenvolvia), bem como com o seu património comum (os € 15.000), para a criação de um fundo patrimonial que permitia fazer face às despesas necessárias e à amortização de empréstimos. Será tal enquadramento circunstancial apto a reconhecer à Recorrente direito a restituição patrimonial por metade do valor daqueles concretos bens registado em nome do Recorrido? Cremos que não.
Como é unanimemente entendido, à união de facto não cabe aplicar, sequer por analogia, o regime de bens do casamento, o regime da administração de bens pelos cônjuges nem o regime de responsabilidade dos cônjuges por dívidas, pois na união de facto não existem bens comuns dos unidos subordinados ao regime dos bens comuns dos cônjuges. Sem embargo, pode existir património obtido através do esforço económico ou com tradução económica[18] de ambos os membros, património obtido por um dos membros à custa do seu património, do património comum ou do património do outro, a par do suporte de despesas comuns e próprias, à custa do património de um deles.
Ora, dissolvida que seja a união de facto, coloca-se a questão atinente à liquidação do património constituído durante a união de facto, imputando o resultado dessa liquidação no património próprio de cada um – o que contende com os efeitos patrimoniais decorrentes da dissolução da união de facto, matéria que não foi objecto de qualquer regulamentação específica, designadamente através da citada Lei n.º 7/2001. Caso os membros de união não tenham regulado, de acordo com o princípio da autonomia da vontade e em observância das normas de ordem pública e dos bons costumes, aspectos patrimoniais da sua relação (vg. inventariando os bens que levam para a união, fixando regras sobre a propriedade dos bens móveis ou dos valores depositados em contas bancárias, regulando a contribuição de cada um para as despesas do lar, o pagamento das dívidas, a divisão dos bens que sejam adquiridos no decurso da união de facto), mediante o que vem sendo designado de «contratos de coabitação»[19], essa liquidação tem de ser feita com recurso aos institutos gerais do direito, em matéria do direito das obrigações e dos direitos reais, designadamente de acordo com o regime da compropriedade, das sociedades civis e os princípios do enriquecimento sem causa[20].
O que pressupõe a análise da concreta situação de facto em causa, aferindo-se da verificação dos requisitos do fundamento invocado para a liquidação patrimonial.
Em face do invocado instituto do enriquecimento sem causa, não tendo resultado provado que a Recorrente contribuiu economicamente para o pagamento do preço de aquisição de cada um dos indicados bens, não há como concluir que, em relação a tais bens concretos, o Recorrido resultou enriquecido à custa da Recorrente, empobrecida na mesma medida, nem que esse enriquecimento/empobrecimento corresponda a metade do valor de cada um desses bens.
Não se nega que haja fundamento para que a Recorrente seja patrimonialmente compensada pelo contributo material, decorrente do trabalho remunerado e ainda do trabalho não remunerado, prestado à união de facto e ao agregado familiar constituído durante o período em que vigorou tal união. Porém, a dimensão dessa contribuição, a expressão económica que lhe deve ser atribuída, há-de aferir-se pela apreciação da situação patrimonial global angariada na constância da união, apurando-se o resultado líquido desse incremento patrimonial por consideração das perdas e dívidas. Na falta de outros elementos fácticos[21], ainda que à luz do instituto do enriquecimento sem causa, só assim se alcançará o valor apto a repor o equilíbrio entre aquilo com que a Recorrente sai da união e aquilo com que devia sair face ao valor económico da sua participação.[22]
Por conseguinte, «a liquidação do património deve ser feita em conjunto, comparticipando a autora não apenas nos ganhos mas também nas perdas, não podendo a autora pretender receber a parte nos lucros sem se responsabilizar igualmente por dívidas que diminuem o resultado patrimonial líquido do casal.»[23]
Considerando, no entanto, os moldes em que a acção foi colocada, e os factos que resultaram provados, é manifesto que não resta outra sorte à acção que não seja a improcedência.
As custas recaem sobre a Recorrente – art.º 527.º, n.º 1, do CPC.
Concluindo:
- por via do regime inserto no art.º 8.º, n.º 3, da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, o pedido de declaração judicial de dissolução da união de facto constitui condição de procedência de acção na qual o interessado pretende exercer direitos dependentes da dissolução da união de facto;
- no âmbito da vivência em união de facto, a aquisição da (com)propriedade e a contribuição de cada membro na aquisição de direitos definem-se em conformidade às regras gerais de direito real e obrigacional;
- dissolvida que seja a união de facto, a liquidação do património há-de fazer-se levando em linha de conta a medida da contribuição de cada membro, seja por via do desempenho de trabalho remunerado seja por via das tarefas domésticas realizadas em prol do agregado familiar, contabilizando-se globalmente o património adquirido e as perdas e despesas suportadas, apurando-se a medida do enriquecimento sem causa de um à custa do outro.
IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 23 de Fevereiro de 2017
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
Rui Manuel Machado e Moura
__________________________________________________
[1] Cfr. art.ºs 637.º n.º 2 e 639.º n.º 1 do CPC.
[2] Ac. STJ de 01/10/2015 (Ana Luísa Geraldes).
[3] Ac. STJ de 01/10/2015 (Ana Luísa Geraldes).
[4] Ac. STJ de 22/09/2015 (Pinto de Almeida).
[5] Ac. STJ de 19/02/2015 (Maria dos Prazeres Beleza).
[6] Ac. STJ de 19/02/2015 (Maria dos Prazeres Beleza).
[7] V. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2013, I vol. p. 541.
[8] Sem prejuízo, claro está, de levar em linha de conta a prova tabelada produzida nos autos, atento o disposto na 2.ª parte do n.º 4 do art.º 607.º do CPC, podendo lançar mão de algum facto demonstrado por documento que repute relevante para a matéria em discussão – sendo certo, porém, que a junção de documento não é apta a suprir a lacuna de alegação do facto. Para além desses, cabe ao juiz conhecer de factos que não dependem de alegação pelas partes, conforme estatui o art.º 412.º do CPC.
[9] Diploma que estabelece medidas de protecção de pessoas que vivam em união de facto, estendendo-lhes direitos que eram exclusivos das pessoas casadas.
[10] Cfr. Acs. TRP de 27/10/2016 (Aristides Rodrigues de Almeida), TRP de 30/11/2015, TRL de 23/11/2010, TRL de 12/09/2013.
[11] Cfr. art.º 17.º da p.i.
[12] Ac. TRP de 27/10/2016 (Aristides Rodrigues de Almeida).
[13] Cfr., neste âmbito, Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, II, 5.ª edição, p. 28 e 29.
[14] Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 5.ª edição, p. 438.
[15] CC anotado, Pires de Lima e Antunes Varela, vol. I, 4.ª ed., p. 456
[16] Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, p. 466 e ss.
[17] Ac. STJ de 17/01/1978, BMJ 273.º-239.
[18] É o caso do desempenho de tarefas domésticas por um dos membros da união de facto, susceptível de avaliação pecuniária, implicando na realização de despesa caso fossem levadas a cabo por terceira pessoa.
[19] Cfr. F. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. I, 3.ª edição, p. 100/110, 119/128; Ac. TRC de 23/02/2011 (Isaías Pádua);
[20] Posição defendida unanimemente na doutrina e na jurisprudência.
[21] Designadamente alusivos à concreta contribuição económica do sujeito para a angariação do concreto bem.
[22] Cfr. Ac. citado do TRP de 27/10/2016, que aqui se segue de perto.
[23] Ac. citado do TRP de 27/10/2016.