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REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
Sumário
I – A doutrina fixada pelo STJ no seu AUJ n.º 1/2015 deve ser aplicada ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente.
II – Estando em causa crimes dolosos e verificando-se que o requerimento para abertura da instrução não obedece à estrutura acusatória do processo, nem assegura as garantias de defesa dos arguidos, nos termos previstos nos art.ºs 283º, n.º 3, alínea b), e 287º, n.º 2, do C.P.P., sendo omisso em relação aos elementos subjectivos de tais crimes, isto é, quanto aos elementos constitutivos do dolo, concretamente no que respeita aos elementos intelectual (representação dos factos), volitivo (vontade de praticar os factos) e emocional (consciência de estar a agir contra o direito), nenhuma censura merece a decisão recorrida quando rejeitou o requerimento para a abertura da instrução.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO 1. 1. – Decisão Recorrida
No processo de inquérito nº 65/14. 8 GBVVC, a correr termos na Secção Única dos Serviços do Ministério Público de Vila Viçosa da Comarca de Évora, em que eram arguidos AB, LP, AP e AA, após despacho de arquivamento do inquérito por parte do Ministério Público, veio a assistente MM requerer a abertura de instrução, pedido que foi rejeitado, por despacho de 04.07.2016 da Mma Juiz de Instrução da Secção de Instrução Criminal – J1 da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, por inadmissibilidade legal, em virtude de o requerimento para abertura da instrução ser omisso, para além do mais, quanto à descrição de factos susceptíveis de integrarem o elemento subjectivo dos crimes imputados.
* 1. 2. – Recurso
1.2.1. - Inconformada com essa decisão, dela recorreu a assistente, pugnando pela admissibilidade da instrução, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões:
«a) - A assistente tem legitimidade para este recurso e está em tempo (artºs 399 e 401 nº 1 al. b) e 411 do C.P. Penal na redacção dada pela Lei 20/2013).
b) - O douto despacho recorrido indefere indevidamente o pedido de abertura de instrução por "inadmissibilidade de abertura desta fase processual" e por entender que o "requerimento é de todo omisso quanto à descrição dos factos susceptíveis de integrar o elemento subjectivo de qualquer um dos crimes"; com este entendimento e consequente decisão, foi feito uso e uma interpretação indevidos, e inadequados ao caso, dos artºs 287 nºs 2 e 3 e 283 nº3, pois que, com todo o respeito por melhor opinião, os factos indispensáveis constam, ex abundanti, do requerimento indeferido.
Pelo que dando provimento ao recurso e ordenando-se que os autos prossigam para a fase de instrução, Vossas Excelências, decidirão com Justiça!»
1.2.2. - O Ministério Público respondeu, sustentando a improcedência do recurso, lavrando as seguintes conclusões:
«1. Conforme douto despacho que indeferiu o requerimento de abertura de instrução, que aqui se dá por integralmente reproduzido, aquele requerimento não reúne os requisitos exigidos pelo artigo 287°, n02, do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 283°, nº3, alíneas b) e c), do mesmo Código.
2. Designadamente, é omisso quanto ao elemento típico subjectivo quanto a todos os crimes que poderiam estar em causa.
3. Haverá que ter presente em primeiro lugar a doutrina fixada pelo Acórdão de Fixação da Jurisprudência nº1/2015, do STJ, de que decorre que a falta de descrição dos elementos subjectivos do tipo de crime no requerimento de abertura de instrução, constitui motivo de rejeição dessa fase processual.
4. "O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº3 do art. 283°.º (art. 287°, nº2, do CPP).
5. Dispõe o art. 283°, nº2, do Código de Processo Penal: " A acusação contém sob pena de nulidade:
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
c) A indicação das disposições legais aplicáveis".
6. Não se mostrando cumpridos no requerimento de abertura de instrução os requisitos das acima citadas normas legais, terá o mesmo que ser rejeitado por inadmissibilidade legal, conforme sucedeu.
7. "Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287°, nº2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido" (Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 7/2005 (DR I Série-A, nº 212, de 4 de Novembro de 2005).
8. "A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo, seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução". (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 358/2004, de 19 de Maio, processo nº 807/2003.
9. Não merece qualquer reparo o douto despacho recorrido ao decidir que, face à falta dos requisitos legais do requerimento instrutório, é legalmente inadmissível a instrução e não se mostram violadas quaisquer disposições legais.
Termos em que mantendo, Vossas Excelências Venerandos Desembargadores, a douta decisão recorrida, nos seus precisos termos, será feita JUSTIÇA.»
1.2.3. - Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o art.º 416.° do C.P.P., pronunciou-se no sentido de que o recurso deveria ser julgado improcedente, mantendo-se, por conseguinte, o despacho recorrido.
1.2.4. - Cumprido o disposto no art.º 417.°, n.º 2, do C.P.P., veio a assistente responder, reafirmando o por si defendido no recurso interposto.
1.2.5. - Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, foram os autos a conferência, de harmonia com o preceituado no art.º 419.°, n.° 3, do C.P.P..
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. 1. – Objecto do Recurso
Dispõe o artigo 412º, nº 1, do C.P.P, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
E no nº 2 do mesmo dispositivo legal determina-se também que versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Constitui entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o Tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva inCurso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, inwww.stj.pt).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência com a decisão impugnada, a questão a examinar e decidir prende-se com saber se o requerimento de abertura de instrução contém a alegação de factos suficientes para preenchimento dos tipos legais dos crimes imputados.
2. 2. – Da Decisão Recorrida
É o seguinte o teor do despacho recorrido:
«II – Requerimento de abertura de instrução:
A assistente vem requerer a abertura de instrução, assim reagindo contra o despacho de arquivamento do inquérito proferido pelo Ministério Público.
Reclama a pronúncia dos arguidos AB, LP, AP e AA pela prática dos crimes de violação de domicílio e perturbação da vida privada (art. 190.º do Cód. Penal), coação (art. 154.º, n.º 1 do Cód. Penal), sequestro (art. 158.º do Cód. Penal) e roubo (art. 210.º do Cód. Penal).
No entanto, o requerimento de abertura de instrução não pode conduzir a um despacho de pronúncia válido.
De facto, em caso de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público o requerimento de abertura de instrução tem que, além do mais, satisfazer as exigências legalmente previstas para a acusação.
E a esse respeito preceitua o n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal que “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do artigo 283.º, n.º 3”. Nos termos do referido artigo 283.º, n.º 3, als. b) e c), a acusação contém obrigatoriamente a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.
E a acusação tem que incluir esses elementos sob pena de nulidade, conforme estatui o mesmo preceito, pelo que também estes têm que constar obrigatoriamente do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.
Ainda que o juiz investigue autonomamente o caso submetido a instrução, terá sempre em conta a indicação constante do requerimento de abertura de instrução a que se refere o art. 287.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal (cfr. art. 288.º, n.º 3 do mesmo diploma).
No caso de arquivamento dos autos, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente determina o âmbito e o limite da intervenção do juiz em sede de instrução, não podendo a decisão instrutória pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos ali descritos, sob pena de nulidade (cfr. art. 309.º, do Cód. Penal).
No atual figurino legal, a instrução não pode ser um complemento do inquérito, pois que o juiz de instrução, de acordo com a estrutura acusatória do processo, investigando autonomamente o caso submetido a instrução, encontra-se delimitado ao alegado pelo assistente no respetivo requerimento de abertura (cfr. arts. 288.º, do Cód. Proc. Penal).
Como se refere no Ac. da R.L. de Coimbra de 3/06/2014 (Proc. n.º 1290/11.9T3AVR.C1, disponível em www.dgsi.pt), na instrução não se pode fazer uma verdadeira investigação e no final decidir pela pronúncia ou pela não pronúncia. A instrução não é um novo inquérito, mas tão-só um momento processual de comprovação do tema factual que deve ser indicado quando requerida pelo assistente.
Sufraga-se aí também a posição sustentada pelo Cons. Henriques Gaspar, no Ac. n.º 03P2299 do STJ de 24 de setembro de 2003: “… O requerimento do assistente deve, em termos materiais e funcionais, revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório”.
“Se o assistente requer a abertura de instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será inexequível, ficando o juiz sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver provados” (Souto Moura, Jornadas de Direito Processual Penal, p.120/121).
E “I - A falta de descrição, no requerimento de abertura de instrução, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do corresponde desvalor, constitui motivo de rejeição de tal requerimento de abertura de instrução. II – A doutrina fixada pelo STJ, no seu Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015 (…) deve ser aplicada, por identidade de razão, aos requerimentos de abertura de instrução apresentados pelo assistente. (Ac. TRE de 17/03/2015, Proc. 1161/12.1GBLLE.E1, www.dgsi.pt).
Analisando o requerimento de abertura de instrução, verifica-se que no mesmo não é feita uma descrição factual com vista a satisfazer estes requisitos apontados para a acusação e os escassos factos enumerados (sem prejuízo dos juízos conclusos) não integram os tipos objetivos dos ilícitos por cuja pronúncia se pugna, sendo o requerimento de todo omisso quanto à descrição de factos suscetíveis de integrar o elemento subjetivo de qualquer um dos crimes.
É, por isso, em nosso entender, manifesta a improcedência do requerimento de abertura de instrução, que não poderá conduzir a um despacho de pronúncia válido.
Não se mostra admissível a prolação de despacho de aperfeiçoamento nestas situações – cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 7/2005.
Assim, por inadmissibilidade de abertura desta fase processual (art. 287.º, n.º 3 do Cód. Proc. Penal), indefere-se o requerimento de abertura de instrução. Fixa-se a taxa de justiça devida pela assistente em 2 Uc’s – cfr. art. 8.º, n.º 2 do RCP – sem prejuízo do apoio judiciário. Notifique.»
2. 3. – Apreciando e decidindo
Muito embora não esclarecendo em que termos considera preenchido o elemento subjectivo dos diversos crimes que imputa aos arguidos, sustenta o recorrente que o seu requerimento para a abertura da instrução contém todos os elementos que a lei exige, tendo o despacho recorrido feito uso e interpretação indevidos e inadequados ao caso do disposto nos art.ºs 287.º, nºs 2 e 3, e 283.º, n.º 3, do C.P.P., já que - diz - os factos indispensáveis constam, ex abundanti, do requerimento indeferido. Conclui que deverá ser dado provimento ao recurso, ordenando-se que os autos prossigam para a fase de instrução.
Na resposta, o Ministério Público, pugnando pela improcedência do recurso, sustentou que o requerimento para a abertura da instrução apresentado pela assistente não reúne os requisitos exigidos pelo disposto nos art.ºs 287°, n.º 2, e 283.°, n.º 3, alíneas b) e c), do C.P.P., sendo, designadamente, omisso quanto ao elemento típico subjectivo relativamente a todos os crimes que poderiam estar em causa, situação em que não pode haver lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o seu requerimento para abertura da instrução, conforme decidido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 7/2005, publicado no DR, I Série-A, nº 212, de 04.11.2005, impondo-se, consequentemente, a rejeição de tal requerimento por inadmissibilidade legal. Conclui, assim, pela manutenção da decisão recorrida.
Vejamos.
Nos termos previstos no art.º 286.º, n.º 1, do C.P.P., a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
E, de acordo com o previsto no art.º 287.º, n.º 1, alínea b), do C.P.P., a instrução pode ser requerida pelo assistente se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
Determina-se ainda no nº 2 do mesmo art.º 287.º do C.P.P. que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º.
Assim, e muito embora não esteja sujeito a formalidades especiais, atentos os princípios do acusatório e do contraditório que caracterizam a tramitação processual penal, e o disposto nos art.ºs 287.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do C.P.P., o requerimento para a abertura da instrução formulado pela assistente, na sequência de despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público - como é o caso dos autos - deve estruturar-se como uma acusação, dele havendo que constar, para além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como as disposições legais aplicáveis.
A referida narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança traduz-se na explanação dos factos concretos necessários ao preenchimento do tipo, objectivo e subjectivo, do crime pelo qual pretende o assistente ver o arguido pronunciado.
Impõe-se, assim, que o assistente descreva quer os factos que integram o elemento objectivo do tipo, quer os que preenchem o seu elemento sujectivo, isto é, o dolo, já que o requerimento para a abertura da instrução, consubstanciando, na prática, uma acusação, delimita o objecto do processo, o thema probandum.
Assim, e a exemplo do que acontece com acusação deduzida pelo Ministério Público, a descrição factual do dolo tem que constar do requerimento para abertura de instrução, sob pena de não ser possível preencher o tipo de crime pelo qual se pretende submeter o arguido a julgamento, sendo certo que, nos termos previstos no art.º 309.º do C.P.P., é nula a decisão instrutória na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para a abertura da instrução.
Nas palavras do Ex.mo Juiz Conselheiro Henriques Gaspar, no Ac. do STJ de 24 de Setembro de 2003, Procº 03P2299, in www.dgsi.pt: «2 - O requerimento de abertura da instrução constitui o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução. … 5 - O requerimento do assistente deve, em termos materiais e funcionais, revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório».
No que respeita à possibilidade de rejeição do requerimento para abertura de instrução, estabelece o n.º 3 do art.º 287.º do C.P.P. que aquele requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
E, conforme escreve Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 16ª ed., pág. 629., «a rejeição por inadmissibilidade legal de instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal (falta de tipicidade), de haver obstáculo que impede o procedimento criminal e de haver obstáculo à abertura da instrução, v. g. ilegitimidade do requerente (caso do MP) ou inadmissibilidade legal de instrução( v.g. casos dos crimes particulares e de alguns processos especiais)».
A propósito, ensina também Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, pág. 134: «O requerimento do assistente tem de conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta ou a falta ou inimputabilidade do arguido, porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta de pressupostos de objecto, de arguido. Faltando no processo o seu objecto ou o arguido o processo é inexistente. Se, porém, em lugar de inexistência ocorrer apenas a nulidade da acusação, nos termos do artº 283º, já não será caso de inadmissibilidade legal da instrução, tanto que a nulidade da acusação não é de conhecimento oficioso, tem de ser arguida».
Deste modo, quando o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente não contenha os requisitos de uma acusação, isto é, quando do mesmo não constem a indicação do agente e a narração dos factos que integram o crime pelo qual se pretende ver o arguido pronunciado, não é o mesmo admissível já que nunca poderá levar à pronúncia válida do arguido.
Nestas situações, impor-se-á a rejeição por inadmissibilidade legal, nos termos previstos no art.º 287.º, n.º 3, do C.P.P., já que não será possível o convite do assistente para aperfeiçoar o seu requerimento.
Na verdade, de acordo com o consignado no Acórdão de Fixação de Jurisprudência de nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005, in DR I Série A de 04.11.2005, «não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».
A narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança consiste na descrição dos factos necessários ao preenchimento do crime imputado, entre os quais se encontram os factos integradores do elemento subjectivo.
E, estando em causa um crime doloso, essa imputação fáctica pressupõe a alegação de todos os elementos constitutivos do dolo, designadamente o elemento intelectual (representação dos factos), o elemento volitivo (vontade de praticar os factos) e o elemento emocional (consciência de estar a agir contra o direito).
Olhando o requerimento para a abertura de instrução apresentado pela assistente constante de fls 266/276, verifica-se que o mesmo não obedece aos requisitos referidos.
Com efeito, para além de a alegação dos factos referentes à tipicidade objectiva se mostrar imperfeita e imprecisa quanto a alguns dos ilícitos criminais imputados, designadamente quanto ao alegado crime de roubo, tal requerimento é completamente omisso quanto a factos que preencham o tipo subjectivo de todos os imputados crimes, já que em nenhum dos factos alegados pela assistente se afirma que os arguidos actuaram com intenção de praticarem cada uma das suas condutas típicas, fazendo-o de forma livre, voluntária e consciente, com perfeito conhecimento de que tais condutas, que quiseram e adoptaram, eram proibidas e punidas por lei, o que leva necessariamente a concluir que não está assim factualmente expresso o elemento intelectual, volitivo e emocional do tipo subjectivo de cada um dos crimes imputados (violação de domicílio ou perturbação da vida privada, coação, sequestro e roubo, p. e p., respectivamente, pelos artºs 190.º, 154º, n.º 1, 158.º e 210.º todos do C. Penal).
Ora, imprescindível era a alegação de que os arguidos agiram com culpa quanto a cada um daqueles crimes, isto é, com consciência da ilicitude das respectivas condutas, ou seja, com conhecimento do carácter proibido e punível do comportamento típico que livremente quiseram e adoptaram.
É que, conforme se refere no Ac. do TRC de 25.02.2015, in www.dgsi.pt, «não é admissível a presunção do dolo com recurso à factualidade objectiva descrita na acusação; a lei exige a narração, ainda que sintética, dos factos - de todos os factos - que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, não se contentando, pois, com “subentendimentos” ou “factos implícitos”».
Sendo certo que, em termos probatórios, o dolo, enquanto facto interno, se deduz dos factos objectivos revelados pela conduta do agente, já no que respeita à delimitação do objecto do processo - constante da acusação, do requerimento para abertura de instrução, ou da pronúncia - mostra-se necessária a descrição de todos os factos integradores do tipo de crime imputado, entre os quais se encontra a narração factual do dolo, sob pena de nunca se mostrar preenchido o tipo de crime imputado, afastada que está a possibilidade de tais factos virem a ser posteriormente aditados (art.ºs 309.º e 359.º do C.P.P.).
E, uma vez que a decisão instrutória só pode recair sobre os factos que foram objecto da instrução, estando em causa crimes dolosos, impõe-se que, para além dos factos integradores do tipo objectivo, conste ainda do requerimento para abertura da instrução a descrição da factualidade integradora do elemento subjectivo, completando-se o quadro factual que fundamenta a aplicação aos arguidos de uma pena.
Nesse sentido veja-se o Ac. do TRC de 01.06.2011 inwww.dgsi.pt, no qual se lê: «(…)da acusação há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade - o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).
O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas - constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído na acusação.».
Isso mesmo resulta do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, de 20.11.2014, DR, 1.ª série, n.º 18, de 27.01.2015, onde foi decidido que «a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.»
Por outro lado, conforme se consignou também neste mesmo Acórdão «de forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com “recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum” (…)».
Assim, os factos integradores do elemento subjectivo dos crimes em causa nos autos (violação de domicílio ou perturbação da vida privada, coação, sequestro e roubo) tinham que constar do requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente, já que é aquele requerimento que delimita a instrução (art.º 309.º, n.º 1, do C.P.P.), sendo que, na ausência de tais factos, mostra-se a instrução inadmissível por jamais poder vir a ser proferido despacho de pronúncia válido.
No mesmo sentido, veja-se o ac. do TRC de 25.06.2014, in www.dgsi.pt, no qual se lê: «a exigência legal de o requerimento para abertura da instrução conter a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se tanto aos elementos objectivos como subjectivos do crime imputado, porquanto não existe crime/responsabilidade penal sem que uns e outros se mostrem preenchidos.»
Bem como o ac. do TRL de 07.05.2015, em cujo sumário podemos ler: «I. A estrutura acusatória do processo penal impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e precisão adequados em determinados momentos processuais entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
II. Uma instrução que peque por défice enunciativo de factos susceptíveis de conduzir á pronúncia do arguido titularia um acto inútil que a lei não poderia admitir.
III. O que significa que, a par de outros fundamentos da rejeição, que se reconduzem também a realidades de que deriva a inutilidade da instrução, se deva ter a instrução como legalmente inadmissível.»
Voltando ao caso dos autos, verifica-se que em momento algum do requerimento para abertura da instrução de fls 266/276 se faz qualquer referência à vontade dos arguidos de praticarem os factos, de forma livre e deliberada, com o sentido do correspondente desvalor, ou seja, com consciência de estarem a actuar contra o direito, sendo certo que, conforme se mostra expresso no mencionado Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, de 20.11.2014, «a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caraterizam o dolo, que o dolo do tipo, quer o dolo da culpa …, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação de todas as circunstâncias do facto, tanto as de caráter descritivo como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), atuando, assim, conscientemente contra o direito».
Igual exigência é de fazer nas situações em que o objecto do processo é fixado, não por uma acusação, mas pelo requerimento para abertura da instrução, como é o caso dos autos.
Perante a omissão de factos integradores dos ilícitos criminais em causa nos autos, considerou-se no despacho recorrido que «os escassos factos enumerados (sem prejuízo dos juízos conclusos) não integram os tipos objetivos dos ilícitos por cuja pronúncia se pugna, sendo o requerimento de todo omisso quanto à descrição de factos suscetíveis de integrar o elemento subjetivo de qualquer um dos crimes», vindo, em consequência e perante a impossibilidade de prolação de despacho de aperfeiçoamento (acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 7/2005), a indeferir o requerimento para a abertura da instrução por inadmissibilidade legal (art.º 287.º, n.º 3, do C.P.P.).
Faltando, no caso sub judice, para além do mais, a alegação dos factos integradores do elemento subjectivo dos tipos legais em causa nos autos [violação de domicílio ou perturbação da vida privada (art.º 190.º do C. Penal), coação (art.º 154.º, n.º 1, do C. Penal), sequestro (art.º 158.º do C. Penal) e roubo (art.º 210.º do C. Penal)], os exactos factos constantes do requerimento para a abertura da instrução não constituem crime por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou medida de segurança criminais.
Tratando-se de crimes dolosos e verificando-se que o requerimento para abertura da instrução não obedece à estrutura acusatória do processo, nem assegura as garantias de defesa dos arguidos, nos termos previstos nos art.ºs 283º, n.º 3, alínea b), e 287º, n.º 2, do C.P.P., sendo omisso em relação aos elementos subjectivos de tais crimes, isto é, quanto aos elementos constitutivos do dolo, concretamente no que respeita aos elementos intelectual (representação dos factos), volitivo (vontade de praticar os factos) e emocional (consciência de estar a agir contra o direito), nenhuma censura merece a decisão recorrida quando rejeitou o requerimento para a abertura da instrução por falta de indicação de factos suficientes para preenchimento dos imputados crimes, designadamente de factos integradores do elemento subjectivo de tais ilícitos criminais, sendo certo que, na ausência desses factos, a instrução se revela inútil por nunca poder conduzir a um despacho de pronúncia válido.
Improcede, pois, o recurso interposto.
2. 4. – Das Custas
Quanto à responsabilidade por custas do assistente, estabelece a alínea b) do n.º 1 do art.º 515º do C.P.P. que é devida taxa de justiça pelo assistente se o mesmo decair, total ou parcialmente, em recurso que houver interposto ou em que tenha feito oposição.
Assim, tendo decaído integralmente no presente recurso, é a assistente responsável pelo pagamento das respectivas custas, impondo-se por isso a sua condenação no pagamento daquelas, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs (art.º 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III ao mesmo anexa).
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente MM, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC (três unidades de conta) - (art.º 515.º, n.º 1, alínea b), do C.P.P. e art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P. e Tabela III ao mesmo anexa).
Notifique.
Elaborado em computador e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º, n.º 2, do C.P.P.)