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CONSTITUIÇÃO E INTERROGATÓRIO COMO ARGUIDO EM INQUÉRITO
INSTRUÇÃO CRIMINAL
VALORAÇÃO DA PROVA
Sumário
I – Face à nova redação do n.º 1 quer do artigo 58.º, quer do artigo 272.º, ambos do CPP, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, a obrigatoriedade de constituição e interrogatório como arguido no inquérito, ficou restringida na sua abrangência aos casos em que ela verdadeiramente se justificava, ou seja, àqueles em que haja suspeita fundada de que a pessoa contra quem este corre praticou o(s) ilícito(s) criminais sob investigação.
II - A ratio da lei é a de evitar a constituição e o interrogatório como arguido nos casos de queixa manifestamente infundada, em que o Ministério Público desde logo vislumbra a possibilidade de arquivar o inquérito e vem a arquivá-lo.
III – Impõe-se, por isso, uma interpretação atualizada e restritiva da jurisprudência fixada no AUJ n.º 1/2006, no sentido de que “A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre e em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º2, alínea d) do Código de Processo Penal”
IV - O juízo comprovativo cometido ao juiz de instrução não se confunde com o julgamento da causa; a aferição dos indícios faz-se em função das probabilidades de o feito, uma vez levado a julgamento, vir a possibilitar uma decisão condenatória. Por isso, o grau de exigência quanto à consistência e verosimilhança dos indícios é menor do que aquele que é imposto ao juiz do julgamento, sem, no entanto, se prescindir de um juízo objetivo e apoiado no acervo probatório recolhido nos autos, lido conjugadamente e apreciado à luz das regras da experiência, sem que hajam subsistido dúvidas razoáveis e irremovíveis, uma vez que o princípio in dubio pro reo também é aplicável na fase da instrução
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1. Relatório
No termo do inquérito que, com o nº 232/13.1GAFZZ, correu termos nos serviços do MºPº de Santarém, foi proferido despacho no qual foi determinado o arquivamento dos autos, nos termos do art. 277º nº 2 do C.P.P. em virtude de se ter considerado não se encontrar indiciada a prática dos crimes de furto e dano, ps. e ps., respectivamente, pelos arts. 203º nº 1 e 212º nº 1 do C. Penal que o queixoso AV havia imputado ao denunciado AJ, este como aquele devidamente identificados nos autos.
Discordando desse despacho, o queixoso constituiu-se assistente e requereu a abertura da instrução após o que, realizada esta, foi proferido despacho que não pronunciou o arguido por considerar não ser viável a sua pronúncia por qualquer dos ilícitos criminais que lhe vinham imputados.
Inconformado com a decisão instrutória, dela interpôs recurso o assistente, pretendendo a sua revogação e substituição por outra que pronuncie o arguido por aquele crime, para o que formulou as seguintes conclusões:
1) O presente recurso tem como objecto a decisão de não pronúncia do arguido AJ, pela prática dos crimes de furto e dano p. e p. pelos artigos 212 e 203º do Código Penal cujos factos vêm imputados e descritos no requerimento de abertura de instrução.
2) A decisão de arquivamento, na fase de inquérito foi proferida com fundamento em que o pai, denunciado nos presentes autos, entretanto falecido, é que teria feito o negócio e o aqui arguido AJ “teria se limitado a cumprir as instruções dadas pelo seu pai”, tendo assim existido um engano e por essa razão as árvores do assistente teriam sido cortadas.
3) A Dignmª Magistrada do Ministério Público em inquérito concluiu assim, pela inexistência de crime, dada a ausência de dolo especifico de intenção de apropriação de coisa alheia, bem como entendeu que o arguido AJ não tinha agido de forma negligente, nem praticado qualquer crime de dano.
4) Não conformado o assistente requereu a abertura de instrução e no decorrer das diversas sessões de debate instrutório foi sua convicção ter ficado clara a suficiência de indícios pela prática dos crimes de dano e furto pelo arguido AJ.
5) O tribunal “a quo”, não obstante toda a factualidade dada por suficientemente indiciada, entendeu proferir decisão de não pronúncia que em nosso modesto entender, padece de demasiados erros de apreciação, análise e valoração da prova, bem como da aplicação da lei e do direito, com vícios na decisão que se mostram relevantes e essenciais para a procedência do presente recurso e a consequente revogação da decisão por uma outra, a pronunciar o aqui arguido.
6) A decisão fundamenta a prova dos factos com o “depoimento do assistente”, sendo que o assistente jamais depôs na instrução,erro notório que para os devidos efeitos aqui se invoca, com todas as consequências legais, impugnando-se nesta parte aquela decisão, nos termos e de acordo com o artigo 410º do CPP;
7) O tribunal refere que os factos provados e não provados têm por base as declarações do arguido que, nestes autos inexistem. No requerimento de instrução (artigos 16º e 46º), foi alegado o incumprimento do artigo 58º do CPP, pois que o denunciado na fase de inquérito nunca foi constituído arguido.
8) E, em fase de instrução, apesar do tribunal “ a quo” ter ordenado a constituição formal do arguido pelo OPC (fls. 118), não foi cumprido o artigo 141º do CPP, pois que o arguido foi interrogado pela GNR, interrogatório cuja nulidade foi decretada por despacho a fls. dos autos, inexistindo nos autos quaisquer declarações ou depoimento do arguido válidos que assim possam fundamentar legalmente a decisão aqui recorrida.
9) O tribunal “a quo” ao fundamentar a decisão tendo por base provas/declarações nulas, inadmissíveis ou inexistentes, violou os artigos 124º, 125º do CPP.
10) Dos factos suficientemente indiciados resulta ainda da decisão que, “tentaram chegar a acordo, tendo acordado um valor de pagamento de 750,00 €”. Tal prova não foi feita, o arguido nem sequer foi ouvido, as testemunhas A. e JA (fls. dos autos) limitaram-se a dizer ao tribunal que, os arguidos falavam em negociar com o assistente, sendo certo, tal como ficou demonstrado em inquérito (cfr. despacho de arquivamento) que o assistente quando se deslocou ao local para confrontar o arguido e o pai, ordenando que parassem com o corte das árvores, estes continuavam a cortar, respondendo “deixo-vos uma carrada de lenha para o Inverno ou dou-vos 80,00 €”, factos que só por si e conjugado com a experiência comum contraria a interpretação e conclusão do tribunal de que “o corte da madeira tenha ocorrido a instruções do pai do arguido e sem que este arguido tenha tido conhecimento dos limites e até onde estava autorizado a cortar. “
11) Os factos não indiciados, com o devido respeito, nem sequer foram colocados em discussão na instrução. O arguido jamais invocou aquela factualidade (ausência de interrogatório) e nenhuma testemunha veio invocar tal factualidade, pelo contrário, todas foram unânimes em declarar que os arguidos sabiam que estavam a cortar madeira que não tinham comprado à testemunha A. que já havia mostrado os limites do terreno, bem como a testemunha JA e, para além da demarcação existente e visível no terreno (cfr. fotografias).
12) O tribunal errou na valoração da prova e na aplicação do direito quando refere que o arguido AJ não estava presente quando a testemunha A. foi mostrar os limites da propriedade “e, por isso não sabemos se as estremas que o pai lhe indicou estavam correctas”.
13) Os limites do terreno não só foram mostrados pela testemunha A, dias antes do corte, mas também por JA (declarações fls. 55), no dia do corte, tendo estas infirmado a existência dos marcos e visíveis - cfr. fotografias juntas –
14) Toda a factualidade e documentos, por si só e conjugados relevam de forma clara e suficiente que o arguido actuavam em conjunto com o seu pai, bem sabendo quais os limites do terreno e de forma a conseguir invadir, danificar, cortar e levar, como levou, a madeira cortada, que bem sabia não ser sua.
15) Pelo que, não se pode afirmar que o arguido estava em erro, quando no próprio dia o mesmo é confrontado pelo assistente para parar de cortar, e ele não pára, dias depois, sem consentimento ou conhecimento do assistente, manda carregar e levar a madeira cortada;
16) O o assistente dando-se conta, de imediato, chama a GNR que se deslocou ao estaleiro afim de proceder à identificação do transportador, diligência que, na verdade parece não ter sido reduzida a auto de ocorrência e por isso não ter sido possível juntar aos autos (cfr. fls e depoimento da agente da GNR).
17) O tribunal “ a quo” ao proferir esta decisão, como proferiu errou, violando e omitindo as regras legais de prova previstas nos artigos 124º, 125º e 141º do CPP, resultando-nos da decisão recorrida vícios, por si só e conjugados com as regras de experiência comum resultam numa insuficiência para a decisão da matéria de facto, com contradições e erros notórios e insanáveis, nos termos e de acordo com o artigo 410º do CPP.
18) Pelo que, a presente decisão terá de ser revogada por outra de pronúncia, dado que se mostram terem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificados os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena e pelos factos ora descritos no requerimento de instrução da prática dos crimes de dano e furto, nos termos e de acordo com o artigo 308º nº 1 e artigos 203º e 212 do CPP.
19) Relativamente ao direito, o tribunal “ a quo” quanto ao crime de dano “corte de árvores”, decidiu que, de facto o pai e arguido actuaram em conjunto e destruíram árvores alheias, no entanto entendeu não pronunciar o arguido porque não se provou que o arguido soubesse que as árvores eram do assistente e que não faziam parte do lote vendido ao pai.
20) Sem prejuízo do que já foi dito acima, discordamos, a prova acima, não foi abalada ou posto em causa pelo arguido ou qualquer outra testemunha e que leve a tal conclusão pelo tribunal.
21) O arguido sabia os limites do terreno e tem o dever de diligenciar por essa delimitação, ele foi confrontado no próprio acto de corte pelo assistente que lhe ordenou que parasse de cortar as árvores que eram suas e ele não o fez, respondendo ainda “agora já está, já está”, “deixo-lhe uma carrada de lenha para o Inverno ou 80,00 €” cfr. despacho de arquivamento do inquérito.
22) Acresce a tudo isto que, dias depois, que o assistente apercebe-se que a sua madeira está a ser carregada pela testemunha NM e de imediato chamou a GNR que procedeu à identificação de toda esta situação.
23) Estes são os factos carreados, nada mais foi dito ou alegado, pelo que tais factos conjugados entre si só podem indiciar suficientemente a prática dos crimes, cuja discussão ou defesa a existir terá de acontecer em audiência de julgamento.
24) Relativamente à subtracção das árvores do assistente o tribunal “ a quo” fundamenta a inexistência do crime de furto, por considerar que não existe coisa móvel alheia, fundamentando que entre as partes (assistente e arguido) existiu um contrato de compra e venda.
25) Dos factos não resulta ter existido qualquer contrato de compra e venda, o arguido limitou-se a oferecer ao assistente um valor pela madeira, já depois de cortada, que não passou disso mesmo, ofertas e a promessa de que passaria no dia seguinte para fazerem o negócio. A verdade é que nada disso sucedeu: o assistente nunca entregou a madeira ao arguido e o arguido nunca pagou nada ao assistente, tendo sido, a madeira carregada e levada pelo arguido AJ, dias depois, na ausência e sem o conhecimento e autorização do assistente, bem sabendo o arguido que aquela madeira não era sua, mas do assistente e que por ela nada havia acordado ou pago !!!
26) No presente caso não se aplica o disposto no artigo 879º do CC, pois que não existiu acordo de vontades para a transmissão de propriedade, o assistente jamais acordou na entrega ou venda da madeira cortada que, sem o seu consentimento foi, dias depois, levada pelo arguido.
27) Termos em que pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente a decisão recorrida ser revogada por outra que pronuncie o arguido pela prática dos crimes de danos e furto p. e p. pelos artigos 203 e 212 do CPP
28) Sendo assim feita a devida e acostumada JUSTIÇA
O recurso foi admitido.
Apenas foi apresentada resposta pelo MºPº, defendendo a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida, e concluindo como segue:
l - O Mmo. Juiz de Instrução não pronunciou o arguido pela prática dos crimes de dano e de furto que lhe são imputados no RAI do assistente porque não foram recolhidos indícios suficientes da verificação de tais crimes;
2 - A falta de indícios suficientes assentou na apreciação dos meios de prova colididos em inquérito e na fase de instrução, concatenados entre si e apreciados à luz das regras da lógica e da experiência comum;
3 - Apreciando globalmente todos os indícios coligidos e mesmo reconhecendo que o depoimento do arguido prestado a fls. 58 v° dos autos não poderá ser usado como meio de prova, afigura-se-nos que subsiste a dúvida razoável quanto à verificação dos crimes de dano e de furto, o que, em respeito pelo princípio in dubio pro reo, deverá conduzir a uma decisão de não pronúncia;
4 - Pelo exposto, bem andou o Mmo. Juiz de Instrução Criminal do tribunal a quo ao proferir decisão de não pronúncia quanto aos crimes imputados no RAI do assistente, não merecendo, por isso, censura o sentido do despacho recorrido.
Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no qual, manifestando a sua concordância com a posição do MºPº na 1ª instância e a sua adesão aos fundamentos de facto e de direito enunciados e constantes da decisão recorrida, sem que se vislumbre o quer que seja de relevante e decisivo que a consinta colocar em crise, se pronunciou no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., sem que tivesse sido apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.
Cumpre decidir.
2. Fundamentação
Revestem-se de interesse para a decisão do recurso as seguintes ocorrências processuais:
- o recorrente apresentou queixa contra AJ, alegando, em síntese, que o denunciado, ao proceder ao corte dos pinheiros existentes numa propriedade confinante com a sua e que lhe haviam sido vendidos pelo respectivo proprietário, tinha também cortado vários pinheiros, eucaliptos e 3 castanheiros no seu terreno e que, contactado por ele, tinha acordado efectuar o pagamento dessas árvores, sem que o tenha feito;
- posteriormente veio informar que o corte das árvores tinha sido levado a cabo não só pelo denunciado, mas também pelo pai deste, pretendendo procedimento criminal contra ambos, juntando ainda vários documentos, nomeadamente certidão da CRP e várias fotografias do local, nas quais são visíveis marcos ali existentes e os cortes das árvores;
- ouvido o queixoso, confirmou a queixa, tendo referido que, na data em que teve conhecimento dos factos, se deslocou ao local, tendo verificado que ali se encontrava um indivíduo que lhe disse que o patrão o tinha mandado cortar tudo; que os denunciados chegaram ao local e, ao questioná-los sobre o motivo por estarem a cortar as suas árvores, um dos denunciados (o pai do AJ) lhe disse “Já está… deixo-vos uma carrada de lenha para o inverno ou dou 80 €”, ao que o filho acrescentou “agora já não há nada a fazer, já estão no chão”, tendo abandonado o local por não ter aceite tal proposta; que, ao ter conhecimento de que, dias depois, os denunciados se encontravam a carregar a madeira, foi à GNR que, a sua solicitação, deslocou ao local, tendo feito diligências para identificar os autores do crime (fls. 53-54);
- foram inquiridas as testemunhas indicadas: JA, referiu que tinha sido A. quem tinha vendido pinheiros e castanheiros aos denunciados e que se deslocou com estes ao local, onde também tem uma propriedade, a pedido deles, para lhes indicar as extremas das propriedades, tendo constatado que ali já se encontravam cortadas várias árvores do queixoso, facto do qual o informou, referindo que tal se teria devido a engano e que eles desejavam entrar em negociações; AB, que referiu conhecer bem o local e as respectivas extremas dado ter lá estado cerca de um mês antes a colocar herbicida; tendo-se ali se deslocado com o queixoso e vendo que um indivíduo estava a cortar árvores que lhe pertenciam, o queixoso pediu-lhe que o não fizesse, pedido que ele ignorou, dizendo que o patrão o tinha mandado cortar tudo; que não viu no local nenhum dos denunciados; e que, sendo madeireiro de profissão, estimou em 700€ os prejuízos decorrentes dos danos que viu; NR, que carregou e transportou pinheiros, a pedido do denunciado já falecido e encontrando-se também presente o denunciado AJ, desconhecendo se alguma da madeira que carregou era do queixoso, pois se limitou a carregar o que lhe foi indicado, e tendo ficado no local madeira (pinheiros e castanheiros) por carregar (fls. 55-57);
- foi também ouvido, como testemunha, o denunciado AJ, que referiu que o seu pai, JS, também denunciado e entretanto falecido, tinha comprado pinheiros e castanheiros a um tal A. e que, quando ele procedia ao corte dessas árvores, apercebeu-se que existiam no local marcos para além dos que haviam sido indicados pelo vendedor, tendo logo parado com o corte e ido ambos falar com a testemunha JA para saberem quem era o proprietário das árvores abatidas, tendo-lhes este dito que era o denunciante e que ele próprio falava com ele; que, nesse mesmo dia, o denunciante e a esposa dele estiveram no local do corte, constatando que efectivamente tinham sido abatidos alguns pinheiros e dois castanheiros de sua propriedade, tendo então negociado com o seu pai e acordado o valor de 750€ como pagamento daquelas árvores sem que tenha sido fixada data limite para esse pagamento; que cerca de uma semana depois, foi com o seu pai à residência do denunciante para fazerem o pagamento, o qual a esposa do denunciante se recusou a receber, dizendo que já havia sido apresentada queixa-crime; que tal negócio foi feito pelo seu pai, tendo-se ele limitado a cumprir as indicações que por este lhe foram dadas; que a madeira cortada não foi levantada do local (fls. 58);
- finalmente, foi inquirido A., que referiu ter vendidos uns pinheiros ao denunciado já falecido, seguindo o negócio do mesmo o filho dele; que só autorizou a cortar o que era seu e não o dos outros, mas não presenciou os factos, deles só tendo tido conhecimento por um vizinho (fls. 70);
- de seguida, o MºP proferiu despacho no qual, considerando que, independentemente das dúvidas que se possam levantar acerca da conduta do denunciado JS, a sua responsabilidade criminal se encontra extinta dado ter falecido, e que, quanto ao denunciado AJ, não foram recolhidos indícios da prática de crime, seja do de furto seja do de dano, uma vez que da prova carreada para os autos resulta que ele se limitou a cumprir ordens que lhe foram transmitidas, devendo qualquer reivindicação pelos danos ser dirimida em sede cível, determinou o arquivamento dos autos ao abrigo do disposto nos nºs 1 e 2 do art. 277º do C.P.P. ( fls. 71-74 );
- dissentindo do entendimento expresso nesse despacho, o recorrente constituiu-se como assistente e requereu a abertura da instrução, indicando várias diligências que pretendia ver realizadas e pugnando para que o denunciado AJ fosse pronunciado pela prática, em co-autoria e em concurso real, dos crimes de furto e de dano, ps. ps., respectivamente, pelos arts. 203º e 212º do C. Penal, com base nos factos ali descritos e que a seguir se transcrevem:
-23-
O ofendido é dono e legitimo proprietário do prédio rústico sito em Lameira, composto de pinhal, eucaliptos e castanheiros, com a área de 1800 m2, inscrito na matriz sob o artigo 91 secção D da freguesia de Nossa Senhora do pranto, concelho de Ferreira do Zêzere e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número --- da freguesia de Domes, concelho de Ferreira do Zêzere e cfr. Documentos juntos aos autos.
-24-
O referido prédio confina com o prédio rústico inscrito sob o artigo 90 da mesma secção, freguesia e concelho, propriedade de A. e cfr. doc. junto aos autos
-25-
Os referidos prédios encontra-se devidamente demarcados com marcos de cimento.
-26-
Sendo que na linha de estrema entre o prédio do ofendido e de A encontram-se a definir aquela linha divisória dois marcos apostos a norte e a sul - cfr. fotografias Docs. 1 e 5 a fls. dos presentes autos.
-27-
O denunciado AJ exerce a actividade industrial de madeireiro e venda de lenhas, sendo auxiliado pelo seu pai JS, entretanto falecido.
-23-
Tendo sido no âmbito desta actividade comercial que o denunciado AJ, por intermédio do seu pai, comprou a A diversos pinheiros e eucaliptos, sua propriedade, situados no prédio confinante com o do ofendido.
-29-
Sucede que, no dia 08 de Outubro de 2013 cerca das 15 horas, o ofendido teve conhecimento através de um seu vizinho JA, que estavam a cortar vários pinheiros, eucaliptos e castanheiros na sua propriedade.
-30-
De imediato se deslocou ao local, acompanhado da sua esposa, MC e aí chegados verificaram que estavam a cortar com uma moto serra os castanheiros, eucaliptos e pinheiros por um indivíduo de raça ucraniana.
-31-
Tendo o ofendido questionado o indivíduo sobre o corte das suas árvores, ordenando que parasse de cortar as árvores de imediato, o que este não acedeu dizendo "o patrão mandou cortar tudo",
-32-
Entretanto chegou ao local os denunciados JS e AJ e o ofendido confrontou-os com esta situação, ordenando que parassem de cortar as árvores, sua propriedade.
-33-
O que não fizeram, respondendo o denunciado JS "já está, já está, deixo-vos uma carrada de lenha para o Inverno ou dou vos 80,00 €", enquanto AJ reforçou a posição do seu pai dizendo: "Agora não há nada a fazer já estão no chão..."
-34-
Os denunciados abandonaram o local, deixando o prédio totalmente devastado e cfr. fotografias que aqui se juntam.
-35-
Tendo o ofendido constatado o corte de cerca de 27 pinheiros de bom porte, em valor não inferior de 750,00 € (setecentos e cinquenta euros),
-36-
O corte de 2 castanheiros com cerca de 15 anos e em valor não inferior de 1000,00 € e,
-37-
Diversos eucaliptos em valor não inferior a 600,00 €.
-38-
Dias depois, designadamente, em 12 de Outubro de 2013 o ofendido viu a sua madeira a ser carregada e transportada num camião
-39-
Tendo de imediato o ofendido chamado a GNR que ali se deslocou ao local, verificando a guia de transporte e que a madeira se era transportada em nome de AJ, tendo aí lavrado o respectivo auto de ocorrência.
-40-
Os denunciados agiram sempre de comum acordo e em conjugação de esforços, com o propósito concretizado de invadirem, destruir e danificar a propriedade do ofendido, como forma de se apoderarem da madeira das árvores cortadas.
-41-
Pois que, os denunciados sabiam bem que aquela propriedade não era de A. e por isso não estavam autorizados aí a entrar, destruindo-a e cortando as diversas árvores existentes.
-42-
Actuando sempre ambos contra o consentimento e a vontade do ofendido, dono legítimo daquele prédio,
-43-
Querendo e conseguindo com tal conduta criar estragos e devassa da propriedade do ofendido, avaliados em valor não inferior a 2350,00 € (dois mil trezentos e cinquenta euros),
-44-
Bem como quiseram e conseguiram-se apropriar ilegitimamente da madeira, propriedade do aqui ofendido, fazendo a sua e dela retirar os respectivos proventos económicos.
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Os denunciados agiram em livre, deliberada e conscientemente, incorrendo na prática, como co-autores materiais dos crimes de dano e furto, em concurso real e na forma consumada, p. e p. pelos artigos 203º e 212º do Código Penal.
- antes de remeter os autos à distribuição, o MºPº pronunciou-se acerca da omissão do disposto no art. 58º do C.P.P, invocada pelo recorrente, referindo que, em face da conjugação do art. 58º nº 1 al. a) com o art. 272º nº 1 do C.P.P., não tem de ser constituída como arguida e interrogada como tal a pessoa determinada contra quem corre inquérito se não houver suspeita fundada da prática de crime, sendo por isso, porque em seu entender não existe tal suspeita fundada no caso, que o denunciado AJ não foi constituído como arguido ( fls. 113 );
- declarada aberta a instrução, foi determinado que se solicitasse ao OPC competente a constituição formal do denunciado AJ como arguido, com prestação de TIR ( fls. 118 ), o que veio a ser cumprido fls. 131 e 134 );
- porque o OPC, sem que tal lhe tivesse sido solicitado, também procedeu ao seu interrogatório (no qual disse não desejar prestar declarações - fls. 133 ), foi tal interrogatório declarado nulo ( fls. 137 );
- indeferida a reinquirição das testemunhas já ouvidas em inquérito, foi solicitada informação à GNR de Ferreira do Zêzere sobre a eventual existência de algum expediente relativo a uma deslocação de agentes desse posto ao local em conexão com a denúncia de fls. 3 e 5 e a sua junção, em caso afirmativo, bem como designada data para inquirição das restantes testemunhas indicadas pelo recorrente ( fls. 137-138 );
- em resposta ao solicitado, aquela entidade policial veio informar que não foi elaborado qualquer auto de ocorrência ( fls. 161 );
- foram inquiridas as testemunhas VL, cabo da GNR de Ferreira do Zêzere e MC, esposa do recorrente, tendo a primeira referido que apenas se deslocou ao local com um colega e os proprietários do terreno, tendo ali visto árvores cortadas e um camião com lenha já fora do mesmo, não tendo visto ninguém a cortar árvores ou a carregar a madeira, enquanto que a segunda referiu que se deslocaram ao local, avisados pela testemunha JA, e que ali viram um indivíduo a cortar árvores e que continuou a fazê-lo apesar de lhe terem dito para parar, respondendo que tinha sido mandado por um primo, acrescentando que houve negociações e que chegaram a acordo, mas o dinheiro nunca apareceu, e dando a entender que o A., que se propôs pagar metade do valor falado, pode ter vendido o que não era seu, uma vez que terá dito para cortarem até à barreira, abrangendo árvores que pertenciam ao queixoso, e sem saber esclarecer se o corte dessas árvores se deveu a engano ( fls. 156-157, encontrando-se gravados os depoimentos );
- em face do depoimento prestado pela testemunha MC, foi determinada a reinquirição da testemunha A, o qual referiu, no essencial, ter vendido os pinheiros ao denunciado falecido, tendo sido a este que mostrou as estremas do seu terreno, onde existem marcos visíveis; não assistiu ao corte das árvores, tendo-lhe os denunciados dito que se enganaram; foi feito um acordo para evitar o tribunal, mas não foi cumprido (fls. 179, encontrando-se gravado o depoimento);
- em seguida, foi designado e realizado debate instrutório, após o qual foi proferida a decisão instrutória objecto de recurso, cujo teor é o seguinte:
I - Síntese da tramitação processual:
Iniciaram os presentes autos com o auto de denúncia de fls. 3 a 5, no qual AV imputa a AJ, factos susceptíveis de integrar a prática dos crimes de furto e dano, relativos ao corte de árvores num seu terreno.
Findo o inquérito o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, nos termos que relevam de fls. 71 a 74, entendendo ter-se produzido prova bastante da inexistência de crime, porquanto o referido corte de árvores terá ocorrido por erro do arguido.
O ofendido constituiu-se assistente e requereu a abertura da instrução alegando em síntese que:
a) É proprietário de um terreno (melhor id. no RAI), composto de pinhal, eucaliptos e castanheiros;
b) No dia 8 de Outubro de 2013 pessoas de identidade não apurada mas actuando a mando do arguido AJ e seu falecido pai, JS, cortaram diversas árvores nesse mesmo terreno;
c) E no dia 12 de Outubro de 2013 pessoa actuando a mando de AJ transportou a madeira resultante do corte dessas árvores para outro lugar;
d) Agiram o arguido AJ e seu falecido pai em comum acordo e em conjugação de esforços, com o propósito de destruir a propriedade do ofendido e se apoderarem da madeira resultante das árvores cortadas;
e) Sabendo que a propriedade referida em l. e a madeira aí existente não lhes pertencia e que não estavam autorizados a cortá-la;
f) Tendo-se apoderado de madeira no valor total de € 2.350,00;
g) Agindo de forma livre, deliberada e consciente, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.
Pugna pela pronúncia do arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, dos crimes de furto, p. e p. pelo artigo 203°, do CPenal e dano, p. e p. pelo artigo 212° do mesmo Código.
Arrola testemunhas e requer a solicitação de prova documental.
Produzida a prova, teve lugar debate instrutório, com observância das formalidades legais.
Não há nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da instrução.
* II - Da fase processual da instrução; critériosde decisão:
A presente fase processual visa, nos termos do artigo 286°, n.° l Código de Processo Penal “a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter a causa ou não a julgamento.”
O critério determinante de tal decisão extrai-se do artigo 283°, n.° l, do mesmo código, norma que estabelece que a decisão de deduzir acusação é tomada se dos autos resultarem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.
O n.° 2 do citado artigo determina então que os indícios se consideram suficientes “sempre que deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.”
Deve então a decisão instrutória ser determinada pelos mesmos critérios que, nos termos da lei, determinam a decisão de acusar ou arquivar os autos, fazendo o julgador um juízo de prognose face à prova constante dos autos de inquérito e aos seus efeitos em audiência de julgamento, ponderando juntamente com esta, a prova que foi produzida no âmbito da instrução, para determinar quais as probabilidades de um eventual julgamento resultar na aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. * III-Dos factos:
Em face da prova produzida no inquérito e na instrução, o Tribunal julga suficientemente indiciados os seguintes factos;
1. O assistente é dono e legítimo proprietário de prédio rústico sito em Lameira, composto de pinhal, eucaliptos e castanheiros, com a área de 1800 m2, inscrito na matriz sob o artigo ---, secção D, da freguesia de Nossa Senhora do Pranto, Concelho de Ferreira do Zêzere e descrito na CRPredial sob o n.° --- da freguesia de Dornes, Concelho de Ferreira do Zêzere;
2. O prédio referido em 1. confina com um outro pertença de A.;
3. A extrema que delimita ambos os prédios está assinalada por dois marcos de cimento aí implantados;
4. O arguido exercia em Outubro de 2013 a actividade de madeireiro, em conjunto com o seu falecido JS;
5.Em data não concretamente apurada, mas anterior a 8 de Outubro de 2013, JS acordou com A. a venda de diversas árvores existentes na propriedade referida em 2.;
6. No dia 8 de Outubro de 2013, pessoas de identidade concretamente não apurada mas actuando a mando do arguido AJ e seu pai JS, cortaram diversas árvores no terreno referido em 1., nomeadamente 27 pinheiros, 2 castanheiros e eucaliptos, de valor total não inferior a€ 750,00;
7. Nesse mesmo dia o arguido e o seu pai foram confrontados pelo assistente com esta situação e tentaram chegar a acordo, tendo acordado que o arguido e seu pai pagariam ao assistente o valor de € 750,00 como pagamento das árvores cortadas;
8. Como o arguido e o seu pai não procederam ao pagamento do montante acordado, o assistente decidiu apresentar a queixa que deu origem a estes autos;
9. O arguido e seu pai solicitaram a NR que transportasse pelo menos os pinheiros cortados ao assistente para outro local, tendo feito sua a madeira daí resultante.
Não se indiciaram outros factos relevantes para a decisão, nomeadamente que:
a) O arguido AJ soubesse, aquando do corte das árvores referido em 6., que estas não tivessem sido vendidas ao seu pai e que não tinha permissão para as cortar;
b) O arguido AJ tivesse agido com intenção de se apropriar ilegitimamente da madeira que fez transportar nos termos referidos em 9.;
c) Que o arguido AJ tenha agido consciente de que praticava qualquer acto ilícito. * Motivação de facto:
A motivação do Tribunal resultou do conjunto da prova produzida em inquérito e em instrução, analisada de forma crítica e em conjunto com as regras da experiência comum.
Os factos referidos em 1. a 3. resultam dos documentos juntos aos autos, nomeadamente a fls. 30 a 33 (cadastro e registo predial), bem como a fls. 34 e 35 (fotografias do terreno e dos marcos) em conjunto com as declarações do assistente e de A, ambos confirmando que esses marcos delimitam os dois terrenos.
Os factos referidos em 4. a 6. resultam do depoimento não só do assistente, mas também do próprio arguido, ouvido no inquérito a fls. 58 e v°, bem como das testemunhas JA (fls. 55), AB (fls. 56), e A (ouvido a fls. 70 e em instrução).
Quanto ao facto referido em 7., este é demonstrado não só pelas declarações do próprio arguido, mas também corroborado pelas declarações de A. e JA. Das declarações destas testemunhas resulta pois que após os factos, o arguido e seu pai chegaram a acordo com o assistente no valor de € 750,00 pela madeira em causa.
De notar que as testemunhas em causa não souberam indicar o valor acordado, sabendo apenas que ocorreram negociações e que foi obtido acordo.
No entanto, o valor indicado pelo arguido afigura-se-nos verosímil, até porque a testemunha AB, ouvida a fls. 56, afirma ser madeireiro e estimou o valor do “prejuízo” causado ao assistente em € 700,00.
Refere também a testemunha A que a queixa foi motivada porque o valor acordado não foi pago.
O facto provado em 9. resulta das declarações de NR, ouvido a fls. 57.
Quanto ao facto não provado referido em a), sobre este não foi produzida prova que convencesse o Tribunal.
De facto, a testemunha A refere que quando contratou com o pai do arguido a venda da sua madeira lhe indicou as estremas correctas, por referência aos marcos visíveis nas fotografias juntas aos autos.
No entanto, esclareceu também que nessa altura o próprio arguido não estava presente, pelo que se nos afigura possível que o corte de madeira tenha ocorrido a instruções do pai do arguido sem que este - arguido - tenha tido conhecimento dos limites até onde estava realmente autorizado a cortar.
E nem os marcos existentes no terreno lhe poderiam dizer nada. De facto, mesmo que esses marcos estivessem perfeitamente visíveis (o que num terreno composto de árvores e mato nem sempre ocorre) o facto é que o arguido poderia ter recebido instruções erradas do seu pai (dolosa ou negligentemente determinado) e ter julgado que podia cortar para lá de tais marcos.
Já quanto à apropriação propriamente dita das árvores, ou seja ao seu transporte para fora daquele local, esta ocorre na sequência de um facto que o assistente propositadamente ocultou da sua queixa. Nomeadamente o facto de já ter acordado com o arguido e seu pai um preço para a madeira cortada.
Ora se essa venda já estava “apalavrada”, parece pois duvidoso que a remoção da madeira por parte do arguido e seu pai possa considerar-se como tendo dolo de apropriação ilegítima.
* IV - O Direito:
O arguido vem acusado da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, dos crimes de furto, p. e p. pelo artigo 203°, do CPenal e dano, p. e p. pelo artigo 212° do mesmo Código.
O art.° 203.°, n.° l, do Código Penal estatui que “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Já o artigo 212°, n.° l, desse diploma estatui que “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.
Ambos os crimes são dolosos - artigo 13° do CPenal - pois não está legalmente prevista a sua comissão por negligência. Exigindo-se assim por um lado o dolo genérico e, quando ao crime de furto, o dolo específico traduzido na “ilegítima intenção de apropriação”.
Abordando os factos cronologicamente, diremos pois que existem dois momentos.
Num primeiro momento ocorre o corte das árvores, susceptível de integrar o crime de dano.
Quanto a este crime, demonstrou-se de facto que o arguido em conjunto com o seu pai destruiu árvores alheias. No entanto, não se demonstrou que o arguido soubesse que essas árvores eram do assistente e não faziam parte do “lote” vendido ao seu pai e que portanto não tinha permissão para as cortar.
Agiu assim convicto que tinha permissão de quem de direito e que a sua conduta não era ilícita, facto que exclui o seu dolo, nos termos dos artigos 16°, n.° 2 e 31°, n.° 2, ai. d), do CPenal.
O segundo momento é o da “subtracção” das árvores propriamente dita e este ocorre já após o arguido ter tido conhecimento de que a madeira que tinha cortado era do assistente.
Este facto poderia, em tese, configurar a prática de um crime de furto.
No entanto devemos considerar que o furto só ocorre se a subtracção incidir sobre “coisa móvel alheia”.
O conceito de coisa alheia deve ser encontrado com recurso às regras que regulam a propriedade e os contratos susceptíveis de a transmitir.
Dúvidas não restam que as árvores em causa, no momento em que foram cortadas e logo após o corte, eram propriedade do assistente, sendo frutos naturais do seu terreno na acepção do artigo 212°, n.°s l e 2 do Código Civil.
Sucede que após o corte o arguido e o seu pai acordaram verbalmente com o assistente no preço de € 750,00 para a madeira cortada.
Por outras palavras, o assistente vendeu ao arguido e seu pai a madeira cortada pelo preço de € 750,00, celebrando-se um contrato de compra e venda previsto no artigo 874.° do código civil e definido como “o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.”.
Nos termos do artigo 879.° do mesmo código “A compra e venda tem como efeitos essenciais:
a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;
b) A obrigação de entregar a coisa;
c) A obrigação de pagar o preço.”
Temos pois que o contrato de compra e venda transmite a propriedade da coisa vendida independentemente do pagamento prévio do preço.
Tendo o arguido e seu pai removido a madeira após terem acordado a sua compra, não podemos afirmar que tenham subtraído coisa alheia.
O facto de não terem pago o preço em causa pode significar uma de duas coisas:
a) ou limitaram-se a não cumprir um contrato, o que é ilícito meramente civil e sem relevância criminal;
b) ou nunca tiveram intenção de pagar, podendo em tese, ter cometido um crime de burla que não é de modo algum objecto deste processo.
De qualquer modo afigura-se-nos que tendo em conta a factualidade apurada, não se nos afigura de todo viável a pronúncia do arguido por qualquer dos crimes que lhe vêm imputados.
* V - Decisão:
Nestes termos e com os fundamentos expostos, não pronuncio o arguido AJ, pela prática dos crimes de furto e dano que lhe vêm imputados no requerimento de abertura de instrução.
Custas a suportar pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.
Notifique e, oportunamente, arquive.
3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso são as seguintes:
- erro notório na fundamentação, violação dos arts. 124º e 125º do C.P.P. e incumprimento do disposto no art. 141º do mesmo diploma legal;
- indiciação suficiente para submeter o arguido/recorrido AJ a julgamento pelos factos integradores dos crimes de furto e dano cuja prática lhe foi imputada pelo assistente/recorrente no RAI.
Questão prévia
Antes de entrarmos na apreciação do recurso, há que assinalar que ao despacho recorrido evidencia um lapso manifesto, no segmento em que se enunciam os factos relevantes para a decisão que foram considerados como não indiciados, já que nas 3 alíneas em que os mesmos foram repartidos se alude ao “arguido AS”, sendo evidente que se pretendeu referir o arguido AJ, seja porque não há qualquer alusão nos autos a um arguido com aquele nome, seja porque os dois únicos denunciados foram precisamente AJ e o seu falecido pai, JS, seja porque A. é o primeiro nome do assistente, o que pode explicar a confusão entre o nome deste e o do daquele arguido.
Assim, e ao abrigo do disposto no art. 380º do C.P.P., há que proceder à devida correcção, de modo a que, em cada uma daquelas alíneas, a), b) e c), onde consta “AS” passe a constar “AJ”, o que ora se determina.
3.1. O recorrente, invocando o art. 410º do C.P.P.[2], considera que o despacho recorrido enferma de erro notório ao fundamentar a prova dos factos com o “depoimento do assistente” quando este não depôs na instrução. Assim como, ao referir como suporte dos factos provados e não provados “as declarações do arguido” quando nos autos não existem quaisquer declarações válidas que por ele hajam sido prestadas, na medida em que na fase de inquérito o mesmo nunca foi constituído arguido, não tendo sido cumprido o disposto no art. 58º tal como apontou no RAI, e o interrogatório levado a cabo pela GNR foi declarado nulo, não tendo sido cumprido o disposto no art. 141º.
Apreciando, começaremos por referir que a invocação[3] dos vícios prevenidos no nº 2 do referido art. 410º é totalmente descabida em relação à decisão instrutória na medida em que se trata de vícios da sentença. Este é o entendimento largamente maioritário[4],[5], no qual se perfilam os arestos cujos excertos, no essencial do que para aqui tem interesse, a seguir vão transcritos:
“1. Os vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal respeitam à sentença.
2. Mais do que uma proibição de aplicação à decisão instrutória, do que se trata é de uma ausência de sentido útil e de coerência na convocação dos mecanismos processuais nele previstos.
3. A ratio do nº2 do art. 410.º reside na garantia do escrutínio (limitado) da decisão de facto fora da possibilidade (ampla) do recurso da matéria de facto, dicotomia sem nenhum sentido na impugnação da decisão de não pronúncia, em que está precisamente em causa a reavaliação total e ampla das provas (indiciárias).”[6]
“III- Nas fases de Inquérito e Instrução não existe, propriamente, prova, mas sim indícios probatórios (ou prova indiciária) e, esta, embora permitindo a sujeição a julgamento do agente ou agentes, não constitui prova, no sentido rigoroso do conceito, pelo que não tem cabimento a pretensão da recorrente de impugnar a matéria de facto com recurso à prova gravada, uma vez que a reapreciação da prova gravada diz respeito à sentença (ou acórdão) que, a final, realizada a audiência de julgamento, conheça de facto e de direito.
IV - Os vícios elencados no artigo 410º, nº 2, do CPP, dizem respeito à sentença e não à decisão instrutória, pois reportam-se à matéria de facto provada (e não provada) que, como já não existe na decisão instrutória, onde apenas consta a matéria de facto indiciada ou não indiciada.”[7]
Excluído o quadro dos vícios da sentença, e conferido o despacho recorrido, verificamos que no mesmo se refere, na “Motivação de facto”, que os factos considerados como suficientemente indiciados nos pontos 4. a 6. resultaram, nomeadamente, do depoimento do assistente. Embora a alusão a “depoimento” do assistente seja imprópria uma vez que quem assume essa posição processual, não prestando juramento, presta declarações, e sendo certo, como também se retira da resenha que acima fizemos, que o recorrente não foi ouvido em sede de instrução, pensamos ser meridianamente claro que se pretendeu aludir ao depoimento que o recorrente, então ainda apenas na qualidade de queixoso e inquirido como testemunha, prestou durante o inquérito, o qual consta de fls.53-54 e já acima sumariámos. Ora, visando a instrução a comprovação judicial nomeadamente da decisão de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cfr. nº 1 do art. 286º do C.P.P.), é inquestionável que o juiz de instrução deve proceder à apreciação global de todos os elementos de prova (indiciária) que hajam sido carreados para os autos, independentemente da fase processual em que os mesmos hajam sido recolhidos ou produzidos (daí que, em princípio, não devam ser repetidos na instrução, os actos e diligências de prova praticados no inquérito – cfr. nº 3 do art. 291º do C.P.P.). Nessa medida, e não se tratando de prova proibida, não só nada obstava como tudo impunha que fosse valorado o aludido depoimento., não assistindo razão ao recorrente neste particular.
No que concerne à valoração das declarações do arguido - e sendo claro, porque expressamente referido, que apenas foi valorado o depoimento que por ele foi prestado em sede de inquérito (a fls. 58 e vº), portanto antes de ter sido constituído como arguido -, vamos começar por transcrever, para melhor contextualização, as considerações que já expendemos anteriormente[8] a respeito dos termos e limites da obrigatoriedade de interrogatório/constituição de arguido das pessoas contra quem corra um inquérito:
Na redacção introduzida pela Lei nº 59/98 de 25/8, o nº 1 do art. 272º do C.P.P. (…) estabelecia que “Correndo inquérito contra pessoa determinada é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la.” Esta imposição legal visava dois objectivos: “por um lado, criar um momento processual em que o arguido pudesse ser confrontado com o resultado da investigação antes do despacho final do inquérito (…) e, por outro, assegurar a possibilidade de o arguido ser julgado na sua ausência, depois de ter sido constituído como tal e ter prestado termo de identidade e residência.”[9]
Concomitantemente, a mesma Lei impôs a obrigatoriedade de constituição como arguido, no nº 1 do art. 58º, nos seguintes termos: “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior [de acordo com o disposto no art. 57º, “Assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal.” ], é obrigatória a constituição de arguido logo que: a) Correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal; (…)”.
Estabeleceu, ainda, no nº 1 do art. 196º, que “A autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal sujeitam a termo de identidade e residência lavrado no processo todo aquele que for constituído arguido, ainda que já tenha sido identificado nos termos do art. 250.º.”, ficando o mesmo sujeito às obrigações indicadas no nº 3 do mesmo preceito, mormente a de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei obrigar ou para tal for devidamente notificado e a de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado.
O regime resultante da conjugação destes preceitos passou a ser o seguinte: correndo inquérito contra pessoa determinada, e a menos que não seja possível notificá-la, é obrigatório interrogá-la como arguido; sendo interrogada, é obrigatório constituí-la como arguido; sendo constituída como arguido, é sujeita a TIR.
Não tardaram a fazer-se ouvir vozes contra a imposição generalizada, indiscriminada, da obrigatoriedade de interrogatório nos moldes estabelecidos e que, no limite, conduzia a resultados perversos:
“A constituição de arguido serve (…) para assegurar as garantias de defesa e observar o princípio da legalidade e não para antecipar sem fundamento medidas de coacção (ex.: termo de identidade e residência). A interpretação conforme com a constituição do art. 58º do Cód. Proc. Penal não legitima o «uso e abuso» da constituição de arguido que parece resultar de uma interpretação literalista deste preceito entendido no sentido de abranger a constituição de arguido de toda e qualquer pessoa inocente que seja chamada a prestar declarações (…)
A articulação das garantias de defesa com a constituição de arguido não significa a obrigatoriedade da constituição de arguido sempre que seja levantado um auto de notícia que dá uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, como parece sugerir a interpretação literal do art. 58.º Esta interpretação literal estará em desconformidade com a Constituição e afectará mesmo a constitucionalidade da norma processual em causa se ela for entendida como obrigatoriedade de constituição do arguido «sem indiciação suficiente» com base apenas em denúncia ou participação, independentemente de qualquer actividade judicial de averiguação prévia da verosimilhança, atendibilidade e fundamento destas denúncias ou participações. A interpretação do princípio da legalidade da acção penal no sentido de transmutar as entidades promotoras da acção penal em instâncias de trânsito de quaisquer impulsos comunicativos ou denunciadores em processo criminal, com obrigatoriedade de constituição automática em arguido de pessoa denunciada, choca frontalmente com o princípio da igualdade e com os direitos, liberdades e garantias da pessoa. É o que acontece muitas vezes com a medida de coacção designada por «TIR» (…) que representa uma coacção grave da liberdade de deslocação sem outro fundamento que não seja o de alguém ter resolvido apresentar queixa ou denúncia cujos fundamentos estão ainda por apurar.”[10]
“(…) apesar de o próprio suspeito poder pedir para ser constituído arguido (…), até para se poder prevalecer das correspectivas garantias de defesa, incluindo o direito ao silêncio (…), é irrealista considerar, em geral, que tal qualidade é vantajosa no plano jurídico-processual. Com efeito, para além de ser condição de aplicação de medidas restritivas ou privativas de direitos de natureza cautelar, o estatuto de arguido envolve, em regra, um efeito estigmatizante que não pode ser ignorado”[11]
Verificou-se, pois, que “A novidade teve (…) um efeito contraproducente: por vezes, o MP tinha de interrogar como arguido uma pessoa relativamente a quem não havia quaisquer indícios da prática do crime e em relação a quem o MP vinha a arquivar o processo.”[12]
Certamente com o objectivo de contornar estas críticas, a Lei nº 48/2007 de 29/8 veio dar nova redacção ao nº 1 quer do art. 58º, quer do art. 272º, que assim passaram a ter a seguinte ( sendo nosso o negrito, para realçar o segmento que lhes foi introduzido):
Art. 58º nº 1: “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:
a) Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal; (…)”
Art. 272º nº 1: “Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la.”
Com estas alterações, manteve-se a obrigação de interrogatório no inquérito, mas restringiu-se a sua abrangência aos casos em que ela verdadeiramente se justificava, ou seja, àqueles em que haja suspeita fundada de que a pessoa contra quem este corre praticou o(s) ilícito(s) criminais sob investigação. Num e noutro caso, “A ratio da lei é (…) evitar a constituição e o interrogatório como arguido nos casos de queixa manifestamente infundada, em que o Ministério Público desde logo vislumbra a possibilidade de arquivar o inquérito e vem a arquivá-lo.”[13] Ou, dito de outra forma, “Conjugando o artigo 58, n.º 1, al. a), com o artigo 272, n.º 1, o juiz, o Ministério Público ou o órgão de polícia não têm de constituir arguida e interrogar como tal a pessoa determinada contra quem corre inquérito se não houver suspeita fundada da prática de crime; (…)”[14]
Foram, pois, reforçados os cuidados que a constituição de arguido, dada a estigmatização social e a eventual limitação de direitos que envolve, requer; em decorrência, “os magistrados do MP em fase de inquérito devem, antes de mais, averiguar se estão ou não reunidos elementos probatórios suficientes que indiciem a prática pelo agente de um crime. Após efectuada tal análise – e apenas no caso de estarem reunidos os elementos probatórios atrás referidos – é que poderão passar à fase seguinte, ou seja, à constituição de arguido e interrogatório do suspeito do crime.”[15]
Por outro lado, a nova redacção das normas acima aludidas impõe que se faça uma interpretação actualizada, restritiva, da jurisprudência fixada no AUJ n º 1/2006[16], tirado na vigência da anterior, de forma a harmonizá-las[17], sendo que a sua conclusão “mantém-se válida em face da lei nova, porquanto o interrogatório continua a ser uma diligência legalmente obrigatória do inquérito no caso de fundada suspeita contra qualquer pessoa determinada”[18]. Assim, a jurisprudência fixada no sentido de que “A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal” tem de ser agora apreendida como “A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre e em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal”.
Pelas razões alinhadas nas antecedentes considerações, é forçoso concluir que, no caso - tendo o MºPº considerado inexistir suspeita fundada da prática de crime por parte do então apenas denunciado, juízo que sedimentou depois de efectuadas as diligências que em sede de inquérito se apresentaram como pertinentes para a investigação e os fins por ela visados, determinando o arquivamento dos autos – não se apresentava como obrigatório interrogar o denunciado como arguido e constituí-lo como tal, melhor dizendo, nem havia justificação para tal.
Em decorrência, também não se vislumbra qualquer obstáculo a que o teor do seu “depoimento” tenha sido valorado – e, no caso, até nem o foi de forma decisiva como adiante se verá – não tendo qualquer cabimento a invocação da pretensa inobservância, já em sede de instrução, do disposto no art. 141º, uma vez que este preceito respeita ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido e, obviamente, o arguido nos autos nunca esteve nessa situação. Ademais, não havia qualquer obrigatoriedade de o interrogar durante a instrução, visto o disposto nos arts. 290º nº 1, 286º nº 1 e 291º nº 1, sendo que tal diligência nem mesmo foi requerida pelo assistente e nela não se viu interesse em face dos restantes elementos de prova recolhidos nos autos. Aliás, a haver qualquer incumprimento do disposto no art. 61º, seria ao arguido quem caberia invocá-lo, e não ao assistente/recorrente que, para além de nada ter requerido durante a fase da instrução, nisso não tem interesse atendível.
3.2. As razões da discordância do recorrente estendem-se também em relação à factualidade que foi considerada como não se mostrar indiciada seja por considerar que a mesma não foi discutida na instrução na medida em que o arguido, por não ter sido interrogado, não a invocou, e também nenhuma testemunha o fez, tendo sido, ao invés, unânimes em declarar que os arguidos sabiam que estavam a cortar madeira que não tinham comprado à testemunha A, que tal como a testemunha JA já haviam mostrado os limites do terreno, para além de ser visível a demarcação existente no terreno, seja porque considera que o tribunal recorrido errou na valoração da prova quando do facto de o arguido AJ não se encontrar presente quando a testemunha A. foi mostrar os limites da propriedade, conclui que “por isso não sabemos se as estremas que o pai lhe indicou estavam correctas” precisamente porque os limites do terreno tinham sido mostrados por aquelas duas testemunhas, que referiram a existência dos marcos, bem visíveis nas fotografias juntas aos autos, seja porque, em seu entender, toda a prova indiciária recolhida releva de forma clara e suficiente que o arguido actuava em conjunto com o seu pai, bem sabendo quais os limites do terreno e de forma a conseguir invadir, danificar, cortar e levar, como levou, a madeira cortada, que bem sabia não ser sua, não sendo possível afirmar que o arguido estava em erro, quando no próprio dia o mesmo é confrontado pelo assistente para parar de cortar, e ele não pára, e dias depois, sem consentimento ou conhecimento do assistente, manda carregar e levar a madeira cortada, seja, enfim, porque não se pode falar da existência de um contrato de compra e venda porque o arguido se limitou a oferecer-lhe um valor pela madeira já depois de ter sido cortada, sem que se tenha concretizado o negócio.
Antes de verificarmos se se verifica a invocada suficiência de indícios, vamos equacionar a questão no quadro legal atinente.
As finalidades da instrução estão expressas no nº 1 do art. 286º do C.P.P. (deste diploma serão os preceitos adiante citados sem menção especial): a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou o controlo judicial da decisão do MºPº de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento[19].
Nessa tarefa, e devido à estrutura acusatória do processo, “o juiz de instrução está vinculado (…) aos termos da própria acusação ou do requerimento instrutório do assistente”[20], quer uma, quer o outro, já deduzidos nos autos.
A prolação de despacho de pronúncia depende - para além da “existência dos necessários pressupostos processuais e demais condições de validade para que o tribunal possa conhecer em julgamento do mérito da acusação”[21], - da recolha, até ao encerramento da instrução de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
Para efeitos de pronúncia, o conceito de indícios suficientes é o que vem enunciado no nº 2 do art. 283º, aplicável por determinação expressa do nº 2 do art. 308º: são aqueles dos quais resulta uma possibilidade razoável[22],[23] de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança[24].
O juízo comprovativo cometido ao juiz de instrução[25] não se confunde com o julgamento da causa; a aferição dos indícios faz-se em função das probabilidades de o feito, uma vez levado a julgamento, vir a possibilitar uma decisão condenatória. Por isso, o grau de exigência quanto à consistência e verosimilhança dos indícios é menor do que aquele que é imposto ao juiz do julgamento, sem, no entanto, se prescindir de um juízo objectivo e apoiado no acervo probatório recolhido nos autos, lido conjugadamente e apreciado à luz das regras da experiência, sem que hajam subsistido dúvidas razoáveis e irremovíveis, uma vez que o princípio in dubio pro reo também é aplicável na fase da instrução[26].
No caso de que nos ocupamos, os indícios suficientes terão de se reportar à previsão da norma do nº 1 do art. 203º (“Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.” ) e/ou do nº 1 do art. 212º ( “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.), um e outro do C. Penal.
Tendo em mente estas considerações e fazendo o confronto entre o conjunto de todos os elementos de prova recolhidos nos autos e que acima resenhámos no essencial e a forma como foram apreciados no despacho recorrido, desde já adiantámos não assistir razão ao recorrente nas críticas que lhe dirigiu.
De facto, depois da venda das árvores celebrada entre a testemunha A e o denunciado falecido, foi a este quem aquela mostrou as estremas do seu terreno, numa ocasião em que o arguido não se encontrava presente (assim o afirmou o arguido, referindo que o negócio foi feito pelo seu pai e acrescentando que se limitou a cumprir as indicações que ele lhe deu, e também o disse, sem contestação, a referida testemunha, que apenas referiu ter vendido pinheiros, enquanto que o arguido e a testemunha JA também aludiram a castanheiros e sem que existam outros elementos que pudessem esclarecer esta divergência); quando estava em curso o corte, o denunciado falecido e o arguido aperceberam-se da existência de marcos para além dos que haviam sido indicados pelo vendedor, o que os levou a pararem de imediato o corte e a irem falar com a testemunha JA para saberem quem era o proprietário das árvores abatidas (disse-o o arguido e mostra-se perfeitamente plausível já que tal contacto foi confirmado pela referida testemunha); quando a testemunha JA se deslocou ao local, a pedido daquele denunciado e do arguido para lhes indicar as extremas do terreno, já se encontravam cortadas várias árvores pertencentes ao recorrente, por engano segundo o que por aqueles lhe foi referido, mostrando eles o propósito de negociar com o recorrente (disse-o essa testemunha, também sem contestação); quando o queixoso se deslocou ao local, quem estava a cortar as árvores era um indivíduo que afirmou estar a proceder ao mesmo a mando do patrão, e que quando o denunciado falecido e o arguido ali compareceram, o corte estava consumado ( resulta das próprias declarações do recorrente ); embora não haja coincidência entre o teor das negociações que em seguida foram entabuladas entre eles e o recorrente, há indícios claros de ter havido negociações que culminaram em acordo relativamente a uma quantia para compra ou compensação pelas árvores que haviam sido indevidamente abatidas (embora o recorrente se tenha limitado a referir uma oferta irrisória que lhe teria sido feita pelo denunciado falecido e que não aceitou, o arguido afirmou que foi acordado o valor de 750€ como pagamento pelas árvores cortadas, valor que não destoa daquele que a testemunha AB estimou para os prejuízos sofridos pelo recorrente devido ao corte das árvores, para além de a existência de um acordo nesse sentido também se extrair tanto do que foi dito pela testemunha A como do que foi dito pela testemunha MC, esposa do assistente, a qual ademais até deixou no ar a suspeita de que o vendedor A possa ter dado indicações erróneas em relação às estremas do seu terreno, dando azo a que fossem cortadas por engano árvores que não lhe pertenciam, o que também explicaria que ele se tenha proposto, como por ela foi referido, pagar metade do valor acordado); parte da madeira cortada foi levada do local, não resultando demonstrado se entre ela também se encontravam as árvores cortadas no terreno do recorrente (o arguido afirmou que a madeira cortada não foi levantada do local, enquanto que o recorrente se limitou a afirmar ter solicitado a deslocação da GNR ao local quando teve conhecimento de que o denunciado falecido e o arguido estavam a carregar madeira, a testemunha VL apenas viu árvores cortadas e um camião com lenha já fora do terreno, e a testemunha NR afirmou ter carregado e transportado pinheiros a pedido do denunciado falecido e na presença do arguido, não sabendo no entanto se alguma dessa madeira era do recorrente).
Ora, perante este quadro, é por demais evidente que são várias e muito razoáveis as dúvidas que dele sobressaem. Começa-se desde logo por não saber se o vendedor fez a indicação precisa das estremas do seu prédio ao comprador (o denunciado falecido), depois não se sabe se o arguido se limitou, ou não, a seguir as indicações que lhe foram dadas pelo seu falecido pai, e também não se sabe se o corte foi ou não devido a engano, e, a tê-lo sido, se o mesmo foi, ou não, propiciado por eventual indicação errónea do vendedor. Além disso, a existência de um acordo, ainda que não tenha sido cumprido por falta de pagamento do preço (segundo o arguido, porque a esposa do recorrente se recusou a receber o dinheiro, segundo esta porque o dinheiro “não apareceu”), nem mesmo permite afirmar que o denunciado falecido e o arguido actuaram com o dolo específico exigido pelo tipo legal de furto, apropriando-se de coisa (as árvores abatidas no terreno do recorrente) em momento em que, inequivocamente, já sabiam que era alheia. E também não quedou minimamente demonstrado que o corte das árvores tenha prosseguido depois de o denunciado falecido e o arguido se terem dado conta do “engano” relativo aos limites do terreno do vendedor na parte em que confina com o terreno do recorrente.
Neste conspecto, não se vislumbra na decisão recorrida qualquer apreciação dos elementos de prova carreados para os autos divorciada do seu teor ou desconforme com as regras da experiência comum, justificando-se plenamente o decidido quanto à não pronúncia do arguido, por aplicação do princípio in dubio pro reo já que, na presença das dúvidas aludidas, a condenação do mesmo em julgamento, pela prática de qualquer dos ilícitos criminais cuja prática o recorrente lhe imputa, se perspectiva como altamente improvável.
4. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgam improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Vai o recorrente condenado em 3 UC de taxa de justiça.
Évora, 4 de Abril de 2017
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(Maria Leonor Esteves)
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(António João Latas)
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[1] cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada.
[2] Diploma ao qual pertencerão os preceitos legais ao diante citados sem menção especial.
[3] Adiante, a propósito da indiciação da prática dos factos que havia imputado ao arguido, alude novamente ao erro notório e à insuficiência para a decisão da matéria de facto.
[4] cfr. no mesmo sentido, v.g., Acs. STJ 20/6/02, proc. nº 01P4250, RE 21/2/07, proc. nº 35/11.8TABJA.E1 e RP 15/2/12, proc. nº 918/10.2TAPVZ.P1.
[5] Em sentido contrário, encontramos apenas o Ac. RP 27/1/10, proc. nº 321/07.1PSPRT.P1 ( “Configurando-se a instrução como um momento processual de comprovação que culmina na formulação de um juízo de probabilidade para legitimar a sujeição do arguido a julgamento, a decisão instrutória é passível de apreciação à luz dos vícios da decisão consignados no artigo 410/2 do CPP, por referência à matéria indiciariamente assente.”).
[6] Ac. RE 3/7/12, proc. nº 4016/08.0TDLSB.E1.
[7] Ac. RL 12/5/15, proc. nº 2135/12.8TAFUN.L1-5
[8] No Ac. RP 26/10/11, proc. nº 32/09.3PFGDM.P1
[9] cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, pág. 690.
[10] cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, pág. 517.
[11] cfr. Rui Pereira, O Domínio do Inquérito pelo Ministério Público, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, pág. 125.
[12] cfr. ob. cit. na nota anterior, pág. 690.
[13] Ob. cit. na nota 21, pág. 690.
[14] Ob. cit. na nota 21, pág. 179.
[15] cfr. Código de Processo Penal dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, pág. 685.
[16] D.R. n.º 1, Série I-A de 22/1/06
[17] Assim já o fez notar o Ac. RP 25/11/09, proc. nº 3906/08.5TAMTS.P1: “A jurisprudência do Ac. Nº1/2006 do STJ tem de ser actualizada e interpretada em conjugação com as alterações da Reforma de 2007, nomeadamente o acrescento que introduziu no artigo 58º nº1 al. a) ao exigir para a constituição de arguido em inquérito a suspeita fundada da prática de crime.”.
[18] Ob. cit. na nota 21, pág. 690.
[19] “A instrução – importa acentuar – não é um novo inquérito, mas tão-só um momento processual de comprovação; não visa um juízo sobre o mérito, mas apenas um juízo sobre acusação, em ordem a verificar da admissibilidade da submissão do arguido a julgamento com base na acusação que lhe é formulada.” Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado e comentado, 12ª ed., p. 572.
[22] “ao exigir-se a possibilidade razoável de condenação e não uma possibilidade remota, visa-se, por um lado, não sujeitar o arguido a vexames e incómodos inúteis e, por outro lado, não sobrecarregar a máquina judiciária com tramitações inúteis” cfr. Tolda Pinto, “A Tramitação Processual Penal”, 2ª. ed., pág. 701.
[23] “a simples dedução de acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado, o que leva a defender que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição” Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal” 1º vol., 1981, pág. 133.
[24] “Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.
Essa possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando dos elementos de prova recolhidos nos autos forma a convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.” Prof. Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 179
[25] cfr. Ac. RP 4/1/06, proc. 513975: “No culminar da fase de instrução, o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases: (i) um juízo de indiciação da prática de um crime, ou seja, a indagação de todos os elementos probatórios produzidos; (ii) um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido (iii) e um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se possa concluir que predomina uma razoável possibilidade de o arguido vir a ser condenado por esses factos ou vestígios probatórios, estabelecendo-se um juízo semelhante ao juízo condenatório a efectuar em julgamento.”
[26] Assim, e para além do que citámos na nota anterior, v.g. os Acs. RP 22/6/05, proc. nº 0412799 e RE 21/6/11, proc nº 1273/08.6PCSTB-A.E1.