BENS APREENDIDOS EM PROCESSO PENAL
PERDA A FAVOR DO ESTADO
Sumário


I - Transitada em julgado a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos, de detenção lícita por particulares, como é aqui o caso, deve ser dado cabal cumprimento ao disposto no art.186.º, nº 2 do CPP.

II – Não tendo sido precedido do cumprimento escrupuloso do condicionalismo previsto nos nºs 3 e 4 do citado artigo 186.º (notificação com expressa menção daquelas especificações/cominações), é ilegal a declaração de perdimento do veículo proclamada no despacho recorrido.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

RELATÓRIO.

Decisão recorrida.

No processo comum nº64/04.8JAFAR da Comarca de Faro - Instância Central - 1ª Secção Criminal - J1, os arguidos nele devidamente identificados, foram submetidos a julgamento, vindo por decisão transitada em julgado a serem absolvidos da prática dos crimes de tráfico de estupefacientes de que eram acusados e mantida a apreensão de todas as coisas até ao respectivo trânsito em julgado e, bem assim, nos autos que estavam em curso apenas contra outro co-arguido AP.

No âmbito desse processo foi, além do mais, apreendido o veículo automóvel da marca Citröen, modelo C5 2.2 HDI Exclusive, de cor azul, com a matrícula--- CHD, propriedade de E.

Posteriormente àquela decisão absolutória, em 09-06-2016, foi proferido o seguinte despacho:

«DESTINO DO VEÍCULO COM A MATRÍCULA ----CHD:
A proprietária do veículo identificado em epígrafe notificada para proceder ao seu levamento, nos termos do disposto no artigo 186º, n.os3 e 4 do Código de Processo Penal, não o fez, tendo já decorrido mais de um ano sobre tal notificação (cf. fls. 1116).

Pelo exposto, declaro o mencionado veículo perdido a favor do Estado e, dado que não tem valor venal, ordeno a sua destruição (artigo 109º, n.º 3, do Código Penal).

Oficie-se à PJ, com cópia deste despacho, para efetuar as diligências necessárias ao abate do mesmo.

Junto aos autos, os documentos que certifiquem que o veículo foi entregue para abate, arquivem-se os autos».

Recurso.
Inconformada com esse despacho a proprietária do mencionado veículo, E., na qualidade de interveniente, dele recorreu pugnando pela sua revogação e substituição por outro que determine a sua entrega imediata do veículo, sem que tenha que pagar compensação pelo seu uso ao Estado, concluindo a respectiva motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:

1. A ora recorrente é proprietária do veículo automóvel com matrícula ---CHD, veículo esse que foi apreendido no âmbito dos presentes autos a 14 de Fevereiro de 2004, em virtude de haver suspeitas de que tal viatura houvera sido utilizada em actividades relacionadas com o tráfico de estupefacientes.

2. Sucede porém que por acórdão datado de 04 de Abril de 2013, a acusação foi julgada improcedente e em consequência o arguido AP foi absolvido da prática, como co-autor material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. nos termos dos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, al. b) e c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às tabelas 1-A e I-B deste diploma.

3. Tendo sido ordenada a restituição dos veículos automóveis a quem demonstrar ser seu proprietário, sem prejuízo do que sobre estes bens e objectos tenha sido decidido no processo colectivo n.º 64/04.8JAFAR do 1.º Juízo Criminal deste Tribunal Judicial de Loulé.

4. Embora a ora recorrente tivesse solicitado por diversas vezes, quer por escrito, quer pessoalmente, a restituição do seu veículo automóvel, este nunca lhe foi devolvido, por alegadamente estar na Polícia Judiciária de Lisboa e se encontrar a ser utilizado por esta polícia, até à presente data.

5. E a viatura só lhe iria ser restituída após o cálculo da compensação pelo uso da viatura, previsto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 31/85, de 25 de Janeiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 26/97 de 23/01.

6. Tendo em 09-06-2016 sido proferido o seguinte despacho:

Destino do veículo com a matrícula ---CHD:
A proprietária do veículo identificado em epígrafe notificada para proceder ao seu levantamento, nos termos do disposto no artigo 186.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, não o fez, tendo já decorrido mais de um ano sobre tal notificação (cf. Fls. 1116).

Pelo exposto, declaro o mencionado veículo perdido a favor do Estado e, dado que não tem valor venal, ordeno a sua destruição (artigo 109.º, n.º 3, do Código Penal).

Oficie-se à P.J, com cópia deste despacho, para efetuar as diligências necessárias ao abate do mesmo.
Junto aos autos, os documentos que certifiquem que o veículo foi entregue para abate, arquivem-se os autos.”.

7. Não se conformando a ora recorrente com o despacho recorrido porquanto não é verdade que embora notificada para proceder ao levantamento, não o tenha feito.

8. O que sucedeu foi que a ora recorrente, foi notificada por despacho datado de 14-07-2014, proferido a fls. 113, e em 23-06-2014 juntou aos presentes autos um requerimento no qual requereu a restituição da viatura.

9. Em 04-08-2014, o inspector chefe de sector da Polícia Judiciária José Silva (66761), veio informar que a viatura apreendida Citroen C5, com matrícula ---CHD andou a circular ao serviço da Polícia Judiciária, conforme foi informado nos presentes autos.

10. E que embora tenha sido ordenada a restituição da viatura só após o cálculo da compensação pelo uso da viatura, previsto no artigo 11.º do Decreto-Lei 31/85 de 25 de Janeiro, alterado pelo DL 26/97 de 23/01 é que a mesma poderá ser devolvida ao respectivo proprietário.

11. Ou seja, embora a viatura tivesse andado a circular ao serviço do Estado, a proprietária, ora recorrente ainda teria que efetuar o pagamento de uma compensação ao Estado.

12. A ora recorrente por inúmeras vezes solicitou verbalmente e por escrito a restituição da viatura e sempre lhe foi dito que a mesma estava na Polícia Judiciária de Lisboa e esta até à presente esta não lhe foi restituída.

13. E contrariamente ao vertido no despacho ora recorrido não foi por falta de a proprietária não ter procedido ao seu levantamento, muito pelo contrário.

14. Pois a ora recorrente solicitou por inúmeras vezes a restituição da viatura automóvel, um bem que é seu por direito e que o Estado usou e utilizou de forma a servir os seus interesses, privando a ora recorrente de um bem que é seu por direito.

15. Ou seja, a ora recorrente viu ser-lhe esbulhado um bem desde 2004 até à presente data, não lhe tendo sido atribuída qualquer compensação ou indemnização, nem tão pouco lhe foi restituído o bem.

16. Em manifesta violação do disposto no artigo 186.º n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal e do artigo 109.º, n.º 3 do Código Penal.

17. E volvidos que estão 12 anos após a sua apreensão, 12 anos também passaram de uso indevido e abusivo por parte do Estado do veículo, obviamente e que este não tem valor venal, e como tal o tribunal “ a quo” ordena, e mal a sua destruição.

18. A ora recorrente viu assim o seu direito de propriedade grosseiramente afetado, pois aquando da apreensão (14-02-2004), o veículo tinha sido adquirido em 29-04-2003 pela quantia de 27.288,80€.

19. A manutenção da apreensão do veículo por parte do Estado viola o disposto no artigo 186.º n.º 3 e 4 do Código de Processo Penal e a manutenção de tal apreensão sem qualquer outro efeito é ilegal.

20. Estamos assim perante um uso excessivo de apreensão, o que prejudica o direito de propriedade da ora recorrente, e é suscetível de fazer incorrer o Estado em responsabilidade civil, atendendo a todo o prejuízo causado à ora recorrente, o que será reclamado em sede própria.

21. As nossas práticas policiais e judiciárias abusam da apreensão, numa clara violação da adequação e da proporcionalidade, que deveriam estar presentes em todos os actos policiais e processuais.

22. In casu, a apreensão para além de desproporcionada foi abusiva, pois a polícia judiciária utilizou o veículo apreendido durante 12 anos, ou seja, até este não ter mais nenhum valor comercial, e sem o restituir à proprietária, excedendo largamente todos os prazos legalmente admissíveis, sem que o mesmo fosse restituído em tempo à ora recorrente ou a mesma fosse indemnizada ou compensada pela desvalorização da viatura ocasionada pelo uso por parte do Estado, conforme preceitua o artigo 11.º do Decreto-Lei 31/85 de 25 de Janeiro, alterado pelo Decreto-Lei 26/97 de 23 de Janeiro e os artigos 22.º e 271.º da CRP.

23. Veja-se neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 3604/12.5TBBCL.G1, datado de 15-01-2015, disponível em www.dgsi.pt.

24. A apreensão de um objecto é uma medida privativa do direito de propriedade, o acto de apreensão priva o proprietário, possuidor ou detentor dos direitos inerentes, designadamente do uso, fruição, disposição, exercício do comércio, etc…

25. O despacho recorrido ao declarar o veículo perdido a favor do Estado, dado que não tem valor venal e ao ordenar a sua destruição é inconstitucional por violação do direito fundamental de propriedade, previsto no artigo 62.º da nossa CRP.

26. Termos em que deverá ser revogado o despacho ora recorrido e proferido outro que suspenda a destruição do veículo, e proferido outro que ordene a entrega imediata do veículo à proprietária e que em consequência a ora recorrente não tenha que pagar a compensação pelo uso ao Estado.

Contra-motivou o Ministério Público na 1ª Instância defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo pela improcedência do recurso com a consequente manutenção do despacho recorrido.

Nesta Relação o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se também no sentido de ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.

Observado o disposto no nº2 do art417º, do CPP, não houve resposta.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO.

Objecto do recurso. Questão a examinar.
Como muito bem salientam Simas Santos e Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 5ª Edição, pp.24, os recursos constituem o meio processual destinado a sujeitar a decisão a um novo juízo de apreciação, agora por um tribunal hierarquicamente superior. Os recursos são, pois, face ao ordenamento processual penal vigente, o único meio de por cobro a erros ou vícios de fundo das decisões judiciais penais. E o Código assume-os como remédio jurídicos, afastando-se, assim, da ideia, presente em muitos sistemas, de que os mesmos constituem meio de refinamento jurisprudencial.

Ainda no dizer dos mencionados autores, Ob. Cit. pp. 72/73, o objecto legal dos recursos é a decisão recorrida. Com o recurso abre-se somente uma reapreciação dessa decisão.

Visando os recursos modificar as decisões impugnadas e não criar decisões sobre matéria nova, não é lícito na motivação ou nas alegações invocar questões que não tenham sido objecto das decisões recorridas, isto é, questões novas.

Ora o despacho recorrido, atrás transcrito, não trata da questão de ser devida ou não alguma compensação pela proprietária do veículo como condição para que lhe seja restituído, pelo que no âmbito deste recurso, não é legítimo à recorrente por via do recurso interposto dessa decisão e nesta sede colocar à apreciação deste tribunal “ad quem” essa questão pelo que dela não tomaremos conhecimento.

Aliás, segundo os elementos que estes autos recursivos disponibilizam, essa questão foi apreciada num outro despacho autónomo anteriormente proferido em 27-01-2015 notificado à ora recorrente por via postal registada com aviso de recepção, expedida em 27-01-2015 (cfr.26 e 27 destes autos recursivos e fls.1125 e 1126 do processo).

Consequentemente apesar de tal questão ter sido suscitada na fundamentação e conclusões apresentadas, não pode ser apreciada no âmbito deste recurso, pelo que dela não tomaremos conhecimento.

Assim, tendo desde logo em consideração esta restrição e sabido também que o objecto do recurso do recurso é delimitado pelas conclusões (no caso desnecessária e desmesuradamente extensas) extraídas da correspondente motivação (art.412º, nº1, do CPP) sintetizando-as, a questão que delas emerge e que aqui reclamam solução, consiste em saber se mostram e foram observados os requisitos/condicionalismo legalmente exigidos para a declaração de perdimento a favor do Estado do veículo em causa.

Segundo os elementos que os autos recursivos disponibilizam, os actos e incidências processuais relevantes a considerar são os seguintes:

- No processo comum nº64/04.8JAFAR da Comarca de Faro - Instância Central - 1ª Secção Criminal - J1, os arguidos nele devidamente identificados, foram submetidos a julgamento, vindo por decisão de 19-12-2006 transitada em julgado em 2008, a serem absolvidos da prática dos crimes de tráfico de estupefacientes de que eram acusados e mantida a apreensão de todas as coisas até ao respectivo trânsito em julgado e, bem assim, nos autos que estavam em curso apenas contra outro co-arguido AP.

- No âmbito desse processo foi, além do mais, apreendido o veículo automóvel da marca Citröen, modelo C5 2.2 HDI Exclusive, de cor azul, com a matrícula ---CHD, propriedade de E.

- O veículo foi entregue à PJ por ter sido autorizada a sua utilização provisória nos termos do art.18º DL nº275-A/2000, de 9 de Novembro.

- A ora recorrente em 23-06-2014 apresentou um requerimento dirigido ao processo solicitando que lhe fosse restituído o veículo (fls. 10 destes autos recursivos e 1108 do processo).

- Em 14-07-2014 foi proferido despacho determinando que fossem notificados os titulares dos direitos aos bens apreendidos para procederem ao seu levantamento (fls. 15 dos autos recursivos e 1113 do processo).

- Esse despacho foi notificado em 16-07-2014 por contacto pessoal à ora recorrente (fls.18 dos autos recursivos e 1116 do processo).

- Por ofício junto ao processo em 07-08-2014 a PJ informou que o veículo só poderia ser devolvido ao proprietário após o cálculo da compensação previsto no art.11º do DL nº31/85, de 25-01 alterado pelo DL nº26/97 de 23-01 (fls. 19 dos autos recursivos e 1117 do processo).

- Na sequência desse ofício foi solicitado o apuramento da compensação tendo sido obtida a informação de que fora apurado o saldo a favor do Estado de € 1.409,49 e que o veículo só poderia ser levantado pelo proprietário após a liquidação dessa quantia (fls.21 a 24 dos autos recursivos e 119, 1120,1122 e 1123 do processo).

- Por despacho de 27-01-2015 foi determinado que a ora recorrente fosse notificada com cópias de fls. 1122/1123 que, por força do disposto no art.11º, nºs 1 e2 do DL nº31/85, de 25 de Janeiro, na redacção que lhe foi dada pelo DL nº26/97 de 23 de Janeiro, se quisesse que o veículo lhe fosse restituído teria de pagar a compensação ao Estado Português de € 1.490,44 e que caso não concordasse com esse valor podia recorrer aos tribunais comuns, nos termos do nº3 do referido art.11º (fls.26 dos autos recursivos e 1125 do processo).

- Em cumprimento desse despacho a ora recorrente foi notificada nos termos nele ordenados por carta registada com aviso de recepção expedida em 27-01-2015 (fls. 27 destes autos recursivos e 1126 do processo).

- Em 09-06-2016 foi proferido e despacho recorrido, acima transcrito, declarando o veículo perdido a favor do Estado.

- Posteriormente a PJ remeteu ao processo o ofício datado de 20-07-2016 informando que o veículo se apresentava em razoável estado de conservação, não sendo aconselhável a sua destruição e que a PJ mantinha interesse na sua utilização e que iria dar-se início ao processo de legalização da viatura em nome do Estado português (fls. 29 dos autos recursivos e 1175 do processo).

- Em 05-09-2016 foi proferido despacho a mandar comunicar à PJ que o despacho que havia declarado perdido a favor do Estado a viatura está sob impugnação, pelo que até decisão final, deveria ser suspenso o processo de legalização (fls.31 do autos recursivos e 1228 do processo).

Em face destes elementos informativos e visto o despacho recorrido examinemos a questão enunciada.

Sob a epígrafe “Restituição dos objectos apreendidos”, estabelece o art.186º do CPP, o seguinte:

1 - Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito.

2 - Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.

3 - As pessoas a quem devam ser restituídos os objectos são notificadas para procederem ao seu levantamento no prazo máximo de 90 dias, findo o qual passam a suportar os custos resultantes do seu depósito.

4 - Se as pessoas referidas no número anterior não procederem ao levantamento no prazo de um ano a contar da notificação referida no número anterior, os objectos consideram-se perdidos a favor do Estado.

5 - Ressalva-se do disposto nos números anteriores o caso em que a apreensão de objectos pertencentes ao arguido ou ao responsável civil deva ser mantida a título de arresto preventivo, nos termos do artigo 228.º

Este preceito rege matéria atinente aos casos dos objectos apreendidos que não são levantados após decisão de restituição, consagrando o sistema da notificação para proceder, no prazo máximo de 90 dias ao levantamento, findo o qual o interessado passa a suportar os custos resultantes do depósito e se o levantamento não tiver lugar dentro de um ano a contar da notificação referida os objectos são declarados perdidos a favor do Estado.

Decorre no nº1 do citado normativo que logo que a apreensão se torne desnecessária, nasce a obrigação, por parte de quem detenha a direcção do procedimento – Ministério Público, JIC ou juiz do julgamento –, de restituição dos objectos, a quem de direito.

Ora, transitada a sentença e nela se não decidindo o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos, de detenção lícita por particulares, como é aqui o caso, deve ser dado cumprimento ao disposto no artº186º, nº 2 do CPP.

Na verdade o art.º 186º n.º2 do Código de Processo Penal diz expressamente que a restituição ocorre depois de transitada a sentença, sendo, para isso, as pessoas a quem devam ser restituídos os objectos notificadas para procederem ao seu levantamento.

E, como lucidamente é mencionado no acórdão da Relação do Porto de 16-09-2009, proc.842/06.3PJPRT-A.P1, relatado pelo Exmº Senhor Desembargador António Gama, disponível em www.dgsi.pt e na CJ Ano XXXIV (2009), tomo 4º, pag.216/217 “não basta uma simples notificação, exige mais o art.º 186º do Código de Processo Penal: que o levantamento deve ocorrer no prazo máximo de 90 dias, findo o qual passam [os proprietários] a suportar os custos do seu depósito. Só decorrido um ano a partir desta notificação é que os objectos se consideram perdidos a favor do Estado, art.º 186º n.º3 e 4 do Código de Processo Penal. Com este regime de notificação pretende o legislador que o perdimento a favor do Estado corresponda a um efectivo e esclarecido desinteresse do proprietário pelos objectos, isto é, que ocorra um autêntico abandono, sendo intolerável que a privação definitiva de um direito de propriedade sobre um objecto que não foi declarado perdido a favor do Estado pela aplicação do regime substantivo, ocorra e reverta para o Estado por um «alçapão» processual”.

Acresce que como muito bem é observado nesse aresto essa notificação, (…) não pode ser feita por remissão genérica para dispositivos legais que o normal cidadão não sabe o que dizem. Exige-se que essa notificação identifique os objectos a restituir, o prazo em que se pode proceder ao seu levantamento, a quantificação dos custos a suportar, caso o levantamento não ocorra no prazo e, finalmente, que elucide da cominação de perdimento a favor do Estado caso não sejam levantados no prazo de um ano a contar da data da notificação, art.º 186º n.º3 e 4 do Código de Processo Penal. (sublinhado nosso).

Ora, no caso de que aqui nos ocupamos, não obstante o despacho recorrido faça alusão ao cumprimento do disposto nos nº3 e 4 do art.186º do CPP, o certo é que essa afirmação não tem qualquer correspondência, nem no despacho anterior de 14-7-20l4 a ordenar o levantamento, nem no outro de 21-07-2015, nem tão pouco nas notificações feitas à ora recorrente relacionadas com a restituição e levantamento do veículo, como resulta dos elementos informativos que instruíram o recurso, acima elencados.

Assim, havemos de concluir que não tendo sido precedido do cumprimento escrupuloso do condicionalismo previsto naquelas normas (notificação com expressa menção daquelas especificações/cominações), é ilegal a declaração de perdimento do veículo proclamada no despacho recorrido.

Nesta conformidade e sem mais desenvolvidas considerações por supérfluas, ainda que por motivos algo diferentes dos invocados pela recorrente, o recurso deve merecer provimento, o que consequentemente determina a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que dê integral e escrupuloso cumprimento ao disposto no art.186º, do CPP.

DECISÃO.

Nestes termos e com tais fundamentos concedemos provimento ao recurso e consequentemente revogamos o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que dê cumprimento ao disposto no art.186º, do Código de Processo Penal.

Sem custas.

Évora, 2 de Maio de 2017.

(Elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Gilberto Cunha

João Martinho de Sousa Cardoso