1. As normas jurídicas previstas no direito administrativo relativas ao ordenamento do território, por defenderem o interesse público, proíbem fracionamentos e destaques ilegais enquanto resultado, pelo que também proíbem necessariamente todos os meios adequados para o atingir.
2. Se dúvidas houvesse quanto à prevalência do regime previsto no art.º 1376.º e 1379.º do C. Civil sobre o fracionamento e aquisição, por usucapião, verificados os respetivos pressupostos, de parcela de terreno de área inferior a superfície correspondente á unidade de cultura, deixaram de subsistir perante a atual redação do n.º1 do art.º 1379.º do C. Civil, na versão dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, ao sancionar expressamente com a nulidade todos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos art.ºs 1376.º e 1378.º.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e depois foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e absolveu os réus do pedido.
Inconformado com esta sentença, veio o Digno Magistrado do Ministério Público interpor o presente recurso, apresentando alegações e terminando com as seguintes conclusões:
1. Ainda que se tenha verificado a usucapião, tal instituto jurídico não prevalece sobre as normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima;
2. Estas últimas normas constituem a disposição legal em contrário, mencionada no próprio art.º 1287º do Código Civil;
3. Assim, os negócios jurídicos titulados pelas escrituras juntas aos autos são anuláveis, por ofensa do disposto no art.º 1376º do Código Civil.
Pelo que deve ser a douta sentença ser revogada, no que se fará Justiça!
Nesta segunda orientação se pronunciaram também os Acórdãos do STJ de 19/10/2004, Proc. n.º04B3293; de 03/12/2009, Proc. n.º 1102/03.7TBILH.C1.S1; de 02-02-2010, Proc. n.º 1816/06.0TBFUN.L1.S1; de 16/03/2010, Proc. n.º 636/09.4YFLSB (CJ – 2010, I, 133); de 01/06/2010, Proc. n.º 133/1994.L1.S1; de 19-04-2012, Proc. n.º 34/09.0T2AVR.C1.S1; de 13/02/2014, Proc. n.º 1508/07.2TCSNT.L1.S1; de 06/03/2014, Proc. n.º 1394/04.4PCAMD.L1.S1; de 20/05/2014, 11430/00.8TVPRT.P1.S1; e de 30/4/2015 (Salazar Casanova), todos disponíveis em www.dgsi.pt, sumariando-se neste último:” II - O reconhecimento da usucapião com base em atos possessórios sobre parcela de prédio rústico com área inferior à unidade de cultura resultante de mera divisão material, conduziria, dada a impossibilidade de ser proposta ação de anulação face a inexistência de negócio constitutivo do fracionamento do prédio que deu origem a essa parcela, a um resultado que a lei possibilita e pretende evitar quando esse ilegal fracionamento resulta de negócio jurídico. III - A lei não permite a divisão da propriedade de terrenos aptos para cultura em unidades, parcelas ou lotes de área inferior a unidade de cultura (art. 1376.º, n.º 1, do CC) salvo, designadamente, se o fracionamento tiver por fim a desintegração do terreno para construção (art. 1377.º, n.º 2, al. c), do CC)”.
Das duas posições em confronto, partilhamos e aderimos à segunda, por nos parecer a mais conforme com as disposições legais em confronto.
Com efeito, o art.º 1376.º/1 do C. Civil, estabelece que “os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do país".
Por sua vez, a Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril, classificando para esse efeito os prédios rústicos em terrenos de regadio, arvenses ou hortícolas, bem como de sequeiro, fixava a unidade de cultura – hectares - (unidade física), para as diferentes zonas do País, sendo para a zona que ora nos importa (Setúbal), nos seguintes termos:
Terrenos de regadio: Arvenses - 2,50; Hortícolas de 0,50. Terrenos de sequeiro: 2,00.
Assim, de acordo com este diploma regulamentar, a dimensão da unidade de cultura é fixada em função do tipo de culturas para os terrenos de regadio: arvenses ou hortícolas.
O regime do fracionamento de prédios rústicos rege-se pelo disposto no artigo 1376.º e seguintes do Código Civil, bem como pelo que vinha prescrito nos artigos 19.º, 20.º e 21.º do Decreto-Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro (que estabelecia as bases gerais do emparcelamento e fracionamento de prédios rústicos e explorações agrícolas), e o disposto no artigo 44.º, 45.º e 46 do Decreto-Lei n.º 103/90, de 22 de março (que regulamentava as bases gerais do emparcelamento e fracionamento de prédios rústicos e explorações agrícolas.
Nos termos do art.º 19.º/1, do Decreto-Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro, ao fracionamento e à troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal aplicavam-se as regras dos artigos 1376.º e 1379.º do C. Civil.
Também o art.º 50.º do Dec. Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na redação dada pela Lei n.º 60/2007 de 4 de setembro, diploma legal que aprovou o regime jurídico da urbanização e edificação, quanto ao fracionamento de prédios rústicos manda aplicar o disposto nos mencionados diplomas legais.
A este propósito, sublinham Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes e Fernanda Maçãs, “Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, Comentado”, 2012, 3.ª edição, pág. 409, citando Menezes Cordeiro, que “as limitações ao fracionamento de prédios rústicos sempre visaram evitar os vários inconvenientes de ordem económica, designadamente pela menor produtividade agrícola dos prédios quando estes se reduzem a proporções muito limitadas”. E foi assim, adiantam, “por motivos estritamente relacionados com a viabilidade económica das explorações agrícolas, que se foram criando dificuldades ou mesmo impedimentos ao fracionamento de prédios rústicos, designadamente de todos aqueles que conduzissem a parcelas inferiores a certos limites”.
Das várias disposições legais aplicáveis, acrescentam as Autoras (págs. 411/412), resulta que “O proprietário de terreno que dele queira dispor em parcelas ou frações só poderá exercer esse direito de disposição se cada uma das unidades fundiárias que se vier a formar tiver área não inferior à unidade de cultura, fixada pela Portaria n.º 202/70, que exerce uma dupla função: de limite ao fracionamento, proibido abaixo da área fixada para aquela; de meta para que tendem certos emparcelamentos, através do direito de preferência e de troca”.
Entretanto, a Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, veio estabelecer o atual Regime Jurídico da Estruturação Fundiária e revogou os Decretos-Leis n.ºs 384/88, de 25 de outubro, e 103/90, de 22 de março, prescrevendo no seu art.º 49.º, n.º1 que “A unidade de cultura é fixada por portaria do membro do Governo responsável pela área do desenvolvimento rural e deve ser atualizada com um intervalo máximo de 10 anos”.
Este diploma legal alterou também o art.º 1379.º do C. Civil, dando-lhe a redação atual, que se reproduz:
«1 — São nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º
2 — São anuláveis os atos de fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º se a construção não for iniciada no prazo de três anos.
3 — Tem legitimidade para a ação de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte.
4 — A ação de anulação caduca no fim de três anos, a contar do termo do prazo referido no n.º 2.»
Sendo que esse preceito legal antes desta alteração tinha a seguinte redação:
“1. São anuláveis os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º, bem como o fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377º, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos.
2. Têm legitimidade para a ação de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte.
3. A ação de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do ato ou do termo do prazo referido no nº 1.”
Cotejando os dois textos legais, constata-se que a alteração introduzida consistiu na autonomização e inovação das consequências jurídicas previstas para os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º, relativamente aos atos de fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377º, , passando a violação das primeiras a padecer do vício de nulidade e mantendo a segunda a regra anterior da anulabilidade.
Dito de outro modo, o Legislador, em 2015, consagrou expressamente a nulidade para os atos de fracionamento ou troca que sejam contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, ou seja, que consistam no fracionamento do prédio rústico parcelas inferiores à unidade de cultura, quando anteriormente a consequência jurídica prevista para esses atos estava limitada à mera anulabilidade, a arguir no prazo de 3 anos, sob pena de sanação.
E a Portaria n.º 219/2016, de 9 de agosto, publicada ao abrigo do disposto no art.º 4.º/3 e art.º 49.º da mencionada Lei n.º 111/2015, veio fixar a superfície máxima resultante do redimensionamento de explorações agrícolas com vista à melhoria da estruturação fundiária da exploração e a unidade de cultura a que se refere o art.º 1376.º do Código Civil, estabelecendo (para a mesma zona do País) para os terrenos de regadio 2,5 (hectares) e para o terreno de sequeiro 48 (hectares).
Ora, como se afirma no citado Acórdão do STJ de 26/01/2016 “A observância das normas administrativas respeitantes ao ordenamento do território é – na posição que adotamos – não só necessária nos procedimentos de justificação que têm como fundamento a usucapião que correm perante os notários e conservadores, como também quando a mesma é invocada perante os tribunais.
Os tribunais judiciais não podem, pois, manter-se como espaços de aplicação exclusiva do direito civil ignorando as intersecções deste com o direito do urbanismo, sendo cada vez mais urgente, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, abandonar o estado de unicidade nas relações entre ambos estes ramos do direito”.
No caso concreto, através da presente ação pretende o Ministério Público que se declarem nulos os negócios celebrados pelos réus no Cartório Notarial de Palmela, que se traduzem na celebração de escrituras públicas de justificação, nas quais justificaram a sua posse e aquisição, por usucapião, respetivamente do prédio misto sito em C..., Freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, composto na sua parte rústica de terreno hortícola de regadio, com a área de 2.753, 17 m2, atualmente inscrito na matriz com o art. … da Secção D; e do prédio rústico sito em C..., Freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, composto de terras de semeadura e árvores de fruto, com a área de 2.623,92 m2, atualmente inscrito na matriz com o art. … da Secção D; parcelas estas a destacar do prédio rústico com a área total aproximada de 5.500m2, composto a parte rústica de terreno hortícola de regadio e charco e a parte urbana de casas térreas de habitação, sito em C..., Freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, inscrito na matriz sob o art.º …- secção D da Freguesia de Pinhal Novo, e descrito no registo predial de Palmela sob o nº ….
Assim, os réus dividiram em duas parcelas o prédio rústico com a área total aproximada de 5.500m2, correspondendo cada uma delas a uma área de 2.753, 17 m2 e 2.623,92 m2, respetivamente, ou seja, bastante inferior à unidade de cultura fixada para esse terreno e zona do País, que no caso era de 0,50 hectares - terreno de regadio hortícola, tendo em conta a Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril, já que à data em que foi realizado o ato de fracionamento do prédio rústico (26 de Setembro de 2013), ainda não estava em vigor a Portaria n.º 219/2016, de 9 de agosto, na sequência da Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto.
Assim, à invalidade desses atos de fracionamento e respetivas consequências jurídicas será aplicável o regime previsto no citado art.º 1379.º/1e 3 do C. Civil, na sua versão anterior à introduzida pela Lei n.º 111/2015, que prevê expressamente a anulabilidade, o que afasta a aplicação do art.º 294.º, ou seja, são anuláveis (e não nulos, como sucede atualmente), devendo a ação de anulação ser proposta no prazo de três anos, a contar da celebração do ato, sob pena de caducidade.
Sublinha-se que, face ao atual regime vertido no art.º 1379.º/1 do C. Civil, a lei sanciona com a nulidade o ato de fracionamento em desrespeito pelo art.º 1376.º, o que significa a impossibilidade de sanação da invalidade do ato, com todas as consequências daí decorrentes, nomeadamente a sua invocação a todo o tempo e conhecimento oficioso pelo tribunal – art.º 286.º, do C. Civil.
Regime que, apesar de não ser aplicável à data do ato de fracionamento, corrobora e reforça a interpretação que fazemos, aderindo à segunda orientação jurisprudencial, por traduzir a visão do legislador em reforçar a imperatividade das normas de interesse público, consubstanciadas nas regras estabelecidas para o fracionamento e emparcelamento de prédios rústicos agrícolas ou da estruturação fundiária.
E como se reafirma no citado Acórdão do STJ de 30/04/2015, “A circunstância de, uma vez celebrado o negócio contra disposição imperativa, este ser anulável, não significa que o Tribunal consinta, por exemplo, em proceder à divisão de prédio rústico em parcelas inferiores à unidade de cultura, tratando como divisível o que a lei prescreve ser indivisível; tão pouco significa que se imponha ao oficial público ou outra entidade com poderes para o efeito a outorga de escritura de divisão de imóvel em que declaradamente se desrespeite o mencionado artigo 1376.º/1 do Código Civil”.
Assim, se dúvidas houvesse quanto à prevalência do regime previsto no art.º 1376.º e 1379.º do C. Civil sobre o fracionamento e aquisição, por usucapião, verificados os respetivos pressupostos, de parcela de terreno de área inferior a superfície correspondente á unidade de cultura, deixaram de subsistir perante a redação atual do n.º1 do art.º 1379.º do C. Civil, na versão dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, ao sancionar expressamente com a nulidade os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos art.ºs 1376.º e 1378.º.
Ora, quando a lei proíbe obtenção de um determinado resultado, tem de proibir necessariamente todos os meios adequados para o atingir.
Por isso, não faria sentido cominar esses atos de fracionamento contra o disposto no art.º 1376.º, mas permitir o seu fracionamento físico, material e jurídico em consequência da sua aquisição por usucapião, sob pena de, por essa via, estar encontrada a solução para afastar a proibição legal, ou seja, permitia-se a entrada pela janela, já que a porta estava fechada.
Acresce que o próprio art.º 1287.º do C. Civil, admite exceções ao instituto da usucapião, enquanto forma originária de aquisição do direito real de propriedade, ao prever expressamente que “a posse do direito de propriedade ou outro direito real de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito correspondente a sua atuação”.
Repare-se que nesta disposição legal não se estabelece “salvo disposição expressa em contrário”, o que permite afirmar que da conjugação do disposto no art.º 1376.º/1 com o n.º1 do art.º 1379.º, na sua versão atual, fica excluída a aquisição, por usucapião, de parcela de terreno inferior à área correspondente à unidade de cultura.
Acompanhamos, pois, de perto, o que se escreveu no citado Acórdão do STJ de 26/1/2016, “O diálogo entre o direito civil e o direito do urbanismo e o objetivo de aplicação uniforme e coerente do ordenamento jurídico como um todo implicam que as normas de cariz administrativo respeitantes ao fracionamento, ao loteamento e ao destaque de imóveis sejam atendidas aquando do reconhecimento das formas de aquisição da propriedade, mormente da usucapião.
Os tribunais judiciais não podem manter-se como espaços de aplicação exclusiva do direito civil ignorando as intersecções deste com o direito do urbanismo, sendo cada vez mais urgente, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, abandonar este estado “monocromático” das relações entre ambos estes ramos do direito”.
Por essa razão, a decisão recorrida não poderá ser mantida, pelo que procede a apelação.
Porque vencidos, as custas da apelação e da ação serão da responsabilidade dos réus/recorridos – art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil.