OFENSAS À INTEGRIDADE FÍSICA
LESÕES RECÍPROCAS
DISPENSA DE PENA
Sumário


I - A dispensa de pena no âmbito do crime de ofensa à integridade física simples, para além da verificação da previsão de uma das alíneas do nº 3, do art. 143.º do CP, pressupõe ainda a verificação dos pressupostos gerais de aplicação do instituto, previstos nas alíneas a) a c) do n.º 1 do art. 74.º do CP, ou seja, as circunstâncias do caso devem permitir concluir que a ilicitude e a culpa são diminutas, o dano está reparado, e à não aplicação de pena não obstam razões de prevenção.

II - Num caso em que duas arguidas são simultaneamente agressoras e agredidas, e causam e sofrem lesões corporais semelhantes, é correcto considerá-las compensadas na reparação do mal sofrido, para efeitos de responsabilidade penal, sendo este juízo independente da indemnização que possa resultar da responsabilidade civil.

Sumariado pela relatora

Texto Integral


Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo n.º 273/14.1.PBFAR, da Comarca de Faro, foi proferida sentença em que, ao que ora interessa, se decidiu “declarar cada uma das arguidas, MR e ML, culpadas pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal” e “dispensar de pena as arguidas, nos termos do disposto nos artigos 143.º, n.º 3, al. a) e 74.º, ambos do Código Penal.”

Inconformado com o decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo:

“1.As arguidas foram condenadas cada uma pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. nos termos do artigo 143.º n.º1 do CP, na sequência de agressões mutuas.

2.Uma vez ponderados os factos dados por provados e demais circunstâncias do caso concreto, entendeu o tribunal “a quo” aplicar o instituto da dispensa de pena às arguidas, por achar preenchidos os pressupostos a que aludem os artigos 143.º n.º 3 alínea a) e 74.º n.º 1 alíneas a) a c) e n.º 3, todos do CP.

3.Entende, contudo, o Ministério Público, que tal não se verifica, uma vez que, ao contrário do que foi convicção do julgador, o requisito previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 74.º do CP não se encontra observado, designadamente, a reparação efetiva e real dos danos por parte das arguidas uma à outra.

4.Entendeu-se, na sentença recorrida, ter-se por verificado tal pressuposto, uma vez que as arguidas se agrediram mutuamente e no mesmo grau de intensidade, pelo que se encontram compensadas na reparação do mal sofrido.

5.Ora, a reparação devida, para efeitos do preenchimento do pressuposto legal constante na alínea b) do n.º 1 do artigo 74.º do CP, terá necessariamente de se verificar real e efetivamente e não ficcionada por qualquer compensação.

6.Por conseguinte, não se encontram verificados os pressupostos necessários à aplicação do instituto da dispensa de pena, no caso concreto (falta de reparação efetiva dos danos); pelo que, ao decidir pela sua aplicação, incorreu a sentença proferida na violação do disposto nos artigos 74.º n.º 1 alínea b) e 3 do CP, por referência à alínea a) do n.º 3 do artigo 143.º do mesmo diploma legal.

7.Assim sendo, a sanção a aplicar às arguidas, na sequência do apuramento da responsabilidade criminal que lhes cabe, será a pena de multa, uma vez que se afigura menos gravosa para as mesmas em comparação com a pena de prisão, e permite, além disso, a satisfação adequada das finalidades preventivas que o caso reclama. (art. 70.º do CP).

8.Operando-se à determinação da medida da pena de multa, em função dos critérios estabelecidos nos artigos 47.º n.º 1 e 2 e 71.º, todos do CP, e bem assim, as condições económicas das arguidas, entende-se ser de aplicar a cada uma delas uma pena de 70 dias de multa, à razão diária de €5,00, num quantitativo global de €350,00.

Nestes termos, deverá ser dado provimento ao recurso, ora interposto, e, consequentemente, ser revogada a sentença, no que à aplicação da dispensa de pena diz respeito, substituindo-se por outra decisão que determine a aplicação de pena de multa, como sanção necessária e adequada ao caso concreto, a fixar em 70 dias, à razão diária de €5,00, num quantitativo global de €350,00 (a cada uma das arguidas).”

A arguida MR respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da improcedência.

Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer acompanhando o recurso do Ministério Público.

Não houve resposta ao parecer. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. No dia 23 de Março de 2014, pelas 16h30m, a arguida MR dirigiu-se à Rua Teresa Ramalho Ortigão, n.º 3, em Faro, para pedir dinheiro a MA, mãe da arguida ML.

2. A arguida ML, que se encontrava no interior da habitação com os seus pais, ao se aperceber da presença da arguida MR, saiu para a rua.

3. Nesse momento, as arguidas travaram-se de razões, começando a agredir-se mutuamente, partindo cada uma em direcção à outra, agarrando-se, sem que se tenha logrado apurar quem iniciou a contenda.

4. Agarradas uma à outra, a arguida MR, com a mão, arranhou na zona da face ou pescoço a arguida ML, e, acabando por caírem ao chão, a arguida ML, com as mãos, agarrou na zona dos ombros MR e fê-la embater contra o chão.

5. As arguidas acabaram por ser separadas por dois indivíduos, de identidade não apurada.

6. Posteriormente, a arguida ML entrou na residência e a arguida MR abandonou o local.

7. Como consequência directa, adequada e necessária das supra descritas condutas: a arguida MR necessitou de receber assistência hospitalar e sofreu dores nas zonas anatómicas atingidas e um hematoma occipital; a arguida ML, além de dores nas zonas anatómicas atingidas, sofreu as seguintes lesões: Membro superior esquerdo: escoriação superficial na mão, na raiz do 3.º dedo; Membro inferior direito: equimoses superficiais no joelho; e Membro inferior esquerdo: equimoses superficiais no joelho.

8. As lesões sofridas pelas arguidas determinaram, a cada uma delas, oito dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

9. As arguidas agiram forma livre, voluntária e consciente com o propósito concretizado de se molestarem mútua e fisicamente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

10. Com a conduta da arguida demandada MR, supra descrita, a demandante ML sentiu-se envergonhada perante as pessoas que a tudo assistiram na via pública.

11. No âmbito da actividade assistencial, o Centro Hospitalar do Algarve EPE, na sequência da conduta da arguida ML supra descrita, prestou cuidados a MR, traduzidos na observação clínica no serviço de urgência em 24.03.2014, com o custo de €124,07.

12. A arguida ML exerce a profissão de conferente na grande superfície comercial Jumbo, auferindo de remuneração laboral cerca de €650,00. Presta ainda serviços na área da limpeza, em part-time, o que lhe rende mais cerca de €400,00 por mês.

13. Vive sozinha em casa própria cuja prestação mensal para amortização de empréstimo contraído para aquisição da habitação se fixa entre €350,00 e €400,00.

14. A título de amortização de empréstimo contraído para aquisição de veículo automóvel e motorizada paga mensalmente cerca de €250,00.

15. A arguida ML não tem filhos.

16.Tem como habilitações literárias o 12.º ano de escolaridade.

17. A arguida ML não tem antecedentes criminais.

18. A arguida MR encontra-se desempregada desde 2014, sendo que até lá e durante três anos explorou estabelecimento comercial na área da restauração.

19. Actualmente beneficie de RSI no valor de €180,00 e vive em casa emprestada por um amigo.

20. Tem como habilitações literárias o 12.º ano de escolaridade.

21. A arguida Maria Rosa não tem antecedentes criminais.

22. A arguida MR viveu cerca de quinze anos com MJ, irmão da arguida ML, como o se de marido e mulher se tratassem, não sendo pacífica a relação entre aqueles e esta por razões familiares.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP (AFJ de 19.10.95), que no caso não se detectam, a questão a apreciar respeita à pena.

O Ministério Público insurge-se contra a “dispensa de pena” por considerar que, em concreto, não se verificam os pressupostos legais para a sua aplicação.

Na motivação do seu recurso, argumentou:
“Prevê o artigo 143.º n.º 3 do CP, no âmbito do crime de ofensa à integridade física simples, que o tribunal pode dispensar de pena o arguido, quando se verificar qualquer uma das situações previstas nas duas alíneas do n.º 3 do mesmo artigo.

A esta exigência somam-se os pressupostos gerais de aplicação deste instituto, constantes nas três alíneas do n.º 1 do artigo 74.º do CP, por força do n.º 3 do mesmo artigo.

O instituto da dispensa de pena pressupõe a verificação efetiva de responsabilidade por parte do arguido. Exige-se que se encontrem reunidos todos os pressupostos necessários à imputação do crime, o qual, porém, não obstante a sua verificação, não justifica a aplicação de pena, no caso concreto, em atenção às finalidades de natureza político-criminal que se encontram subjacentes a tais sanções. Exige-se, assim, uma efetiva verificação da prática do crime, não podendo subsistir qualquer circunstância que permita excluir a responsabilidade criminal do arguido.

Verificados elementos probatórios bastantes, capazes de fazer concluir pela verificação do crime e do seu agente, terá necessariamente de ser proferida decisão condenatória. Porém, ponderadas as circunstâncias subjacentes à sua prática, a aplicação de pena acaba por se afigurar desnecessária, o que leva ao seu afastamento.

E esta conclusão, pela desnecessidade de pena conducente à aplicação de dispensa de pena, há-de alcançar-se através da apreciação casuística das condições do n.º 1 do artigo 74.º do CP. Necessário se torna, assim, que se conclua pela existência de uma ilicitude e de uma culpa diminutas no caso concreto, que à não aplicação de pena não se oponham razões de prevenção e, por último, mas igualmente importante, é necessário que o dano tenha sido reparado pelo arguido.

Este último pressuposto é, quanto a nós, o que não foi observado pelo tribunal “a quo”, porquanto considerou bastante para a aplicação do instituto, o princípio da compensação. Como se agrediram mutuamente e no mesmo grau de intensidade têm-se compensadas na reparação do mal sofrido. Considerou, pois, que não era relevante, que ao tempo da sentença, as arguidas não tivessem voluntariamente procurado reparar o mal causado a cada uma delas.

A nosso ver, este entendimento não é, claro está, o mais consentâneo com a ratio do instituto e com a posição generalizada da doutrina e da jurisprudência.

Conforme se defendeu no Acórdão da Relação de Évora de 11/07/2006, proc. n.º 1100/06-1, relator Pires da Graça, in dgsi, “a reparação do dano é “conditio sine qua non” para a aplicação do instituto de dispensa de pena,” sendo que, e tal como bem refere Maia Gonçalves, in Código Penal Português Anotado, 2.ª ed, p. 286, “os pressupostos de que depende a dispensa de pena devem estar verificados no momento da sentença”.

Como bem se compreende, sem o preenchimento destes três requisitos cumulativos do artigo 74.º n.º 1, não podemos, com segurança, defender a desnecessidade de pena, no caso concreto, porque além de cumulativos estão também inter-relacionados.

Refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, p. 319, “que de um ponto de vista político-criminal, a exigência de reparação efectiva liga-se substancialmente ao requisito (…) de que à dispensa de pena se não oponham exigências de prevenção”.

Por conseguinte, a aplicação do instituto, em apreço, tem subjacente a observância das exigências das alíneas do artigo 74.º n.º 1 do CP, antes de o juiz proferir a sentença condenatória, o que não foi, certamente, o caso dos presentes autos. A juiz “ a quo” limitou-se a dispensar as arguidas da pena, com base numa reparação ficcionada, não real nem efetiva. Contudo o que o legislador pretende é uma reparação real e efetivado dano causado.”

As considerações gerais desenvolvidas pelo Ministério Público afiguram-se correctas e são, por isso, de subscrever. A transcrição a que se procedeu dispensa repetições, bastando destacar que a dispensa de pena, decorrente duma desnecessidade de pena, pressupõe efectivamente a verificação das condições previstas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do art. 74.º do CP.

Assim, para haver lugar a dispensa de pena as circunstâncias do caso devem permitir concluir que, em concreto, a ilicitude e a culpa são diminutas, o dano encontra-se reparado, e à não aplicação de pena não obstam razões de prevenção.

Este foi também o quadro legal (devidamente) identificado na sentença, encontrando-se assim a controvérsia do recurso circunscrita ao ponto seguinte, afirmado pelo Ministério Público: “A juíza “ a quo” limitou-se a dispensar as arguidas da pena, com base numa reparação ficcionada, não real nem efetiva.

Contudo o que o legislador pretende é uma reparação real e efetivado dano causado.”

Cumpre partir da decisão sindicada. E o excerto da sentença que agora releva é o seguinte:
“Nos termos do disposto pelo artigo 40.º do Código Penal, a finalidade primeira das penas reside na tutela dos bens jurídicos, devendo traduzir, a sua aplicação, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da norma violada, sem perder de vista, a reinserção social do arguido. Dever-se-á assim procurar satisfazer as exigências de prevenção e de repressão geral da criminalidade, por um lado, e, por outro, as exigências específicas de socialização e prevenção da prática de novos crimes.

É a seguinte a moldura penal aplicável ao crime em causa: pena de prisão de 1 mês a 3 anos ou pena de multa de 10 a 360 dias – cfr. artigos 143.º, n.º 1, 41.º, n.º 1 e 47.º, n.º 1, todos do Código Penal.

Do artigo 143.º, n.º 3, alínea a), do Código Penal consta que “O tribunal pode dispensar de pena quando tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro.”.

Nas palavras de Paula Ribeiro de Faria “A lei prevê a dispensa de pena sempre que ocorra reciprocidade de condutas criminosas. Acerca do sentido que deve atribuir-se à dispensa de pena enquanto caso especial de determinação da pena cf., por todos, FIGUEIREDO DIAS, DP II § 467 ss.

A al. a) do n.º 3 do art. 143º refere-se a todas aquelas situações em que houve lesões recíprocas sem que fique provado qual dos contendores agrediu primeiro. Parece abrangida por esta disposição toda a agressão, não necessariamente simples nem necessariamente dolosa, que encontre resposta numa ofensa à integridade física simples por parte do agente.

Não sendo possível determinar a ordem cronológica das condutas, fica por apurar a existência de uma eventual legítima defesa por parte daquele que actua em segundo lugar. A lei parte aqui de um princípio de compensação e de desnecessidade da pena, uma vez que ambos os agentes foram simultaneamente agressor e agredido.” - cfr. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1999, p. 220.

Dispõe o artigo 74.º, n.º 3, do Código Penal, Parte Geral, Título III, Capítulo IV, sob a epígrafe “Dispensa de pena”, “Quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do n.º 1.”. Os requisitos são: a) a ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas; b) o dano tiver sido reparado; e c) à dispensa de pena se não opuserem razoes de prevenção – cfr. n.º 1 do artigo 74.º do Código Penal.

Entende o Tribunal que estamos perante um caso de se fazer uso deste instituto da dispensa de pena.

A ilicitude do facto, atenta a pouca gravidade das lesões, é baixa; a culpa das arguidas também é de grau baixo atenta o estado emocional vivido em consequência dos problemas familiares existentes. De facto, as agressões surgem em contexto de problemas familiares que se arrastam há anos, e não se apresenta de grande expressão a intensidade das lesões; as arguidas não têm antecedentes criminais, não apresentam necessidades especiais de reinserção social, e, olhando às exigências de prevenção geral, ficarão estas suficientemente acauteladas com a circunstância de as arguidas serem declaradas culpadas, servindo isso o limiar mínimo de prevenção geral de integração ou de defesa do ordenamento jurídico.

Ou seja, o forte impacto que a ofensa à integridade física tende a provocar no universo das representações colectivas – assente na degradação das relações sociais e humanas associada à desconsideração pela pessoa humana – considerando os factos concretos, seu circunstancialismo e gravidade das consequências, vê-se francamente atenuado, não ficando gorada a expectativa da comunidade se a reafirmação da vigência da norma violada pelas arguidas assentar somente na declaração de culpabilidade daquelas.

No caso concreto, a aplicação de uma pena não é imprescindível às finalidades que à mesma se encontram associadas.

A reparação do dano, no presente caso, vê-se verificada com base no princípio de compensação que está na base da previsão legal da alínea a) do n.º 3 do artigo 143.º do Código Penal, conforme supra exposto. O facto de ambas as arguidas terem sido simultaneamente agressora e agredida, e no mesmo grau de intensidade - oito dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional – têm-se naturalmente por compensadas na reparação do mal sofrido, para efeitos de responsabilidade penal. A reparação a fazer por cada uma das arguidas à outra, tendo-se na mesma medida – a reparação a fazer por cada uma das arguidas seria igual, assim se anulando mutuamente em caso de prestação positiva – vê-se, por via da lógica da compensação, realizada – isto claro está independentemente de indemnização que possa resultar da responsabilidade civil, cuja análise é própria e por factos que extravasam os integrantes dos elementos típicos do crime, dependente do pedido da lesada e que não contende com esta análise em sede de responsabilidade penal e estritamente jurídico-penal, muito concretamente em matéria de finalidade da pena.

Em conclusão, deverá ter lugar a aplicação do instituto de dispensa de pena.”

Começa por se recordar que os recursos são sempre remédios jurídicos e que também em matéria de pena mantém o arquétipo de recurso-remédio.

A propósito da determinação concreta da pena, a doutrina mais representativa e a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça têm sufragado o entendimento de que a sindicabilidade da medida da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (cf. Figueiredo Dias, DPP. As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197).

A Relação não julga de novo, não determina a pena como se inexistisse uma decisão de primeira instância, e a sindicância desta decisão pelo tribunal superior não abrange a fiscalização do quantum exacto de pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada. E não inclui a compressão da margem de livre apreciação reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar. A margem de liberdade do juiz de julgamento nos limites expostos, abrange todo o processo prático de decisão sobre a pena.

Dentro deste quadro de entendimento e de definição dos poderes de cognição da Relação, a leitura da sentença permite concluir que esta não evidencia a inobservância de qualquer regra legal ou princípio respeitante à pena, concretamente no que se refere à ponderação da dispensa de pena.

Na verdade, e embora as considerações jurídicas desenvolvidas pelo recorrente se mostrem em abstracto correctas, mormente no que respeita à exigência do que designou por “terceira condição para a dispensa de pena”, a interpretação seguida pelo tribunal (para ter considerado como concretamente verificada essa condição) mostra-se juridicamente defensável, ainda compreensível e, como tal, de aceitar.

Na interacção com as arguidas, dispôs o juiz de julgamento de condições óptimas para poder avaliar (ao que ora releva) as necessidades de pena, condições seguramente sempre melhores do que aquelas de que disporá a Relação.

Este quadro de dissimilitude das “distâncias” é o naturalmente decorrente da distinção de tratamento entre uma existência de imediação e uma ausência dela. Note-se que, também aqui, o arguido tem não apenas o dever mas também o direito a estar (presencialmente) perante o juiz que lhe fixa a pena.

Este direito de audiência e de presença, expressão máxima do princípio contraditório e do exercício dos direitos de defesa, visa facultar ao tribunal que vê e ouve o arguido, que interage directamente com ele, o máximo de informação sobre a sua personalidade, circunstância necessariamente (muito) relevante no processo de determinação da sanção.

O processo de determinação da pena, como actividade judicialmente vinculada que é, inclui obrigatoriamente a avaliação das “condições pessoais do agente”, na letra da lei - art. 71º, nº 2, al. d), do CP.

E mostrando-se agora juridicamente defensável, e ainda concretamente compreensível, a posição sufragada na sentença, e cabendo ao tribunal de recurso sindicar a decisão com vista apenas à detecção de erros de julgamento – que, em matéria de pena, têm de ser erros evidentes, atenta a margem de liberdade reconhecida ao juiz de primeira instância nos termos e pelas razões expostos – a decisão tomada é de confirmar.

E é-o pois não se evidenciam razões de prevenção que a ela manifestamente se oponham – nem de prevenção especial (as arguidas são primárias), nem de prevenção geral (não repugna que esta se baste com o juízo de culpa e a condenação afirmados na sentença). E também não se vislumbra que dano seria esse afinal, ainda a carecer de reparação. O Ministério Público invoca-o, mas não o concretiza, ficando-se pela alegação de que não teria havido reparação.

Na ausência de alegação e de demonstração de um outro dano, ainda a pedir reparação, é de aceitar o entendimento expresso na sentença, e apoiado em doutrina relevante, de que “a lei parte aqui de um princípio de compensação e de desnecessidade da pena, uma vez que ambos os agentes foram simultaneamente agressor e agredido”.

E mesmo não se aceitando, como justificação do instituto da dispensa de pena, o tratar-se aqui de uma cedência à composição privada de conflitos, o certo é que não deixam de se confundir na mesma pessoa as qualidades de credor e de devedor, o que civilmente relevaria para a extinção da dívida.

Acresce que é sempre descortinável “um entrelaçamento de razões de direito penal material e de direito processual penal, já que não sendo possível proceder à prova de qual dos agentes agrediu primeiro, ambas as condutas passam a estar sujeitas a uma valoração global que as vê como expressão de um equilíbrio social de coisas que o direito penal tem de reconhecer, se não ao nível do tipo, afastando a sua consideração como ofensas à integridade física típicas, pelo menos, como critério de desnecessidade de punição no caso concreto” (Paula Ribeiro Faria, Comentário Conimbricense ao Código Penal, org. Figueiredo Dias, Vol. I, 2ª ed., pp. 331/2).

Mostra-se, por tudo, correcta a sentença tanto na parte em que refere que “o facto de ambas as arguidas terem sido simultaneamente agressora e agredida, e no mesmo grau de intensidade - oito dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional – têm-se naturalmente por compensadas na reparação do mal sofrido, para efeitos de responsabilidade penal”, como quando se considera que este juízo não colide e é independente da “ indemnização que possa resultar da responsabilidade civil, cuja análise é própria e por factos que extravasam os integrantes dos elementos típicos do crime, dependente do pedido da lesada e que não contende com esta análise em sede de responsabilidade penal e estritamente jurídico-penal, muito concretamente em matéria de finalidade da pena.”

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.

Sem custas.

Évora, 06.06.2017

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)