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CHEQUE
PAGAMENTO
CHEQUE RASURADO
CULPA
Sumário
1. Em face da convenção de cheque, o banco fica vinculado ao dever de fazer verificar cuidadosamente os cheques que lhe sejam apresentados, recusando o paga- mento dos que suscitem dúvidas; por sua vez, o cliente fica adstrito à obrigação de guardar convenientemente os impressos (ou módulos) destinados à emissão de che-ques, evitando o seu extravio ou a sua apropriação ilícita; 2. A entidade bancária que haja pago um cheque falsificado, apenas se pode eximir da responsabilidade total pelos prejuízos sofridos pelo cliente, se provar que agiu sem culpa ou que houve culpa exclusiva deste; 3. A culpa (que se presume) deve ser apreciada nos termos gerais da respon- sabilidade civil, «ex vi» do art. 799º, 2, do Código Civil, aplicando-se, portanto, o critério abstracto da «diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso» (cfr. o art. 487º, 2), mas considerando o empenhamento que deve garantir uma pessoa que se movimente no círculo especializado das instituições de crédito; 4. Agiu com culpa uma entidade bancária que pagou (a um terceiro) um cheque falsificado, em que a primeira palavra («Plachido» ou «Plachides») que integrava o nome do pretenso beneficiário se apresentava rasurada e não correspondia ao nome («Placido» – sic) do suposto endossante, tanto mais que se tratava de um «cheque cruzado» de valor relativamente elevado; 5. O facto de o cheque, originariamente, ostentar, no espaço destinado à indica- ção do beneficiário, apenas uma espécie de sigla («Plasticofer»), sem estar traçado o resto da linha, e ter ser enviado pelo correio, não afasta a culpa da entidade bancária.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães: I. Relatório: E …, Ldª., pessoa colectiva nº … , com sede … Porto, propôs a presente acção declarativa, com processo comum, na forma sumária, contra: C ..., S. A., pessoa colectiva nº …. , com sede ….. Lisboa,
Peticionando a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 4.231,85 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- Para pagamento de produtos fornecidos pela sociedade Plasticofer, Lda, emitiu o cheque nominativo nº 9272448356, da Caixa Geral de Depósitos, no montante de 4.231,85 €, a favor daquela;
- No dia 16-02-2006, enviou esse cheque, por via postal, para a sede da referida sociedade;
- Esse cheque nunca chegou entrar na posse da sociedade “Plasticofer”;
- Tal cheque foi viciado, passando a constar o nome Plachidos Fernando Mota, onde constava “Plasticofer, Lda.”;
- Essa rasura nota-se visualizando o cheque;
- O cheque foi endossado a Luís Manuel Pereira Ribeiro, em cuja conta veio a ser creditado pela agência da ré, em Braga (Santa Tecla), sendo debitado na sua conta;
- Teve que reunir meios para assegurar o pagamento à sociedade “”Plasticofer”.
A ré contestou, impugnando, em parte, a factualidade alegada pela autora, e sustentando, em súmula, que:
- A falsificação em causa não era detectável por um funcionário bancário;
- Tratando-se de um cheque endossado a um cliente da ré, só estava obrigada a assegurar a regularidade do endosso e não também a autenticidade das assinaturas dos endossantes;
- A autora, ao enviar o cheque por correio simples, não tomou precauções que obstasse ao desvio do mesmo cheque no percurso até ao destinatário;
- A autora podia ter aposto, no cheque, a cláusula “não à ordem”, de forma a impedir o endosso;
- A autora devia ter tomado a cautela de inutilizar o espaço em branco destinado à identificação do destinatário;
- Existe culpa da lesada, bastante para a isentar da obrigação de indemnizar.
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Por sentença de fls. 82 a 97, a acção foi julgada procedente, tendo a ré sido condenada a pagar à autora o montante de 4.231,85 €, acrescido de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a citação e até integral cumprimento.
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A ré recorreu, pretendendo a revogação da sentença e a sua absolvição do pe-dido, tendo alegado e retirado as seguintes conclusões:
1ª Tendo presentes os deveres da autora, enquanto titular de cheques, de os guardar cuidadosamente até à sua entrega ao beneficiário, evitando ou diminuindo os riscos de falsificação, preenchendo ou inutilizando todos os espaços em branco, mani-festa-se evidente que a opção feita pelo tribunal “a quo” de a isentar de toda e qualquer responsabilidade só foi possível em face de uma visão atomística da realidade, que o levou a analisar separadamente cada uma das condutas adoptadas por aquela, omi- tindo uma visão do conjunto, uma análise periférica e global dos efeitos da conjugação dessas condutas num único acto;
2ª Todavia, já uma visão global e única dos factos e da realidade que eles defi- nem impõe conclusão absolutamente diversa da que foi adoptada: quem envia cheques pelo correio simples tem obrigação de saber que a segurança do envio e a certeza da recepção do cheque, contido dentro da carta, pelo beneficiário, não é a mesma que existiria se seguisse ou por correio registado ou, mais ainda por seguro do correio, ou, melhor ainda, por entrega em mão ou o pagamento fosse feito por transferência bancá- ria (hoje em dia gratuita, se feita por via de ebanking ou multibanco);
3ª Por conseguinte, optando por esse meio de envio, era exigível à autora que adoptasse outras cautelas que, numa entrega pessoal ou por seguro do correio, seriam dispensáveis e se destinam a prevenir um risco que o emitente não pode deixar de ter presente e ele próprio assume ao enviar o cheque por correio simples: que o mesmo cheque seja interceptado por terceiro e falsificado;
4ª Colocando a cláusula “não à ordem”, preenchendo completamente a identi- dade do beneficiário e eliminando, com um ou dois traços paralelos horizontais, os espaços que ficassem em branco, quer quanto ao valor por números e extenso, quer quanto à identificação do beneficiário, a autora teria afastado ou, pelo menos, dimi- nuído sensivelmente qualquer veleidade de falsificação;
5ª Preenchendo completamente o espaço destinado à identificação do destina- tário/beneficiário ou com a denominação completa ou com duas linhas horizontais no espaço que ficasse em branco, o falsificador do cheque teria de rasurar não só o "ch" do Pláchido" ou Pláchidos" ou Plácido" mas também toda a extensão do "Fernando" e do "Mota";
6ª Num tal caso, o funcionário da ré que recebeu esse cheque, entregue por um cliente seu, antigo e digno de todo o crédito, facilmente detectaria ou, pelo menos, estaria obrigado a detectar, a rasura e emenda que necessariamente se prolongariam ao longo dos três nomes: Pláchidos Fernando Mota e não apenas como ocorre numa única sílaba ou mesmo letra (o "I");
7ª Ao conceder ao falsificador a possibilidade de inserir no cheque a identifica- ção de um beneficiário pessoa singular, de forma que a inscrição de dois dos nomes (ou sobrenomes) se exibisse sem qualquer sinal de rasura ou emenda, limitando o eventual sinal de alarme, a rasura, a uma ou duas letras de um nome constituído por três palavras, a autora colaborou negligente mas intensamente para a ocorrência da falsificação;
8ª O argumento de que a falsificação se deu sobre uma palavra "Plasticofer", escrita pela autora e que, por conseguinte, ainda que tivesse sido anulado o espaço em branco, com duas linhas horizontais ou com a identificação completa da destinatária, aquela adulteração da palavra não teria deixado de ocorrer, não é idóneo a justificar a conclusão de que à autora nenhuma responsabilidade poderia ser assacada: Se o espaço em branco tivesse sido totalmente preenchido, com toda a probabilidade nem sequer o autor da falsificação se teria tentado a produzí-Ia; teria de alterar todas as palavras relativas à identificação do beneficiário e, como tal, qualquer que fosse o nome que inventasse ao longo de toda a sua extensão teria de surgir com rasuras;
9ª No que se refere à cláusula “Não à ordem” tão simples quão eficaz (!) a sua inserção teria obstado, in casu, à falsificação, sem qualquer custo ou inconveniente quer para a autora, quer para a beneficiária;
10ª Tendo optado por enviar um cheque com um valor significativo por correio simples, aumentando o risco de desvio e falsificação do mesmo e porque sobre ela recaíam deveres de diligência de guarda dos cheques até entrega ao seu beneficiário, a autora tinha ao seu alcance esse meio – que deveria ter utilizado – tão simples quão eficaz de reduzir ou anular aquele risco que ela entendeu assumir;
11ª A apreciação da actuação do banco terá de ser feita apenas através da observação do cheque, após a sua falsificação, e não por comparação com a cópia do mesmo, antes da falsificação, pois que o banco não teve a possibilidade de confrontar o cheque com a cópia do mesmo antes de ser enviado pelo correio;
12ª Num tal pressuposto qualquer funcionário bancário apto e experiente na análise macroscópica de cheques apresentados a pagamento, conhecedor das “Ieges artis” teria pago o mesmo, pois que dele apenas se constata que no nome do benefi- ciário, constituído por três palavras, o "c" da primeira palavra aparece algo carregado e logo após um "h" ou um "i" com uma haste;
13ª Tal lapso ou erro ou correcção, inserido numa palavra em que a maior parte das letras se mantiveram intocáveis a qual, por seu turno, era parte do nome de um beneficiário composto por mais duas palavras, que se mostravam intocáveis, jamais constituía sinal de alarme, de suspeição bastante para que o referido funcionário recu- sasse pagar o cheque;
14ª Sobretudo quando se apresentava a receber esse cheque um cliente antigo e digno de crédito da ré;
15ª E se tal sinal era insuficiente para criar fundadas suspeitas sobre a falsifi- cação, tal se ficou a dever à circunstância de a autora não ter preenchido cabalmente o espaço, que deixou em branco, destinado à identificação do beneficiário;
16ª Deste modo, a culpa na verificação da falsificação e do dano subsequente só à autora é imputável, o que conduzirá à improcedência da acção;
17ª Subsidiariamente, a entender-se de modo diferente, concluindo-se pela con- corrência de culpas da autora e da ré, sempre se teria de concluir que o contributo da autora para a verificação do dano foi bem mais intenso que o da ré;
18ª O que conduziria a que a ré só fosse responsabilizada, na pior das hipótese, por não mais de 25% do valor dos danos – art. 570º, 1, do C Civil;
19ª Decidindo de modo diferente o tribunal “a quo” violou o disposto nos arts. 483º e 570º do C Civil.
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A recorrida respondeu, propugnando pela manutenção do julgado, tendo formu- lado as seguintes conclusões:
a) Resulta provada dos autos a culpa da ré/apelante, ao proceder ao pagamento do cheque nº 9272448356, no valor de 4.231,85 €, sacado sobre a conta da autora, por depósito na conta de um cliente seu, sem cuidar de aferir da regularidade do nomina- tivo do referido cheque, que se apresentava manifestamente adulterado e a pagamento muito antes da data de vencimento nele aposta;
b) Estes factos conjugados deveriam ter feito a ré/apelante suspeitar desse depósito, em vez de o aceitar com leviandade e menor rigor, apenas por ser feito ao balcão por um seu cliente, antigo e conhecido na praça;
c) Não resulta provado dos autos que a ré/apelante tenha conseguido provar que o comportamento da autora/apelada tenha contribuído, nem sequer com mera culpa, para a produção do resultado, por ter remetido o cheque em causa por correio simples, sem ter aposto a cláusula “não à ordem” e sem ter preenchido detalhada- mente todo nominativo, fosse com a extensa designação comercial da empresa benefi- ciária do cheque, fosse com duas ou mais linhas horizontais ou oblíquas, pois que nunca qualquer outro procedimento alternativo (com correio registado, com cláusula “não à ordem” e com nominativo detalhado) seria garantia de dissuasão de falsificação;
d) Não lograria escrever "Pláchido(s?) Fernando Mota", onde antes se lia "Plasti- cofer", mas quem tenha sido o autor da falsificação teria, mesmo com a linha a trancar o termo da designação da empresa, conseguido, se o quisera, fabricar nominativo que fosse inserível nos caracteres já escritos;
e) Perante uma falsificação grosseira – uma sociedade comercial não envia a credor um cheque rasurado, emendado, duvidoso, porque tal emenda poderia implicar a recusa do pagamento do cheque no banco;
f) Espera-se um comportamento diligente e exigente de um banqueiro a quem se confia um depósito e quem, por via de um cheque, se dá uma ordem de pagamento;
g) A censura que é feita à CGD reside no facto de um cheque mal preenchido não ter visto recusado o seu pagamento, pelo facto de não ter, perante o cheque que lhe foi exibido, sequer representado que aquele nominativo pudesse, originalmente, não ser aquele;
h) Procede, portanto, com culpa, a CGD e é apenas sua a culpa pelo sucedido, não logrando, em qualquer momento, provar sequer que a autora/apelada tenha, com qualquer comportamento seu, activo ou omissivo, agido com culpa ou negligência e, assim, contribuído para o dano produzido.
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O recurso foi admitido como apelação, com efeito devolutivo.
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II. Questões a equacionar:
O âmbito dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recor-rentes, importando apreciar as questões que delas fluem, a não ser que outras se per- filem de conhecimento oficioso - arts. 684º, 2 e 3, 684º-A, 1 e 2, 685º-A, 1 e 2, e 660º, 2, parte final, do Código de Processo Civil. Assim, «in casu», há equacionar a questão da culpa na falsificação do cheque a que se reportam os autos e se, em concreto, essa culpa pode ser assacada, no todo ou em parte, à autora, bem como se a ré agiu ou não com culpa ao pagar esse cheque.
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III. Fundamentação: A) Factos provados:
1. A autora é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de fabrico e comercialização de louças de alumínio e outros metais – artigo 1º da petição inicial, admitido por acordo;
2. No exercício da respectiva actividade a autora estabeleceu relações comer- ciais com a sociedade “Plasticofer, Ldª”, tendo-lhe adquirido diversos produtos próprios do comércio da mesma – cfr. a resposta ao artigo 2º da petição inicial;
3. Para pagamento dos mencionados produtos e de acordo com o estabelecido entre as partes, a autora emitiu o cheque nominativo nº 9272448356, da Caixa Geral de Depósitos, ora ré, no montante de 4231,85 €, a favor da sociedade “Plasticofer, Ldª”, no qual foi aposta a data de 15.03.2006 – cfr. a resposta ao artigo 3º da petição inicial;
4. O aludido cheque foi enviado, por via postal, no dia 16.02.2006, para a sede social da supra citada sociedade, sita na Rua Dr. Sousa Dias, Lt C-S Carlos, Ap 196, 2725 - 285 Mem Martins – cfr. a resposta ao artigo 4º da petição inicial;
5. Em 20 de Fevereiro de 2009, a autora verificou que o referido cheque havia sido apresentado a pagamento e, consequentemente, sacado da sua conta – cfr. a resposta ao artigo 5º da petição inicial;
6. Tendo entrado em contacto com a gerência da sociedade a favor da qual o tinha emitido, a autora foi informada de que não havia recepcionado qualquer corres- pondência desta, nem tinha procedido ao depósito do cheque em apreço – cfr. a resposta ao artigo 6º da petição inicial;
7. Tal cheque nunca chegou à posse da referida sociedade "Plasticofer", a qual ficou impedida de o depositar na sua conta bancária e de ver desse modo creditado o respectivo valor – cfr. a resposta ao artigo 7º da petição inicial;
8. Confrontada com esta informação, a autora encetou diligências junto da insti-tuição bancária ré, tendo-lhe sido indicado que o cheque havia sido apresentado a pagamento numa sua dependência, em Braga, Santa Tecla – cfr. o artigo 8º da petição inicial, admitido por acordo;
9. Mais indicou, a referida instituição bancária que o cheque havia sido deposi- tado na conta de um cliente da Caixa Geral de Depósitos da dita dependência de Braga, Santa Tecla – cfr. o artigo 9º da petição inicial, admitido por acordo;
10. A autora solicitou cópia do indicado cheque à ré, para poder aferir como é que um cheque remetido para Mem Martins e emitido a favor de uma sociedade, foi levantado, em Braga, por uma pessoa singular – cfr. o artigo 10º da petição inicial, admitido por acordo;
11. Após diversa correspondência trocada nesse sentido, a autora obteve, em 14 de Março, cópia (frente e verso) do cheque sacado – cfr. a resposta ao artigo 12º da petição inicial;
12. Tendo verificado que, onde constava "Plasticofer", passou a constar "Plachidos" ou "Plachido" Fernando Mota – cfr. a resposta ao artigo 13º da petição inicial;
13. No verso do cheque, na parte destinada à identificação da conta a creditar constava: Luís Manuel Pereira Ribeiro – cfr., o artigo 14º da petição inicial, admitido por acordo;
14. Sendo que do referido verso constava ainda a seguinte informação, aposta pela ré “valor recebido para crédito da conta do beneficiário na Caixa Geral de Depósi- tos” – cfr. o artigo 15º da petição inicial, admitido por acordo;
15. O nome da sociedade a favor do qual foi emitido veio a ser alterado e rasu- rado, passando após estes actos a constar o nome de uma pessoa individual, a saber "Plachidos" ou "Plachido" Fernando Mota 15- O nome da sociedade a favor do qual foi emitido veio a ser alterado e rasurado, passando após estes actos a constar o nome de uma pessoa individual, a saber "Plachidos" ou "Plachido" Fernando Mota – cfr. a res-posta ao artigo 16º da petição inicial;
16. A autora não tem, nem nunca teve, quaisquer relações com Plachidos Fernando Mota, desconhecendo quem é esta pessoa – cfr. a resposta ao artigo 17º da petição inicial;
17. Do teor do verso do cheque consta um endosso com uma assinatura – cfr. a resposta ao artigo 18º da petição inicial;
18. O referido cheque foi creditado na conta de Luís Manuel Pereira Ribeiro, desconhecendo, igualmente, a autora quem é esta pessoa, com a qual também não tem ou teve quaisquer relações comerciais – cfr. a resposta ao artigo 19º da petição inicial;
19. À autora não foi facultada mais nenhuma informação acerca da pessoa que procedeu ao endosso do cheque, bem como da pessoa em cuja conta o cheque veio a ser depositado – cfr. o artigo 20º da petição inicial, admitido por acordo;
20. A autora desconhece ainda como é que o cheque se extraviou, foi viciado, veio a ser depositado na conta de Luís Manuel Pereira Ribeiro – cfr. o art. 21º da petição inicial, admitido por acordo;
21. À autora foi debitado em conta o montante aposto no cheque por pessoa com a qual não tem qualquer relação comercial, ou outra, que titulasse o referido paga- mento – cfr. a resposta ao artigo 22º da petição inicial;
22. A autora teve de reunir meios financeiros para poder assegurar o pagamento devido à sociedade "Plasticofer", a favor de quem havia preenchido o cheque em apreço – cfr. a resposta ao artigo 23º da petição inicial;
23. Houve viciação e apropriação do cheque remetido pela autora e onde cons- tava "Plasticofer" foi aposto o nome "Plachidos" ou "Plachido" Fernando Mota, tendo sido o cheque rasurado – cfr. a resposta ao artigo 35º da petição inicial;
24. Visualizando o cheque, denota-se uma rasura no local destinado a tal menção – cfr. a resposta ao quesito 41º da petição inicial;
25. Tratando-se de cheque cruzado, o mesmo foi apresentado a pagamento e depositado na conta de um cliente já antigo, pessoa conhecida e respeitada, exercendo uma actividade comercial – cfr. a resposta ao artigo 9º da contestação;
26. A autora enviou esse cheque, por correio simples, sem nele inserir a cláu- sula “Não à ordem”, identificado o beneficiário com um único nome e deixando em branco todo o espaço restante dessa rubrica – cfr. a resposta ao artigo 25º da contes- tação;
27. O cheque em causa foi depositado numa conta à ordem de Luís Manuel Pereira Ribeiro – cfr. a resposta ao artigo 27º da contestação;
28. Trata-se de um cliente da Caixa Geral de Depósitos, com conta na agência de Santa Tecla, em Braga, e que reside na Rua Professor Dr. Carlos Lloyde Braga, 14, 5.° esqº, S. Victor Braga – cfr. a resposta ao artigo 28º da contestação;
29. A autora identificou o sacado e expediu a carta à semelhança de dezenas de outras com igual conteúdo e para os mais diversos destinatários – cfr. a resposta ao artigo 18º da resposta à contestação;
30. A autora mantinha relações com a ré há anos – cfr. a resposta ao artigo 19º da resposta à contestação;
31. A autora preencheu o cheque – cfr. a resposta ao artigo 28º da resposta à contestação;
32. Expediu o mesmo em carta fechada dirigida ao destinatário – cfr. a resposta ao artigo 29º da resposta à contestação;
33. A autora utilizou os CTT – cfr. a resposta ao artigo 30º da resposta à contes- tacão;
34. Adoptou nesta cadeia de actos o mesmo comportamento que há anos vinha reiteradamente a adoptar – cfr. a resposta ao artigo 31º da resposta à contestação.
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B) Enquadramento jurídico:
No caso dos autos estamos em face de um cheque em que foi falsificada a denominação da sociedade beneficiária dele, por via de rasura e do acrescentamento de duas palavras que podem fazer parte do nome de uma pessoa.
Decorre da factualidade assente resulta que: essa falsificação ocorreu depois de a autora ter enviado, por correio, o cheque para a sede da sociedade beneficiária dele, mas antes de o mesmo ser apresentado a pagamento, e é imputável a um terceiro não identificado.
Importa, assim, equacionar a questão da culpa na falsificação desse cheque e se, em concreto, essa culpa pode ser assacada, no todo ou em parte, à autora, bem como se a ré agiu ou não com culpa ao pagar o montante por ele titulado.
Como se sabe e consta da sentença recorrida, na base da emissão e pagamen- to de um cheque encontram-se duas relações jurídicas distintas: a relação de provisão e o contrato ou convenção de cheque.
A relação de provisão traduz-se em o emitente do cheque dispor no banco sacado de meios financeiros que permitam o seu pagamento, podendo esses meios resultar de um depósito, de um contrato de concessão de crédito, de uma conta-corren- te, de um ou mais descontos, de um contrato de descoberto em conta ou «overdraft», etc.
A convenção de cheque consiste num acordo estabelecido entre o banco (sacado) e o cliente (sacador), por força do qual este pode, através da emissão de cheques, proceder a pagamentos, mobilizando os meios financeiros a que se reporta a relação de provisão.
A convenção de cheque implica deveres recíprocos, para ambas as partes, que vão para além do direito de o cliente emitir cheques e obter o seu pagamento e do correspectivo dever do banco de pagar tais cheques. Para o que aqui nos interessa, temos que: o cliente fica adstrito à obrigação de guardar convenientemente os impres- sos (ou módulos) destinados à emissão de cheques, evitando o seu extravio ou a sua apropriação ilícita; por sua vez, o banco fica vinculado aos dever fazer verificar cuida-dosamente os cheques que lhe sejam apresentados, recusando o pagamento dos que lhe ofereçam dúvidas.
A responsabilidade decorrente da violação dos indicados deveres impende sobre o contraente que tenha procedido culposamente, desde que a mesma lhe seja imputável – cfr. o art. 798º do Código Civil.
Estamos em face de um situação de responsabilidade contratual, em que a culpa se presume, «ex vi» do art. 799º também do Código Civil.
Assim, a entidade bancária que haja pago um cheque falsificado, apenas se pode eximir da responsabilidade total pelos prejuízos sofridos pelo cliente, se provar que: agiu sem culpa ou que houve culpa exclusiva do cliente. Provando-se negligência sua, poderá lograr uma repartição da responsabilidade, se provar que também a houve da parte do cliente – cfr., neste sentido, Ac. STJ, de 03-07-2008, CJ (STJ), Ano XVII, Tomo II, p. 155 a 158.
A culpa deve ser apreciada nos termos gerais da responsabilidade civil, por força do mencionado art. 799º, 2, aplicando-se, portanto, o critério abstracto da «diligên cia de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso» – cfr. o art. 487º, 2.
Ora, na situação concreta, esse critério é mais apertado, porquanto não se pode partir do empenhamento que seria esperável de uma pessoa comum medianamente cuidadosa, mas sim do que deve garantir a uma outra que, movimentando-se no círculo de relações em que está inserido o agente, use de toda a diligência que lhe é exigível, em função das funções que lhe estão cometidas – cfr. o aludido acórdão, p. 157, ao fundo, citando o Prof. Almeida Costa, «in» Direito das Obrigações, 9ª, ed., p. 535. É que as entidades bancárias são especializadas no seu ramo de negócio e não ocasionais mutuantes ou depositários.
No caso dos autos, a apelante sustenta que a autora é responsável pelo facto de ter violado o dever de diligência na guarda do cheque até entrega ao seu beneficiário, porquanto:
- Indicou apenas uma parte da denominação da beneficiária do cheque e deixou em branco a parte restante do espaço destinado a essa indicação, o que potenciou a sua falsificação;
- Remeteu o cheque por correio normal, o que permitiu que chegasse às mãos de quem não era o beneficiário;
- Não apôs no cheque a cláusula «não à ordem».
Mais referiu que a autora usou um cheque enviado pelo correio simples, quando poderia usado correio registado ou ter feito uma transferência bancária.
No que respeita ao modo como foi preenchido o espaço destinado à indicação da entidade beneficiária do cheque, concordamos em que os serviços da autora poderiam ter preenchido completamente a denominação daquela e trancado o espaço sobrante, diminuindo fortemente as possibilidades de falsificação.
No que respeita à utilização dos serviços dos correios, não se pode fazer grande reparo, por esse é um dos meios normais usado, pelo comum das pessoas, incluindo entidades bancárias, frequentemente sem registo.
Quanto à não aposição no cheque da cláusula «não à ordem» (que impediria o seu endosso), sendo uma medida de boa prudência, também é certo que muitos bene-ficiários de cheques a não pretendem, pois querem poder endossá-los.
No que tange à opção pela transferência bancária, sendo viável e preferível, a mesma nada tem a ver com a utilização do cheque.
Assim, impõe-se concluir que a autora não estava obrigada a usar qualquer dos meios prudenciais sugeridos pela ré; mas aceita-se que poderia dificultar em forte medida a falsificação, como ficou dito.
Por sua vez, a autora entende que o funcionário da ré que pagou o cheque deveria ter visto a rasura que o mesmo apresentava.
A ré argumenta que a rasura se verifica só numa palavra e se reconduz a duas ou mesmo uma letra e que o depositante é seu cliente de longa data, facto que gerou confiança no funcionário que pagou o cheque.
Quanto à rasura ela, apesar de pouco extensa, é evidente, sendo detectável pela simples visualização do cheque, tal como ficou após a falsificação. Não é neces- sário compará-lo com qualquer outro documento. Vê-se claramente que a primeira palavra que está escrita no campo destinado à indicação do beneficiário do cheque foi rasurada, de modo a parecer o nome de uma pessoa. Mas o nome resultante, para além de rasura não é usual, pois o que resultou foi qualquer coisa parecida com «Plachido» ou «Plachides». Ora, se o funcionário tivesse atentado no nome que aparece no endosso, verificaria que a primeira palavra é «Placido» (sic). E, a nosso ver, isso era suficiente para que tivesse diligenciado no sentido de apurar a identidade do beneficiário do cheque, contactando o cliente. Não o tendo feito, agiu com evidente negligência.
O facto de se tratar de um cheque endossado que teria de ser depositado em conta (uma vez que estava «cruzado»), cujo endossante não «deu a cara», deveria reforçar a desconfiança.
Também o montante elevado do cheque aconselhava redobrados cuidados.
Outrossim o facto de se tratar de um cheque «cruzado», emitido à ordem de quem não era o seu portador, já com um endosso, e com uma data muito posterior à da apresentação a pagamento (está datado de 2006-03-15 e foi apresentado, por anteci-pação, em 2006-02-13, deveria ter sido ponderado.
Por último, com o desiderato de se apurar o que efectivamente se passou, ouviu-se o registo dos depoimentos, tendo-se apurado que quem se apresentou a depositar o cheque era proprietário de um quiosque, o que vai no sentido de que, muito provavelmente, não costumava depositar valores tão elevados. Donde, por muito conhecido que ele fosse na agência, isso deveria ter sido motivo de maior cautela.
Do art. 73º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Finan- ceiras, aprovado pelo Dec.-Lei nº 298/92, de 31/XI (com alterações posteriores) decorre que as instituições de crédito devem assumir uma atitude dinâmica, uma actividade constante de promoção, vigilância e preservação dos interesses dos clientes, o que implica o emprego de um apertado sistema de controlo e supervisão.
Por sua vez, o art. 74º impõe que os empregados dessas instituições, no exercício das suas funções, devem agir com empenho e zelo de forma a protegerem os interesses que lhe são confiados.
No Ac. do STJ, de 03-12-2009, Proc. 588/09.0YFLSB (rel: Garcia Calejo), consultável «in» www.dsgi.pt., vincou-se que é dever essencial da entidade bancária a verificação da assinatura, só logrando ilidir a presunção de culpa no pagamento de cheques falsificados, se provar a culpa do cliente, já que lhe é exigível um grau elevado de meios técnicos de preparação para detectar falsificações. Mais se consignou que a simples observação de assinaturas, feitas a olho nu, por funcionário bancário, através de semelhança, não é de molde a afastar a presunção de culpa que impende sobre o banco, por constituir prática falível e não consentânea com os meios tecnológicos de que o banco devia dispor, sendo de exigir a utilização desses meios. E acabou por se concluir que a instituição de crédito «longe de ilidir a presunção» que sobre ela impedia «incumpriu os deveres de vigilância activa e de apertado controlo e supervisão sobre os interesses que lhe haviam sido confiados», isto, apesar de estar em causa a falsifi- cação de uma assinatura, não detectada, na verificação por semelhança, situação que, a nosso ver, coloca bem mais dificuldades do que um nome rasurado.
Pelo que fica dito, impõe-se concluir que a ré não conseguiu provar que não agiu com culpa, sendo certo que também não se provou a culpa concorrente da autora.
Nesta conformidade, a apelação não pode proceder.
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IV. Decisão:
Pelo exposto, decide-se julgar a apelação improcedente, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo autor e pela ré, em ambas as instâncias.
Guimarães, 2010-06-08
/António da Costa Fernandes/
/Isabel Maria Brás Fonseca/
/Maria Luísa Duarte/