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NEGÓCIO FIDUCIÁRIO
ÓNUS DA PROVA
Sumário
O contrato fiduciário é constituído por uma atribuição patrimonial real, com eficácia erga omnes, limitada por uma convenção de natureza meramente obrigacional entre fiduciante e fiduciário (pacto fiduciário), oponível apenas entre estes, pela qual este se compromete a não exceder, no exercício do direito, o que seja necessário para a prossecução do fim e a restituir a coisa uma vez alcançado o fim. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Processo nº 687/16.2T8PTG
Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre – Instância Central – Juízo de Competência cível e Criminal – J1 *
ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
* I – Relatório:
Na presente acção declarativa de condenação proposta por (…) contra (…), a Autora não se conformou com o teor da sentença declarativa proferida.
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A Autora pediu que a acção fosse julgada procedente, condenando-se o Réu à transferência da titularidade do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo e primeiro andar, para habitação, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Travessa do (…), número um, e, Rua (…), nº 2, em Ponte de Sor, descrito na Conservatória de Registo Predial de Ponte de Sor, sob o número (…), inscrito na matriz respectiva sob o art.º (…) da Freguesia de Ponte de Sor (actualmente … da União de Freguesias de Ponte de Sor, Tramaga e Vale de Açor), para a esfera jurídica da autora, reconhecendo assim o seu direito sobre a mesma.
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Para o efeito, alega, em síntese, que Autora e Réu mantiveram uma relação de namoro, este adquiriu um imóvel com dinheiro pertencente à primeira, tendo declarado que procederia à transmissão da titularidade do direito de propriedade sobre a referida fracção autónoma a favor da citada (…) logo que para isso fosse interpelado.
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A parte contrária contestou, impugnando a versão dos factos apresentada pela Autora, concluindo pela defesa da absolvição do pedido.
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A sentença proferida absolveu o Réu do pedido por a parte activa não ter feito prova constitutiva do direito invocado.
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Inconformada com tal decisão, a recorrente apresentou recurso e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
1 – Todas as testemunhas ouvidas em sede de discussão e julgamento afirmaram cabalmente terem, por diversas vezes, ouvido (…) que queria dar o imóvel à autora.
2 – O ora réu não pagou o preço estipulado, sendo que não é possível falar em verdadeira compra e venda mas antes doação.
3 – Resulta claro, quer do que vem dito pela autora, quer do que foi alegado por (…) na póstuma acção 504/12.2TBPSR, quais os motivos por que veio a intervir o ora réu, sozinho, como comprador do imóvel, e o porquê da escolha daquele tipo contratual (compra e venda) e não doação.
4 – Resulta também que a referida autora não pode (não quis) intervir em tal contrato por ter dívidas que poderiam vir a onerar o imóvel.
5 – Todos estes factos resultam provados atenta a Petição Inicial apresentada por (…), naquela outra acção.
6 – Estamos presença constitui um verdadeiro negócio fiduciário “cum amico”, com vista à protecção e administração do património, tomando o ora réu a posição de fiduciário, (…), fiduciante, e a ora autora terceira beneficiária.
7 – A validade e admissibilidade do negócio fiduciário é comumente aceite no nosso ordenamento jurídico, ao abrigo da liberdade e autonomia contratual consagradas no artº 405º, nº 1, do CC e da natureza meramente obrigacional das restrições decorrentes de negócios jurídicos ao direito de propriedade conforme prescreve o artigo 1306º, nº 1, do CC.
8 – Não está pois sujeito a qualquer forma, valendo para este o princípio da consensualidade.
9 – Porquanto também não tem o mesmo de resultar de documento escrito, sendo aceite a figura do pacto fiduciário tácito, veja-se a este propósito Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05/02/2013, Proc. 4867/06.0TBVLG.P1.
10 – Ao decidir como decidiu incorreu o Tribunal recorrido em erro de apreciação da prova.
Assim, nestes termos, deve a douta sentença, ser revogada, sendo substituída por outra que dê como provado a existência de pacto fiduciário tácito entre a Autora, o Réu e (…), tomando o ora réu a posição de fiduciário, (…), fiduciante, e a ora autora terceira beneficiária, condenado o réu à transferência da titularidade do direito de propriedade sobre fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo e primeiro andar, para habitação, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Travessa do (…), número um, e, Rua (…), nº 2, em Ponte de Sor, descrito na Conservatória de Registo Predial de Ponte de Sor, sob o número (…), inscrito na matriz respectiva sob o art.º (…) da Freguesia de Ponte de Sor (actualmente … da União de Freguesias de Ponte de Sor, Tramaga e Vale de Açor, para a esfera jurídica da Autora, reconhecendo assim o seu direito sobre a mesma.
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A parte contrária contra-alegou, defendendo que não foram cumpridos os requisitos legais impostos para proceder à modificação da matéria de facto provada e que a pretensão apresentada é manifestamente improcedente. *
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. * II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
i) erro na apreciação matéria de facto.
ii) erro na aplicação do direito.
* III – Dos factos apurados: 3.1 – Factos provados:
Discutida a causa, provaram-se os seguintes factos:
1 – Autora e Réu mantiveram uma relação de namoro desde pelo menos o ano de 2005.
2 – Por volta do ano de 2010, em data não determinada, no âmbito da actividade de voluntariado desenvolvida no Centro de Convívio dos Reformados e Pensionistas de (…), sito na Rua de (…), nº 20, daquela localidade, a Autora conheceu o utente (…).
3 – (…) tinha, segundo o próprio, uma relação conflituosa com a sua única filha, tendo cortado qualquer relação com a mesma.
4 – Face a esta ruptura, o utente (…) apregoava com frequência, perante vários utentes desse mesmo Centro, dentro e fora deste, que não queria deixar quaisquer bens à sua filha, tendo intenção de vender todos os seus bens a terceiros.
5 – Em 19 de Janeiro de 2011, no Cartório Notarial da Notária Maria Cristina Marques da Cruz Manso, sito na cidade de Ponte de Sor, foi outorgada Escritura Pública de Compra e Venda sobre a fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao rés-do-chão esquerdo e primeiro andar, para habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Travessa do (…), número um, e Rua (…), nº 2, em Ponte de Sor, descrito na Conservatória de Registo Predial de Ponte de Sor, sob o número (…), inscrito na matriz respectiva sob o art.º (…), da Freguesia de Ponte de Sor (actualmente … da União de Freguesias de Ponte de Sor, Tramaga e Vale de Açor).
6 – Foram outorgantes o ora Réu, na qualidade de comprador e (…) na qualidade de vendedor, tendo ficado estipulada a reserva de usufruto vitalício a favor deste último, tudo conforme fls. 6 vº - 8, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
7 – Em 21 de Setembro de 2012, (…) intentou acção declarativa que correu termos no Tribunal Judicial de Ponte de Sor, sob o nº 504/12.2TBPSR, contra o ora Réu e também contra a ora Autora, no âmbito da qual pedia a anulação do referido contrato de compra e venda, e bem assim, a anulação do registo de aquisição da nua propriedade a favor do Réu (…). A instância foi julgada deserta por decisão proferida em 13 de Maio de 2014 e transitada em julgado em 18 de Junho do mesmo ano.
8 – Na data da propositura daquela acção (…) estava casado em segundas núpcias com (…).
9 – Após a morte de (…), Autora e Réu afectaram o referido imóvel a habitação própria e permanente, tendo nele passado a viver em união de facto.
10 – O imóvel encontra-se à venda junto da imobiliária (…) – Portalegre.
11 – Os custos reportados à escritura pública de compra e venda do imóvel e ao pagamento do Imposto de Transmissão sobre Imóveis foram pagos com dinheiro depositado em conta bancária titulada pelo irmão da ora Autora, (…).
12 – Em data não concretamente apurada, mas no ano de 2015, cessou a união de facto entre Autora e Réu, pese embora ambos continuem a habitar o sobredito imóvel. * 3.2 – Factos não provados:
Não se lograram provar os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
A) Por forma a levar avante o propósito referido supra, na parte final do ponto nº 4 da matéria de facto assente, (…) propôs à Autora que esta lhe comprasse o imóvel atrás identificado.
B) Inicialmente a Autora não demonstrou grande interesse, uma vez que tal proposta de compra estava condicionada pela reserva de usufruto vitalício, com que o então proprietário pretendia onerar o prédio, o que sempre inviabilizaria a fruição do bem pela autora.
C) No entanto, face à insistência diária de (…) e sendo que à época vivia em casa arrendada, passou a Autora, aos poucos, a interessar-se pela realização de tal negócio.
D) Contudo, e tendo em consideração a muita estima que nutria por (…) informou-o ter algum receio da realização do negócio uma vez que, por conta da exploração de uma loja, havia no passado contraído algumas dívidas junto da Segurança Social, tendo algum receio que referido imóvel pudesse vir a ser penhorado e o próprio (…), na qualidade de usufrutuário vir a perder “o direito à casa”, onde aliás residia.
E) Sabendo da relação de namoro, de longa data, da Autora com o Réu, foi o próprio (…) a propor àquela que se fizesse a compra e venda em nome daquele.
F) A vontade de (…) era a venda a favor da ora Autora, tendo existido entre esta e aquele, o intuito de fazer repercutir os efeitos da compra e venda na esfera jurídica daquela.
G) A Autora pagou todas as despesas referentes ao registo da compra e venda, bem como os honorários do advogado de (…), pela prestação de serviços jurídicos relacionados com a compra e venda em questão.
H) Por documento escrito celebrado na presença da Srª Drª (…), advogada, o ora réu obrigou-se a transmitir a titularidade do direito de propriedade sobre a referida fracção autónoma a favor da ora autora, logo que para isso fosse interpelado.
I) Não obstante as exigências da autora para que o réu cumpra o acordado, este não o faz.
* IV – Fundamentação: 4.1 – Impugnação da matéria de facto:
A apelante entende que todas as testemunhas ouvidas em sede de discussão e julgamento afirmaram cabalmente terem, por diversas vezes, ouvido (…) que queria dar o imóvel à Autora. E conclui que, ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido incorreu em erro de apreciação da prova. Em contraponto, o apelado diz que o não cumprimento da disciplina impressa no artigo 640º do Código de Processo Civil determina a rejeição do recurso incidente sobre a matéria de facto.
Diz a exposição de motivos da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho [Novo Código de Processo Civil] que «se cuidou de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar que é insuficiente, obscura ou contraditória –, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material».
Porém, este reforço de poderes e deveres não é unidireccional. Na verdade, a lei ao mesmo tempo impõe novas regras das condições de exercício do direito de recurso. Assim, os recorrentes têm agora o dever de modelar a peça de interposição de recurso com a seguinte estrutura: (i) especificação dos concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, (ii) indicar os concretos meios probatórios constantes do processo que impõem decisão diferente, (iii) adiantar qual deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas e (iv) mencionar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso.
Actualmente, nos termos do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
A reapreciação dos meios de prova pelo Tribunal da Relação destinar-se-á a diligenciar a correcção de eventuais erros de julgamento na decisão sobre a matéria de facto. Assim, dispõe a al. a) do número 2 do mesmo artigo 640º do Código de Processo Civil que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso – e proceder, se assim o entender, à transcrição de quaisquer excertos – sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte.
Diz-nos, a este propósito, Abrantes Geraldes[1] que relativamente «a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos». Bem como que a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto deve verificar-se na situação de «falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda».
Abrantes Geraldes[2] sublinha ainda que a rejeição do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto deve verificar-se quando ocorre a «falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda» e a «falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação e acrescentando que «as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor».
Sendo certo que a alínea a) do nº 2 do artigo 640º do Código de Processo Civil expressamente diz incumbir ao recorrente «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso». Actualmente, é a própria lei que estabelece deste modo uma concreta cominação para quem não cumpra o ónus em referência.
A recorrente pretende a alteração da factualidade inscrita na sentença. Porém, tanto na motivação como nas conclusões de recurso, o articulado apresentado não cumpre minimamente as exigências legais, concluindo apenas genericamente pela existência de erro na apreciação da matéria de facto.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[3] estabilizou na interpretação que «a inobservância deste ónus de alegação, quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, implica, como expressamente se prevê, no artigo 640º, nº 1, do NCPC, a rejeição do recurso, que é imediata, como se acentua na al. a), do nº 2, desse artigo.
Nesta sede, foi propósito deliberado do legislador não instituir qualquer convite ao aperfeiçoamento da alegação a dirigir ao apelante. A lei é a este respeito imperativa, ao cominar a imediata rejeição do recurso, nessa parte, para a falta de incumprimento pelo recorrente do referido ónus processual (art. 640º, nº 2)».
Ou noutra formulação, para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorrectamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre aqueles concretos pontos de facto, conforme impõe o artigo 640º, nº 1, alíneas a) e c), do CPC. Não tendo o recorrente cumprido o ónus de indicar a decisão a proferir sobre os concretos pontos de facto impugnados, bem andou a Relação em não conhecer da impugnação da matéria de facto, não sendo de mandar completar as conclusões face à cominação estabelecido naquele nº 1 para quem não os cumpre[4].
Mais se afirma correntemente que a imposição daquele ónus ao recorrente não viola o direito de acesso aos tribunais, não obrigando a Constituição da República Portuguesa ao legislador ordinário que garanta aos interessados o acesso ao recurso de forma ilimitada, além de que sobre estes incidem também condicionalismos que estão vinculados a cumprir.
Deste modo, rejeita-se a impugnação da decisão da primeira instância quanto à matéria de facto nos termos em que foi deduzida pela apelante. Também inexiste qualquer contradição entre os factos apurados.
* 4.2 – Da violação do pacto fiduciário:
O pacto fiduciário é um negócio cuja admissibilidade decorre da liberdade e da autonomia contratual consagrada no artigo 405º, nº 1, do Código Civil e da natureza meramente obrigacional das restrições decorrentes de negócios jurídicos ao direito de propriedade conforme decorre da disciplina inscrita no artigo 1306º, nº 1, do mesmo diploma[5].
Os negócios fiduciários reconduzem-se a uma transmissão de bens ou direitos, realmente querida pelas partes para valer em face de terceiros e até mesmo ente elas, mas obrigando-se o adquirente a só exercitar o seu direito em vista de certa finalidade, que tanto pode ser uma finalidade de administração ou uma finalidade de garantia[6]. E, prosseguindo na análise da disciplina, o referido aresto assume que o conceito romanístico de fiduciae é constituído por dois elementos: de um lado, a parte real, traduzida na transferência do dominium da res para o fiduciário e, de outro, a parte obrigacional, o acordo mediante o qual o fiduciário assume, perante o beneficiário ou fideicomitente, os deveres de administrar o bem em benefício do último sob determinadas condições e de retransferir a propriedade aquando do cumprimento do objectivo.
Os negócios fiduciários reconduzem-se a uma transmissão de bens ou direitos, realmente querida pelas partes para valer em face de terceiros e até mesmo ente elas, mas obrigando-se o adquirente (pactum fiduciae; cláusula fiduciária) a só exercitar o seu direito em vista de certa finalidade. Pode ser esta, principalmente, uma finalidade de administração (v.g. Arrendamento) ou de alienação dos respectivos bens no interesse do fiduciante (fiducia cum amico), julgando-se só por este meio poder ela ser proveitosamente conseguida, ou uma finalidade de garantia (fiducia cum creditore), assim se pretendendo, entre outras vantagens, furtar o credor – fiduciário –, no caso de não ser pago, às demoras e contingências dum processo judicial[7].
Na lição de Maria João Vaz Tomé e de Diogo Leite de Campos, o negócio fiduciário é composto por uma transferência actual de um direito real e a criação de uma obrigação. Mediante a primeira, o fiduciário adquire irrevogavelmente um direito de propriedade oponível erga omnes. Por outro lado, a obrigação cujo objecto consiste na administração dos bens, tem efeitos mais limitados: produz apenas e tão-somente efeitos relativos, interpartes. (...) Assim, o conceito romanístico de fiduciae é constituído por dois elementos: de um lado, a parte real, traduzida na transferência do dominium da res para o fiduciário e, de outro, a parte obrigacional, o acordo mediante o qual o fiduciário assume, perante o beneficiário ou fideicomitente, os deveres de administrar o bem em benefício do último sob determinadas condições e de retransferir a propriedade aquando do cumprimento do objectivo. Essa retransmissão podia ser feita ao disponente originário ou a terceiro por si designado[8].
André Figueiredo entende que o negócio fiduciário corresponde a um «contrato do qual resulta, directa ou indirectamente, uma atribuição plena e exclusiva (ainda que temporária) de um bem ao fiduciário – máxime, de um direito de propriedade sobre uma coisa –, gravada porém por um vínculo funcional de natureza obrigacional que instrumentaliza a situação jurídica de que fica investido o fiduciário à prossecução de um interesse alheio – pertencente ao fiduciante –, e que impõe, nos termos estipulados, a (re)transmissão daquele acervo patrimonial e respectivos frutos para a esfera do fiduciante»[9].
A recorrente sustenta que se está perante uma simples violação da forma exigida e que o negócio subjacente é válido e, como tal, reclama a transmissão do direito de propriedade do imóvel acima melhor identificado, apoiando-se, entre outra argumentação, no sentido decisório do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/03/2011[10]. Na perspectiva da recorrente estamos num quadro negocial de fidúcia cum amico.
Na fiducia cum amico, na construção de Pedro Pais de Vasconcelos, o bem é transmitido para que o fiduciário o guarde e administre, no interesse do fiduciante ou de um terceiro e, passado o tempo convencionado, lhe dê um destino, restituindo-o ao fiduciante ou entregando-o a outra pessoa, negócio este com grandes semelhanças com o mandato sem representação[11].
A alienação em garantia consubstancia-se num negócio atípico, decorrente a junção de um pacto fiduciário (ou cláusula fiduciária) a um negócio de alienação, para que este cumpra uma função de garantia, cabendo ao pacto fiduciário proceder à adaptação do negócio à pretendida finalidade, estabelecendo os termos da relação entre fiduciante e fiduciário[12].
Catarina Monteiro Pires define o âmbito do pacto comissório, efectivamente proibido, como a convenção mediante a qual ocorre a perda ou a extinção da propriedade de um bem do devedor, a favor do respectivo credor, em virtude do incumprimento de uma obrigação a cargo daquele e sem que estejam previstos mecanismos que assegurem, com efectividade e actualidade, que valor do bem apropriado não é superior ao valor da dívida garantida ou que, sendo aquele superior a este, o credor não se apropriará do valor que exceda o necessário para a satisfação do seu crédito[13].
Todavia, aqui não se trata de um simples problema de nulidade por falta de forma, pois a matéria de facto apurada não viabiliza o entendimento de que se está perante um negócio fiduciário e assim não existe fundamento para accionar o instituto obrigacional convocado na acção.
Deste modo, não merece censura a conclusão formulada pela Meritíssima Juíza «a quo» quando decide pela improcedência da acção, ao asseverar que «considerando a factualidade emergente da prova produzida em audiência, não (se) tendo provado, nomeadamente, a existência do invocado pacto fiduciário, nos termos do qual o réu se teria obrigado a transferir para si, autora, a propriedade do imóvel identificado nos autos».
Efectivamente, face às regras de distribuição do ónus da prova inscritos no nº 1 do artigo 342º do Código Civil[14], cabia à Autora a prova dos factos que fundamentam o pedido que formulou contra o Réu e daqui deriva irrefutavelmente que a decisão recorrida é acertada.
* V – Sumário:
1. O pacto fiduciário é um negócio cuja admissibilidade decorre da liberdade e da autonomia contratual consagrada no artigo 405º, nº 1, do Código Civil e da natureza meramente obrigacional das restrições decorrentes de negócios jurídicos ao direito de propriedade.
2. O contrato fiduciário é constituído por uma atribuição patrimonial real, com eficácia erga omnes, limitada por uma convenção de natureza meramente obrigacional entre fiduciante e fiduciário (pacto fiduciário), oponível apenas entre estes, pela qual este se compromete a não exceder, no exercício do direito, o que seja necessário para a prossecução do fim e a restituir a coisa uma vez alcançado o fim.
3. A prova da existência de um pacto fiduciário, nos termos do qual um dos contraentes se obriga a transferir para o outro a propriedade de um determinado imóvel, competente àquele que invocar a materialidade subjacente.
* VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código Civil.
Notifique. *
(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
*
Évora, 28/06/2017
José Manuel Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário
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[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3ª edição, 2016, págs. 136-145.
[2] Obra e local citados.
[3] Acórdão de 14/07/2016, in www.dgsi.pt.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/07/2016, in www.dgsi.pt
[5] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11/05/2006, do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/04/1999 e do Tribunal da Relação do Porto de 11/04/2002, in www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15/12/2009, in www.dgsi.pt.
[7] Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 175.
[8] A Propriedade Fiduciária (Trust) Estudo para a sua consagração no Direito Português, 1999, pág. 201.
[9] O Negócio Fiduciário Perante Terceiros – Com aplicação especial ma gestão de valores mobiliários, Almedina, págs. 83-84.
[10] Nesse aresto ficou consignada a tese que «a venda realizada tinha subjacente um fim indirecto de garantia de uma relação obrigacional, de que era credor o comprador no confronto do vendedor, emergente de um mútuo entre ambos celebrado, consubstanciando-se o carácter «temporário» da alienação das fracções prediais em litígio na estipulação de uma verdadeira obrigação pessoal de revender a coisa que lhe foi alienada, cabendo ao credor o correspondente direito, meramente creditório, de exigir a revenda logo que se mostrasse exaurido o fim de garantia que estava por detrás da celebração da venda: como se referiu – e, desde logo, por razões de forma – está excluído que o negócio fiduciário em causa possa produzir, na situação dos autos, efeitos reais, apenas podendo conduzir a estipulação verbal e informal das partes de que a venda seria, afinal, temporária e funcionalmente ligada à garantia de um crédito proveniente de um empréstimo em dinheiro a uma vinculação estritamente obrigacional e pessoal de revenda dos imóveis. E, na concreta situação em litígio, é evidente que o comprador, ao vender as fracções a terceiros, tornou impossível o cumprimento dessa obrigação de revenda dos bens – o que naturalmente – a não existir nulidade do contrato – apenas consentirá ao interessado o ressarcimento dos danos sofridos, no âmbito do instituto da responsabilidade civil».
[11] Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, 1995, pág. 256.
[12] Januário Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida – Sobre o sentido e âmbito da vinculação como fiador, Almedina, pág. 86.
[13] Alienação em Garantia, 2009, pág. 272.
[14] Artigo 342º (Ónus da prova):
1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.