OMISSÃO DE ADVERTÊNCIA QUANTO À FACULDADE DE RECUSA DE DEPOIMENTO
NULIDADE
Sumário


I - A falta de advertência aos parentes e afins do arguido acerca da faculdade de recusarem o depoimento integra uma nulidade de prova (nulidade processual dependente de arguição) e não uma proibição de prova.[1]

Texto Integral


Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo n.º 1508/15.9T9BJA, da Comarca de Beja, foi proferida sentença em que se condenou o arguido A. como autor de um crime de maus-tratos do art. 152º-A, n.º 1, als. a) e c) do CP, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:

“1 – O arguido dada a prova produzida não se pode conformar com a douta sentença e nomeadamente com os factos considerados provados nos seus números: 6,7,8,9,10,11,12,13,14,15,16,18,19 e 22.

2 – No que concerne ao facto 6 não corresponde à verdade que o arguido tenha obrigado o menor a ajudá-lo nos trabalhos rurais esporádicos, no Monte do Amorim. Como se pode constatar:

20170217095440_973 – duração 33,34- depoimento de AC: ao minuto 29,25 -o filho afirmou: “ia para não estar em casa” entre o minuto 30,10 e 30,30 – referiu que nunca carregou fardos sozinho, ajudava o pai e outro colega. ao minuto 30,40 – tentei saber nos últimos 6 meses quantas vezes foi ao campo, não conseguiu responder, depois perguntei e no último mês a resposta obtida foi “não me lembro”. Acresce que não existe qualquer referência ao peso dos fardos de palha, nem dos melões. É óbvio que segundo as regras da experiência comum e juízos de normalidade um jovem da sua idade não poderia carregar sozinho “fardos de palha”.

3 – Relativamente ao facto 7 e contrariamente ao que se considerou provado, o arguido matriculou o seu filho na Escola e nunca permitiu que faltasse as aulas. A expressão “filho da puta” foi dita em momentos em que o arguido não estava consciente, como de resto o seu filho reconheceu com a afirmação ao minuto 12,42 que ocorria quando “ estava bêbado”. O arguido não consegue entender qual o significado “das tarefas supra referidas”, serão as do facto 6? ou as que foram dadas como não provadas no nº.1?

4 – O AC contrariamente ao que foi considerado provado, no facto 8, convivia diariamente com o seus amigos e familiares. Tanto na sua residência como fora dela. Na realidade deslocava-se diariamente do Penedo Gordo (localidade onde residia) para a escola que frequentava em Beja, e nessa viagem convivia diariamente com colegas e amigos.

Após chegar a Beja e à escola, também tinha os seus amigos e o seu contacto era diário, durante várias horas, não só durante os tempos letivos, mas também no horário do almoço, uma vez que almoçava diariamente com vários colegas e amigos. Como se pode confirmar no seu depoimento ao minuto 4.40 - “Ia sempre à escola” e também ao minuto 4.45 - “Sempre fui à escola, há nisso ia sempre à escola”. A bicicleta não era nestas condições fator que pudesse impedir qualquer contacto, acresce que o meio em que vivia é muito pequeno, não necessitando da bicicleta para poder conviver com amigos, familiares e até com vizinhos. Por outro lado e como se pode confirmar através do depoimento da D. SM, o AC brincava diariamente na sua própria residência, com os seus amigos no quintal, uma vez que adorava brincar na lama. Ao minuto 8,43 – “brincava sempre com o G. iam todos para o quintal”.

5 – Como já se referiu anteriormente admite-se que devido à sazonalidade da anterior profissão do arguido, nos períodos em que este não conseguia exercer qualquer atividade profissional por fatores que não lhe podem ser imputáveis, a quantidade de alimentos disponível em casa fosse menor. É assim natural que os seus tios possam ter colaborado de alguma maneira dentro das suas possibilidades para minimizar estes períodos mais críticos. De qualquer forma forma o arguido recorreu a ajuda social e conseguiu que os jantares fossem fornecidos pela Casa do Povo, recorde-se que o AC almoçava diariamente na Escola.

6 – No que concerne ao factos 10 e 13, ambos inserem a expressão “Em data não concretamente apurada ...” Estes factos salvo melhor opinião devem ser considerados como não escritos. Porque a matéria apurada desta forma põe em causa os mais elementares direitos de defesa do arguido, incluindo a presunção de inocência e o princípio do contraditório (recorde-se que o arguido invocou o direito ao silêncio de forma muito condicionada, uma vez que na douta acusação (repetidas também na douta sentença) existem várias expressões vagas, obscuras, indeterminadas, que condicionaram fortemente a sua opção), devendo originar necessariamente a nulidade de sentença por falta de fundamentação, como de resto é reconhecido pela jurisprudência do STJ e Relações (nomeadamente a Relação do Porto e a Relação de Évora, nos acórdãos citados) de forma clara e insofismável.

7 – A mesma situação ocorre nos factos 11,12,14,15 e 16. Na realidade as expressões empregues na douta acusação e repetidas na douta sentença, ou sejam: - “ nunca cuidou...” - “nunca preparou...” “… levava por vezes ...” (apurado de forma contraditória) - “Frequentemente...” - “ Em março ou abril de 2015 ...” -” Sempre que ...” salvo melhor opinião além de limitarem e condicionarem de forma irreparável os direitos do arguido, também não foi apurado o número de vezes em que eventualmente possam ter ocorrido os factos de que é acusado, sendo que neste tipo legal esse apuramento conjuntamente com a indicação concreta dos factos, localizada no tempo e no espaço, seria ainda mais imprescindível e com um grau de exigência superior atendendo à amplitude do tipo penal, de acordo com a jurisprudência já citada.

Foi violado o nº. 3 do artº. 283º. do C.P.P. O AC certamente que quando se deslocava para a escola não utilizava a mesma roupa que tinha usado na tarde anterior nas brincadeiras no quintal (adorava brincar na lama) com os seus amigos, conforme depoimento da testemunha SM com a expressão “ a roupa era outra”, ao minuto 6,39 e antes de chegar à escola tinha que utilizar o transporte diariamente contactando várias pessoas, se se desloca-se “sempre sujo” teria certamente chamado à atenção de alguém, o que não sucedeu, nem na utilização do transporte, nem na própria escola. Por outro lado o menor com 14/15 anos já tem certamente perfeita autonomia de cuidar da sua própria higiene diária, sem qualquer dependência do seu pai ou outra pessoa. As roupas que utilizou no Penedo Gordo e quando se deslocava diariamente para a Escola em Beja, durante o curto período que esteve a viver com o pai, já tinham sido utilizadas também na Amadora, na residência da D. MF (enquanto lá viveu) e tinha roupa de verão e de inverno como é lógico. Como se pode comprovar nas declarações do ofendido entre os minutos 21,00 e 21,40, admitindo inclusivamente que no inverno os cafés fechavam mais cedo, com a referência a três horários, “10,30 h, 11,00 h, meia noite, por ai” e que saiam dos cafés meia hora ou uma hora antes de fecharem. E para além da cerveja sem álcool também ingeria sumos, conforme afirmou, ao minuto 28,15. Sendo certo que nunca faltou às aulas Recorde-se que ao minuto 12,00 o ofendido referiu que o pai lhe dizia “a Olinda não é minha filha a tua mãe traiu-me “Por outro lado a expressão “puta” ou “putas” era proferida nos momentos em que o arguido se encontrava inconsciente e embriagado, como foi reconhecido pelo ofendido, ao minuto 12,42.

8 - A “criança” na altura em que veio viver com o seu pai para o Penedo Gordo em 27 de novembro de 2014, tinha a idade de 14 anos e completou 15 anos em 5 de março de 2015, convenhamos que já não estamos propriamente na presença de uma “criança” mas sim de um jovem. Terá necessariamente tal como os jovens da mesma idade algum grau de autonomia e uma menor dependência dos pais. Certamente que já faria a sua higiene diária sozinho e de forma autónoma sem necessitar obviamente de qualquer intervenção do seu pai. No que concerne à alimentação, almoçava diariamente na escola que frequentava, sendo que devido a algumas dificuldades relacionadas com a anterior profissão do seu pai, de trabalhador agrícola e à inerente sazonalidade da profissão, não existia trabalho ao longo de todo o ano, por essa razão o arguido recorreu a ajuda social para si e o seu filho e os jantares eram fornecidos pela Casa do Povo.

Nestas condições admite-se que quando o arguido tinha trabalho a quantidade de alimentos que havia em casa seria maior do que nas alturas em que por fatores externos não conseguia desenvolver qualquer atividade, mas o seu filho nunca deixou de ter alimentação em casa, para além dos almoços na escola e dos jantares fornecidos na Casa do Povo.

9 - O arguido tal como se encontra provado, era um trabalhador agrícola (na data da prática dos factos), praticamente sem instrução, sempre procurou de acordo com os seus parcos conhecimentos e as suas especificas condições sócio-económicas o melhor para o seu filho. Não tem consciência da eventual prática de qualquer ilícito. Nunca agrediu fisicamente o seu filho. Eventualmente as expressões proferidas de “puta” ou “putas” para além de terem sido proferidas em momentos de inconsciência, podem ter resultado de erro do próprio arguido, uma vez que o mesmo tem dúvidas de ser o pai de Olinda. Aliás o seu comportamento e a sua eventual culpa até podem ser excluídas pela falta de consciência da ilicitude não censurável, prevista no artº. 17º. nº. 1 do C.P., se atender-mos as suas condições específicas, ao meio em que vive, a sua mentalidade, ao seu grau de instrução e à sua profissão.

10 - A nulidade invocada de excesso de pronúncia, no apuramento do facto 22, engloba-se no disposto na alínea c) do nº. 1 do artº. 379º. do C.P.P. que dispõe:

“É nula a sentença quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. E origina nulidade de sentença.

Acresce que nos termos do nº. 2 do referido artigo, é de conhecimento oficioso.

11 – O comportamento do arguido, dadas as condições específicas, a sua situação sócio-económica, a ausência de trabalho regular (na altura da prática dos factos), o meio ambiente, a sua mentalidade e o fraco nível de instrução, salvo melhor opinião, não pode ser considerado idóneo, nem suficiente para afetar o bem estar psicológico do ofendido, nem a sua dignidade humana.

12 – Acresce que parece existir, pelo menos de acordo com o Prof. Taipa de Carvalho e Bragança de Matos, erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito, razão pela qual o arguido nunca poderia ser condenado pelo crime de maus tratos.

13 – Por outro lado o depoimento da testemunha AC (ofendido e filho do arguido), foi efetuado sem a advertência prevista da faculdade que lhe assiste de recusar prestar depoimento, gerando nulidade e prova proibida, prevista no nº. 2 do artº. 134º. e nº. 3 do artº. 126º. do C.P.P. 20170217095440_973351_287, entre o minuto 0,55 e 1,09 após a afirmação o seu pai está aqui a ser julgado, surge a pergunta:

“O senhor quer prestar depoimento …. (passados uns segundos) ou não?

14 - A justiça do caso concreto implicará naturalmente a absolvição do arguido, na realidade tentar condenar com uma douta sentença, existindo prova proibida e como se demonstrou, proliferam expressões vagas, obscuras, difusas, indeterminadas e sem qualquer motivação, salvo melhor opinião, viola os mais elementares princípios do direito penal, ou sejam o “in dubio pro reo”, o princípio do contraditório e a presunção de inocência.

15 – Na realidade, dúvidas não há de que:

“ I - Nos crimes onde a reiteração e intensidade do agir humano está no centro da definição de um tipo penal muito amplo (maus tratos, violência doméstica, tráfico de estupefacientes) a precisa indicação dos factos necessários à integração do tipo é elemento essencial do julgamento...”

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15 de junho de 2016, Relator(a) Ana Bacelar”

“IV - “É nula, por falta de fundamentação, a sentença que utiliza expressões ou enunciados como “foram muitas vezes”, “de forma quase diária”, “expressões subsecutivas ou semelhantes”, “inúmeras mensagens escritas, “cujo objetivo, por plúrimas vezes, era o de perturbar inquietar”, “com frequência” e “elevado número de mensagens que enviou”, ou seja enunciados valorativos ou genéricos que não foram especificados em circunstâncias factuais”.

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de fevereiro de 2016, Relator Nuno Ribeiro Coelho

“ 7 – Aliás, a jurisprudência do STJ neste campo é clara e insofismável, quer a propósito do crime de tráfico de droga, quer a propósito dos crimes de maus tratos e violência doméstica, tendo como consequência o ter-se por não escrita a imputação genérica.

- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17 de setembro de 2013, Relator João Gomes de Sousa”.

“III - “ O juízo a formular para a condenação criminal - num processo onde impera presunção de inocência – deve assentar em elementos concretos, objetivos, existentes no processo e que conduzam a um elevado grau de probabilidade de que os factos ocorreram de determinada forma e não de outra de uma “probabilidade que roça a certeza”, o que corresponde ao anglo saxónico “proofbeyond reasonable doubt.”

- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 5 de novembro de 2013, Relator João Gomes Sousa.

16 – Normas jurídicas violadas: Constituição da República Portuguesa: artº. 32º nº. 2, 5 e 8. Código Penal: artºs. 17º. nº. 1, 152-A, nº. 1 alíneas a) e c) Código de Processo Penal: :artºs. 4º., 126º. nº. 3, 134º. nº. 2, 283º. nº. 3, 374º. nº. 2, 379º. nº. 1 alíneas a) , e c) Código de Processo Civil.: artº. 17º. nº. 1.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“1º - Inconformado com a douta sentença proferida nos presentes autos e que o condenou pela prática de um crime de Maus tratos, p. e p. pelo art.º 152º-A, nº 1, alíneas a) e c) do Código Penal, vem o arguido dela interpor o presente recurso pugnando pela sua absolvição. Alega, em síntese, que a douta sentença recorrida violou as normas legais supra elencadas.

2º - A matéria de facto dada como provada na douta sentença e que conduziu à condenação do arguido resultou da ponderação, avaliação e análise crítica de toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e que o Tribunal de acordo com a sua livre convicção e as regras de experiência comum, tal como impõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal, tarefa essa que lhe permitiu concluir pela credibilidade dos relatos das testemunhas produzidos em audiência de discussão e julgamento.

3º - A matéria de facto cuja apreciação se pretende com o presente recurso mais não é que uma diversa interpretação dos factos discutidos em sede de audiência de discussão e julgamento, que foi secundada pelos depoimentos das testemunhas ouvidas e da restante prova dos autos. O arguido não contestou a acusação pública, não apresentou testemunhas de defesa e não quis prestar declarações, direito que lhe assiste não tendo assim sido feita qualquer prova pela defesa.

4º - Relativamente ao Facto 6 da matéria dada como provada na douta sentença recorrida entende o recorrente que do depoimento do menor, filho do arguido e vítima nos presentes autos não resulta que aquele tenha sido obrigado a ajudar o pai nos trabalhos esporádicos que realizava no Monte do Amorim, nomeadamente a carregar fardos de palha e apanhar melões. Ora, como se pode ler na fundamentação da matéria de facto da douta sentença “AC, filho do arguido e ofendido nos presentes autos, mas não menos credível por isso, confirmou no essencial os factos vertidos na acusação, com excepção dos que não foram dados como provados que o ofendido refutou. Prestou depoimento lógico e credível” e ouvido o seu depoimento dúvidas não restam que se estivesse com intenção de faltar à verdade por forma a, como sugere o arguido, prejudicar o seu pai, teria corroborado todos os factos da acusação e não apenas alguns, situação que conferiu credibilidade ao seu depoimento. Quantas vezes tal aconteceu, qual o peso dos fardos de palha e se os carregava sozinho ou se ajudava o seu pai e o outro colega a fazê-lo são factos não constantes da acusação e, como tal, cuja prova não era exigível.

5º - (Facto 7) Ao contrário do que o recorrente refere, não constava da acusação que o menor faltava às aulas, por sua iniciativa ou imposição do seu pai. O facto constante da acusação é que o arguido desvalorizava a escola e os estudos do filho em detrimento de outras tarefas, nomeadamente, ajudá-lo nos trabalhos agrícolas e que resultou suficientemente provado e do depoimento do AC resultou provado que “Sempre que se referia às mulheres da família, a mãe biológica do filho AC, a sua ex-mulher MF ou a companheira do seu irmão, o arguido dizia ao seu filho “São todas umas putas!”. Acresce que a testemunha SM, companheira do irmão do arguido, confirmou que o motivo pelo qual ela própria e o seu companheiro deixaram de residir na mesma casa que o arguido “se deveu ao facto de este proferir muitos palavrões e dizer que as mulheres eram todas umas putas”.

6º - Pretende o recorrente que resultou provado que o arguido proferia tais expressões quando estava bêbado, facto que foi confirmado pelo próprio menor, pelo que não estava consciente afirmando mesmo que tal constitui a causa de exclusão da culpa prevista no art.º 17º, nº 1 do Código Penal mas, apesar de o menor ter declarado que o pai estava bêbado, tal facto não constava da matéria controvertida e, como tal, não foi dado como provado ou não provado. Contudo, sempre se dirá que não foi sequer aflorado na audiência de discussão e julgamento que quando embriagado o arguido não estivesse consciente do que fazia e dizia. Aliás, é revelador do seu estado de consciência as expressões que proferia, dirigidas às mulheres em geral – são todas umas putas – como referindo-se à sua ex-mulher e madrasta do seu filho menor - “És meu filho mas és um grande filho da puta!” revelando saber muito bem de quem estava a falar e com quem estava a falar.

7º - (Facto 8) O recorrente considera que não ficou provado que o arguido impedia o seu filho de conviver com os amigos e familiares e, como tal, não deveria ter sido dado como provado que “não permitia que o seu filho convivesse com os amigos e os familiares e para o impedir de sair de casa obrigava-o a desmontar a bicicleta que aquele usava para se deslocar, de modo a que não a pudesse usar”. Para além do depoimento coerente e credível do menor AC, que não confirmou que o pai lhe retirasse as rodas da bicicleta como constava da acusação mas que o impedia de a usar, a tia deste, SM, “confirmou que o ofendido se queixava que o arguido não o deixava falar com os familiares (tios e prima), pelo que, apenas os visitava quando o arguido não estava” sendo certo que tal facto se relaciona directamente com o facto provado com fundamento no depoimento da testemunha MF, madrasta do menor, que afirmou, referindo-se aos telefonemas deste para si, “o que acontecia às escondidas do arguido que não queria que o filho contactasse com a testemunha”.

8º - Não constava da acusação e não era matéria controvertida que o menor não convivesse com os colegas de escola…

9º - (Facto 9) Admite o recorrente que atenta a sazonalidade dos trabalhos agrícolas que o arguido realizava nos períodos em que não conseguia trabalho a quantidade de alimentos em disponível em casa fosse menor e, como tal, era natural que os seus tios possam ter colaborado para minimizar estes períodos mais críticos e alega que o arguido recorreu a ajuda social e conseguiu que os jantares fossem fornecidos pela Casa do Povo. Contudo, nenhuma testemunha corroborou tal facto nem foi junto aos autos qualquer documento comprovativo do mesmo.

10º - Resultou suficientemente provado que faltavam alimentos em casa do arguido e que o menor nada tinha para levar como lanche para a escola, facto corroborado pelos factos dados como provados no ponto 10 da douta sentença, do qual consta “Pela falta de alimentos em casa, em data não concretamente apurada, o arguido matou quatro ou cinco porquinhos-da-índia, fritou-os e deu-os a comer ao filho AC que os comeu por ter fome apesar de sentir que tal não estava correcto”.

11º - (Factos 10 a 16) Insurge-se o recorrente contra o que considera várias expressões vagas, obscuras, indeterminadas constantes da douta sentença recorrida e que, no seu entender, violam os mais elementares direitos de defesa do arguido, incluindo a presunção de inocência e o princípio do contraditório, o que deverá ser causa de nulidade de tal decisão. Alega que não foi apurado o número de vezes, a data e o local em que eventualmente possam ter ocorrido os factos de que é acusado, considerando ser fundamental concretizar tais elementos atento o tipo lega de crime em apreço.

12º - Fundamenta as suas alegações em diversa Jurisprudência que identifica e, em particular, no Acordão da Relação do Porto de 15.06.2016, disponível em www.dgsi.pt que apreciando os factos dados como provados em decisão que condenou o arguido pela prática de um crime de Violência doméstica.

13º - Contudo, esquece o recorrente que naquela situação em apreço o hiato temporal em que terão sido praticados os factos ilícitos imputados ao aí condenado era de 28 anos, período durante o qual condenado e vítima foram casados e viveram juntos. Nessas circunstâncias, a nosso ver bem, o douto Acordão alterou a matéria de facto dada como provada circunscrevendo alguns facto a datas ou períodos temporais concretos. Não é, no entanto, o caso em apreço nestes autos!

14º - Da análise destes factos resulta indubitável que os factos praticados pelo arguido o foram no período temporal decorrido entre 27.11.2014 e Março ou Abril de 2015, ou seja, num período temporal que não atingiu seis meses.

15º - O que resultou suficientemente provado é que, após ter obrigado o seu filho menor de 14 anos a viver consigo e durante os 6 meses em que tal situação perdurou o arguido tratou reiteradamente o seu filho com crueldade, infligindo-lhe dor psicológica, causando-lhe medo, obrigando-o a realizar trabalhos excessivos e não lhe prestando os cuidados e a assistência necessárias a uma criança da sua idade a nível das suas mais básicas necessidades de alimentação e higiene.

16º - (Facto 22) Considera o arguido que a douta sentença recorrida ao dar como provado o facto constante do ponto 22 está ferida do vício de excesso de pronúncia sendo, como tal, nula nos termos do disposto no art.º 379º, nº 1 e nº 2 do Código de Processo Penal.

17º - Nos pontos 20 a 24 da matéria dada como provada a douta sentença elenca os factos relativos às condições sociais, familiares e económicas do arguido e, em concreto, no ponto 22 considera-se provado que o arguido está obrigado a pagar pensão de alimentos aos seus dois filhos menores e não as paga, o que apenas releva para apreciação das suas condições económicas e, consequentemente, para a escolha da pena e medida da mesma, e não faz parte da matéria controvertida nos autos.

18º - Aliás, a entender-se como o faz o recorrente, jamais o julgador poderia dar como provados os factos relativos às condições sociais, familiares e económicas por extravasarem a matéria submetida à sua apreciação. Não existe, obviamente, qualquer excesso de pronúncia…

19º - O Tribunal considerou assim devidamente provada a conduta do arguido descrita na acusação em detrimento da versão ora apresentada pelo próprio arguido e que nem sequer foi por si apresentada em sede de audiência de discussão e julgamento uma vez que se remeteu ao silêncio e que também não foi corroborada por qualquer meio de prova.

20º - Ora, no caso em apreço, nem sequer se pode falar de veracidade e/ou credibilidade das declarações do arguido porque este usou a faculdade que a lei lhe confere e remeteu-se ao silêncio! Acresce que a defesa não trouxe à discussão quaisquer factos e, como tal, não foi feita qualquer prova que pusesse em causa a matéria da acusação.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto referiu concordar com a resposta do Ministério Público em primeira instância. O recorrente nada acrescentou.

Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença, consideraram-se os seguintes factos provados:

“1.O arguido manteve uma relação amorosa com L e dessa relação nasceu em 5 de Março de 2000, AC.

2. L sofre de doença do foro psiquiátrico, encontra-se internada em estabelecimento de saúde adequado desde que o seu filho AC tinha apenas alguns meses de idade e, por esse motivo, o Exercício das Responsabilidades Parentais foi atribuído ao arguido por sentença de 08.03.2002.

3. O arguido foi casado cerca de 25 anos e até 27.11.2014 com MF, desse casamento nasceu em 11.05.2006 a filha OLINDA e atenta a incapacidade da mãe biológica do AC este foi criado desde os poucos meses de idade pela madrasta MF a quem chama mãe.

4. Após a separação do arguido e da MF o filho menor daquele ficou a residir com a madrasta MF e a sua irmã germana na Amadora mas após o divórcio do casal em 27.11.2014 o arguido obrigou o filho AC a regressar à sua companhia e a residir com ele em Beja na morada supra indicada.

5. Na casa do arguido residiam também o seu irmão JC, o seu irmão OC e a companheira deste, SM, tendo estes últimos mudado para outra residência no início do ano de 2015.

6.Após o seu filho AC ter voltado a viver consigo, o arguido obrigava o menor a ajudá-lo nos trabalhos rurais esporádicos que realizava no Monte do Amorim, nomeadamente a carregar fardos de palha e a apanhar melões.

7. O arguido desvalorizava a escola e os estudos do filho e nos tempos livres do menor obrigava-o à realização das tarefas supra referidas e quando o filho não cumpria todas essas obrigações dizia-lhe “És meu filho mas és um grande filho da puta!”.

8. O arguido não permitia que o seu filho convivesse com os amigos e os familiares e para o impedir de sair de casa obrigava-o a desmontar a bicicleta que aquele usava para se deslocar, de modo a que não a pudesse usar.

9. Uma vez que o arguido não tinha trabalho certo, em inúmeras ocasiões não havia alimentos em casa e o AC via-se obrigado a ir pedir comida aos tios.

10. Pela falta de alimentos em casa, em data não concretamente apurada, o arguido matou quatro ou cinco porquinhos-da-índia, fritou-os e deu-os a comer ao filho AC que os comeu por ter fome apesar de sentir que tal não estava correcto.

11. O arguido nunca cuidou da higiene e vestuário do menor que andava sempre sujo e vestido de modo desadequado à temperatura da época do ano.

12. O arguido nunca preparou os lanches para o filho levar para a escola e este apenas levava, por vezes, uma peça de fruta da fruta que davam ao pai quando ia trabalhar nos campos.

13. Em data não concretamente apurada o arguido enforcou com um fio de arame e matou a cadela de estimação do filho AC e de nome “Estrelinha” o que causou ao menor grande desgosto.

14. Frequentemente o arguido obrigava o menor a acompanhá-lo aos cafés do Penedo Gordo e a beber cervejas, sem álcool, ai permanecendo até à uma hora da madrugada mesmo nos dias de semana e apesar do filho precisar de se levantar cedo no dia seguinte para ir para a escola.

15. Em Março ou Abril de 2015 o arguido retirou ao seu filho o telemóvel deste por forma a impedi-lo de falar com a madrasta MF ao mesmo tempo que lhe dizia “Estás a falar com essa puta de merda!”.

16. Sempre que se referia às mulheres da família, a mãe biológica do filho AC, a sua ex-mulher MF ou a companheira do seu irmão, o arguido dizia ao seu filho “São todas umas putas!”.

17. Em consequência da actuação do arguido o seu filho AC foi encaminhado pela Segurança Social para casa da madrasta MF com quem reside actualmente e na companhia da sua irmã germana.

18. O arguido tratou reiteradamente o seu filho menor AC com crueldade, infligindo-lhe dor psicológica, causando-lhe medo, obrigando-o a realizar trabalhos excessivos e não lhe prestando os cuidados e a assistência necessárias a uma criança da sua idade a nível das suas mais básicas necessidades de alimentação e higiene, o que lhe era exigível.

19. O arguido agiu sempre livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.

20. O arguido exerce a actividade de armador de ferro ao serviço da firma Aquimora, auferindo o vencimento mensal de € 800,00.

21. O arguido habita com uma companheira, que se encontra desempregada, não auferindo qualquer subsídio.

22. O arguido tem fixada pensão de alimentos a atribuir aos dois filhos menores, sendo um deles o aqui ofendido, que não paga.

23. O arguido tem como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade.

24. O arguido não tem antecedentes criminais.”

Consignaram-se os factos não provados e a motivação da matéria de facto foi a seguinte:

“A fixação dos factos provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de julgamento e a livre convicção que o Tribunal granjeou obter sobre a mesma.

Nos termos do disposto no artigo 127º, do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente.

Refere o Professor Figueiredo Dias (in “Lições Coligidas de Direito Processual Penal”, edição de 1988/1989, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p.141) que «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo».

Assim, a motivação do tribunal no que respeita à matéria fáctica considerada provada e não provada assentou na análise conjugada dos elementos de prova produzidos nos autos e em sede de audiência de julgamento conjugada e criticamente analisada segundo as regras da experiência comum e juízos de normalidade.

O arguido no uso do direito que a lei lhe confere remeteu-se ao silêncio. No final da produção de prova o arguido negou os factos, afirmou que o ofendido sempre fez os trabalhos agrícolas de boa vontade e que ia com ele para os cafés porque queria. Afirma que fizeram a cabeça do filho.

AC, filho do arguido e ofendido nos presentes autos, mas não menos credível por isso, confirmou no essencial os factos vertidos na acusação, com excepção dos que não foram dados como provados que o ofendido refutou. Prestou depoimento lógico e credível.

MF, ex-mulher do arguido, confirmou alguns dos factos constantes da acusação, os quais, lhe foram sendo relatados através de chamadas telefónicas que o ofendido lhe fazia quando esteve a viver com o arguido, o que acontecia às escondidas do arguido que não queria que o filho contactasse com a testemunha, que disse ter criado o ofendido desde os 2 meses de idade e que o considera como se fosse seu filho. A testemunha confirmou ainda que com base nos relatos do ofendido contactou a Segurança Social tendo-se procedido à retirada do menor ao pai.

OC, irmão do arguido, no uso da prerrogativa que a lei lhe confere, declarou não desejar prestar depoimento.

SM, companheira do irmão do arguido, confirmou que o ofendido se queixava que o arguido não o deixava falar com os familiares (tios e prima), pelo que, apenas os visitava quando o arguido não estava. Disse ainda que, o motivo pelo qual deixou de residir com o arguido se deveu ao facto de este proferir muitos palavrões e dizer que as mulheres eram todas umas putas. Desconhece se faltava comida na casa do arguido mas caracterizou o ofendido como guloso. Quanto ao facto de andar sujo diz que o ofendido gostava de brincar na lama e que não gostava de tomar banho. O seu depoimento mostrou-se sincero e espontâneo.

Positivamente considerados foram ainda: certidão a fls. 2 a 22 e certidão de nascimento a fls. 91/92.

A partir dos factos dados como provados, por inferência e atendendo às regras da experiência comum, num processo lógico e racional, o Tribunal ficou convencido de que o arguido agiu consciente da reprovabilidade da sua conduta, que representou e quis praticar.

As declarações do arguido mostraram-se credíveis e esclarecedoras quanto à sua situação familiar, social e económica.

No que concerne à ausência de antecedentes criminais teve-se em conta o Certificado de Registo Criminal de fls. 135.

No que se refere aos factos não provados, não se produziu em audiência qualquer prova que permitisse corroborar os mesmos.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente as questões a apreciar respeitam à impugnação da matéria de facto.

Nesta impugnação o arguido suscita uma questão a considerar como prévia, consistente numa nulidade de prova que decorre da falta da advertência a que se refere o art. nº 134º, nº 2 do CPP.

Respeita à inquirição da testemunha AC.

O preceito legal nomeado pelo recorrente, sob a epígrafe “Recusa de depoimento”, preceitua no nº 2 que “A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento”. E o nº 1 al. a) prevê que podem recusar-se a depor como testemunhas, entre outros, os descendentes do arguido.

AC é filho do arguido. E o recorrente alega que a advertência legal não foi feita, tendo sido apenas perguntado à testemunha se desejava prestar depoimento, transcrevendo na motivação do recurso que “após a afirmação “o seu pai está aqui a ser julgado”, surge a pergunta: “O senhor quer prestar depoimento … (passados uns segundos) ou não?”.

A audição das gravações da audiência, a que se procedeu nesta Relação, leva a concluir que a transcrição feita pelo recorrente na motivação do recurso corresponde à realidade do julgamento. Ou seja, à testemunha em causa e no que respeita à advertência em crise foi apenas formulada uma pergunta – “o senhor quer prestar depoimento … ou não?” – nada mais tendo sido acrescentado, dito ou explicado pela Senhora Juíza, sobre a possibilidade de recusa de depoimento, face à concreta condição da testemunha, descendente do arguido.

Acrescente-se que já relativamente a uma outra testemunha também familiar do arguido – um seu irmão – a advertência a que se refere o art. 134º, nº 2 do CPP foi correctamente concretizada (tendo-se depois aquele recusado a depor). E foi-o, neste caso, do modo seguinte: “o senhor quer prestar depoimento ou não, uma vez que se pode recusar em virtude de ser irmão”.

Mas ao filho do arguido, pelo contrário, tão só foi perguntado se queria depor, ou não.

Refira-se que do contraditório do recurso nada de útil resulta para a decisão da questão prévia em análise, já que o Ministério Público se absteve de se pronunciar sobre ela, tanto na primeira instância, como na Relação, nada tendo oposto à argumentação extensa do recorrente com abundante suporte em doutrina e jurisprudência.

Ouvidas as gravações do julgamento nesta Relação, é de considerar, como se avançou já, que a advertência em causa não foi feita ao filho do arguido. Pois não pode considerar-se que uma pergunta como a formulada pela Senhora Juíza satisfaz as exigências de concretização da advertência a que se refere o art. 134º, nº 2, do CPP. E não satisfaz, contrariamente ao (ou apesar do) formalmente consignado na acta da audiência de julgamento.

Na acta ficou a constar ter sido feita a advertência a que se refere o art. 134º, nº 2, do CPP a todas as testemunhas que se encontravam na situação da previsão da norma. Mas este enunciado tabelar e conclusivo não obsta à sindicância do Tribunal de recurso, não impede a apreciação, e não pode sobrepor-se ao que efectivamente decorre, materialmente, da realidade do julgamento e dos procedimentos realmente adoptados pelo tribunal, relativamente à produção da prova.

Da gravação da audiência resulta indubitável que ao filho do arguido foi apenas colocada a pergunta transcrita. E esta pergunta fica muito aquém da materialização de uma advertência sobre a possibilidade de recusa de depoimento face a ligação de parentesco ou de afinidade.

A formulação adoptada seria sempre insuficiente. E no presente caso acresceria até a circunstância de se tratar de uma testemunha menor, de dezasseis anos de idade, desprovida de conhecimentos jurídicos, e desacompanhada de advogado. Este condicionalismo contribuiria até, em concreto, para um adensar das exigências de esclarecimento e de informação. Mas mesmo nos casos de testemunhas naturalmente mais “esclarecidas”, ou até acompanhadas de advogado, o dever de advertência não seria nunca dispensável nem dispensado, por expressa imposição legal e sob pena de nulidade.

A propósito da formalidade na advertência, Cruz Bucho, no estudo “A Recusa de Depoimento de Familiares do Arguido: o Privilégio Familiar em Processo Penal (notas de estudo), pp. 142 e segs.” (https://www.trg.pt/info/estudos/279-a-recusa-de-depoimento-de-familiares-do-arguido-o-privilegio-familiar-em-processo-penal-notas-de-estudo.html), muito avisadamente desenvolve:

“9. A advertência
9.1. Finalidade e fundamento

a) Por forma a garantir o efectivo exercício do direito, a lei impõe que a entidade competente para receber o depoimento advirta as pessoas em causa da faculdade de recusarem o depoimento.

Relembra-se que conforme dispõe o n.º 2 do artigo 134.º, a entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento.

Como se assinalou no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 154/2009:
«Com a imposição desta advertência (à semelhança do que ocorre com dispositivos homólogos de outros ordenamentos: §52 da StPO germânica; artigo 199.º do Codice di Procedura Penale, artigo 416.º da Ley de Enjuiciamento Criminal) preocupou-se o legislador em assegurar que a opção da testemunha decorra de uma decisão informada, pois só assim fica inteiramente salvaguardada a faculdade - o direito ao silêncio - que, repete-se, lhe é conferida não só por causa do seu íntimo conflito de consciência, mas também para protecção do mesmo círculo familiar a que ela e o acusado pertencem».

Se a opção da testemunha deve decorrer de uma decisão informada, como bem refere o Tribunal Constitucional, importa igualmente que a entidade competente para receber o depoimento se assegure que aquela opção resulta de uma decisão livre.

(…) Mesmo que a testemunha seja um jurista consagrado, um advogado de nomeada ou um reputado magistrado, a advertência é devida em qualquer caso, porque a lei a tanto obriga independentemente dos conhecimentos jurídicos da testemunha.

A lei pretende, manifestamente, assegurar que a opção da testemunha decorra de uma decisão informada, pois só assim fica inteiramente salvaguardada a faculdade de se recusar a depor ou de prestar depoimento. Mas temos também por seguro que o legislador ao erigir esta regra, consagrando este dever de informação, não pôde deixar de tomar em consideração a realidade circundante, nomeadamente a circunstância de a testemunha poder ignorar aquela faculdade por desconhecimento jurídico.

9.2. Formalidades
A advertência não está sujeita a uma fórmula sacramental, mas deve constar do auto/acta sob pena de nulidade do depoimento prestado.

Na prática judicial assiste-se por vezes, demasiadas vezes, a uma completa banalização da advertência, que em alguns casos se resume a um sugestivo “deseja falar, não é assim?”, contentando-se o julgador com um inexpressivo “sim”, ou até com um duvidoso “posso falar”.

Esta prática é, porém, inaceitável porque adultera por completo a letra e espírito da lei.

É indispensável que a advertência seja realizada de forma expressa e clara, de modo a permitir à testemunha compreender o alcance e significado do exercício da faculdade de recusar o depoimento e possibilitando, deste modo, que quer o silêncio da testemunha quer o seu depoimento sejam fruto de uma escolha livre e esclarecida.

A este respeito, e para além do que resulta já da jurisprudência constitucional portuguesa a que acima fizemos referência, é significativa a lição da doutrina e da jurisprudência espanholas.

(…) 9.3. Entidade competente e conduta processual da testemunha.
a) Em face da terminologia legal adoptada - a entidade competente para receber o depoimento adverte – afigura-se-nos ser inequívoco que a advertência deve ser feita sempre que a testemunha seja chamada a prestar o seu depoimento, quer perante autoridade policial quer perante autoridade judiciária.

A advertência deve ser realizada qualquer que seja a fase em que o processo se encontre: nas fases preliminares (inquérito e instrução), na fase do julgamento (cfr. artigo 348.º, n.º1), na fase do recurso perante as Relações no caso de haver lugar à renovação da prova.

(…) No direito português - à semelhança do que sucede em outros ordenamentos jurídicos – afigura-se-nos que a advertência é devida de cada vez que se deva proceder à inquirição da testemunha, independentemente da posição por ela assumida na mesma fase processual ou nas anteriores.

Como bem sublinha Dá Mesquita, «[n]a lei portuguesa, além do enfoque na liberdade de decisão da fonte de prova, consagrou-se a plena retractabilidade relativamente a iniciativas processuais pretéritas (como a queixa) e às declarações livremente prestadas depois da advertência».

Consequentemente, a circunstância de a testemunha ter optado por depor em fase de inquérito e/ou instrução, renunciando então ao direito ao silêncio, não obsta a que a mesma testemunha posteriormente, na mesma fase ou em fase diferente, nomeadamente em julgamento, se recuse a depor.”

A doutrina exposta, transcrita apenas nos excertos mais relevantes aqui, é de sufragar. E inequívoco se apresenta também que, no presente caso, não foi dado cumprimento ao art. 134º, nº 2 do CPP.

Cumpre agora saber das consequências desse incumprimento, aferindo depois da tempestividade e legitimidade da arguição, e das possibilidades de conhecimento e sanação.

Em processo penal, as ilegalidades de prova podem configurar proibições de prova (categoria específica do processo penal), nulidades (absolutas ou relativas) e irregularidades.

Trata-se de matéria complexa, que tem sido objecto de extensa reflexão doutrinária e reiterada abordagem jurisprudencial.

Abreviadamente e como enunciado geral, pode dizer-se que as proibições de prova – vício mais grave que afecta qualquer possibilidade de apreciação da prova (proibida): “são nulas, não podendo ser utilizadas” – art. 126º, nº s 1 e 3, do CPP – respeita a provas obtidas mediante violação de direitos fundamentais, de tutela constitucional – “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações” – art. 32º, nº 8 da CRP.

O pensamento doutrinário e a prática jurisprudencial não têm sido uniformes na delimitação do universo das proibições de prova e na definição da fronteira com as nulidades de prova. A prática coloca dificuldades de distinção das situações e nem sempre resulta claro situar as contrariedades às normas processuais que regem em matéria de prova.

Daí que Costa Andrade, após assinalar a “acentuada tensão para o concreto” a que obedece o direito das proibições de prova, considere escapar “tanto ao legislador como à doutrina”, “de todo em todo, a possibilidade de antecipar e de antecipadamente modelar normativamente as «miríades de casos que a vida segrega»” (Costa Andrade, Sobre as proibições de Prova em Processo Penal, 1992, p 115).

A propósito da temática em apreciação, existem diferentes posições, doutrinárias e jurisprudenciais, que não cumpre desenvolver aqui e que se encontram tratadas, por exemplo, no citado estudo de Cruz Bucho.

A propósito da “delimitação do instituto das proibições de prova”, de que cumpre partir, considera-se ser de subscrever a doutrina de Helena Morão. A autora desenvolve:

“Assim, parece-nos que a proibição de prova em sentido próprio no sistema processual penal português é somente aquela norma probatória proibitiva cuja violação possa redundar na afectação de um dos direitos pertencentes ao núcleo eleito no art. 32/8 da Lei Fundamental e que o artigo 126 do Código de Processo Penal manteve, sem alargar. Não basta a mera violação de uma proibição legal em matéria probatória, como na lei italiana, nem a violação de um qualquer direito fundamental, como na lei espanhola.

“Deste modo, a título meramente exemplificativo, não estaremos diante de uma proibição de prova quando ocorre uma violação da proibição do testemunho de ouvir dizer (artigo 129 do Código de Processo Penal). Efectivamente, quando se verifica uma ultrapassagem dos limites previstos para o depoimento indirecto, nenhum dos valores protegidos pelo artigo 32/8 da Lei Fundamental é posto em causa, mas apenas o direito fundamental do arguido a um processo dotado de estrutura acusatória, com garantias de respeito pelos princípios da imediação e do contra-interrogatório na fase de julgamento.

“Neste caso é uma outra garantia constitucional que é atingida, a que vem prevista no nº 5 do artigo 32º da Constituição, e, para esta situação, vigora o regime geral das nulidades processuais penais (artigo 118º e segs. do Código de Processo Penal), vocacionado para a resolução das questões respeitantes à normal ponderação de valores inerente ao processo penal, que é ele próprio, em grande medida, Direito Constitucional concretizado.

“Assim, se o critério fundamental aqui apontado é o da afectação do núcleo valorativo dos direitos elencados no artigo 32/8 da Lei Fundamental, não é necessário que a lei comine, expressamente, a sanção da nulidade ou outra fórmula análoga para que estejamos perante uma proibição de prova. Por seu turno, não é por existir uma regra que comine a nulidade no Livro III do Código de Processo Penal que estamos perante uma proibição de prova” (Helena Morão, O efeito-à-distância das proibições de prova no Direito processual penal português”, RPCC 16 (2006), pp. 589/90).

Da posição que se adopta sem hesitação, resulta que o depoimento de familiar não advertido nos termos do art. 134º, nº 2 do CPP integra uma nulidade de prova e fica fora do núcleo das proibições de prova.

A possibilidade de recusa de depor não se ancora directamente na tutela da intimidade da vida privada, pois é inquestionável que o direito de recusa se mantém nos casos em que os factos probandos não respeitam à vida privada ou à intimidade da testemunha, tendo apenas como ligação a esta a circunstância de serem imputados a um seu familiar.

Também nesta parte, se sufragam as considerações seguintes, desenvolvidas por Cruz Bucho no estudo citado:

“Contrariamente ao que por vezes se vê afirmado, sem qualquer demonstração ou sequer fundamentação mínima, o direito de recusa não se funda na tutela da vida privada.

“Como o STJ já teve oportunidade de afirmar no seu Ac. de 23-10-2008: «A possibilidade de recusar o depoimento, nos termos do artigo 134.º, n.1, als.a) e b), do CPP, não está relacionada com a intromissão na vida privada; a possibilidade de recusa relaciona-se tão-só com o facto de as pessoas mais intimamente ligadas ao arguido não serem obrigadas a depor contra ele, sujeitando-se à prestação de juramento e consequências inerentes (artigo 91.º)».

“Também o próprio Tribunal Constitucional ao abordar a finalidade e fundamento da regra do n.º 1 do artigo 134.º já esclareceu que:

«Trata-se de uma forma de protecção dos escrúpulos de consciência e das vinculações sócio-afectivas respeitantes à vida familiar que encontra apoio no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição e que outorga ao indivíduo uma faculdade, que se compreende no direito (geral) ao desenvolvimento da personalidade, também consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, enquanto materialização do postulado básico da dignidade da pessoa humana (Embora não pareça, como concluiu o acórdão recorrido e afirma alguma doutrina, que possa ancorar-se directamente na tutela da intimidade da vida privada. Os factos podem não ter outra ligação à testemunha senão a circunstância de serem imputados ou interessarem à definição da responsabilidade penal de um seu familiar (lato sensu) e mesmo assim existe direito ao silêncio)».

“Da omissão do dever de advertência não resulta, pois, qualquer proibição de valoração.

(…) A omissão da advertência configura uma nulidade (“sob pena de nulidade”)”

A posição que ora se adopta distancia-se também, mas apenas em parte, do acórdão do TRE de 03-06-2008 (Rel. António João Latas) que se debruçou sobre a mesma questão, aqui em apreciação.

E após se ter sinalizado ali, na esteira de Costa Andrade e de Germano Marques da Silva, a “imbricação” existente entre proibições de prova e nulidades de prova, concluiu-se que a ausência de advertência da faculdade de recusa a depôr na audição de testemunha “parente” ou “afim” configuraria uma proibição de prova. E é nesta parte que não se sufraga o acórdão do TRE de 03-06-2008, cujo sumário é o que segue:

“1 As filhas da cônjuge do arguido, ofendida nos autos, são afins daquele no 1º grau da linha recta - cfr arts 1580º, 1581º, 1584º e 1585º, do C.Civil -, sendo certo que, nos termos desta última disposição do C.Civil, as relações de afinidade não cessam com a dissolução do casamento.

2. Apesar de o art. 134º nº2 do CPP se referir expressamente a nulidade, tal não significa, sem mais, que o mesmo se reporta ao regime das nulidades de que trata o art. 118º nº1 e 119º a 123º, do CPP, pois constituindo o art. 134º do CPP norma relativa à produção de prova, coloca-se a questão de saber se não deve antes ser-lhe aplicável o regime das proibições de prova, na medida em que tal regime detém autonomia face ao regime geral das nulidades.

3. No sentido da autonomia das proibições é decisivo no nosso processo penal o teor do art. 118º nº3 do CPP, que expressamente ressalva do regime das nulidades “qua tale” as normas do CPP relativas a proibições de prova, donde decorre que o legislador processual penal não pretendeu reconduzir as proibições de prova ao regime geral das nulidades, reconhecendo-lhe autonomia de forma expressa.

4. Entre nós a consagração das proibições de prova radica em primeira linha na eleição, por parte do legislador, de um conjunto de bens jurídico-penais que, em absoluto (proibições absolutas), ou em termos relativos (proibições relativas), não podem ser lesados pela prossecução das finalidades próprias do processo penal, maxime, a procura da verdade material. No entanto, para além da tutela dos bens jurídico-penais directamente abrangidos pelo art. 32º nº8 da CRP, as proibições de prova podem tutelar outros bens jurídico-penais a que o legislador atribua especial relevância, ainda que radicados em pessoa diferente do arguido, e mesmo princípios fundamentais do processo penal.

5. De iure condito é reconhecido à testemunha o direito, estabelecido de forma abstracta e potestativa, de recusar-se a depor contra o cônjuge ou afim até ao 2º grau, em nome de:

Um direito próprio a evitar o conflito pessoal que resultaria para a testemunha de poder contribuir para a condenação de um seu familiar(ou cônjuge) ao cumprir o dever legal de falar com verdade;
Salvaguarda das relações de confiança e solidariedade no seio da instituição familiar.

6. A omissão da advertência prevista no art. 134º nº2 CPP inutiliza a liberdade de não depor conferida pelo legislador à testemunha parente ou afim face à regra geral da obrigação de depor.

7. As proibições de prova (distintas das meras nulidades por preterição de regra de produção de prova) não carecem de ser arguidas, desde logo porque não lhe sendo directamente aplicável o regime das nulidades, não vale quanto a elas a regra do art. 119º do CPP, segundo a qual são insanáveis apenas as nulidades aí previstas ou as que como tal forem cominadas em outras disposições legais.

Do ponto de vista formal não há, pois, regra que faça depender de arguição as proibições de prova, pelo que pode a mesma ser conhecida oficiosamente, independentemente de arguição pelos interessados.

8. - Na falta de consagração de um regime das proibições de prova que regulasse, com autonomia, as diversas questões suscitadas por esta forma de invalidade, entendemos com Costa Andrade e Germano Marques da Silva, que há uma imbricação estreita entre os efeitos das proibições de prova e as nulidades insanáveis, maxime no que respeita à aplicação da regra geral contida no art. 122º do CPP.

9. A proibição de prova torne inconcebível e mesmo juridicamente impossível a repetição posterior ao acto viciado quanto às provas absolutamente proibidas (art. 126º nº1 CPP) - dada a grave desconformidade com valores essenciais do nosso ordenamento jurídico e as necessidades de prevenir futuras violações por parte das autoridades judiciárias ou policiais, igualmente subjacentes à consagração das proibições de prova - e às provas relativamente proibidas (maxime as previstas no art. 126º nº3 e equiparáveis) que pela sua singularidade sejam irrepetíveis.

10. – No entanto, quando está em causa, como no caso sub judice, a própria subsistência dos dois depoimentos testemunhais viciados, em que a anulação parcial do julgamento permitirá respeitar a faculdade legal de as testemunhas recusarem-se a depor, que lhes foi negada, nada obsta à eventual repetição dos depoimentos. Pelo contrário, se as testemunhas não vierem a exercer o direito de recusa será então que os seus depoimentos se ajustarão de pleno ao quadro legalmente estabelecido, uma vez que serão prestados sem a ilegítima nota de compulsividade que caracterizou os depoimentos inválidos.

11. Assim, embora se verifique a apontada proibição de produção da prova e consequente proibição de valoração da mesma, tal não significa a pura e simples exclusão da prova respectiva do conjunto de provas, antes implica que se declarem nulos e de nenhum valor probatório os depoimentos e todos os actos subsequentes, incluindo o acórdão condenatório, repetindo-se os depoimentos viciados se as testemunhas, depois de devidamente advertidas, aceitarem prestá-los.”

Como se vê, no acórdão considerou-se sanável a ilegalidade, viabilizando-se assim a possibilidade de repetição do depoimento viciado.

E a referência expressa a este acórdão justifica-se agora essencialmente por se considerar que esta conclusão (de viabilidade de sanação) que se retirou ali interessa também aqui. Ou seja, à semelhança do que ali se decidiu, considera-se que o depoimento viciado por falta da legal advertência em causa consente sanação.

Estando fora do universo das proibições de prova, não sendo uma prova proibida que não pode ser aproveitada, trata-se de um meio de prova naturalmente repetível, podendo a sanação processar-se por via da repetição do depoimento em crise, procedendo-se à advertência da possibilidade de recusa de depor, anteriormente omitida.

Também Paulo de Sousa Mendes considera “a falta de aviso aos parentes e afins acerca da sua faculdade de recusarem o depoimento” exemplo de “nulidades de prova reconduzíveis ao sistema das nulidades processuais, as quais seguem o regime das nulidades dependentes de arguição (art. 120º, nº 1)” (Paulo de Sousa Mendes, Lições de Direito Processual Penal, 2015, p. 190).

O reconhecimento agora feito de que a ilegalidade em causa fica excluída do universo das provas proibidas, tratando-se de uma nulidade de prova, implica a sujeição ao regime das nulidades (nulidades sanáveis). Temática que ficou naturalmente ultrapassada pela solução que vingou no acórdão do TRE citado, pois as proibições de prova gozam de “autonomia técnica”, são de conhecimento oficioso, a todo o tempo, não estando sujeitas ao regime das nulidades. O que não sucede aqui.

A propósito do regime de arguição e conhecimento, Cruz Bucho desenvolve no estudo citado, e com interesse para o recurso, o seguinte:

“Em conclusão: a omissão da advertência constitui nulidade (processual) sanável que, de acordo com o estatuído no artigo 120.º, n.º3, al. d) do CPP, deve ser arguida até à conclusão do depoimento.

“A nulidade decorrente da omissão da advertência deve ser arguida pelos interessados (artigo 120.º, n.º 1), “entendendo-se como tais os participantes processuais (todos) que porventura possam beneficiar da procedência da arguição, isto e, que tenham interesse em que o acto seja praticado com regularidade e sem vícios”.

“Afastamo-nos, assim, do entendimento do Ac. da Rel. do Porto de 15 de Outubro de 2003, que restringe aquela legitimidade aos sujeitos processuais.

“O conceito de interessado abrange tanto o arguido, como o Ministério Público, como as partes civis, como o assistente, como a própria testemunha enquanto participante processual.

“Contrariamente ao afirmado no citado Ac. da Rel. do Porto de 15 de Outubro de 2003, a lei não restringe a arguição de nulidades aos sujeitos processuais, referindo-se antes a interessados (artigos 120.º, n.º 1, e 3, alínea a) e 121.º, n.ºs 1, 2 e 3). E no artigo 121.º, n.º 1 alude até aos “participantes processuais interessados.”

Não discordando das considerações expostas, considera-se, no entanto, que o caso em análise exige um desenvolvimento mais.

À semelhança do expendido, considera-se que a omissão da advertência constitui nulidade (processual) sanável que, de acordo com o estatuído no artigo 120.º, n.º3, al. d) do CPP, deve ser arguida até à conclusão do depoimento; que essa nulidade decorrente da omissão da advertência deve ser arguida pelos interessados (artigo 120.º, n.º 1, do CPP); que os interessados são todos os participantes processuais que possam beneficiar da procedência da arguição, isto é, que tenham interesse em que o acto seja praticado com regularidade e sem vícios; que o conceito de interessado abrange tanto o arguido, como o Ministério Público, como as partes civis, como o assistente, como a própria testemunha enquanto participante processual.

Do regime processual penal das nulidades resulta efectivamente que, no caso presente, em relação ao arguido e aos outros sujeitos processuais a nulidade podia e deveria ter sido arguida até à conclusão do depoimento (pois todos se encontravam presentes no acto, estando o arguido devidamente acompanhado de advogado). E não o tendo sido, ficaria em princípio sanada.

Mas já assim não pode considerar-se, sem mais, relativamente à testemunha que prestou o depoimento em crise, ferido da omissão da legal advertência prévia sobre a possibilidade de recusa de depor.

A norma legal desrespeitada (art. 134º, nº 2 do CPP) visa salvaguardar direitos da testemunha, como se expôs. A testemunha “familiar” não ocupa no processo a posição de sujeito processual e encontrava-se, em concreto, desacompanhada de advogado.

Nestas concretas circunstâncias, não pode ser-lhe exigível que se aperceba, que conheça e que por isso invoque uma nulidade consistente exactamente na ausência de informação.

Ou seja, aquando da prática do acto a testemunha “familiar” não pode conhecer um vício que se traduz num desconhecimento (face à ausência de advertência da faculdade de recusa de depor). E não pode considerar-se esgotado o prazo de arguição de nulidade, pois quanto a ela o prazo só pode iniciar-se com o conhecimento.

A testemunha familiar do arguido é “pessoa interessada”, pois é a beneficiária do direito tutelado pela norma violada (o art. 134º, nº 2 do CPP). A advertência visa garantir-lhe o exercício da faculdade de recusa e ela não pode ser pessoa totalmente excluída do processo de decisão sobre a ilegalidade.

Por tudo, tem de lhe ser dado conhecimento e assegurada a possibilidade de se manifestar sobre a ilegalidade. O que, na prática, vai coincidir com a reparação da nulidade.

Importa, pois, que os autos regressem à primeira instância a fim de ser cumprida a norma violada e concretizada a advertência omitida, ouvindo-se AC para o efeito, isto é, sobre a faculdade que lhe assiste de recusar o depoimento (podendo assim eliminar o depoimento viciado ou, no reverso, confirmar e validar o já prestado).

Do exercício ou do não exercício dessa faculdade (de recusa de depor) deverão retirar-se todas as legais consequências, que passarão pela anulação/eliminação do depoimento viciado ou pela sua confirmação/validação, consoante a posição da testemunha, procedendo-se depois à conclusão do julgamento e à elaboração de nova sentença, em conformidade. O que implica que se declare nula a sentença recorrida e se determine a reabertura da audiência para os fins já determinados.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal em julgar procedente o recurso, anulando-se a sentença, e ordenando-se a reabertura da audiência a fim de ser cumprido o art. 134º, nº 2 do CPP relativamente à testemunha AC, procedendo-se à conclusão do julgamento e à elaboração de nova sentença em conformidade com o que resulte desse cumprimento.

Sem custas.

Évora, 13.07.2017

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)

__________________________________________________
[1] - Sumariado pela relatora.