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CONTRA-ORDENAÇÃO AMBIENTAL
CONSTITUCIONALIDADE
REGIME CONCRETAMENTE MAIS FAVORÁVEL
Sumário
I - Constitui contra-ordenação ambiental muito grave a simples utilização não licenciada de recursos hídricos do domínio público, em qualquer das hipóteses enumeradas nas alíneas do n.º 1 do artigo 60.º da Lei nº 58/2005, de 29/8.
II - O conjunto normativo em apreço indubitavelmente não exige, para o preenchimento da contra-ordenação, a produção de qualquer dano ambiental ou a criação de um perigo concreto da sua verificação.
III - A obrigatoriedade do licenciamento prévio da utilização dos recursos hídricos do domínio público por particulares e a punição do respectivo desacatamento como contra-ordenação ambiental muito grave comporta a compressão do direito de iniciativa económica privada em medida tolerada pelo princípio da proporcionalidade do nº 3 do artigo 18º da CRP.
Texto Integral
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
I. Relatório
No Processo de Contra-Ordenação nº 40/2014 da Agência Portuguesa do Ambiente, foi proferida por esta entidade, em 2/10/15, decisão final, que condenou «C…, SA», pela prática de uma contra-ordenação prevista pelo art. 60° nº 1 al. e) da Lei nº 58/2005 de 29/8 e punida pelo art. 81° nº 3 al. a) do DL nº 226-A/2007, de 31/5 e 22° nº 4 al. b) da Lei nº 50/2006 de 29/8, numa coima no valor de €25.000,00.
A arguida impugnou judicialmente, nos termos do art. 59º do Regime Geral das Contra-ordenações (doravante RGCO), aprovado pelo DL nº 433/82 de 27/10 e sucessivamente alterado, a decisão administrativa que a condenou.
Na fase de impugnação judicial, os autos foram distribuídos ao Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Instância Local de Albufeira, Secção Criminal e, em 14/7/16, foi proferida sentença pela Exª Juiz desse Tribunal, em que decidiu:
Pelo exposto, o tribunal indefere o recurso interposto pelo recorrente C e, consequentemente, confirmar a decisão administrativa na íntegra.
Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:
Da decisão administrativa
l) No dia 28 de Agosto de 2014, pelas 15h50m, a Recorrente, em anexo ao apoio de praia a que corresponde o alvará de licença de utilização do Domínio Público Hídrico n.º DSLCNI/POOC BV - 18/2005, montou e encontravam-se em funcionamento duas esplanadas, uma localizada a sul do apoio de praia, ocupando uma área de 70m2 de terreno de domínio público marítimo e outra montada a noroeste ocupando uma área de 50m2, assente numa estrutura amovível, aumentando as áreas de esplanada permitidas pelo título.
2) A Recorrente não dispunha de autorização para ocupar a área total de 120m2 que efectuou de utilização privativa dos recursos hídricos do domínio público sem qualquer licença para o efeito.
3)A Recorrente é titular do alvará de licença de utilização do Domínio Público Hídrico n. ° DSLCNI/POOC BV - 18/2005, averbado em seu nome a 2 de Maio de 2012, do qual faz parte integrante o projecto de arquitectura, aprovado em 19 de Outubro de 2001, a planta de localização, condições gerais e específicas que está obrigada a respeitar.
4)A Recorrente desde 2012 que dispõe dessa licença para explorar a instalação designada por apoio de praia completo com equipamento associado, designado por "Evaristo" na praia do Evaristo, unidade balnear 1, da freguesia e concelho de Albufeira.
5) O alvará de licença de utilização do Domínio Público Hídrico n.º DSLCNI/POOC BV - 18/2005 permite-lhe ocupar uma área total de 291,60m2.
6) O alvará de licença de utilização do Domínio Público Hídrico n.º DSLCNI/POOC BV - 18/2005 permite-lhe ocupar uma área de esplanada de 57,88m2, o que a arguida sabe.
7) Sabe a arguida que ao aumentar em mais de 120m2 a área das esplanadas, montando uma a sul do apoio de praia com uma área de 70m2 e outra a noroeste, junto ao quiosque, com uma área de 50m2 está a desrespeitar as condições do título.
8) Agiu o Recorrente com conhecimento de que as condutas que praticava eram proibidas e punidas por lei.
Do recurso de impugnação
9) A esplanada de 70m2 instalada a sul do estabelecimento consistia na colocação de mesas, cadeiras e chapéus de sol sobre o relvado adjacente ao estabelecimento.
A mesma sentença julgou os seguintes factos não provados:
a)Que a utilização do terreno relvado a sul do estabelecimento para a colocação no Verão de mesas, cadeiras e chapéus de sol tem vindo a ser utilizada pelos sucessivos titulares do estabelecimento actualmente pertencente á Recorrente desde 1993.
Da referida sentença a arguida veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:
1ª) A conduta da recorrente não provocou quaisquer riscos potenciais ou danos efectivos para o ambiente, pelo que não há qualquer desvalor na sua conduta.
2ª) O n.º 2 do art. 1º da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais impõe que para constituir contraordenação ambiental o facto tem de ser censurável, o que não se verifica in casu.
3ª) A douta sentença recorrida decidiu que a contraordenação em causa baseia-se apenas na ausência de licença para a utilização de recursos hídricos, não exigindo a verificação de riscos potenciais ou de danos ambientais.
4ª) Termos em que a douta sentença recorrida faz errada interpretação e aplicação do art. 81° / 3 / a do Dec. Lei n. ° 226- A/2007, de 31 de Maio e do art. 1.°/2 da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais, disposições legais que assim se mostram violadas.
Por outro lado,
5ª) A recorrente é titular de um apoio de praia completo com equipamento associado (estabelecimento de restauração e bebidas com funções de apoio de praia) e da correspondente licença de concessão balnear, consistindo a infracção que lhe é imputada na colocação de duas esplanadas, uma localizada a Sul ocupando uma área de 70m2 - instalada directamente sobre o relvado adjacente ao estabelecimento - e outra a Noroeste com a área de 50m2 - assente numa estrutura amovível, fora da área licenciada para o efeito.
6ª) Foi precisamente no âmbito da sua actividade privada empresarial de exploração do seu apoio de praia com equipamento associado e da respectiva concessão balnear, ambas utilizações do domínio público hídrico tituladas de acordo com a legislação aplicável, que a recorrente colocou as referidas esplanadas fora da área licenciada para o efeito.
7ª) E com fundamento na circunstância dessa área não estar compreendida no respectivo título de utilização dos recursos hídricos [in. casu terrenos dominiais) a recorrente foi condenada, por falta de título de utilização dos recursos hídricos, pela prática de uma contraordenação ambiental muito grave prevista no citado art. 81º/3/a do Dec. Lei nº 226-A/2007, de 31 de Maio (punível nos termos do art.° 22º /4/ b da Lei nº 50/2006, na versão introduzida pela Lei nº 89/2009, de 31 de Agosto) na coima mínima de € 38.500 a € 70.000, a qual foi especialmente atenuada, tendo-lhe sido aplicada a coima de 25.000€.
8ª) A Lei n.º 114/2015, de 28 de Agosto deu nova redacção ao citado preceito legal, passando a coima a ser de 24.000€ a 144.000€ no caso dos autos.
9ª) De acordo com o art.° 204º da CRP "Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados".
10ª) No caso vertente estão em colisão o direito ao ambiente (cfr. art. 66º/1 da CRP) versus o direito de iniciativa privada (cfr. art. ° 61.°/1 da CRP).
11ª) A douta sentença recorrida não deu como provada a produção de quaisquer danos ou a criação de quaisquer riscos para qualquer valor ambiental elencado na Lei de Bases do Ambiente.
12ª) O núcleo essencial do direito ao ambiente é a garantia de um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado, o qual não é afectado pela mera utilização não titulada de recursos hídricos, incluindo terrenos, sem produção de quaisquer danos ambientais.
13ª) Enquanto que o conteúdo essencial do direito de iniciativa privada previsto no art. 61º/1 da CRP é atingido de forma desproporcionada quando a lei prevê no art. 81º/3/a do Dec. Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, que a mera utilização não titulada de recursos hídricos, incluindo terrenos, independentemente de quaisquer danos ambientais, constitui contraordenação ambiental muito grave, cuja coima tinha um montante mínimo de 38.500€ à data da decisão condenatória da autoridade administrativa e de € 24.000 à data da prolacção da douta sentença recorrida.
14ª) No caso vertente, a utilização não titulada de terrenos do domínio público hídrico não causou quaisquer danos ambientais.
15ª) E, por isso, a aplicação à recorrente de uma coima, ainda que especialmente atenuada no montante de 25.000€ é manifestamente desproporcional tendo em conta que o valor que o legislador quis proteger ao instituir a obrigação de que todo o utilizador de recursos hídricos esteja titulado, autorizado e licenciado nessa utilização, não foi minimamente afectado, dada a ausência de produção de quaisquer danos no ambiente.
16ª) A norma ínsita no art.° 81.°/3/a do Dec. Lei nº 226¬A/ 2007, de 31 de Maio, segundo a interpretação normativa que lhe foi conferida pelo tribunal a quo, é assim inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade com assento no art. ° 18.° da CRP, inconstitucionalidade que se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
E por outro lado,
17ª) A douta sentença recorrida não se pronunciou sobre a aplicação no tempo da norma mais favorável, desconsiderando completamente a entrada em vigor da Lei nº 114/2015, que baixou o montante mínimo da coima para 24.000€.
18ª) Por via da entrada em vigor da lei nova mais favorável á arguida, ora recorrente, o tribunal a quo deveria ter em qualquer caso reduzido proporcionalmente a coima por via da aplicação imediata da lei mais favorável, o que não fez, violando desta forma o disposto no art. 4º/2 da Lei Quadro das Contraordenaçães ambientais.
Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V.Exas., Venerandos Desembargadores, deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, substituindo-a por decisão que absolva a ora recorrente, ou caso assim não se entenda, reduza proporcionalmente a coima por aplicação da lei nova.
O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo.
O MP respondeu à motivação da recorrente, pugnando pela manutenção do decidido, mas sem formular conclusões.
O Digno Procurador-Geral Adjunto junto desta Relação emitiu parecer sobre o mérito do recurso, pronunciando-se no sentido da sua improcedência.
O parecer emitido foi notificado à recorrente, que não exerceu seu direito de resposta.
Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.
II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pela recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.
Tal princípio é extensivo aos recursos interpostos de sentenças proferidas sobre impugnações judiciais de decisões administrativas condenatórias, em processos de contra-ordenação, por força do disposto no nº 1 do art. 41º do RGCO, que manda aplicar a esses procedimentos, subsidiariamente, as regras do processo criminal.
A sindicância da sentença recorrida, expressa pela arguida nas suas conclusões, desdobra-se nas seguintes vertentes essenciais:
a) Atipicidade da apurada conduta da arguida;
b) Aplicação retroactiva do regime mais favorável da Lei 114/2015 de 28/8.
Passaremos então a conhecer das questões suscitadas pela recorrente pela ordem e que as enunciámos, que é a da prioridade lógica da sua apreciação.
Quanto à primeira das questões enunciadas, a recorrente argumenta, em síntese, que sua conduta apurada nos autos não punível como contra-ordenação ambiental, porquanto não causou dano concreto ao ambiente ou sequer o perigo da sua verificação.
A este propósito, a recorrente arguiu a inconstitucionalidade da norma do art. 81º nº 3 al. a) do DL nº 226-A/2007 de 31/5, na interpretação perfilhada na sentença recorrida por violação do princípio da proporcionalidade, com assento no art. 18º da CRP.
Transcrevemos a seguir as normas relevantes para a integração da responsabilidade contra-ordenacional da arguida, tal como se concretizou na decisão administrativa condenatória, confirmada pela sentença sob recurso:
- Nº 1 do art. 60º da Lei nº 58/2005 de 29/8
Estão sujeitas a licença prévia as seguintes utilizações privativas dos recursos hídricos do domínio público: (…)
d) A ocupação temporária para a construção ou alteração de instalações, fixas ou desmontáveis, apoios de praia ou similares e infra-estruturas e equipamentos de apoio à circulação rodoviária, incluindo estacionamentos e acessos ao domínio público hídrico;
e) A implantação de instalações e equipamentos referidos na alínea anterior;
- Nº 1 do art. 81º do DL nº 226-A/2007 de 31/5 Constitui contra-ordenação ambiental muito grave:
a) A utilização dos recursos hídricos sem o respectivo título; (…)
- Nº 4 do art. 22º da Lei nº 50/2006 de 29/8 Às contra-ordenações muito graves correspondem as seguintes coimas: (…) b) Se praticadas por pessoas colectivas, de (euro) 38 500 a (euro) 70 000 em caso de negligência e de (euro) 200 000 a (euro) 2 500 000 em caso de dolo.
A recorrente veio invocar a inconstitucionalidade da norma que prevê a contra-ordenação por violação do princípio constitucional da proporcionalidade, que tem por assento específico o nº 3 do art. 18º da CRP, cujo teor é o seguinte:
As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
Da conjugação das normas legais transcritas supra resulta claro que constitui contra-ordenação ambiental muito grave a simples utilização não licenciada de recursos hídricos do domínio público, em qualquer das hipóteses enumeradas nas alíneas do nº 1 do art. 60º da Lei nº 58/2005 de 29/8, incluindo a da al. e) que a arguida concretamente preencheu, punível com coima dentro dos limites previstos na al. b) do nº 4 do art. 22º da Lei nº 50/2006 de 29/8, quando praticada por pessoa colectiva, como é o caso.
O conjunto normativo em apreço indubitavelmente não exige, para o preenchimento da contra-ordenação, a produção de qualquer dano ambiental ou a criação de um perigo concreto da sua verificação.
A arguida mobiliza em apoio da sua tese a disposição do nº 2 do art. 1º da Lei nº 50/2006 de 29/8, a qual reza:
Constitui contra-ordenação ambiental todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares relativas ao ambiente que consagrem direitos ou imponham deveres, para o qual se comine umacoima.
Sustenta a recorrente que a sua apurada conduta não é «censurável» e, logo, não é integradora de contra-ordenação, porquanto não causou dano ambiental, nem gerou perigo concreto de o mesmo ocorrer.
Ora, o requisito da «censurabilidade», prescrito pela última disposição legal reproduzida, não pode ser plausivelmente entendido, a nosso ver, como uma alusão ao chamado «princípio da culpa», que conforma não só o direito penal propriamente dito, mas também outros ramos do direito sancionatório, como o regime das contra-ordenações, por força do qual só é passível de punição a conduta que puder ser censurada ao seu agente, seja a título de dolo, seja de negligência.
No regime específico das contra-ordenações ambientais, o referido princípio da culpa tem consagração no art. 9-º da Lei nº 50/2006 de 29/8, cujo nº 1 dispõe que as contra-ordenações são puníveis a título de dolo ou de negligência e o nº 2 que a negligência é sempre punível.
Assim sendo, o requisito da «censurabilidade», a que se refere o nº 2 do art. 1º da Lei nº 50/2006 de 29/8, não obsta à tipificação como contra-ordenação de uma conduta que não provoque dano ao ambiente ou crie um perigo concreto da sua verificação.
Cumpre então apreciar a questão da inconstitucionalidade da norma que define como contra-ordenação ambiental muito grave apurada conduta da arguida, tal como esta a suscitou em sede de recurso.
Sustenta a recorrente que a interpretação normativa, que vingou na sentença em crise, lesa de forma desproporcionada o seu direito de iniciativa económica privada, garantido pelo nº 1 do art. 61º da CRP, assim violando o princípio consagrado no nº 3 do art. 18º da mesma Lei Fundamental.
O nº 1 do art. 61º da CRP é do seguinte teor:
A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral.
Conforme a recorrente reconhece, contrapõe-se, na matéria tratada pela norma questionada, ao direito de iniciativa privada o direito ao ambiente, consagrado pelo nº 1 do art. 66º da CRP:
Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.
O nº 2 do mesmo artigo define um elenco de tarefas do Estado destinadas a assegurar o direito ao ambiente, entre as quais se contam «prevenir e controlar …as formas prejudiciais de erosão» (al. a)), «…garantir a conservação da natureza…» (al. c)) e «promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica…» (al. d)).
Tal como outras posições jurídicas subjectivas constitucionalmente tuteladas, o direito de iniciativa económica privada não é absoluto, encontrando-se ainda sujeito a um condicionamento específico, que é o respeito pelo «interesse geral», prescrito na parte final do nº 1 do art. 61º da CRP.
Aceitamos sem dificuldade que, nesse conceito de «interesse geral», se incluem os imperativos ligados à manutenção de um ambiente saudável.
Nos tempos actuais, é um dado adquirido que a defesa e preservação dos recursos hídricos e, em especial, do mar, desempenham um papel essencial na obtenção de um meio ambiente harmonioso e equilibrado, que seja potenciador da qualidade de vida das pessoas.
Nesta ordem de ideias, mostra-se plenamente justificado, à luz dos comandos dos nºs 1 e 2 do art. 66º da CRP, que a utilização por particulares de recursos hídricos do domínio público esteja sujeita a licenciamento prévio, de forma a prevenir a apropriação descontrolada e porventura excessiva dos mesmos.
A isto acresce que a mesma ordem de imperativos é de molde a justificar também que a utilização dos referidos recursos por particulares sem observância do requisito de licenciamento seja reprimida enquanto contra-ordenação, pois de outra forma encontrar-nos-emos perante uma norma sem sanção, cujo cumprimento fica na disponibilidade de cada um, o que comprometeria totalmente a sua eficácia.
Aqui chegados, poderá eventualmente discutir-se se o efeito dissuasor pretendido poderia ser alcançado por meio da qualificação da utilização não licenciada de recursos hídricos do domínio público, por particulares, como contra-ordenação leve ou contra ordenação grave, sem que houvesse necessidade, para anto, de incluir tal conduta entre as contra-ordenações muito graves.
Contudo, trata-se de uma matéria que se situa, essencialmente, na margem de discricionariedade reconhecida ao legislador ordinário, não se nos afigurando manifestamente excessiva a solução adoptada.
De todo o modo, inexistem razões para afirmar, como faz a recorrente, que a exigência do licenciamento prévio da utilização de recursos hídricos do domínio público por entidades privadas e a punição da sua inobservância como contra-ordenação ambiental muito grave sejam de molde a ofender o núcleo essencial do seu direito de iniciativa económica privada.
Em nosso entender, tal núcleo essencial só seria ofendido na hipótese de o cumprimento da exigência de licenciamento se revelar de tal modo oneroso, do ponto de vista do seu custo monetário ou outro, em termos de tornar economicamente impraticável a actividade comercial em cujo âmbito teve lugar a utilização não licenciada.
Ora, nada de semelhante foi sequer alegado.
Assim sendo, a obrigatoriedade do licenciamento prévio da utilização dos recursos hídricos do domínio público por particulares e a punição do respectivo desacatamento como contra-ordenação ambiental muito grave comporta a compressão do direito de iniciativa económica privada em medida tolerada pelo princípio da proporcionalidade do nº 3 do art. 18º da CRP.
Consequentemente, terá de improceder a arguição de inconstitucionalidade em apreço.
Não sendo inadmissível à luz da ordem constitucional a orientação interpretativa em que se baseou a decisão condenatória recorrida, teremos de concluir pela tipicidade contra-ordenacional da apurada conduta da arguida, pelo que está votada ao insucesso a primeira vertente da pretensão recursiva.
Resta-nos ajuizar da eventual aplicação do regime legal previsto na Lei nº 114/2015 de 28/8.
Ao tempo da prática dos factos por que a arguida responde (28/8/14), vigorava a redacção da Lei nº 50/2006 de 29/8 (Lei de Bases das Contra-ordenações Ambientais) introduzida pela Lei nº 89/2009 de 31/8.
Posteriormente, a Lei nº 114/2015 de 28/8 veio introduzir nova reforma na referida Lei de Bases.
Por força do disposto no seu art. 8º, a Lei nº 114/2015 de 28/8 iniciou a sua vigência 60 dias após a sua publicação, pelo que não se encontrava ainda em vigor, ao tempo em que foi proferida a decisão administrativa condenatória (2/10/15).
O nº 2 do art. 4º da Lei nº 50/2006 de 29/8, em qualquer das versões em referência, estatui:
Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplica-se a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado.
A sentença ora recorrida, que recaiu sobre o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa condenatória, não conheceu da eventual aplicação do regime introduzido pela Lei nº 114/2015 de 28/8, por mais favorável à arguida, não tendo esta suscitado a questão no recurso oposto à decisão administrativa.
Contudo, porque se trata de uma questão podia ter sido conhecida oficiosamente pelo Tribunal da primeira instância, é lícito à arguida suscitá-la no recurso interposto da sentença, pois não pode dizer-se que se situe fora do objecto da decisão recorrida.
Na redacção vigente ao tempo da prática dos factos, que acima deixámos transcrita, a al. b) nº 4 do art. 22º da Lei nº 50/2006 de 29/8, cominava às contra ordenações ambientais muito graves, quando cometidas por pessoas colectivas, coima no valor de € 38.500 a € 70.000, em caso de negligência e de € 200.000 a € 2.000.000, em caso de dolo.
Na versão introduzida pela Lei nº 114/2015 de 28/8, a referida disposição legal, reportada a contra-ordenações ambientais muito graves, passou a ter o seguinte teor:
Se praticadas por pessoas coletivas, de € 24 000 a € 144 000 em caso de negligência e de € 240 000 a € 5 000 000 em caso de dolo.
A decisão administrativa condenatória, lavrada a fls. 19 a 22 dos autos, censurou à arguida a contra-ordenação por cuja prática foi acoimada, a título de negligência.
No mesmo acto decisório, foi determinado que a arguida beneficiasse da atenuação especial da coima, prevista no nº 2 do art. 12º da Lei nº 50/2006 de 29/8, sendo aplicáveis, de acordo com a legislação então vigente, os termos da atenuação especial previstos no nº 3 do art. 18º do RGCO, o qual prescreve a redução para metade dos limites mínimo e máximo da respectiva moldura sancionatória.
Como tal, a medida concreta da coima em que a arguida foi condenada foi encontrada no interior de um quadro que vai de € 19.250 a € 35.000.
A reforma aprovada pela Lei nº 114/2015 de 28/8 deixou incólume a disposição do nº 2 do art. 12º da Lei nº 50/2006 de 29/8.
De acordo com a nova redacção deste diploma, os termos da atenuação especial da coima passaram a ter sede normativa própria no seu art. 23º-B, que, no entanto, manteve inalterados os termos concretos, que resultavam da aplicação do RGCO.
A actual redacção da al. b) do nº 4 do art. 22º da Lei nº 50/2006 de 29/8 reduziu sensivelmente, de € 38.500 para € 24.000, o limite mínimo da moldura sancionatória aplicável à contra-ordenação praticada pela arguida, mas também aumentou para o dobro, de € 72.000 para € 144.000, o seu limite máximo.
Não está em causa o benefício para parte da arguida da atenuação especial da coima, que lhe foi reconhecido na decisão condenatória administrativa, pois a sua sede legal permanece inalterada.
Contudo, não se nos afigura que a alteração introduzida pela Lei nº 114/2015 de 28/8 na redacção da al. b) do nº 4 do art. 22º da Lei nº 50/2006 de 29/8 seja de molde a acarretar, por si só, a alteração da medida concreta da coima em que a arguida foi condenada pela autoridade administrativa, porquanto, uma vez operada a atenuação especial, a determinação da medida sancionatória terá de atender aos limites mínimo de € 12.000 e máximo de € 72.000, o que não funciona necessariamente no sentido da imposição de uma sanção menos severa.
Nesta conformidade, teremos de concluir que o novo regime legal em apreço não se mostra, em concreto, mais favorável à arguida, pelo que não haverá que proceder à sua aplicação retroactiva.
Por conseguinte, improcede também a segunda vertente da pretensão recursiva.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.
Notifique.
Évora, 13/7/2017 (processado e revisto pelo relator)