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FURTO
AUTORIA
Sumário
I - Resultando do conceito de autoria estabelecido no art. 26.º do C. Penal que é autor do crime de furto quem subtraia a coisa por si mesmo (autoria material) ou por intermédio de outrem (autoria moral) ou quem dolosamente determinar outra pessoa à prática do facto (instigação) ou tomar parte na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros (coautoria), não só se exige na acusação e sentença a descrição factual correspondente à forma de autoria verificada, como só pode afirmar-se a autoria se resultar provada alguma destas modalidades.
II - Assim, não só a acusação não permite saber qual a forma de autoria que o MP imputara à arguida como da factualidade julgada provada na sentença recorrida não poderia sequer inferir-se necessariamente que foi a arguida quem subtraiu a energia elétrica, sendo plausível e ainda de acordo com as regras da experiência ter sido outra pessoa a subtrair a energia elétrica em benefício da arguida mas sem a participação desta por alguma das formas previstas no citado artigo 26.º do C. Penal.
Sumariado pelo relator
Texto Integral
DECISÃO SUMÁRIA
I. 1. Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos na secção de competência genérica (J2) da Instância local de Almodôvar de VRS António da Comarca de Faro, foi acusada e sujeita a julgamento A, natural da freguesia e do concelho de Serpa, nascida a 2 de Dezembro de 1977, divorciada, desempregada, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.°, n. 1 e 204.°, n. 1, alínea j), ambos do Código Penal.
2. - Realizada Audiência de Julgamento, o tribunal singular, julgando a acusação improcedente, por não provada, decidiu absolver a arguida da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.°, n. 1 e 204.°, n. 1, alínea j), ambos do Código Penal.
3. Inconformado com a sentença absolutória, o MP recorreu, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se reproduzem integralmente:
«1.A sentença recorrida absolveu a arguida A. do crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204º, nº 1, al. j), com referência ao art.º 203º, nº 1, ambos do C.P. de que se encon trava acusada.
2. Tal decisão baseou-se na circunstância de não ter considerado provados os factos respeitantes à verificação do elemento subjectivo do referido crime, mais especificamente que a arguida pretendeu apropriar-se de energia eléctrica contra a vontade e sem o consetimento da ofendida EDP, bem como que sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
3. No entanto, as regras de normalidade e de experiência comum determinavam que, mediante os factos objectivos que considerou provados, conduzissem à verificação, também, dos factos respeitantes ao elemento subjectivo, na medida em que este se extrai daqueles.
4. Não o fazendo, violou o disposto no art.º 127º e, pelo menos, no art.º 203º, nº 1 do C.P..
5. Devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que condene a arguida pela prática do crime de que se encontrava acusada, ou, pelo menos, do crime de furto, p. e p. pelo art.º 203º, nº 1 do C.P.»
4. – A arguida não apresentou resposta ao recurso.
5. Nesta Relação, a senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, por falta de cumprimento do disposto no art. 412º nº3 do CPP e por não ser patente a verificação de algum dos vícios previstos no art. 410º nº2 do CPP.
6. Notificada nos termos do art. 417º nº2 do CPP, a arguida nada disse.
7. A sentença recorrida (transcrição parcial):
«Discutida a causa ficaram provados os seguintes factos:
1 - A EDP Distribuição - Energia, S.A., mediante um contrato de fornecimento de energia eléctrica, através dos seus funcionários, procede à ligação à rede eléctrica de serviço público no local do consumo, aplicando um equipamento de medição (contador) destinado a registar os consumos efectuados, procedendo, posteriormente, à selagem do referido equipamento a fim de evitar a sua violação e a adulteração dos registos, por parte de pessoas não autorizadas;
2 - De igual forma, a EDP Distribuição - Energia, S.A., no âmbito das suas competências, recolhe periodicamente a leitura dos valores registados nos equipamentos de mediação descritos em 1, para informação aos comercializadores de energia e emissão, por parte destes, da respectiva facturação;
3 - A EDP Distribuição - Energia, S.A., no âmbito das suas competências, procede, ainda, à fiscalização das ligações à rede das instalações particulares de consumo, com o objectivo de despistar eventuais ligações abusivas à rede eléctrica pública, ou manipulação ou adulteração das equipas de medida;
4 - Ora, no dia 11 de Junho de 2015, pelas 16:00 horas, o técnico PA realizou uma vistoria às instalações eléctricas da roulotte de venda de farturas, denominada "F N", em nome da arguida A, sita, na Avenida …, em Monte Gordo, que se encontrava em funcionamento (mas não aberta ao público àquela hora), e verificou o seguinte:
"Cabo a sair de uma caixa P100, ligado indevidamente a uma roulotte de farturas. A P100, não tinha vestígios de ter sido arrombada, foi furada e ligado cabo à saída da porta fusíveis. A roulotte estava fechada mas tinha consumo de 3,9A";
5 - Para eliminar a anomalia detectada, ou seja, a referida ligação ilícita, o técnico que realizou a vistoria, desligou o cabo e retirou-o daquele local;
6 - Com a referida conduta, a arguida A, beneficiou de energia eléctrica, calculada de acordo com os critérios previstos no artigo 6.°, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de Outubro, ao que acresce a utilização de potência e os encargos administrativos com a detecção e tratamento da anomalia, num valor monetário total de € 951,96 (novecentos e cinquenta e um euros e noventa e seis cêntimos);
7 - A arguida A, naquele dia 11 de Junho de 2015, não tinha celebrado qualquer contrato de fornecimento de energia, nem tinha efectuado qualquer pedido nesse sentido;
8 - No dia 20 de Julho de 2015, a arguida A celebrou um contrato de fornecimento de energia, com a EDP Distribuição - Energia, S.A.;
9 - A arguida não tem antecedentes criminais.
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Não se provou que:
- com a referida conduta, a arguida A, apoderou-se da energia eléctrica aludida em 6;
- a arguida A agiu com o propósito concretizado de consumir energia eléctrica, no valor descrito em 6, bem sabendo que o fazia contra a vontade e sem o consentimento da sua legítima proprietária, EDP Distribuição - Energia, S.A., usufruindo da mesma, com perfeito conhecimento de que não lhe pertencia;
- a arguida A agiu com o propósito concretizado de obter, para si, benefícios e vantagens económicas a que sabia não ter direito, prejudicando a EDP Distribuição - Energia, S.A.;
- a arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, e tendo capacidade para se determinar de acordo com tal conhecimento.
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O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados e não provados com base na apreciação crítica dos depoimentos das testemunhas de acusação cujo teor consta do registo fonográfico apreciados à luz de regras de normalidade e de experiência comum.
A arguida usando do seu direito ao silêncio não prestou declarações sobre os factos.
E ainda com base no teor da prova documental analisada de forma critica e junta aos autos:
- auto de denúncia de fls. 3 a 4;
- participação de fls. 11 a 13;
- certidão permanente de fls. 16 a 27;
- alvará de licença de utilização de fls. 31 a 33;
- informação de fls. 34
- cálculo de energia de fls. 45.
- certificado do Registo Criminal da arguida de tis. 109.
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Testemunhas de acusação
- PA, funcionário da EDP que realizou a vistoria aludida em 4, e detectou a ligação do cabo, confirmando os referidos factos.
- DS e JF, militares da GNR que elaboraram o auto de notícia constante dos autos a fls. 3 a 4 que confrontados com o mesmo confirmaram o seu teor e a sua autoria.
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Da conjugação da prova produzida que resultou dos depoimentos das testemunhas de acusação, apenas resulta como certo que foi efectuada a vistoria aludida em 4, e que existia um cabo a sair de uma caixa P100, ligado indevidamente a uma roulotte de farturas. A P100, sem vestígios de ter sido arrombada, furada e ligado cabo à saída da porta fusíveis e que a roulotte estava fechada mas tinha consumo de 3,9A", nada mais se tendo apurado designadamente quem colocou o cabo na referida roulotte, o que se afigura insuficiente ao Tribunal concluir daquela factualidade assente a responsabilidade da arguida.
Note-se que nenhuma das testemunhas de acusação presenciou de que forma foi efectuada a ligação do referido cabo, o que não nos permite, salvo o devido respeito por entendimento diverso concluir pela responsabilidade da arguida.
Por todo o exposto, a referida factualidade assente afigura-se insuficiente para concluir pela verificação do ilícito em causa e seu cometimento pela arguida, ou seja, pela responsabilidade da arguida, impondo-se a absolvição da mesma. A prova produzida não consente nem autoriza o Tribunal concluir pela responsabilidade da arguida, que esta praticou o ilícito de que vem acusada, o que demanda a improcedência da acusação.
Em suma, face ao exposto concluímos que não se provaram os factos imputados à arguida que integram a prática do crime que lhe é imputado respectivamente o que demanda a sua absolvição.
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Fundamentação de Direito.
A arguida vem acusada da prática em autoria material, na forma consumada de um crime de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.°, n.1 e 204.°, n.1 al. j., todos do Código Penal.
- Do crime de furto
(…)
Da análise conjugada dos dispositivos legais supra citados conclui-se que, para preenchimento do crime de furto qualificado pelo qual a arguida vem acusada, é necessário a verificação dos seguintes elementos objectivos:
- Subtracção; de coisa móvel; alheia; impedindo ou perturbando, por qualquer forma, a exploração de serviços de comunicações ou de fornecimento ao público de água, luz, energia, calor, óleo, gasolina ou gás (al. j) do n.º 1).
É ainda necessário a verificação dos seguintes elementos subjectivos: ilegítima intenção de apropriação, enquanto especifica direcção de vontade para além do dolo genérico; e consciência da ilicitude da conduta e a vontade de a realizar.
(…)
Importa aferir da verificação ou não do ilícito em causa imputado à arguida.
E atento os elementos constitutivos - objectivo e subjectivo - do referido ilícito e atenta a factualidade assente, concluímos pela negativa, pois no caso em apreço, não resultou provado ter a arguida actuado da forma descrita na acusação, designadamente que se tenha apoderado da energia eléctrica aludida em 6, agindo com o propósito concretizado de consumir a referida energia eléctrica, sabendo que o fazia contra a vontade e sem o consentimento da sua legítima proprietária, EDP Distribuição - Energia, S.A., usufruindo da mesma, com perfeito conhecimento de que não lhe pertencia, agindo ainda com o propósito concretizado de obter, para si, benefícios e vantagens económicas a que sabia não ter direito, prejudicando a EDP Distribuição ¬Energia, S.A., de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, sabendo que incorria na prática de um crime, em suma, não resultou provado ter a arguida cometido o ilícito de que vem acusada, impondo-se a improcedência da acusação e consequentemente a sua absolvição.
*
Decisão
Pelo exposto, julga-se a acusação improcedente, por não provada e consequentemente, decide-se:
I - Absolver a arguida - A - da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.°, n.º 1 e 204.°, n.º 1, alínea j), ambos do Código Penal. »
II. Vejamos.
8. A sentença recorrida absolveu a arguida A. do crime de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204º, nº 1, al. j), com referência ao art.º 203º, nº 1, ambos do C.P. de que se encontrava acusada.
a) Apesar de referir na motivação de recurso e respetivas conclusões que a decisão absolutória baseou-se na circunstância de não ter considerado provados os factos respeitantes à verificação do elemento subjectivo do referido crime, mais especificamente que a arguida pretendeu apropriar-se de energia eléctrica contra a vontade e sem o consentimento da ofendida EDP, bem como que sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, o MP recorrente não cita em passo algum da sua motivação e respetivas conclusões o art. 412º ou 410º nº 2, do CPP, limitando-se a invocar, genericamente, violação das regras de normalidade e de experiência comum que determinavam que, mediante os factos objetivos que considerou provados, conduzissem à verificação, também, dos factos respeitantes ao elemento subjetivo, na medida em que este se extrai daqueles, concluindo que deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que condene a arguida pela prática do crime de que se encontrava acusada, ou, pelo menos, do crime de furto, p. e p. pelo art.º 203º, nº 1 do C.P.»
b) Impõe-se considerar, pois, que se o MP tinha o propósito de impugnar a decisão sobre matéria de facto não cumpre minimamente o ónus processual de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como as concretas provas que imporiam decisão diversa da recorrida, com indicação das passagens da prova gravada em que fundaria a impugnação, conforme exigido pelo artigo 412º nºs 3 e 4 do CPP.
Por outro lado, dado que as omissões apontadas se verificam logo no texto da motivação de recurso, não pode dirigir-se convite ao recorrente nos termos do art. 417 nº 3 do CPP, uma vez que, conforme se refere, entre outros, no acórdão do Tribunal Constitucional nº259/2002, de 18/6/2002, publicado no D.R. II Série, de 13/12/2002, quando a falta daquelas especificações reside tanto na fundamentação como nas conclusões, não assiste ao recorrente o direito de apresentar uma segunda motivação, pois a existência de um despacho de aperfeiçoamento quando o vício seja da própria motivação equivaleria à concessão de novo prazo para recorrer[1], que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso. Não foi, assim, deduzida impugnação da decisão em matéria de facto de que pudesse conhecer-se.
c) No que respeita a eventual vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410º nº 2 c) do CPP, que é de conhecimento oficioso, como sempre temos entendido, consideramos com a senhora Procuradora – Geral Adjunta que o texto da sentença recorrida não patenteia vício dessa natureza.
Com efeito, apesar de resultar da argumentação exposta no texto da motivação de recurso que a factualidade provada na sentença recorrida aponta para que a arguida seja beneficiária da energia elétrica subtraída à EDP (tal como provado em 6)), não se infere necessariamente daquela mesma factualidade que tenha sido a arguida quem a subtraiu, facto essencial ao preenchimento do tipo legal de furto tal como o descreve o art. 203º do C. Penal e que não é sequer afirmado na acusação, sendo certo que a subtração da coisa para terceiro é uma das modalidades da ação típica conforme resulta da configuração do especial elemento subjetivo do tipo estabelecido no nº1 do citado art. 203º, não se confundindo a apropriação da energia com o ato material de subtração essencial ao preenchimento do tipo.
Na verdade, resultando do conceito de autoria estabelecido no art. 26º do C. Penal que é autor do crime de furto quem subtraia a coisa por si mesmo (autoria material) ou por intermédio de outrem (autoria moral) ou quem dolosamente determinar outra pessoa à prática do facto (instigação) ou tomar parte na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros (coautoria), não só se exige na acusação e sentença a descrição factual correspondente à forma de autoria verificada, como só pode afirmar-se a autoria se resultar provada alguma destas modalidades.
Ora, não só a acusação não permite saber qual a forma de autoria que o MP imputara à arguida (tal como, noutro plano, o despacho de encerramento do inquérito não permite compreender a acusação pela al. j) do nº1 do art. 204º que, qualificando, o crime alterou a sua natureza), como da factualidade julgada provada na sentença recorrida não poderia sequer inferir-se necessariamente que foi a arguida quem subtraiu a energia elétrica, sendo plausível e ainda de acordo com as regras da experiência ter sido outra pessoa a subtrair a energia elétrica em benefício da arguida mas sem a participação desta por alguma das formas previstas no citado artigo 26º do C. Penal, pelo que não pode assacar-se à sentença recorrida o vício de erro notório ou qualquer outro dos previstos no art. 410º nº2 do CPP, ao julgar não provados factos indispensáveis à autoria do crime, absolvendo-se a arguida do mesmo.
Assim, é manifesta a improcedência do presente recurso rejeitando-se o mesmo com tal fundamento – cfr arts 420º nº 1 a) e 417º nº6 b), do CPP.
Sem custas.
Évora, 12 de setembro de 2017
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(António João Latas)
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[1] Vd sobre a insanabilidade da omissão do texto da motivação (limite absoluto ao aperfeiçoamento), entre outros, também o Ac STJ de 15.12.2005 (relator Simas Santos), acessível em www.dgsi.pt e o Ac TC nº 140/2004 (relator Paulo Mota Pinto), acessível em tribunalconstitucional.pt