PERDA DE CHANCE
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
AGENTE DE EXECUÇÃO
Sumário


1. A “perda de chance”, em processo executivo, por ato ou omissão do agente de execução, tem como pressuposto a existência de bens de valor suficiente para proporcionar o pagamento coercivo do crédito dado à execução.
2. Inexistindo estes, não ocorre um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual - o dano.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora:

Relatório

AA [1],…, intentou a presente ação declarativa contra BB[2], agente de execução, pedindo a sua condenação no pagamento da importância de €12.838,60, acrescida de juros moratórios, à taxa legal de 4%, contados desde a citação até integral pagamento, articulando factos que, em seu critério, conduzem à procedência do pedido, o qual, porém, foi julgado improcedente.


Inconformados com o decidido, recorreram os ora Autores CC e DD, concluindo que, face aos factos dados como assentes, estão reunidos todos os pressupostos para a responsabilização da recorrida, conforme o peticionado[3].


Contra-alegaram a recorrida BB e a chamada Companhia de Seguros ... manifestando-se pela manutenção do decidido.


Face à conclusão antes referida, o objeto do recurso circunscreve-se à apreciação da seguinte questão: o invocado erro na aplicação do direito aos factos assentes.


Foram colhidos os vistos legais.


Fundamentação


A - Os factos

Na sentença recorrida foram considerados os seguintes factos:

1 - Em 22 de dezembro de 2009, AA intentou contra L... ação executiva para pagamento de quantia certa, no valor de €12.838,60, a qual coreu termos sob o nº 3234/09.9 TBSTR, no 1º juízo cível, do extinto Tribunal Judicial de Santarém;

2- O exequente AA designou a Ré BB como agente de execução, a qual aceitou a nomeação;

3- No decurso da execução, a Ré BB procedeu à penhora do veículo automóvel ligeiro de mercadorias, marca Opel, modelo Vívaro, de matrícula ...-...-ZU, penhora registada na conservatória, mediante a Ap. 7684, de 7 de abril de 2010;

4 - Em 21 de dezembro de 2010, a Ré recebeu uma notificação do Tribunal, no âmbito do referido processo executivo, com o seguinte teor: “Assunto: Custas pagas pelo executado. Fica deste modo notificado de que as custas da presente execução foram pagas. Assim deverá a execução ser declarada extinta”;

5 - Em consequência desta notificação, presumindo que o executado tinha pago a quantia exequenda ao próprio exequente ou que estes tinham chegado a um acordo, por requerimento, datado de 23 de dezembro de 2010, que deu entrada nos autos de execução, em 27 de dezembro de 2010, a Ré BB requereu, “ nos termos o art. 919º. do CPC a extinção da instância em virtude do pagamento integral da quantia exequenda e despesas”;

6 - A Ré BB notificou o executado e o exequente, ora Autor, AA, não tendo sido apresentada qualquer reclamação, mas não notificou o mandatário deste;

7- Face ao requerimento pedindo a extinção da instância, por conclusão de 11 de janeiro de 2011, foi proferido despacho, determinando o arquivamento dos autos;

8 - Ao tomar conhecimento de que o executado não tinha pago a quantia exequenda, em 20 de janeiro de 2011, a Ré BB deu entrada nos autos de execução de um requerimento, com o seguinte teor: “ (…) vem informar aos autos que o processo não se encontra pago apesar da extinção da instância estar feita e após comunicação do tribunal para a efetuar em despacho de 21-12-2010. Mais informa que se encontra um veículo do executado penhorado e que nestes termos não é possível continuar com o processo, requerendo a signatária o prosseguimento dos autos. Pede deferimento (…)”;

9 - Sobre o requerimento apresentado em 20 de janeiro de 2011, recaiu despacho, datado de 15 de fevereiro de 2011: “Não se entende o teor do requerimento da Sra. Solicitadora de Execução, termos em que se determina que a mesma esclareça, em 10 dias, qual o montante pago pelo executado, qual o montante em dívida, bem como para, em idêntico prazo, juntar aos autos o auto de penhora a que alude no seu requerimento e certidão do registo da mesma”;

10 - Em resposta a Ré BB apresentou o seguinte requerimento de 17 de fevereiro de 2011: “(…) vem informar aos autos que até à presente data não foram pagas quaisquer quantias pelo executado pelo que se encontra em dívida a quantia exequenda acrescida de despesas e honorários do agente de execução, mais informa que se encontra penhorado um veículo à ordem do processo como cópia junta do auto de penhora e registo da mesma. A signatária foi notificada pra extinguir a instância (ofício datado de 21-12-2010) quando na realidade o processo se encontra em curso, fê-lo por lapso pelo facto de existir outro processo mas de entrega de coisa certa com o mesmo exequente e executado e ao receber a notificação pensar tratar-se do mesmo visto é imóvel ter sido entregue”;

11- Após, foi proferido despacho, de 7 de abril de 2011, com o seguinte teor: “A notificação de extinção não faz referência a qualquer entrega de coisa mas ao pagamento integral de uma quantia, sendo que o mesmo foi notificado às partes em 23/12/2010 e não houve reclamações. Mais se procedeu à extinção da oposição à execução, com base na extinção da execução, decisão que foi notificada às partes, sem que houvesse qualquer reparo ou reclamação. Pelo exposto, indefere-se o prosseguimento da execução, a qual se encontra extinta”;

12 - O mandatário do exequente, ora Autor, AA, foi notificado do referido despacho, por ofício de 8 de abril de 2011;

13- Por faxes de 4 de maio de 2011 e 22 de junho de 2012, o mandatário do exequente, ora Autor, AA, solicitou à Ré BB a entrega do valor objeto da execução, face à extinção da instância e informação de pagamento pelo executado;

14 - A Ré BB não recebeu por parte do executado qualquer valor para pagamento da quantia exequenda;

15 - Em consequência, a Ré BB não entregou ao exequente, ora Autor, AA, qualquer valor, por conta da quantia exequenda;

16 - Em consequência da extinção da instância, a penhora foi cancelada;

17 - No decurso dos autos de execução, o veículo com matrícula ...-...-ZU não foi apreendido;

18 - O veículo era do ano de 2004 e, no ano de 2016, teria um valor de €100,00;

19 - A Ré BB havia sido nomeada, igualmente, como agente de execução, na ação executiva para entrega de coisa certa, que correu termos, sob o nº 3233/09.0 TBSTR, no 2º juízo cível, do extinto Tribunal Judicial de Santarém, com o mesmo exequente, o ora Autor, AA, e executado, no âmbito do qual realizou, além do mais, os seguintes atos: em 4 de janeiro de 2010, requerimento de requisição do auxílio da força pública, para entrega efetiva do local, sobre o qual recaiu despacho datado de 13 de janeiro de 2010, autorizando o requerido; em 17 de fevereiro de 2010, citação do executado para efetuar a entrega da coisa ou deduzir oposição; em 18 de março de 2010, auto de entrega do imóvel ao exequente, ora Autor, AA;

20 - A Ré BB está abrangida por contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, decorrente da atividade de solicitadora de execução, celebrado entre a Companhia de Seguros ... e a Câmara dos Solicitadores, através da apólice nº RC 84033100;

21 - A mencionada apólice garante o pagamento de indemnização por danos decorrentes do exercício da atividade profissional como solicitador de execução, desde que legalmente exigíveis ao segurado, e tem como limite de capital seguro € 100.000,00 e uma franquia a cargo do segurado de 10% sobre o valor dos prejuízos, com o mínimo de € 500,00 e o máximo de € 2.500,00.


B - O direito/doutrina/jurisprudência

- O solicitador/agente de execução “é um misto de profissional liberal e funcionário público, cujo estatuto de auxiliar da justiça implica a detenção de poderes de autoridade no processo executivo”, com consequente “desempenho de um conjunto de tarefas, exercidas em nome do tribunal, sem prejuízo da possibilidade de reclamação para o juiz dos atos e omissões por ele praticados” [4];


- Para além dos deveres a que está sujeito, por estar inscrito como solicitador, o solicitador/agente de execução deve, nomeadamente, praticar, de forma diligente, os atos processuais de que seja incumbido, com observância escrupulosa dos prazos legais ou judicialmente fixados, e submeter a decisão do juiz os atos que dependam de despacho ou autorização judicial e cumpri-los nos precisos termos fixados[5];

- Em sede de responsabilidade civil extracontratual, são vários os pressupostos que condicionam a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, a saber: facto objetivamente controlável ou dominável pela vontade (facto); violação de direitos sobre as coisas ou de norma destinada proteger interesses alheios (ilicitude); censurabilidade do agente, por, sendo titular de discernimento e liberdade de determinação, ter agido de determinado modo, quando, face às circunstâncias concretas do caso, podia e devia ter agido de outro modo (imputação do facto ao lesante); prejuízo in natura que o lesado sofreu, com o consequente reflexo na sua situação patrimonial ou no campo dos valores de ordem moral (dano); aptidão abstrata e condicionalidade concreta entre o facto e o dano (nexo de causalidade entre o facto e o dano)[6];

- A “perda de chance” corresponderá à extinção da possibilidade de se obter um determinado resultado (favorável), situação que poderá assumir relevo para o Direito caso seja imputável a um terceiro, estando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil[7];


- A particularidade que ocorre na situação de “perda de chance” numa ação judicial, consiste em saber como determinar a certeza do dano e o respetivo montante quando o advogado descuida o processo e a falta é contrária aos interesses do seu cliente, sendo certo que quem demanda ou é demandado tem à sua frente um resultado incerto[8];


-“O dano da perda da oportunidade de ganhar uma ação não pode ser desligada de uma probabilidade consistente de a vencer. Para haver indemnização a probabilidade de ganho há-de ser elevada” [9];


-“A perda de chance deve ser considerada como um dano atual, autónomo, consubstanciado numa frustração irremediável (dano), por ato ou omissão de terceiro, de verificação de obtenção de uma vantagem que probabilisticamente era altamente razoávell supor que fosse atingida, ou na verificação de uma desvantagem que razoavelmente seria de supor não ocorrer não fosse essa omissão (nexo causal). Para haver indemnização, o dano da perda de oportunidade de ganhar uma ação não pode ser desligado de uma consistente e séria probabilidade de a vencer” [10];


- Na doutrina da perda de chance, o direito à indemnização decorre de o ato omitido estar dependente da probabilidade real, séria e considerável de obtenção de uma vantagem ou de obviar um prejuízo, ou seja, que a probabilidade que a vítima dispunha de alcançar tal vantagem não era desprezível, “antes se qualificando como sérias e reais” [11];


- A atribuição da indemnização está dependente da ”demonstração de certa consistência da oportunidade perdida”, opção “que tem vindo a ser seguida pelos tribunais portugueses, nomeadamente, pelo STJ, há uma aproximação ao nexo de causalidade dos tribunais ingleses e estado-unidenses, que preservam o respeito pela conditio sine quo non, bastando-se com uma certeza de 50%”[12];


- Para a realização da probabilidade de sucesso no litígio em questão, deve o juiz ”realizar uma representação ideal do que teria sucedido no processo caso não tivesse ocorrido o facto negligente do advogado avaliando o grau de probabilidade de vitória nesse processo”[13];


- Deve impor-se ao lesado o “ónus de provar, além do ato ilícito, a verificação do dano final (o único a indemnizar) e uma considerável probabilidade de obtenção de ganho de causa na ação originaria que se frustrou, não fora a falta cometida pelo mandatário, o que seja, exatamente, essa considerável probabilidade é algo que, necessariamente, dependerá da prudência dos julgadores, parecendo-nos acertado, como orientação geral, o limiar dos 50%.. Na verdade, abaixo do referido limiar (…) o cliente acabaria por ser ressarcido, pelo seu mandatário forense e ainda que parcialmente, pela frustração de pretensões cujo êxito, relativamente à verdadeira contraparte, não se acharia minimamente assegurado”[14];

- “O contrato de seguro é aquele pela qual uma pessoa se obriga, mediante ao pagamento por outra de determinado prémio, a indemnizá-la ou a terceiro pelos prejuízos decorrentes da verificação”[15].



C - Aplicação do direito aos factos


Se a responsabilidade civil extracontratual, decorrente da “perda de chance”, tem uma configuração especial, quanto ao elemento dano, nas ações declarativas, o mesmo já não sucede nas executivas.

Nestas, é bem mais fácil “determinar a certeza do dano e o respetivo montante”, quando, nomeadamente, o agente de execução “descuida o processo” e esta sua conduta é, em princípio, contrária aos interesses do exequente.

Na verdade, traduzindo-se o processo executivo na apreensão de bens do devedor e sua venda para, com o produto desta, pagar ao credor, o seu fim típico depende, como é evidente, da existência de bens a penhorar.

Ou seja: a “frustração irremediável (dano)”, por ato ou omissão do agente de execução tem como pressuposto a existência, no património do executado, de bens de valor suficiente para proporcionar o pagamento coercivo do crédito dado à execução.

No caso dos autos, onde está em causa o pagamento coercivo da quantia de €12.838,6, ao único bem penhorado - veículo automóvel do ano de 2004 -, mas não apreendido, por não ter sido encontrado - foi dado o valor, com referência a 2016, de €100,00.

Não tendo sido encontrado o automóvel, o processo executivo instaurado não atingiria o seu fim útil - a apreensão material de bens, para, com o produto da sua venda, se pagar ao exequente.

Equivale isto a dizer que os recorrentes CC e DD não obteriam “ganho de causa”, mesmo que a recorrida BB, por admitido lapso, não tivesse desencadeado, culposamente ou não, a extinção da ação executiva nº 3234/09.9 TBSTR.

Assim sendo, não se verifica um dos pressupostos do facto ilícito gerador da obrigação de indemnizar imposta ao lesante - o dano.

O mesmo acontece que aptidão abstrata e condicionalidade concreta entre o facto e o dano ou nexo de causalidade entre o facto e o dano - outro dos pressupostos.

Não se verificando, no critério desta Relação, estes pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, é irrelevante a questão da natureza culposa ou não do “lapso” da recorrido BB - outro dos pressupostos -, ao promover a extinção da citada ação executiva, razão pela qual dela não se toma conhecimento.

Não é, pois, de subscrever, ainda que por outro fundamento, a pretensão dos recorrentes CC e DD.


Em síntese[16]: a “perda de chance”, em processo executivo, por ato ou omissão do agente de execução, tem como pressuposto a existência de bens de valor suficiente para proporcionar o pagamento coercivo do crédito dado à execução; inexistindo estes, não ocorre um dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual - o dano.



Decisão

Pelo exposto, decidem os Juízes desta Relação, julgando o recurso improcedente, manter a sentença impugnada.

Custas pelos recorrentes.

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Évora, 14 de setembro de 2017

Sílvio José Teixeira de Sousa
Maria da Graça Araújo
Manuel António do Carmo Bargado
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[1] Devido ao seu falecimento, a ação prosseguiu com os seus herdeiros, CC e DD.
[2] Foi admitida a intervenção, nos autos, de Companhia de Seguros ..., nos termos do artigo 322º., nº 2 do Código de Processo Civil.
[3] Conclusão elaborada por esta Relação, a partir das longas (23) e prolixas “conclusões” dos recorrentes.
[4] José Lebre de Freitas, in A Ação Executiva Depois da Reforma da Reforma, 5ª edição, págs. 26 e 27( no mesmo sentido, Fernando Amâncio Ferreira, in Curso de Processo de Execução, 10ª edição, págs. 131 a 139) e artigo 723º., nº 1, c) do Código de Processo Civil.
[5] Artigo 123º., nº 1, a) e b) do Estatuto da Câmara dos Solicitadores (Decreto-Lei nº 88/2003 de 26 do abril).
[6] Artigo 483º., nºs 1 e 2 do Código Civil e Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 3ª edição, págs. 417 e segs..
[7] Sara Lemos de Meneses, in Perda de Oportunidade: uma mudança de paradigma ou um falso alarme?, Universidade Católica Portuguesa, 2013, 1.
[8] Acórdão da Relação do Porto, de10 de setembro de 2012 (processo nº 275/09.0 TVPRT), in www.dgsi.pt..
[9] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de março de 2013 (processo nº78/09.1 TVLSB, L1.S1). in www.dgsi.pt..
[10] Revista nº 614/06.5 TVLSB.L1.S1, 6ª secção, in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça.
[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de fevereiro de 2013 (processo nº 2035/05.8 TVLSB.l1.S1), in www.dgsi.pt..
[12] Sara Lemos de Meneses, in Perda de Oportunidade: uma mudança de paradigma ou um falso alarme?, Universidade Católica Portuguesa, 2013, 73.
[13] Luís Medina Alcoz, in Revista de Responsabilidade Civil e Seguro, disponível em http://www.asociacionabogadosrcs.org//doctrina/Luis%20Medina.pdf?phpMyAdmin=9 eb1fd7fe71cf931d588191bc9123527
[14] Rui Cardona Ferreira, in A Perda de Chance Revisitada (a propósito da responsabilidade do mandatário forense), disponível em http://www.oa.pt/upl/%7Bc8303c60-83ae-4dbf-af6a-cf29f1c61ba4%7D.pdf
[15] Artigo 426º do Código Comercial e Acórdãos do STJ de 17 de novembro de 2005, in C.J., ano de 2005 vol. III, pág.. 120, e da Relação de Évora de 29 de março de 2007, in www.dgsi.pt.
[16] Artigo 663º., nº 7 do Código de Processo Civil