SOCIEDADE
INSOLVÊNCIA
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE
REGISTO
Sumário

I – A declaração de insolvência de uma sociedade, embora provoque a sua dissolução, não provoca a sua extinção nem a extinção do procedimento criminal contra ela instaurado.
II – No tocante às sociedades, para efeitos de extinção do procedimento criminal, nos termos do artigo 127.º do CP, apenas o registo da sua dissolução e do encerramento da liquidação fazem extinguir aquelas.

Texto Integral

Recurso n.º 862/15.7T9EVR.

Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Nos Autos de Processo Comum Singular, com o n.º 862/15.7T9EVR, a correrem termos pela Comarca de Évora- Instância Local de Évora- Secção Criminal – Juiz 1, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos:
1. “BB, Lda.”, (…);
2. CC (…);
Imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelos arts. 7.º, 105.º, n.º 5 e 107.º, todos do RGIT.

Os arguidos não apresentaram contestação, nem tão pouco arrolaram testemunhas.

Procedeu-se a julgamento, com observância das formalidades legais, vindo-se, no seu seguimento, a prolatar Sentença, onde se Decidiu:
a) Declarar extinto o procedimento criminal movido contra a arguida “BB, Lda.”;
b) Condenar o arguido CC pela prática, em autoria material (art. 26º do Cód. Penal) e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6º, 107º, 105º, nºs 1 e 4, todos do RGIT, e 30º, nº 2, do Cód. Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
c) Substituir tal pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, num total de 180 (cento e oitenta) horas – art. 58º do Cód. Penal.

Inconformado com o assim decidido traz a Magistrada do Ministério Público o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
1- O Código Penal consagra no artigo 11.º a responsabilidade das pessoas colectivas, sendo que o artigo 7.º do R.G.I.T. também consagra a sua responsabilização
2- O artigo 127.º, n.º 1 do Código Penal consagra como causa de extinção da pessoa singular a morte;
3- No caso das sociedades comerciais, o substrato patrimonial e pessoal das mesmas desaparece com o termo da sua personalidade jurídica que ocorre apenas com o registo do encerramento da liquidação, conforme consta do artigo 160.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais;
4- A sociedade comercial declarada insolvente é declarada dissolvida, mas não se extingue;
5- A sociedade insolvente só se extingue com o encerramento do rateio final no processo de insolvência.- Cfr. Artº 234º, nº3 do CIRE;
6- O processo de insolvência de sociedade comercial declarado encerrado por insuficiência da massa importa a comunicação de tal ao registo comercial para início do processo de liquidação, nos termos do disposto no artº 234º, nº 4 do CIRE;
7- Pelo que a responsabilidade criminal das sociedades comerciais não se extingue com a declaração de insolvência, nem com o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa, não obstante a existência de uma eventual impossibilidade factual de agir sobre a entidade criminalmente responsabilizada na execução da pena que lhe foi aplicada e antes ainda da mesma se encontrar liquidada;
8- Não se pode considerar que a sociedade arguida se encontra juridicamente extinta e muito menos que a mesma já não é criminalmente responsável;
9- Pelo que o Tribunal a quo ao considerar extinta a responsabilidade da sociedade violou os artigos 141.º, n.º 1, alínea e), 146.º, n.º 2 e 160.º, n.º 2, do Cod das Sociedades Comerciais, artigo 234.º, n.ºs. 3 e 4 do CIRE, artigos 11.º, 127.º, n.º 2 e 128.º, do Código Penal e artigos 7.º e 105.º e 107.º, do R.G.I.T. e artigo 475.º, do Código de Processo Penal;
10- Assim, considerando os factos dados como provados pelo Tribunal a quo, ter-se-ia de considerar que a conduta da sociedade arguida, é susceptível de ser apreciada criminalmente e, por isso, de ser julgada e apreciada em sede de julgamento;
11- Não obstante o Tribunal a quo ter efectuado julgamento e ter fixado matéria de facto provada e não provada quanto a ambos os arguidos, a verdade é que não se pronunciou sobre a matéria de facto dada como provada, subsumindo-a criminalmente e fundamentadamente quanto à sociedade arguida, e fixando, consequentemente, pena e medida da pena;
12- Porém, sempre se dirá que os autos se encontram munidos de todos os elementos necessários para o Tribunal da Relação poder apreciar a responsabilidade criminal da sociedade arguida, condenando-a e fixando pena e medida da pena, desde logo considerando-se os seguintes elementos: certidão comercial, informação quanto aos pagamentos efectuados, certidão do processo de insolvência, as declarações remetidas, bem como toda a prova testemunhal, sendo ainda de considerar os pontos da matéria de facto dada como provada;
13- Sendo que ao não o ter feito, verifica-se uma contradição entre a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e a matéria de facto dada como provada e não provada: consubstanciando tal, um erro de julgamento que se traduz numa contradição entre a prova produzida em julgamento e os factos considerados provados e não provados, logo, um erro notório na apreciação dessa prova;
14- Nestes termos teremos sempre que concluir que a Sentença violou, também, o disposto no artigo 127.º, do C.P.P. e nos artigos 7.º e 107.º, n.ºs. 1 e 2 e 105.º, n.ºs. 1, 4, 5 e 7, todos do R.G.I.T.
15- Nestes termos e nos demais de Direito deve ser julgado o recurso ora interposto procedente e a douta sentença recorrida ser revogada, na parte em que determina a extinção da responsabilidade criminal da sociedade arguida “BB Lda.”, e, consequentemente, substituída por outra que aprecie a responsabilidade da sociedade comercial arguida, condenando-a pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social sob a forma continuada, previsto e punido pelos art.ºs. 7.º, 107.º, n.º 1 por remissão para o art.º 105.º, n.ºs 1 e 5 do RGIT na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no total de € 1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros).

Não teve lugar resposta ao recurso.

Nesta Instância, o Sr. Procurador geral-Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Em sede de decisão recorrida foram considerados os seguintes Factos:

Factos Provados:
1. A arguida “BB, Lda.” é uma sociedade comercial por quotas, com o nº de pessoa colectiva …, tendo o seguinte objecto social: fabrico e comercialização de produtos alimentares, nomeadamente sandes, gelados, crepes, doces, salgados e bebidas, bem como a prestação de serviços de cafetaria, cervejaria, bar e a exploração de estabelecimentos de restauração e hotelaria não especificados;
2. À data da prática dos factos a seguir descritos, o arguido CC era sócio-gerente da sociedade arguida, exercendo a actividade supra-descrita no interesse e por conta desta, designadamente era responsável pela respectiva administração e procedia ao pagamento dos salários aos trabalhadores;
3. A sociedade arguida tinha ao seu serviço, no período abaixo indicado, trabalhadores, a quem pagou os respectivos salários;
4. Foi o arguido CC quem, por conta e no interesse da sociedade arguida, procedeu ao pagamento das retribuições dos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários e descontou das mesmas os montantes relativos às cotizações devidas, estando obrigado à respectiva entrega à Segurança Social;
5. Assim, nos meses abaixo indicados, os arguidos deduziram àquelas retribuições, a título de cotizações devidas à Segurança Social, a quantia total de € 8.008,84 (oito mil e oito euros e oitenta e quatro cêntimos), assim distribuída:
(…)
6. Deviam ter entregue tais quantias à Segurança Social até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que as cotizações respeitavam, mas não o fizeram dentro dos prazos legais;
7. De igual modo, não procederam à entrega daquelas quantias nos 90 dias seguintes após o termo dos prazos para o efeito;
8. No dia 20 de Outubro de 2015 o arguido CC, em nome próprio e na qualidade de legal representante da sociedade arguida, foi notificado para no prazo de 30 dias a contar da notificação proceder ao pagamento da quantia de € 8.008,84 (oito mil e oito euros e oitenta e quatro cêntimos), correspondente às cotizações supra- referidas, quantia essa acrescida dos respectivos juros, não o tendo feito em tal prazo;
9. O arguido singular integrou as quantias mencionadas no património da sociedade arguida, para efectuar pagamentos a fornecedores e trabalhadores, sabendo que aquelas quantias não pertenciam à sociedade arguida e que não tinha direito às mesmas e que, desse modo, causava à Segurança Social desfalques patrimoniais equivalentes;
10. Aproveitou a não detecção imediata da omissão de entrega à Segurança Social das quantias respeitantes ao mês de Novembro de 2012 para repetir tal actuação, arrecadando os quantitativos que mês após mês, no supra-mencionado período de tempo, deduziu aos salários dos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários;
11. Agiu o arguido CC de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
12. No âmbito de plano prestacional entretanto ajustado com a Segurança Social, no dia 12 de Abril de 2016 a sociedade arguida procedeu ao pagamento da quantia de € 514 (quinhentos e catorze euros) por referência à quantia total referida no ponto 5 dos factos provados, encontrando-se actualmente em dívida a quantia de € 7.494,84 (sete mil quatrocentos e noventa e quatro euros e oitenta e quatro cêntimos);
13. À época dos factos a sociedade arguida atravessava dificuldades económicas, encontrando-se actualmente em situação de insolvência, declarada judicialmente no dia 19 de Maio de 2016;
14. O processo de insolvência foi declarado encerrado por insuficiência da massa para satisfação das custas do processo e restantes dívidas da própria massa;
15. Tal facto foi comunicado à Conservatória do Registo Comercial de Évora;
16. O arguido CC é gerente de sociedades comerciais ligadas aos ramos da hotelaria e da restauração, auferindo em tais sociedades a quantia média mensal de € 750;
17. Vive em casa própria, a qual se encontra penhorada devido à falta de pagamento das prestações do empréstimo bancário concedido para sua aquisição;
18. Vive com uma companheira e com dois filhos menores (com 17 e 16 anos, respectivamente), cuja guarda partilha com a sua ex-mulher;
19. A sua companheira encontra-se actualmente grávida de 4 meses, estando de baixa;
20. O arguido tem como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade;
21. Do certificado de registo criminal da sociedade arguida não constam quaisquer averbamentos;
(…)

Inexistem factos não provados.

Em sede de fundamentação da decisão de facto consignou-se o seguinte:
(…)

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso e bem assim os poderes de cognição do Tribunal ad quem.
Como das conclusões formuladas pela Magistrada recorrida decorre, o que se pretende com o presente recurso – restrito ao reexame da matéria de direito – é que se venha a condenar a arguida/sociedade BB, Lda., pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social sob a forma continuada, previsto e punido pelos art.ºs. 7.º, 107.º, n.º 1, por remissão para o art.º 105.º, n.ºs 1 e 5, do RGIT.
Por, e sempre em seu entender, a responsabilidade criminal das sociedades comerciais não se extinguir com a declaração de insolvência, nem com o encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa, não obstante a existência de uma eventual impossibilidade factual de agir sobre a entidade criminalmente responsabilizada na execução da pena que lhe foi aplicada e antes ainda da mesma se encontrar liquidada.
Pelo que não se pode considerar que a sociedade arguida se encontra juridicamente extinta e muito menos que a mesma já não é criminalmente responsável, impondo-se a sua condenação nos moldes por si peticionados.
Na Sentença revidenda para se alcançar a absolvição da arguida/sociedade BB, Lda., discorreu-se, como segue;
Quanto à responsabilidade penal da sociedade arguida, aquela encontra o seu suporte precisamente no facto do arguido CC ter agido como seu representante, no seu nome e no seu interesse – cfr. art. 7º do RGIT.
No entanto, quanto à sociedade arguida entendemos que a declaração da sua insolvência e subsequentes acontecimentos no âmbito do processo de insolvência fizeram extinguir a sua responsabilidade criminal.
Note-se, contudo, que não é a simples declaração de insolvência que faz “morrer” a sociedade comercial e faz extinguir a sua eventual responsabilidade criminal.
Importando para este campo o que se encontra vertido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 5/2004, de 2 de Junho, publicado no DR I-A, de 21 de Junho (respeitante à extinção do procedimento contra-ordenacional contra pessoa colectiva), «a morte, relevante no sentido normativo e especificamente no campo penal, não é (…) pensável senão em relação aos seres humanos. A extinção de uma pessoa colectiva, diversamente, por ser uma criação instrumental do direito, pode não determinar, por si mesma, que nada de si permaneça, continuando alguma substância afecta ao desempenho (…) das finalidades da pessoa colectiva que foram a sua razão de ser (…) Por isso, o que releva essencialmente é a existência de um centro de imputação funcionalmente construído, que não pode desaparecer como realidade material de interesses ao lado da respectiva função instrumental (…) Na ponderação metodológica e intervenção dos critérios da analogia, a similitude de relações e a comparação numa mesma racionalidade entre a morte da pessoa singular e as formas de extinção das pessoas colectivas só podem ser encontradas se e quando a existência, como construção jurídica instrumental, de uma pessoa colectiva cessar, não em perspectiva funcionalista estritamente jurídica mas cessação e desaparecimento de todos os elementos integrantes da pessoa colectiva, não apenas o suporte jurídico mas também o corpus e o respectivo substrato».
Revertendo ao caso concreto, verifica-se que para além da sociedade arguida ter sido declarada insolvente, encontra-se também encerrado o processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente, o que foi comunicada à Conservatória do Registo Comercial de Évora para que fosse dado início ao processo administrativo de liquidação (note-se que as sociedade comerciais mantêm a sua personalidade jurídica na fase de liquidação, considerando-se extintas pelo registo do encerramento da liquidação – cfr. arts. 146º, nº 2 e 160º, nº 2, ambos do Cód. das Sociedade Comerciais).
Com efeito, resulta do disposto nos arts. 15º, nº 5, alínea i) e 24º, nº 6, do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais, publicado em anexo (Anexo III) ao Dec. Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março, que a aludida decisão de encerramento do processo de insolvência é comunicada ao serviço de registo competente, nos termos do nº 4 do art. 234º do CIRE, para que o conservador instaure o procedimento administrativo de liquidação, que deve declarar imediatamente encerrado, salvo se do processo de insolvência resultar a existência de activos que permitam suportar os encargos com o procedimento administrativo de liquidação.
Ora, embora se desconheça se foi dado início a tal procedimento, certo é que o mesmo sempre seria imediatamente encerrado por total insuficiência de activos, conforme resulta do processo de insolvência. Assim, declarar-se-á extinto o procedimento criminal movido contra a sociedade arguida (entendemos que antes da entrada em vigor da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, que alterou profundamente o Cód. Penal, tal declaração de extinção deveria ser feita por interpretação analógica do que o art. 127º do Cód. Penal dispunha quanto às pessoas colectivas. No entanto, como aquela Lei veio acrescentar um nº 2 ao art. 127º do Cód. Penal, estabelecendo que «no caso de extinção da pessoa colectiva ou entidade equiparada, o respectivo património responde pelas multas e indemnizações em que aquela for condenada», entendo que a melhor interpretação daquele normativo é a de que só subsiste responsabilidade criminal da sociedade enquanto aquela tiver algum património, o que manifestamente não é o caso).
O que se cura de saber é se tem, ou não, de ter lugar respectivo procedimento administrativo de liquidação da sociedade; apesar de se ter dado como assente que o processo de insolvência foi declarado encerrado por insuficiência da massa para satisfação das custas do processo e restantes dívidas da própria massa - ponto 13, dos factos provados.
O mesmo é questionar se tal procedimento de liquidação se não mostrará, in casu, como acto inútil, porquanto o mesmo sempre seria imediatamente encerrado por total insuficiência de activos.
A insolvência, como consabido, constitui um dos motivos de dissolução das sociedades, conforme decorre do cotejo dos arts. 1007.º, al.ª e), do Cód. Proc. Civ. e 141.º, n.º 1, al.ª e), do Cód . Soc. Com.
Podendo a declaração de insolvência vir contender/interferir com a responsabilidade criminal da sociedade – cfr. art.º 1.º, n.º 1, do C.I.R.E.
O que cabe descortinar é se a declaração de insolvência tem a virtualidade, ou não, de interferir com a responsabilidade criminal da sociedade constituída arguida em processo criminal, maxime, em termos de lhe pôr fim, se extinguir tal responsabilidade criminal.
Na Lição de Jorge dos Reis Bravo parece ser fora de dúvida que só após o trânsito em julgado da declaração de insolvência se poderão extrair conclusões no tocante às implicações processuais da sociedade (ou outro ente colectivo). No entanto, nem por isso é de declarar imediatamente a extinção da responsabilidade criminal da sociedade declarada insolvente. No tocante às sociedades comerciais deverá entender-se que o momento a considerar para se justificar a “extinção” da sociedade se afere pelo exacto momento em que o ordenamento jurídico comercial e registral o prevê (arts. 5.º e 141.º, n.º 1, al.ª c), do Cód. Soc. Com., e 3.º, n.º 1, als. r) e t), do Cód. Reg. Com.[1]
E prossegue o mesmo Autor, assim, embora já inactivas durante o processo de falência, por exemplo, não se deve, só por isso, entender serem as sociedades já insusceptíveis de responsabilização penal, pois bem pode suceder deterem um crédito que possa responder pela pena (pecuniária) aplicável. Por isso, no tocante às sociedades, apenas o registo da sua dissolução e do encerramento da liquidação fazem extinguir aquelas. Tais factos, porém, equivalem à “morte” da sociedade, fazem, de forma incontroversa, extinguir o procedimento criminal contra a sociedade, bem como a pena entretanto eventualmente decretada.
O Professor Raúl Ventura aponta em idêntico sentido, ao versar sobre o momento em que se deve ter por extinta a sociedade.
Escreve o Ilustre Professor, por força do art.º 160.º, n.º 2, do Cód. Soc. Com., a sociedade considera-se extinta pela inscrição do encerramento da liquidação. O liquidatário ou outro requerente não pede que seja inscrita a extinção da sociedade, mas sim o encerramento da liquidação; a extinção da sociedade não é um facto anterior a esse requerimento, cuja inscrição possa ser pedida, mas, ao contrário, um efeito legal do registo do encerramento da liquidação.
A extinção da sociedade resulta da inscrição no registo do encerramento da liquidação, “mesmo entre os sócios”. Não se trata, pois, de, pelo registo, tornar esse facto oponível a terceiros; mesmo entre os sócios, a sociedade mantém-se (incluindo a respectiva personalidade) até ser efectuada aquela inscrição. Na terminologia usual, o registo tem neste caso eficácia constitutiva.
E mais adiante: “a extinção opera-se “sem prejuízo do disposto nos arts. 162.º a 164.º”, ou seja, do disposto quanto a acções pendentes, activo e passivo supervenientes. Isto não significa que, para os efeitos deste artigo, a sociedade não se considera extinta, mas sim que o facto de a sociedade se extinguir, nos termos referidos, não prejudica as soluções que o legislador criou nos arts. 162.º a 164.º, para as acções pendentes e para a superveniência de activo ou passivo”.[2]
Na Jurisprudência, e em sentido idêntico ao acabado de tecer, vemos, entre outros, o Acórdão da Relação de Guimarães, de 9.02.2009, no Processo n.º 2701/08-1, onde se entendeu que:
I - Para efeitos de extinção do procedimento criminal, nos termos do artigo 127.º do Código Penal, não existe qualquer analogia entre a morte de uma pessoa física e a declaração de insolvência de uma sociedade.
II - A declaração de insolvência de uma sociedade, embora provoque a sua dissolução, não provoca a sua extinção nem a extinção do procedimento criminal contra ela instaurado.
III- A sociedade não pode considerar-se extinta enquanto não se mostrar efectuado o registo do encerramento da liquidação.
E o Acórdão da Relação de Coimbra, de 17.12.2014, no Processo n.º 39/10.8IDCBR-A.C1, onde se entendeu que:
I - Só a extinção das sociedades - que ocorre com o registo do encerramento da respectiva liquidação e, no caso de insolvência, com o registo do encerramento do processo após o rateio final (se e quando o mesmo tiver lugar) -, e não a sua dissolução, é equiparável à morte das pessoas singulares.
II - Assim, a dissolução de uma sociedade comercial não determina a extinção da responsabilidade do ente colectivo pelo pagamento da multa em que foi condenado, decorrente de infracção praticada antes do acto referido.[3]
Alcançada uma tal conclusão e tendo em linha de conta a facticidade acolhida na Sentença revidenda – v.g. a vertida sob os pontos 13 e 14 –, vemos faltar sequência factual que dê nota se se procedeu, ou não, à liquidação da sociedade/arguida e se tal foi, ou não, objecto de registo.
O que nos leva a ter de discutir da suficiência, ou insuficiência, da matéria de facto provada para fundamentar a solução jurídica alcançada.
O que é possível discutir no âmbito dos presentes autos, mesmo circunscrevendo-se o recurso ao reexame da matéria de direito, uma vez que é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios compaginados no art.º 410.º, n.º 2, do Cód. Proc. Pen.
Como sabido, o vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão - art.º 410.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Pen., - ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a decisão de direito.
E só existe quando o tribunal deixe de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídico-criminal, pressupondo a existência de factos constantes dos autos ou derivados da causa que ainda seja possível apurar, sendo este apuramento necessário para a decisão a proferir.
Sendo que tal insuficiência resultado tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação relativamente ao apuramento da matéria de facto essencial; no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, o tribunal podia e devia ter ido mais longe; não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais, cujo apuramento permitiriam alcançar a solução legal e justa.[4]
Ou como entendem Simas Santos e Leal Henriques, a al. a), do n.º2, do art.º 410.º, do Cód. Proc. Pen., refere-se á insuficiência que decorre da omissão de pronúncia pelo tribunal de factos alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos, que sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão.
Tal vício consiste na lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega á conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher.[5]
Convém notar que o analisado vício não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto, a qual resulta da convicção do julgador e das regras da experiência.
Importando, desta feita, que o Tribunal recorrido venha averiguar vária facticidade apta a poder vir, com segurança, decidir a causa.
Desde logo, apurar se teve lugar, ou não, procedimento administrativo de liquidação e, em caso afirmativo, se foi já objecto de registo. Só então se podendo decidir a questão atinente à responsabilidade criminal da sociedade arguida.
Face ao acabado de tecer, não se apresenta despicienda a facticidade em análise no contexto dos autos, ao invés, revestir boa importância para a decisão da causa.
Ora, não tendo o tribunal recorrido cumprido o dever de investigar os aspectos/particulares acabados de tecer, e como se lhe impunha que fizesse, impedido se encontra este Tribunal de recurso, com a factualidade apurada, de decidir a causa.
Impondo-se, por isso, que o tribunal recorrido venha investigar os factos retro mencionados, de modo a que se possa vir alcançar uma decisão final.
Pelo que nenhum outro caminho se perfile que não seja o de determinar a anulação do Julgamento e o consequente reenvio do processo para o apuramento da aludida factualidade, de forma a poder vir decidir a causa, cfr. arts. 410.º, n.º2, als. a) e b), 426.º e 426.ºA, todos do Cód. Proc. Pen.
Ficando, destarte, prejudicado o conhecimento de qualquer outra questão suscitada no recurso.

Termos são em que Acordam em conceder provimento ao recurso e, em consequência, anular o julgamento, ordenando-se o reenvio do processo para apuramento dos factos e nos moldes mencionados retro.
Leve-se em linha de conta o estatuído no art.º 426.º A, do Cód. Proc. Pen.

Sem custas, por não devidas.

(texto elaborado e revisto pelo relator).

Évora, 26 de Setembro de 2017
José Proença da Costa (relator)
António Clemente Lima

__________________________________________________
[1] Ver, Incidências Processuais da Punibilidade de Entes Colectivos, in R.M.P, n.º 105, págs. 92-93.
[2] Cfr. Da Dissolução e Liquidação de Sociedades, págs. 435-436.
[3] Ver, ainda, Acórdão da Relação do Porto, de 22.06.2005, na C.J., ano XXX, Tomo III, págs. 219 e Acórdão do mesmo Tribunal, de 27.06.2007, no Processo n.º 0742535.
[4] Ver Acs. S.T.J., de 18.11. 1998, no processo n.º855/98 e de 14.11.1998, no processo n.º588/98.
[5] Cfr. Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 737 e Recursos em Processo Penal, págs. 69.