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OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
PODER - DEVER DE CORREÇÃO
FALTA DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Sumário
I - O poder/dever de correcção não visa a simples imposição de uma qualquer vontade do adulto sobre a do menor, unicamente porque aquele se encontra incomodado com a atitude deste, sendo necessário que se verifique uma necessidade efectiva de correcção do comportamento desadequado e incorrecto do menor.
II - A bofetada desferida na cara de um menor, com 6 anos de idade, que, sentado à mesa, brinca com os pés, juntamente com um amigo, mesmo depois de ter sido advertido para parar com tal brincadeira, não se integra um qualquer poder correctivo – mesmo que, no caso, tal poder/dever existisse – constituindo antes uma verdadeira agressão.
III - Mas mesmo que se admita que, numa correcção moderada, possam ser incluídos leves castigos corporais, desde que os mesmos se mostrem adequados a atingir um determinado fim educativo e sejam aplicados com essa precisa intenção, o poder/dever de educar é tão só reconhecido aos pais, admitindo-se que se considere transferido para os avós se pelos pais lhes forem atribuídas tais funções educativas, designadamente quando são os avós que têm a seu cargo diariamente a guarda e acompanhamento dos netos.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO 1. 1. – Decisão Recorrida
No processo comum singular com o n.º 442/14.4 TATVR da Secção de Competência Genérica da Instância Local de Tavira – J1 do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o arguido CM, melhor identificado nos autos, mediante despacho de pronúncia foi submetido a julgamento pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do C. Penal.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, a final e para além do mais, decidiu nos seguintes termos:
«Pelo exposto, julgo provada a pronúncia e, em consequência, condeno o arguido CM pela prática de um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal na pena de 60 dias de multa à razão diária de 6 euros. (…)»
*
1. 2. – Recurso
1.2.1. - Inconformado com essa decisão, dela recorreu o Ministério Público, pugnando pela absolvição do arguido, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões:
«1 - O Tribunal condenou o arguido CM, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €6,OO;
2 - Para tanto, o Tribunal considerou como provados os seguintes factos:
"1. No dia 29 de Junho de 2014, quando o menor B, de 6 anos. foi passar o dia com o pai, em regime de visita no âmbito de cumprimento do estipulado no processo de regulação de responsabilidades parentais, encontrava-se em casa deste o arguido, por também lá residir
2. Nesse dia, a hora não concretamente apurada, quando estavam sentados à mesa para almoçarem, o arguido, depois de ter advertido, sem sucesso, o B (e o amigo R), para pararem de brincar com os pés, deu uma bofetada na face do menor B.
3. CM sabia que a sua conduta representava um facto constituinte de um tipo de crime punível por lei e, não obstante, agiu de fôrma a praticá-lo, ofendendo, assim, o corpo do seu neto.
4. Agiu livre, deliberada e conscientemente.
5. O arguido foi anteriormente condenado pela prática em 22-06-2013 de um crime de injúria p. p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal.
6. O arguido é reformado e aufere uma pensão de reforma de 540 euros mensais.
7. O arguido vive em casa própria e tem uma outra casa que está arrendada auferindo um rendimento mensal de 250 euros.
8. O arguido tem despesas fixas mensais com electricidade, gás, água e telefone de 200 euros.
9. O arguido tem o 11º ano de escolaridade incompleto. "
3. A matéria de facto, no entender do Ministério Público foi incorrectamente julgada, em face da prova produzida, pelo que se impugna a mesma;
4. Na verdade, a prova produzida determinaria que tivessem sido considerados como não provados os factos vertidos em 3 e 4 da matéria de facto considerada como provada e, ao invés, ter sido considerado como provado que "O arguido agiu com o intuito de corrigir e educar o menor, seu neto, que, no momento dos factos, se encontrava a si confiado.", ou, em alternativa, considerar como provado que "O arguido agiu julgando que o seu comportamento era lícito por se destinar exclusivamente a corrigir e educar o menor, seu neto, que, no momento dos factos, se encontrava a si confiado.";
5. Em qualquer dos casos, a solução passa pela absolvição do arguido da prática do crime pelo qual vinha acusado, o que se propugna com o presente recurso;
6. A matéria de facto que julgamos incorrectamente julgada cinge-se aos concretos pontos supra referidos (3 e 4 da matéria de facto provada), sendo as concretas provas em que se funda a decisão diversa da que ora colocamos em crise, as declarações do arguido CM, gravadas no sistema integrado de gravação digital, desde as 10:04:02 a 10:05:46; as declarações da assistente SM, gravadas no sistema integrado de gravação digital, desde 10:12:10 a 10:51:21; o depoimento de B, gravado no sistema integrado de gravação digital, desde as 11:11:.57 a 11:34:46; o depoimento de D, gravado no sistema integrado de gravação digital, desde as 11:38:18 a .12:02:51; o depoimento de RS, gravado no sistema integrado de gravação digital, desde as 12:02:53 a 12:11:53; do depoimento de PS, gravado no sistema integrado de gravação digital, desde as 12:11:56 a 12:18:56; e o depoimento de FE, gravado no sistema integrado de gravação digital, desde as 12:18:58 a 12:34:48;
7. No que concerne especificamente às declarações prestadas pelo arguido cumpre aqui proceder à transcrição das passagens que julgamos relevantes nesta sede:
Arguido: […] eles andavam para lá aos saltos e eu repreendia-los para não andarem naquela fantochada.
De modo que, às tantas, eu disse-lhe a ele "Oh B olha o avô não se admite que andes a fazer isso, portanto senta-te ali e deixa-te estar sossegado ".
Mal eu dei costas, á estava o meu neto lá com o outro miúdo aos saltos e naquela brincadeira. [. . .] Mma Juiza: O sr. chamou a atenção do seu neto, mas chamou a atenção, como? Arguido: o que é que eu lhe disse? Disse para estar sossegadinho e ficar sossegado a ver a televisão.
Mma. Juiza: Portanto, não lhe tocou?
Arguido: Eu dei-lhe um carolo. [..] Depois disso […] se eu tivesse algum problema de consciência, algum remorso, eu teria pedido desculpa ao meu neto [..] ele continuava naquela palhaçada, ele e o amigo dele, e, de modo que, pronto, dei-lhe um carolo. […] Fim de transcrição
8. Ora, como vimos, o Tribunal a quo referiu, na motivação da decisão sobre a matéria de facto, que o arguido negou os factos, mas, na verdade, como se retira da audição da prova produzida, o arguido referiu ter desferido um carolo ao neto, mas porque o tinha chamado à atenção várias vezes sem sucesso. O arguido não negou a prática dos factos, antes tendo dito que agiu com um sentido correctivo, ao ter dado o referido carolo ao neto, após inúmeras repreensões verbais que o menor não acolheu;
9. Quanto à demais prova, não iremos transcrever a mesma, porquanto entendemos que o resumo dessas encetado pelo Tribunal a quo resulta efectivamente do que foi referido pela assistente e pelas testemunhas, assim sumariado pelo Tribunal a quo:
“. nas declarações prestadas pela assistente SM, mãe do menor B, que referiu, no que aqui interessa, que quando foi buscar o B apercebeu-se (no trajecto para casa) que o B estava com um comportamento estranho/diferente e que tinha uma marca na cara ao pé da boca, tendo acabado por dizer já em casa que o avô lhe tinha batido. Referiu ainda que levou o filho ao Centro de Saúde no dia seguinte e que este já não apresentava qualquer marca porque lhe tinha colocado Bepanthene .
. no depoimento prestado pelo menor B que referiu ter estado a brincar com o amigo R em casa do pai, sentados na cama a conversar (negando terem estado aos pulos na cama ou que o arguido os tivesse repreendido) e que quando estavam sentados a mesa à espera do almoço, de repente, o avô deu-lhe uma grande chapada na cara do lado direito sem ter feito nada (não partiram nada nem fizeram mal a ninguém).
Referiu ainda que quando o pai chegou à sala ainda se zangou com ele, dizendo: "Mau, Mau" e que não devia ter feito aquilo, Posteriormente, a instâncias do ilustre defensor do arguido, acabou por referir que o avô só se zangou com ele daquela vez, quando ele se portou mal. É ainda de salienta que o menor não fez qualquer referência a marcas na cara, apenas tendo referido que quando o avo lhe bateu lhe doeu muito e que à noite em casa teve dores de cabeça.
. no depoimento prestado pela testemunha D, filho da assistente e irmão do menor B, que referiu ter ido buscar o irmão com a mãe, por volta das 19 horas, no dia mencionado na pronuncia, o B estava muito calado nesse dia (ao contrário do que é habitual), reparou que o irmão tinha uma marca vermelha por baixo do nariz do lado esquerdo, perguntou-lhe a causa da marca tendo o B respondido que não sabia, que não se lembrava, acrescentando que só mais tarde, já em casa, é que o B disse à mãe que o avô lhe linha batido; relativamente à referida marca na cara mencionou que desapareceu gradualmente (no dia seguinte ainda tinha um bocadinho); mais referiu que a partir desse dia o B passou a não querer estar com o avô, tem medo de estar com o avô.
. no depoimento prestado pelo menor R que declarou conhecer o B e que costumava brincar com ele quando ele ia a casa do Sr. C, referiu terem estado aos pulos na cama/sofá enquanto estiveram a ver os bonecos, tendo sido advertidos mais de uma vez pelo Sr. C para não fazerem isso; depois quando estavam à mesa à espera do almoço, começaram a brincar com os pés, o Sr. C disse-lhes para pararem, acabaram por partir" uma coisinha de encaixar" e o avô deu um estalo devagar ou um carolo na cara do B; explicou depois porque é que disse que a chapada foi devagar; foi uma chapadinha (não ouviu nenhum estrondo, nem o barulho característico do estalo). Mais referiu que depois do almoço ainda foram jogar à bola (ele e o B) e que não reparou se o B tinha alguma coisa na cara; referiu, no entanto, que o B estava desanimado, já não tinha aquela energia.
. no depoimento prestado pela testemunha PS, pai do menor R, que declarou conhecer o arguido há cerca de 10 anos por ser seu senhorio e que conhece o B desde de pequeno. referiu desconhecer o que se passou, limitando-se a dizer que nunca viu o arguido tratar mal o neto.
. no depoimento prestado pela testemunha FE, filho do arguido e pai do menor B, que declarou não ter presenciado o que se passou porque estava no andar de cima (tinha ido à casa de banho), que apenas ouviu uma gritaria e quando chegou à sala só viu o filho a chorar com mão na cara, confortou o filho e o assunto ficou sanado. Referiu ainda que o filho tem uma grande retracção relativamente ao avô paterno por causa do sucedido. ";
10. Em face da prova produzida, resulta que o arguido agiu no âmbito do poder correctivo que sobre o menor detém;
11. Ao contrário do Tribunal a quo, entendemos que o arguido tem sobre o neto o poder-dever correctivo;
12. A propósito do poder correctivo dos avós, merece aqui alguma reflexão da nossa parte o que vem sendo expendido na jurisprudência dos Tribunais Superiores, citando-se, a título de exemplo (por considerarmos bastante explicito), o aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19 de Junho de 2013, proferido no processo 607/11.0 SMPRT.Cl, disponível em dgsi.pt:
"Actualmente, urge pôr o acento tónico no poder correctivo da persuasão, do exemplo e da palavra e na desnecessidade de causar dor física para corrigir, de forma a poder dar uma resposta satisfatória a este problema social tão disseminado. Também, especificamente, na escola (ou infantário) os castigos corporais são, actualmente, considerados reprováveis. Essa urgência também é sentida pela doutrina que salienta que é questionável a admissibilidade desse direito ao castigo e nega que a escola ainda detenha esse poder.
É elementar reconhecer que a gravidade de uma ofensa depende da idade e do desenvolvimento do menor vitimado. Bem assim a dimensão das consequências físicas e psíquicas também releva para a apreciação da relevância jurídico-penal da conduta. Ou seja, não pode deixar de se apreciar a gravidade concreta do comportamento tendo em atenção a fragilidade das vítimas resultante da idade e, num juízo de prognose póstumo, a gravidade das consequências.
Largamente dominante é hoje a doutrina em considerar que a justificação da conduta (que exclui a ilicitude) ocorre só dentro de três condições:
1 - que o agente actue com finalidade educativa e não para dar vazão à sua irritação, para descarregar a tensão nervosa, ou ainda menos pelo prazer de infligir sofrimento, ou para lograr aquilo que apeteceria chamar um efeito de “prevenção, geral ou especial, de intimidação";
2 - que o castigo seja criterioso e portanto proporcional, no sentido de que ele deve ser o mais leve possível e não no de que ele possa (que não pode) assumir um peso equiparado ao da falta cometida pelo educando, quando esta foi grave ou muito grave;
3 - e que ele seja sempre e em todos os casos moderado, nunca atingindo o limite de uma qualquer ofensa qualificada ou de todo o modo atentatório da dignidade do menor, ensinamento este assumido pelo Acórdão da Relação do Porto, de 7 de Novembro de 2007, acessível in www.dgsi.pt.
Como se disse supra, o Código Civil não consagra já qualquer direito de correcção moderada. Assim, a admitir-se o direito ao castigo, este inclui-se sempre no âmbito do poder paternal e é uma sub-espécie do poder-dever de educar. A doutrina vem admitindo a transferência desse direito mas apenas para pessoas próximas da criança e que gozem da confiança pessoal dos pais o que torna discutível a transmissão desse direito para a escola ou infantário, sendo certo que é de afastar a existência de um direito de castigo pessoal por parte dos professores e, ainda menos por parte de auxiliares de educação»";
13. Ora, concordando com o teor do raciocínio expendido em tal Acórdão, e que acabámos de transcrever, há que, em primeiro lugar, concluir que o arguido tem poder [dever] correctivo sobre o neto;
14. E, analisada a conduta do arguido e subsumida a mesma ao poder [dever] correctivo que o arguido dispõe relativamente ao neto, e tendo por base o Acórdão supra referido e parcialmente transcrito, conclui-se que o arguido agiu com finalidade educativa, tendo actuado de forma proporcional, pelo que agiu ao abrigo de uma causa de exclusão da culpa - artigo 17.º, do Código Penal;
15. Ou, pelo menos, quedamos na dúvida inultrapassável sobre se o arguido agiu julgando estar actuando ao abrigo de uma causa de justificação, pelo que, em obediência ao princípio do in dubio pro reo, deveria ter sido considerado como provado que esse agiu a coberto de tal causa de exclusão da culpa;
16. Nessa sequência, Requer-se a V. Exas. que revoguem a sentença recorrida, alterando a matéria de facto considerada como provada nos termos por nós propugnados e, nessa sequência, absolver o arguido».
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1.2.2. - O arguido e a assistente não contra-alegaram.
1.2.3. - Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o art.º 416.° do C.P.P., discordando da posição defendida pelo Ministério Público no recurso, pronunciou-se no sentido da improcedência deste e manutenção da decisão recorrida, sustentando, para além do mais, que o Tribunal a quo aplicou o disposto no art.º 127.º do C.P.P. sem violação de qualquer norma ou princípio e questionando ainda a existência do alegado poder correctivo do avô, uma vez que o pai do menor se encontrava em casa e apenas momentaneamente ausente da sala onde a criança e o avô se encontravam.
1.2.4. - Cumprido o disposto no artigo 417.°, n.º 2, do C.P.P., sem resposta, procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, foram os autos a conferência, de harmonia com o preceituado no art.º 419.°, n.° 3, do mesmo C.P.P..
II – FUNDAMENTAÇÃO 2. 1. – Objecto do Recurso
Dispõe o art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
E no n.º 2 do mesmo dispositivo legal determina-se também que versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Constitui entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva inCurso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, inwww.stj.pt).
No que respeita aos vícios previstos no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P., de conhecimento oficioso, no caso, nem o recorrente invoca a sua existência, nem, ex officio, se vislumbra a verificação de qualquer deles.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência com a decisão impugnada, a questão a examinar e decidir prende-se com saber se se verifica erro de julgamento quanto aos factos julgados provados sob os n.ºs 3 e 4, por falta de consciência da ilicitude e violação do princípio in dubio pro reo.
2. 2. – Da Decisão Recorrida
Na sentença proferida pela 1ª Instância foram dados como provados e não provados os seguintes factos:
«1. Factos provados 1. No dia 29 de Junho de 2014, quando o menor B, de 6 anos, foi passar o dia com o pai, em regime de visita no âmbito de cumprimento do estipulado no processo de regulação de responsabilidades parentais, encontrava-se em casa deste o arguido, por também lá residir.
2. Nesse dia, a hora não concretamente apurada, quando estavam sentados à mesa para almoçarem, o arguido, depois de ter advertido, sem sucesso, o B (e o amigo R), para pararem de brincar com os pés, deu uma bofetada na face do menor B.
3. CM sabia que a sua conduta representava um facto constituinte de um tipo de crime punível por lei e, não obstante, agiu de forma a praticá-lo, ofendendo, assim, o corpo do seu neto.
4. Agiu livre, deliberada e conscientemente.
5. O arguido foi anteriormente condenado pela prática em 22-06-2013 de um crime de injúria p. p. pelo artigo 181º, nº 1, do Código Penal.
6. O arguido é reformado e aufere uma pensão de reforma de 540 euros mensais.
7. O arguido vive em casa própria e tem uma outra casa que está arrendada auferindo um rendimento mensal de 250 euros.
8. O arguido tem despesas fixas mensais com electricidade, gás, água e telefone de 200 euros.
9. O arguido tem o 11º ano de escolaridade incompleto.
2. Factos não provados 1. O arguido desferiu uma bofetada na face do menor B por este estar com a mão na boca».
2. 3. – Apreciando e decidindo Erro de julgamento quanto aos factos julgados provados sob os n.ºs 3 e 4, por falta de consciência da ilicitude e violação do princípio in dubio pro reo
Alega o Digno Recorrente que a matéria de facto foi incorrectamente julgada, já que, em sua opinião, a prova produzida determinaria que tivessem sido considerados como não provados os factos vertidos nos nºs 3 e 4 da matéria de facto considerada provada e, ao invés, ter sido considerado como provado que "o arguido agiu com o intuito de corrigir e educar o menor, seu neto, que, no momento dos factos, se encontrava a si confiado", ou, em alternativa, considerar como provado que "o arguido agiu julgando que o seu comportamento era lícito por se destinar exclusivamente a corrigir e educar o menor, seu neto, que, no momento dos factos, se encontrava a si confiado".
Para tanto transcreve parte das declarações do arguido para daí concluir que, contrariamente ao constante na motivação da decisão de facto, na qual o Tribunal a quo considerou que o arguido negou a prática dos factos, resulta de tais declarações que o arguido admitiu ter desferido um carolo ao neto, mas porque o tinha chamado à atenção várias vezes sem sucesso.
Quanto às demais declarações e depoimentos a que o Recorrente faz referência - declarações da assistente SM e depoimentos das testemunhas B, DM, RS, PS e FE - refere o mesmo não proceder à sua transcrição por considerar que o resumo deles feito pelo Tribunal a quo corresponde ao que foi efectivamente declarado.
Vejamos.
Estão em causa os seguintes factos julgados provados:
«3. CM sabia que a sua conduta representava um facto constituinte de um tipo de crime punível por lei e, não obstante, agiu de forma a praticá-lo, ofendendo, assim, o corpo do seu neto.
4. Agiu livre, deliberada e conscientemente.»
No que respeita à reapreciação da matéria de facto, a mesma poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., normalmente designada por «revista alargada» - situação em que a verificação de tais vícios tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso portanto a elementos que lhe sejam exteriores - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, nos termos previstos no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo Código, caso em que a apreciação se alarga à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, só podendo alterar-se o decidido se as provas indicadas por aquele obrigarem a decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem.
Nesse sentido, veja-se do Ac. do TRL de 29.03.2011, em cujo sumário se lê:
«I. A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, nº2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de «revista alargada»; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs3, 4 e 6, do mesmo diploma;
II. No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº2 do referido artigo 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs3 e 4 do art. 412º do C.P. Penal;
III. A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º];»
Sustenta o Recorrente que os referidos factos foram incorrectamente apreciados por, em seu entendimento, o arguido ter agido no âmbito do poder correctivo que detém sobre o menor ou, pelo menos, por ter agido julgando que o seu comportamento era lícito por se destinar exclusivamente a corrigir e educar o menor, seu neto, que, no momento dos factos, se encontrava a si confiado.
E fundamenta tal entendimento nas declarações prestadas pelo próprio arguido.
Não põe o Recorrente em causa os factos considerados provados sob os n.ºs 1 e 2, nos quais foi considerado assente que:
«1. No dia 29 de Junho de 2014, quando o menor B, de 6 anos, foi passar o dia com o pai, em regime de visita no âmbito de cumprimento do estipulado no processo de regulação de responsabilidades parentais, encontrava-se em casa deste o arguido, por também lá residir.
2. Nesse dia, a hora não concretamente apurada, quando estavam sentados à mesa para almoçarem, o arguido, depois de ter advertido, sem sucesso, o B (e o amigo R ), para pararem de brincar com os pés, deu uma bofetada na face do menor B.»
Sendo estes os factos objectivos julgados provados, questiona tão só o Recorrente a conclusão deles retirada pelo Tribunal a quo quanto ao dolo.
Porém, como resulta expressamente do disposto na alínea b) do n.º 3 do citado art.º 412.º do C.P.P, e tendo em vista a alteração pretendida, cabia ao Recorrente indicar as concretas provas que impunham decisão diversa da recorrida.
Trata-se da indicação das provas que inelutavelmente impunham decisão diferente da proferida e não das provas que permitiriam tão só uma outra decisão.
No entanto, e como veremos, não logrou o recorrente indicar tais provas, verificando-se antes que as por si indicadas sustentam afinal a decisão de facto proferida e não obrigam, não impõem decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo.
Sob a epígrafe “Livre apreciação da prova”, estabelece o art.º 127.º do C.P.P. que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»
Conforme refere Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, vol. I, pág. 202: «A liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos, e, portanto, em geral, susceptíveis de motivação e de controlo.»
Importa referir que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto não visa a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, mas tão só a detecção e correcção de pontuais e concretos erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto.
Na verdade, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado por Simas Santos, inwww.dgsi.pt, processo 04P4324: "1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribada em elementos subjectivos e não objectivos, é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzida na documentação da prova e logo reexaminada em recurso...".
No mesmo sentido, veja-se também o Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado por Santos Carvalho, inwww.dgsi.pt, processo 08P3269, de cujo sumário citamos: "1 - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a Iª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. ...".
E, na apreciação dos invocados erros de julgamento, não pode esquecer-se que nem tudo é sindicável pelo Tribunal Superior, sendo certo que na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, tendo também relevância para a formação da convicção do julgador um conjunto de elementos não verbais, subtis e quase imperceptíveis, tais como pequenos gestos e trejeitos e toda a mímica e atitude comportamental do depoente, que apenas podem ser apreendidos e valorizados por quem os presencia, não podendo ficar registados para aproveitamento numa posterior reapreciação por outro Tribunal.
Ainda a propósito, diz-se no acórdão do TRG de 16/05/2016, Proc. 732/11.8JABRG.G1, relatado por João Lee Ferreira, in www.dgsi.pt: "I) Na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação. II) A função do julgador consiste em determinar como os factos se passaram, raciocinando sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum. III) Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade imparcial a quem compete julgar depende, assim, de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.".
Impõe ainda o n.º 2 do art.º 374.º do C.P.P. que da sentença conste, para além do mais, uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Assim, e de acordo com o normativo legal referido, impende sobre o julgador a obrigação de proceder ao exame crítico das provas por forma a que seja possível sindicar o percurso seguido na formação da sua convicção, percurso esse que se impõe lógico e racional e em consonância com as regras da experiência comum.
O exame crítico deve consistir na explicitação, lógica e racional, do processo de formação da convicção do julgador, concretizado na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova foram valorados e em que sentido, nele se explanando os motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e outros não.
Conforme se lê no Ac. do STJ de 21.03.2007, relatado por Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt :
«VI. O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (cf., v.g., Ac. do STJ de 30-01-2002, Proc. n.º 3063/01).
VII. O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
VIII. No que respeita à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto - a que se refere especificamente a exigência da parte final do art. 374.°, n.° 2, do CPP -, o exame crítico das provas permite (é a sua função processual) que o tribunal superior, fazendo intervir as indicações extraídas das regras da experiência e perante os critérios lógicos que constituem o fundo de racionalidade da decisão (o processo de decisão), reexamine a decisão para verificar da (in)existência dos vícios da matéria de facto a que se refere o art. 410.º, n.° 2, do CPP; o n.° 2 do art. 374.° impõe uma obrigação de fundamentação completa, permitindo a transparência do processo de decisão, sendo que a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório (cf., nesta perspectiva, o Ac. do TC de 02-12-1998).
IX. A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.»
Sobre a questão, diz-se também no Ac. STJ de 17/11/1999, relatado por Martins Ramires, in CJSTJ, III, p. 200 e ss.:
«O entendimento do STJ sobre o cumprimento deste preceito encontra-se sedimentado: trata-se de exposição tanto quanto possível completa, mas concisa, dos motivos de facto e indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, sem necessidade de esgotar todas as induções ou critérios de valoração das provas e contraprovas, mas permitindo verificar que a decisão seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.».
E considera ainda José I. M. Rainho, in "Decisão da matéria de facto - exame crítico das provas", Revista do CEJ, 1° Semestre de 2006, pp. 145 e ss.:
«Em que consiste portanto a especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção? Consiste simplesmente na indicação das razões fundamentais, retiradas a partir das provas segundo a análise que delas fez o julgador, que levaram o tribunal a assumir como real certo facto. Ou, se se quiser, consiste em dizer por que motivo ou razão as provas produzidas se revelam credíveis e decisivas ou não credíveis ou não decisivas. No primeiro caso o tribunal explica por que julgou provado o facto; no segundo explica por que não julgou provado o facto. ... a motivação não tem porque ser extensa, de modo a significar tudo o que foi probatoriamente percepcionado pelo julgador. Pelo contrário, deve ser concisa, como é próprio do que é instrumental, conquanto não possa deixar de ser completa.»
No exame crítico das provas imposto pelo art.º 374.º, n.º 2, do C.P.P., necessário e imprescindível é, pois, que o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da experiência e da realidade da vida e dos critérios da racionalidade e da lógica, se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto, provado ou não provado.
No cumprimento desse dever, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à factualidade julgada provada e não provada nos seguintes termos:
«3. Motivação da decisão da matéria de facto. A convicção do tribunal fundou-se genericamente na análise e apreciação de toda a prova produzida e examinada em audiência de julgamento à luz do princípio da normalidade e das regras da experiência comum, nomeadamente:
. nas declarações prestadas pelo arguido CM que negou os factos constantes da acusação, referindo que no dia descrito na pronuncia estava a preparar o almoço, o B e o amigo R estavam aos saltos no sofá, chamou-lhes a atenção, o B continuou aos saltos com o amigo e o arguido deu um carolo no B na brincadeira - versão que foi contrariada (no que se refere ao modo e lugar da agressão) tanto pelo menor B, como pelo menor R que descreveu de forma clara e espontânea as circunstancias de modo, lugar e motivo em que os factos ocorreram e cujo depoimento, no essencial, se mostrou sincero e mereceu inteira credibilidade.
. nas declarações prestadas pela assistente SM, mãe do menor B, que referiu, no que aqui interessa, que quando foi buscar o B apercebeu-se (no trajecto para casa) que o B estava com um comportamento estranho/diferente e que tinha uma marca na cara ao pé da boca, tendo acabado por dizer já em casa que o avô lhe tinha batido. Referiu ainda que levou o filho ao Centro de Saúde no dia seguinte e que este já não apresentava qualquer marca porque lhe tinha colocado Bepanthene.
. no depoimento prestado pelo menor B que referiu ter estado a brincar com o amigo R em casa do pai, sentados na cama a conversar (negando terem estado aos pulos na cama ou que o arguido os tivesse repreendido) e que quando estavam sentados a mesa à espera do almoço, de repente, o avô deu-lhe uma grande chapada na cara do lado direito sem ter feito nada (não partiram nada nem fizeram mal a ninguém). Referiu ainda que quando o pai chegou à sala ainda se zangou com ele, dizendo: “Mau, Mau” e que não devia ter feito aquilo. Posteriormente, a instâncias do ilustre defensor do arguido, acabou por referir que o avô só se zangou com ele daquela vez, quando ele se portou mal. É ainda de salientar que o menor não fez qualquer referência a marca/s na cara, apenas tendo referido que quando o avo lhe bateu lhe doeu muito e que à noite em casa teve dores de cabeça.
. no depoimento prestado pela testemunha DM, filho da assistente e irmão do menor B, que referiu ter ido buscar o irmão com a mãe, por volta das 19 horas, no dia mencionado na pronuncia, o B estava muito calado nesse dia (ao contrário do que é habitual), reparou que o irmão tinha uma marca vermelha por baixo do nariz do lado esquerdo, perguntou-lhe a causa da marca tendo o B respondido que não sabia, que não se lembrava, acrescentando que só mais tarde, já em casa, é que o B disse à mãe que o avô lhe tinha batido; relativamente à referida marca na cara mencionou que desapareceu gradualmente (no dia seguinte ainda tinha um bocadinho); mais referiu que a partir desse dia o B passou a não querer estar com o avô, tem medo de estar com o avô.
. no depoimento prestado pelo menor R que declarou conhecer o B e que costumava brincar com ele quando ele ia a casa do Sr. C, referiu terem estado aos pulos na cama/sofá enquanto estiveram a ver os bonecos, tendo sido advertidos mais de uma vez pelo Sr. C para não fazerem isso; depois quando estavam à mesa à espera do almoço, começaram a brincar com os pés, o Sr. C disse-lhes para pararem, acabaram por partir “ uma coisinha de encaixar” e o avô deu um estalo devagar ou um carolo na cara do B; explicou depois porque é que disse que a chapada foi devagar, foi uma chapadinha (não ouviu nenhum estrondo, nem o barulho característico do estalo). Mais referiu que depois do almoço ainda foram jogar à bola (ele e o B) e que não reparou se o B tinha alguma coisa na cara; referiu, no entanto, que o B estava desanimado, já não tinha aquela energia.
. no depoimento prestado pela testemunha PS, pai do menor R, que declarou conhecer o arguido há cerca de 10 anos por ser seu senhorio e que conhece o B desde de pequeno, referiu desconhecer o que se passou, limitando-se a dizer que nunca viu o arguido tratar mal o neto.
. no depoimento prestado pela testemunha FE, filho do arguido e pai do menor B, que declarou não ter presenciado o que se passou porque estava no andar de cima (tinha ido à casa de banho), que apenas ouviu uma gritaria e quando chegou à sala só viu o filho a chorar com mão na cara, confortou o filho e o assunto ficou sanado. Referiu ainda que o filho tem uma grande retracção relativamente ao avô paterno por causa do sucedido.
Não obstante o ambiente de conflituosidade em que tem decorrido o processo de regulação das responsabilidades parentais do menor B (patente nas declarações prestadas pelo arguido e pela assistente) e a falta de isenção e parcialidade que o mesmo acarreta, não restam dúvidas em face da prova produzida que o arguido efectivamente deu uma palmada/bofetada na face do menor B quando estavam sentados à mesa para almoçar, sendo certo que o fez depois de o ter advertido, sem sucesso, para parar de brincar com os pés.
Com efeito, como resultou claro do depoimento prestado pelo menor R, o B e o R tinham estado, anteriormente, aos pulos em cima da cama/sofá enquanto estiveram a ver os bonecos (televisão) e depois quando foram para a mesa para almoçar iniciaram uma brincadeira com os pés que levou a que tivessem partido “uma coisinha de encaixar”, tendo sido chamados à atenção pelo arguido para não terem tais comportamentos, sem sucesso.
E muito embora o arguido tenha agido com um sentido correctivo, fê-lo de forma livre, deliberada e conscientemente, pretendendo e conseguindo ofender o corpo do seu neto, bem sabendo que tal conduta é proibida e punida por lei penal.
Teve-se ainda em atenção no que se refere aos antecedentes criminais e situação pessoal e económica do arguido o CRC junto a fls. 200/201 e as declarações prestadas pelo arguido sobre a sua situação pessoal e económica que mereceram suficiente credibilidade.
Relativamente à matéria de facto não provada, resultou de não ter sido feita qualquer prova sobre a mesma.»
E quanto ao enquadramento jurídico dos factos e análise do tipo subjectivo, lê-se também na decisão recorrida:
«4. Enquadramento jurídico-penal Dispõe o artigo 143º n.º 1 do CP que “ quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com a pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
O bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana.
O tipo objectivo deste ilícito é constituído pela ofensa no corpo ou na saúde de outrem, sendo que a mesma consiste na agressão no corpo ou saúde de alguém que afecte a sua integridade, o seu bem estar físico, mental.
Tal ofensa verifica-se mesmo que o ofendido não sofra qualquer lesão corporal, incapacidade para o trabalho, ou mesmo dor ou sofrimento físico.
Como salienta Paula Ribeiro de Faria (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, pág. 205) “o tipo legal do art. 143.º fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causado.”.
No mesmo sentido, cfr. o Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Dezembro de 1991 (Diário da República de 8-2-1992), ao prescrever que: “Integra o crime do artigo 142.º do Código Penal a agressão voluntária e consciente, cometida à bofetada, sobre uma pessoa, ainda que esta não sofra, por via disso, lesão, dor ou incapacidade para o trabalho”.
A existência de lesões relevará a nível do grau de ilicitude do facto, sendo, ainda, susceptível de revelar a intensidade do dolo.
Contudo, as ofensas no corpo ou saúde de outra pessoa para que atinjam dignidade penal e sejam subsumíveis à previsão deste artigo não podem ser insignificantes.
Como defende Paula Ribeiro Faria in Comentário Conimbricense do CP, Parte Especial, Tomo I, pág. 207, “sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão, e ilícito o comportamento do agente, se a lesão é diminuta (neste sentido, de uma “cláusula restritiva de inadequação social” cfr. Figueiredo Dias, Sumários, 1975,153)”.
Por outro lado, a apreciação da gravidade da lesão não se deve deixar fundar em motivos e pontos de vista pessoais do ofendido, necessariamente subjectivos e arbitrários, antes deverá partir de critérios objectivos como a duração e intensidade do ataque ao bem jurídico e necessidade de tutela penal, se bem que não perdendo inteiramente de vista factores individuais.
O tipo subjectivo é constituído pela intenção e consciência de se estar a ofender o corpo ou a saúde com a agressão perpetrada.
Ora, conforme se provou, no dia 29 de Junho de 2014, a hora não concretamente apurada, quando estavam sentados à mesa para almoçarem, o arguido, depois de ter advertido, sem sucesso, o menor B (e o amigo R) para pararem de brincar com os pés, deu uma bofetada na face do B.
Assim, considerando que ficou igualmente provado que o arguido actuou de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que a sua conduta representava um facto constituinte de um tipo de crime punível por lei e, não obstante, agiu de forma a praticá-lo, ofendendo, assim, o corpo do seu neto, preenchidos estão todos os elementos do crime em causa.
Apesar da conduta do arguido ter tido um sentido correctivo, tal procedimento, foge ao “poder de correcção” uma vez que o arguido, não sendo pai do menor B, não tem esse poder.
Assim sendo, inexistindo causas de exclusão da ilicitude do facto ou da culpa do agente, impõe-se a condenação do arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física de que vem pronunciado.
(sublinhado nosso).
Perante os excertos que antecedem, é manifesto que o Tribunal a quo examinouminuciosa e criticamente toda a prova produzida, recorrendo a critérios de racionalidade e lógica, confrontando entre si as diferentes versões e as provas que as sustentavam e razoabilidade destas, vindo a atribuir credibilidade às declarações dos menores, B e R, que infirmavam o declarado pelo arguido, num percurso transparente, objectivo e distanciado, sem qualquer violação das regras da experiência comum e da normalidade da vida.
Com efeito, as duas crianças referiram que estavam sentadas à mesa, que estavam a brincar com os pés e que o arguido desferiu uma bofetada na cara do seu neto, tendo o menor R se referido a um estalo devagar ou a um carolo.
As demais declarações prestadas pela assistente, SM, e pelo irmão do menor, DM, confirmam também que o menor foi atingido na cara, na qual lhe viram a marca deixada, sendo que o próprio pai do B, FE, declarou que ouviu uma gritaria e que, quando chegou à sala, só viu o filho a chorar com a mão na cara.
O irmão do menor confirmou ainda que a marca na cara do B desapareceu gradualmente, ainda tendo um bocadinho no dia seguinte.
Tais declarações infirmam, pois, claramente o declarado pelo arguido, que admitiu factos bem diferentes dos julgados provados, concretamente que tinha dado um carolo ao neto na brincadeira quando ele e o amigo andavam aos saltos em cima do sofá, e depois de os chamar várias vezes à atenção.
E isso mesmo é referido na motivação da decisão de facto, referindo expressamente o Tribunal a quo quando alude àsdeclarações prestadas pelo arguido, dizendo: «nas declarações prestadas pelo arguido CM que negou os factos constantes da acusação, referindo que no dia descrito na pronuncia estava a preparar o almoço, o B e o amigo R estavam aos saltos no sofá, chamou-lhes a atenção, o B continuou aos saltos com o amigo e o arguido deu um carolo no B na brincadeira - versão que foi contrariada (no que se refere ao modo e lugar da agressão) tanto pelo menor B, como pelo menor R que descreveu de forma clara e espontânea as circunstancias de modo, lugar e motivo em que os factos ocorreram e cujo depoimento, no essencial, se mostrou sincero e mereceu inteira credibilidade.» (sublinhado nosso)
Assim, não se compreende a leitura que o Digno Recorrente faz das declarações prestadas pelo arguido, quando vê nelas a admissão dos factos que lhe estavam imputados.
E, no confronto de duas versões contraditórias, o Tribunal a quo deu credibilidade a uma delas, concretamente às prestadas pelos dois menores, em conjugação com os depoimentos prestados pelas demais testemunhas e pela assistente que confirmaram a existência de vestígios da agressão perpetrada na cara do menor, em detrimento das prestadas pelo arguido.
Assim, limita-se o Recorrente a discordar da valoração feita pelo Tribunal a quo, defendendo no fundo que este deveria ter considerado mais credíveis as provas que davam suporte à tese defendida pelo arguido, isto é, as próprias declarações deste, sem lograr indicar qualquer prova que impusesse, que obrigasse a decisão diferente da proferida.
Porém, é na atribuição, ou não, de credibilidade a determinado meio de prova, que tem especial aplicação o princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador consagrado no art.º 127.º do C.P.P., princípio que, no entanto, não o desobriga de observar as regras da experiência comum e da normalidade da vida e de explicar de modo lógico, racional, claro e objectivo o percurso seguido na formação da sua convicção.
Impõe-se assim que a fundamentação seja compreensível, coerente e crítica, expondo de forma clara e segura as razões que suportam a opção fáctica.
E a falta de coincidência das declarações e depoimentos prestados em audiência não permite concluir por qualquer estado de dúvida, razoável, a que o Tribunal chegasse.
Na verdade, existindo declarações e depoimentos divergentes ou mesmos contraditórios não está o Tribunal obrigado a dar credibilidade a um ou a outro, nem a considerar que se verifica qualquer situação duvidosa que imponha o recurso ao princípio in dubio pro reo.
Perante a prova produzida, cabe ao Tribunal fazer a análise crítica da mesma, conjugando entre si todos os elementos de prova, segundo as regras da experiência comum, podendo atribuir credibilidade a um depoimento em detrimento de um outro, necessário sendo tão só que, com respeito pelos limites da racionalidade e da experiência comum, explique por que razão deu credibilidade a determinada prova e não o fez relativamente a outra e considera provada, ou não provada, determinada matéria.
Ora, foi precisamente o que o Tribunal a quo fez, resultando claro da motivação da decisão de facto que os depoimentos dos dois menores, pela forma clara e espontânea como esclareceram as circunstâncias de modo, lugar e motivo em que os factos ocorreram, se mostraram sinceros e merecedores de credibilidade.
Deste modo, tendo o Tribunal a quo acreditado na versão dos factos relatada pelos dois menores, B e R, versão corroborada pela assistente, mãe do menor, e pelas testemunhas DM e FE, respectivamente irmão e pai do B, na parte em que observaram o resultado na conduta do arguido na cara do menor, e não tendo tido qualquer dúvida quanto à veracidade da mesma, não estava o Tribunal obrigado a fazer uso do princípio in dubio pro reo.
O que resulta deste princípio é que quando o tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido. Mas para que a dúvida seja relevante para este efeito, há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não qualquer dúvida (Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, I, pág. 205).
“A presunção de inocência é identificada por muitos autores como princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência."(Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal", I, 5ª ed., 2008, pág. 83 e 84).
No mesmo sentido, lê-se no Ac do STJ de 12.03.2009, in www.dgsi.pt, Procº 07P1769:
«III- O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.
IV- Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
V- Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá estenão desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
VI- Daqui se retira que a sua preterição exige que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.»
Só haverá, pois, violação do mencionado princípio quando o julgador, tendo ficado na dúvida sobre factos relevantes, nesse estado de dúvida, decida contra o arguido.
Tal não foi manifestamente o caso dos autos, mostrando-se a factualidade em causa estribada em prova produzida em julgamento, analisada em conjunto segundo as regras da experiência comum e da normalidade da vida.
E ao ter considerado provada a versão dos factos nos termos deixados consignados, o Tribunal concluiu, no que respeita ao dolo, e a nosso ver bem, que CM sabia que a sua conduta representava um facto constituinte de um tipo de crime punível por lei e, não obstante, agiu de forma a praticá-lo, ofendendo, assim, o corpo do seu neto, tendo agido livre, deliberada e conscientemente.
Discorda o Ministério Público, ora Recorrente, desta conclusão, alegando que o arguido, por ser avô do menor B, tem sobre este poder correctivo e agiu nesse âmbito, não sendo a sua conduta punida por lei, defendendo também que, pelo menos haveria que considerar-se provado que o arguido agiu julgando que o seu comportamento era lícito por se destinar exclusivamente a corrigir e educar o menor, seu neto, que no momento dos factos se encontrava a si confiado.
Considerando assim que o arguido actuou com sentido correctivo, conclui o Digno Recorrente que o mesmo agiu sem consciência da ilicitude do facto.
Pensamos que não lhe assiste razão.
Com efeito, e desde logo, não tendo o arguido admitido a prática dos factos nos termos em que o fez e foi considerada provada, como pode o Recorrente afirmar que o mesmo agiu com intuito correctivo no exercício de um poder/dever de correcção e sem consciência da ilicitude de tal facto.
Se não admite sequer ter praticado os factos que lhe estavam imputados e foram julgados provados, como pode simultaneamente defender que agiu sem consciência da ilicitude do facto e no âmbito de um poder/dever que diz ser seu?
Nas circunstâncias concretas dadas como provadas, a bofetada desferida na cara de um menor, com 6 anos de idade, que, sentado à mesa, brinca com os pés, juntamente com amigo, mesmo depois de ter sido advertido para parar com tal brincadeira, não se integra um qualquer poder correctivo – mesmo que, no caso, tal poder/dever existisse – constituindo antes uma verdadeira agressão, resultante da impaciência do arguido perante a falta de obediência dos dois menores em pararem com a brincadeira que, visivelmente, o estava a incomodar.
E o arguido tinha perfeita consciência da ilegalidade da sua conduta, já que nas suas declarações, na parte em que admitiu ter dado um carolo ao seu neto, em circunstâncias que terão eventualmente antecedido os factos julgados provados, isto é, antes de os menores se sentarem à mesa, quando brincavam em cima do sofá, referiu tê-lo feito por “brincadeira”.
Admitiu, assim, o arguido ter dado um carolo no neto, afirmando tê-lo feito por “brincadeira”!
Incomodado com as brincadeiras dos menores, primeiro no sofá e depois à mesa, e uma vez que os mesmos não acederam aos seus pedidos para estarem quietos, o arguido entendeu “corrigir” o seu neto, tendo para o efeito recorrido a um estalo na cara do B.
Porém, mesmo que o arguido entendesse que os menores estavam a fazer algo que, para além de o incomodar, era também incorrecto e necessitava de correcção imediata - o que, perante a matéria de facto julgada provada não se vislumbra - não assistia ao arguido qualquer direito de impor o seu entendimento sobre o comportamento dos menores recorrendo para o efeito ao estalo que desferiu na cara no seu neto, de tal forma que o deixou com uma marca na cara durante várias horas.
O poder/dever de correcção não visa a simples imposição de uma qualquer vontade do adulto sobre a do menor, unicamente porque aquele se encontra incomodado com a atitude deste, sendo necessário que se verifique uma necessidade efectiva de correcção do comportamento desadequado e incorrecto do menor.
No caso, perante as brincadeiras dos menores que o estavam a incomodar, o arguido poderia ter esperado pelo pai do seu neto, que se ausentara da sala por alguns momentos, para que o mesmo exigisse do B o comportamento que entendesse adequado. Mas não, de forma que revela a sua impaciência perante as brincadeiras de duas crianças, o arguido optou por dar um estalo na cara do seu neto como forma de acabar de imediato com aquelas, o que excede em muito qualquer poder/dever de correcção, mesmo que, no caso, ele se verificasse.
De acordo com o Comité dos Direitos da Criança, considera-se como «castigo corporal qualquer acção tomada para punir uma criança que, se dirigida contra um adulto, constituiria agressão ilegítima; qualquer uso de violência com intenção de causar algum grau de dor ou desconforto, ainda que ligeiro, e ainda, punições não físicas cruéis, humilhantes e degradantes.»
O conteúdo do poder/dever de educar encontra-se estabelecido no art.º 1885.º do Código Civil, que o associa à promoção física, intelectual e moral dos filhos, com especial acuidade em relação aos diminuídos física e mentalmente, devendo proporcionar-lhes adequada instrução geral e profissional, correspondente, na medida do possível, às aptidões e inclinações de cada um.
Educar é “preparar o menor para a autonomia, para a independência (...) mas preparar para a vida numa sociedade civilizada, que tem regras necessárias de conduta individual e social” (Pires de Lima e Antunes Varela – Código Civil Anotado; Vol. V (artigos 1796.º a 2023.º), Coimbra Editora, Limitada, 1995, pág. 352).
Até à Reforma de 1977, o Código Civil previa expressamente, no seu artigo 1884.º, um poder de correcção dos pais, que permitia a aplicação moderada de castigos corporais como forma de corrigir comportamentos desobedientes e insubordinados dos filhos. Com a referida Reforma, o poder de correcção de carácter punitivo e de domínio em relação à criança foi abolido do texto legal, na esteira do entendimento de que se deveria atenuar o carácter fortemente hierárquico e autoritário da relação filial. O poder de correcção passou então a equivaler ao dever de educar expressando-se o mesmo, necessariamente, no exemplo e na palavra. (Laura Fernandes Madeira – “Castigos Corporais na Educação das Crianças”; Julgar on-line, 2014, pág. 6).
Educar não significa punir mas sim ensinar e corrigir sem violência física ou psíquica, havendo que colocar o acento tónico no poder correctivo da persuasão, do exemplo e da palavra e na desnecessidade de causar dor física para corrigir. Embora se entenda que no âmbito das responsabilidades parentais se inclua um poder de correcção, este tem de ser entendido como encontrando-se abrangido pelo poder-dever de protecção e orientação, assumindo-se, assim, como um poder de segundo grau sem carácter punitivo, devendo ser exercido dentro dos limites de uma autoridade amiga e responsável e, por conseguinte, sem abusos, no interesse dos filhos e com respeito pela sua saúde, segurança, formação moral, grau de maturidade e de autonomia (LEANDRO, Armando – “Poder paternal: natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária”; Temas de Direito da Família, Almedina, 1986, páginas 126/127).
Mas mesmo que se admita que, numa correcção moderada, possam ser incluídos leves castigos corporais, desde que os mesmos se mostrem adequados a atingir um determinado fim educativo e sejam aplicados com essa precisa intenção, o poder/dever de educar é tão só reconhecido aos pais, admitindo-se que se considere transferido para os avós se pelos pais lhes forem atribuídas tais funções educativas, designadamente quando são os avós que têm a seu cargo diariamente a guarda e acompanhamento dos netos.
Aliás, isso mesmo resulta do acórdão citado pelo próprio Recorrente, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 19 de Junho de 2013, no Procº 607/11.0 SMPRT.Cl, disponível em dgsi.pt, no qual podemos ler:
«Actualmente, urge pôr o acento tónico no poder correctivo da persuasão, do exemplo e da palavra e na desnecessidade de causar dor física para corrigir, de forma a poder dar uma resposta satisfatória a este problema social tão disseminado. Também, especificamente, na escola (ou infantário) os castigos corporais são, actualmente, considerados reprováveis. Essa urgência também é sentida pela doutrina que salienta que é questionável a admissibilidade desse direito ao castigo e nega que a escola ainda detenha esse poder.
É elementar reconhecer que a gravidade de uma ofensa depende da idade e do desenvolvimento do menor vitimado. Bem assim a dimensão das consequências físicas e psíquicas também releva para a apreciação da relevância jurídico-penal da conduta. Ou seja, não pode deixar de se apreciar a gravidade concreta do comportamento tendo em atenção a fragilidade das vítimas resultante da idade e, num juízo de prognose póstumo, a gravidade das consequências.
Largamente dominante é hoje a doutrina em considerar que a justificação da conduta (que exclui a ilicitude) ocorre só dentro de três condições:
1 - que o agente actue com finalidade educativa e não para dar vazão à sua irritação, para descarregar a tensão nervosa, ou ainda menos pelo prazer de infligir sofrimento, ou para lograr aquilo que apeteceria chamar um efeito de “prevenção, geral ou especial, de intimidação";
2 - que o castigo seja criterioso e portanto proporcional, no sentido de que ele deve ser o mais leve possível e não no de que ele possa (que não pode) assumir um peso equiparado ao da falta cometida pelo educando, quando esta foi grave ou muito grave;
3 - e que ele seja sempre e em todos os casos moderado, nunca atingindo o limite de uma qualquer ofensa qualificada ou de todo o modo atentatório da dignidade do menor, ensinamento este assumido pelo Acórdão da Relação do Porto, de 7 de Novembro de 2007, acessível in www.dgsi.pt.
Como se disse supra, o Código Civil não consagra já qualquer direito de correcção moderada.
Assim, a admitir-se o direito ao castigo, este inclui-se sempre no âmbito do poder paternal e é uma sub-espécie do poder-dever de educar. A doutrina vem admitindo a transferência desse direito mas apenas para pessoas próximas da criança e que gozem da confiança pessoal dos pais o que torna discutível a transmissão desse direito para a escola ou infantário, sendo certo que é de afastar a existência de um direito de castigo pessoal por parte dos professores e, ainda menos por parte de auxiliares de educação».
A noção de dolo encontra-se vertida no n.º 1 do art.º 14.º do Código Penal, de acordo com o qual «age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.»
Por sua vez, quanto ao erro sobre as circunstâncias do facto, determina-se no art.º 16.º do C. Penal:
«1 - O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo.
2 - O preceituado no número anterior abrange o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
3 - Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.»
Sobre este erro podemos ler no Ac. do TRP de 25.02.2015, in www.dgsi.pt:
«I. O erro sobre a ilicitude ou sobre a punibilidade que exclui o dolo (artº 16º1 CP) apenas se deve e pode referenciar aos crimes cuja punibilidade não se pode presumir conhecida de todos os cidadãos.
II. Aos crimes cuja punibilidade se pode presumir que seja conhecida por todos os cidadãos, o eventual erro sobre a ilicitude só pode ser subsumível ao artº 17º CP, em caso em que a culpa só é afastada se a falta de consciência da ilicitude do facto decorre de erro não censurável.
III. A censurabilidade só é de afastar se e quando se trate de proibições de condutas cuja ilicitude material não esteja devidamente sedimentada na consciência ético social.»
E estabelece ainda o art.º 17.º do C. Penal, agora sobre o erro sobre a ilicitude: «1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.»
Assim, a falta de consciência da ilicitude do facto só afasta o dolo se a mesma não for censurável.
Mas tal falta será censurável quando for reveladora de uma atitude de indiferença pelos valores jurídico-penais.
A propósito, porque igualmente esclarecedor, lê-se no Ac. do TRG de 05.11.2012, in www.dgsi.pt:
«O erro sobre a ilicitude excluirá o dolo do tipo sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito. O erro será censurável, ou não, consoante ele próprio seja, revelador e concretizador de uma personalidade indiferente perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente.»
De acordo com os ensinamentos do Prof. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, Vol. II, pág. 162, pode definir-se o dolo como a vontade consciente de praticar um facto que preenche um tipo de crime, constando a vontade dolosa de dois momentos:
a) a representação ou visão antecipada do facto que preenche um tipo de crime (elemento intelectual ou cognoscitivo); e
b) a resolução, seguida de um esforço do querer dirigido à realização do facto representado (elemento volitivo).
E, segundo o mesmo Professor, não basta o conhecimento de que o facto preenche um tipo de crime, sendo necessária a própria consciência da ilicitude, já que, nos termos previstos no art.º 16.º do C. Penal, a falta de consciência da ilicitude exclui o dolo, daí concluindo que, se o erro sobre elementos de facto ou de direito ou sobre proibições cujo conhecimento for indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude exclui o dolo, então a consciência da ilicitude é também elemento do dolo, de tal forma que, se aquela faltar, o dolo é excluído.
Também o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, tomo I, págs. 332 e 333, considera que a doutrina hoje dominante conceitualiza o dolo, na sua formulação mais geral, como o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, sendo o conhecimento o momento intelectual e a vontade o momento volitivo de realização do facto.
E, sobre o momento intelectual do dolo do tipo, diz-nos aquele Professor, na obra e local citados:
«Do que neste elemento verdadeiramente e antes de tudo se trata é da necessidade, para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência (…) das circunstâncias do facto (…) que preenche um tipo objectivo de ilícito (art. 16.º-1). A razão desta exigência deve ser vista à luz da função que este elemento desempenha: o que com ele se pretende é que, ao actuar, o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito; porque tudo isso é indispensável para se poder afirmar que o agente detém, ao nível da consciência intencional ou psicológica, o conhecimento necessário para que a sua consciência ética, ou dos valores, se ponha e resolva correctamente o problema da ilicitude do comportamento. Só quando a totalidade dos elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela conduta. Por isso, numa palavra, o conhecimento da realização do tipo objectivo de ilícito constitui o sucedâneo indispensável para que nele se possa ancorar uma culpa dolosa e a punição do agente a esse título. Com a consequência de que sempre que o agente não represente, ou represente erradamente, um qualquer dos elementos do tipo de ilícito objectivo o dolo terá, desde logo, de ser negado (…). Fala-se a este respeito, com razão, de um princípio de congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito doloso.»
Em termos probatórios, o dolo, enquanto facto interior, se não admitido pelo agente, deduzir-se-á dos factos objectivos revelados pela conduta daquele.
No caso, perante o comportamento do menor e reacção do arguido, seu avô, julgados provados, não se vislumbra que este tenha actuado com finalidade educativa, traduzindo-se antes o seu comportamento numa descarga emocional da impaciência que o assolava, perante as brincadeiras do menor e seu amigo e falta de obediência dos mesmos aos seus apelos, sendo que infligir um estalo numa criança de 6 anos que o deixa com a cara marcada durante algumas horas se afigura manifestamente desproporcional, ultrapassando o que poderia considerar-se adequado e justificado e constituindo verdadeira agressão física, merecedora de censura penal.
Por outro lado, o menor encontrava-se entregue ao seu pai, com quem tinha ido passar o dia no âmbito do regime de visita estipulado no processo de regulação das responsabilidades parentais (n.º 1 dos factos considerados provados), e o pai do menor encontrava-se em casa, apenas se tendo ausentado momentaneamente da sala (segundo declarou, para ir à casa de banho), não se afigurando assim que, em tais circunstâncias, tivesse sido transferido para arguido o mencionado poder/dever de educação.
Perante a factualidade julgada provada, é manifesto que o arguido quis e logrou agredir o seu neto com um estalo na cara, causando-lhe dor física, visando com tal comportamento que o mesmo acatasse de imediato as ordens que estava a dar-lhe no sentido de deixar de brincar com os pés.
Tal comportamento afigura-se manifestamente excessivo e desproporcionado e não se mostra revestido de qualquer finalidade educativa, para além de ter sido adoptado por alguém que, nas circunstâncias concretas em que agiu, não detinha qualquer poder/dever de correcção sobre o menor.
Não poderia, pois, o arguido ter agido como agiu.
Na verdade, qualquer normal cidadão dotado de uma recta consciência ética e social, não desconhece que comportamento como o adoptado pelo arguido para com o seu neto, menor de 6 anos de idade, nas circunstâncias concretas em que foi adoptado, não é permitido e viola os valores éticos de respeito e liberdade que devem nortear as relações entre familiares, concretamente entre adultos e crianças, e é penalmente punido.
De facto, existe hoje uma consciência comunitária de que todas as formas de violência sobre as crianças são socialmente inaceitáveis.
O arguido bem sabia que, nas circunstâncias concretas em que os factos decorreram, não podia agir como agiu e daí que, sem sequer assumir a prática dos factos julgados provados, acabou por admitir ter dado um carolo ao seu neto, afirmando, no entanto, tê-lo feito por “brincadeira”. Assim, nem sequer alegou o arguido que deu o carolo ao seu neto com qualquer intuito correctivo, mas sim “por brincadeira”, muito embora decorra das suas declarações que agiu como agiu porque os apelos verbais que fizera ao seu neto e amigo não lograram conseguir que os menores deixassem de brincar.
Mas os factos julgados provados são outros e deles resulta que o arguido procurou terminar com as brincadeiras dos menores à mesa e, não tendo conseguido impor sua vontade através dos apelos verbais que fez às duas crianças, recorreu à imposição de dor física, agredindo com um estalo o seu neto, o que quis e conseguiu.
Ora, como dissemos, mostra-se actualmente enraizada na consciência ético-social portuguesa a proibição, e consequente punibilidade, de condutas que recorram à violência sobre as crianças, o que o arguido não desconhecida.
Nestes termos, analisando os fundamentos do recurso, verifica-se que o Recorrente não indica qualquer prova que obrigue a decisão de facto diferente da adoptada pelo Tribunal a quo, questionando tão só a credibilidade atribuída por aquele a determinada prova em detrimento de outra e a conclusão fáctica que, quanto ao dolo, retirou dos factos objectivos considerados provados.
Porém, embora este Tribunal da Relação tenha poderes para alterar a matéria de facto, nos termos previstos nos art.ºs 428.º e 431.º, alínea b), do C.P.P., não pode sindicar a valoração das provas feita pelo Tribunal a quo no sentido de o criticar por ter atribuído credibilidade a uma testemunha ou a um arguido ou por ter dado prevalência a determinada prova em desfavor de outra, a não ser que haja erros de julgamento e as provas imponham outra decisão de facto.
Analisando a prova produzida, nada nela indica que tenha havido qualquer erro de julgamento, não se vislumbrando igualmente qualquer prova que impusesse decisão distinta da adoptada quanto aos mencionados factos.
As provas produzidas e designadamente as transcrições das declarações prestadas pelo arguido e constantes da motivação do recurso não impõem que a resposta dada aos factos n.ºs 3 e 4 da factualidade julgada provada seja diferente da consignada pelo Tribunal a quo, sendo que, nos termos previstos no art.º 412.º, n.º 3, alínea b), do C.P.P., só se a prova produzida impusesse uma conclusão de facto diferente é que o Tribunal de recurso poderia alterar a decisão da matéria de facto tomada pela primeira instância.
Lendo a decisão recorrida, designadamente a factualidade julgada provada e não provada e o exame crítico das provas produzidas, verifica-se que o Tribunal a quo seguiu um processo de convicção lógico e racional, analisando toda a prova produzida com distanciamento e objectividade, mostrando-se as conclusões fácticas escoradas nas provas produzidas e em consonância com estas e sem qualquer violação das regras da lógica e da experiência comum.
O Tribunal a quo, na fundamentação da matéria de facto explicou, com clareza e de forma detalhada, o caminho lógico que percorreu para dar como provada aquela matéria e esse caminho afigura-se razoável e corresponde a uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência. E o Tribunal a quo afastou também, fundadamente, qualquer causa de exclusão da ilicitude do facto ou da culpa.
Por outro lado, olhando a decisão recorrida não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha ficado na dúvida quanto a qualquer facto considerado provado.
Com efeito, não vislumbramos na sentença recorrida, quer na matéria de facto dada como provada, quer na sua fundamentação, que, ao fazer esta opção fáctica, o Tribunal a quo tenha tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova.
Não teve qualquer dúvida e também não vemos que a devesse ter tido.
Assim, verificando-se que as provas indicadas pelo Recorrente não impõem decisão diferente da proferida, verifica-se igualmente que o que o recorrente realmente discute é a apreciação que o Tribunal fez da prova produzida e as conclusões fácticas que da mesma retirou, procurando abalar a convicção assumida pelo Tribunal a quo, questionando a relevância dada às declarações dos dois menores, da assistente e demais testemunhas, contrapondo as suas convicções à do Tribunal recorrido para concluir que a prova foi mal apreciada.
Porém, tendo o Tribunal formado a sua convicção com base em provas não proibidas, o respeito pelo princípio da livre apreciação da prova impõe que, em detrimento da convicção formulada pelo recorrente, prevaleça a convicção que da prova retirou o julgador.
Na verdade, e conforme podemos ler no Ac. do TRP de 19.03.2003, Proc. nº 0310070, relatado por Fernando Monterroso, in www.dgsi.pt, sendo «indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Isto é assim mesmo quando, como nestes autos, houver documentação da prova. De outra maneira seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.
É este, por excelência, o campo de aplicação do princípio da livre apreciação da prova. Tendo a prova sido produzida oralmente e com imediação perante os juízes, não se demonstrando, perante os depoimentos transcritos, nomeadamente do co-arguido … que as conclusões a que o tribunal chegou colidem com as regras da experiência, nenhuma razão existe para alterar a matéria de facto fixada.
Ao atacar a decisão da matéria de facto, pela via dum diferente juízo sobre a credibilidade dos depoimentos, o recorrente põe em causa o princípio da livre apreciação da prova.»
Deste modo, sendo os factos dados como provados na sentença recorrida conclusões lógicas da prova produzida em audiência e plausíveis face a essas provas, a convicção assim formada pelo julgador não pode ser censurada, sob pena de violação do princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, consagrado no art.º 127.º do C.P.P.
Improcede, pois, o recurso interposto pelo Ministério Público.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se integralmente a douta sentença recorrida.
Sem custas.
Elaborado em computador e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º, n.º 2, do C.P.P.)