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CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
COIMA
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
CULPA
ELEMENTO SUBJECTIVO
Sumário
I – Nas contra-ordenações laborais constitui pressuposto da recorribilidade da decisão judicial de absolvição ou arquivamento, que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a 25 UC, ou valor equivalente ou que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público. II – Esse montante deve aferir-se em função e em relação a cada coima parcelar, e não em função da coima única aplicada. III – No âmbito do direito de mera ordenação social a culpa traduz-se num juízo de censura de violação de um dever legal. IV – O elemento subjetivo do tipo contraordenacional tem de ser analisado sob um ponto de vista flexível e adequado às concretas circunstâncias do caso, resultando de factos concretos imputados à arguida que levem à conclusão de que a mesma atuou de forma negligente ou dolosa. (Sumário da relatora)
Texto Integral
P.2792/16.6T8PTM.E1
Recurso Penal
Relatora: Paula do Paço
Adjunto: Moisés Silva
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora
I. Relatório
BB, Ldª, impugnou judicialmente a decisão proferida pela Autoridade para as Condições do Trabalho (doravante designada por ACT), que lhe aplicou a coima única de € 9.384,00 (nove mil, trezentos e oitenta e quatro euros), pela prática de: uma contraordenação leve, por violação ao disposto no artigo 18.º, n.º 2, alínea a) da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, conjugado com o artigo 6.º, n.º 1 do Regulamento (CE) n.º 561/2006, de 15 de março; duas contraordenações laborais muito graves, por violação ao disposto no artigo 20.º, n.º 2, alínea c) da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, conjugado com o artigo 8.º, n.º 2 do Regulamento (CE), n.º 561/2006, de 15 de março; e uma contraordenação laboral muito grave, por violação ao disposto no artigo 18.º, n.º 2, alínea c) da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, com referência ao artigo 6.º, n.º 1 do Regulamento (CE) nº 561/2006, de 15 de março.
Foi proferida decisão ao abrigo do artigo 39.º, n.º 2 da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro que, a título de questão prévia, apreciou o tema da nulidade da decisão administrativa, julgando-a verificada, com o consequente determinação do arquivamento dos autos.
Não se conformando com o decidido, veio o Ministério Público interpor recurso de tal decisão, rematando as suas alegações com as conclusões que se transcrevem:
«1. A ACT decidiu, em 13 de outubro de 2016, condenar a arguida “BB, Lda.” na coima única de € 9.384,00, pela prática de quatro contraordenações.
2. A arguida impugnou judicialmente aquela decisão.
3. Nos termos previstos no artº 39º nº1 e nº2, do RPCLSS, a Mma. Juíza “a quo” decidiu a impugnação através de simples despacho por considerar não ser necessária a audiência de julgamento e por a arguida e o Ministério Público não se terem oposto.
4. A Mma. Juíza a quo considerou que a decisão administrativa não cumpre os requisitos formais que o artº 58º do RGCO estabelece, designadamente na descrição dos factos, a qual deve conter os elementos objetivos e subjetivos da contraordenação – os factos narrados na decisão devem ser os suficientes para deles se extrair a subsunção nos elementos objetivos da norma típica e o dolo e/ou a negligência e, consequentemente, concluiu que a decisão administrativa padece de nulidade, porquanto viola o disposto no referido artº 58º, ao não incluir, nos factos imputados ao agente, a narração das circunstâncias objetivas e subjetivas da sua atuação e ao não contextualizar, com factos concretos, o comportamento imputado à recorrente.
5. Tendo em consideração que a apresentação dos autos ao juiz, nos termos do artigo 37º do RPCLSS, vale como acusação, a Mma. Juíza a quo:
5.1. Considerou que a decisão proferida pela autoridade administrativa não contém os elementos necessários para que possa ser judicialmente apreciada a responsabilidade contraordenacional da arguida/recorrente – por outras palavras, e usando a formulação legal pertinente, considerou-a manifestamente infundada; e
5.2. Em conformidade com o disposto no artigo 39º, nº3, do RPCLSS, determinou o arquivamento dos autos, sem os reenviar à Autoridade para as Condições do Trabalho.
6. Embora se aceite que a decisão administrativa não corresponde a uma decisão perfeita que obedece a todas as formalidades e requisitos que o Código de Processo Penal exige para as sentenças, não concordamos que essas insuficiências sejam razão suficiente para pôr termo ao processo, determinando o seu arquivamento, sem possibilitar que a autoridade administrativa sane as imperfeições e complemente as lacunas que impediram o tribunal de julgar a causa.
7. Tal como foi decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.10.2012 (Processo nº 14/12.8TBSEI.C1, relator Jorge Jacob) “no processo de contraordenação, em sede de fundamentação da decisão administrativa não é de exigir o rigor formal nem a precisão descritiva que se exige numa sentença judicial”.
8. Se não se exigir da decisão administrativa o rigor formal e a precisão descritiva que se impõe para uma sentença, verifica-se que, ao invés do que se considerou no douto despacho recorrido, a decisão condenatória proferida pela ACT encontra-se razoavelmente fundamentada, de harmonia com o disposto no artº 25º, nº1, alínea b), do RPCLSS, e com o disposto no artigo 58º, nº1, alínea b), do RGCO, não estando a descrição factual incompleta ao ponto de não permitir compreender o objeto do processo e impedir a realização de um julgamento, uma vez que ao longo daquela decisão constam todos os elementos do tipo relativo a cada uma das infrações laborais em causa.
9. Mesmo quanto aos factos relativos ao elemento subjetivo, que a douta sentença recorrida diz serem completamente omissos, verifica-se que efetivamente não constam na decisão administrativa quaisquer elementos dados como provados. Porém, incluído na “Motivação”, a autoridade administrativa fez constar da sua decisão que “a arguida, mesmo tendo conhecimento e sabendo que não estava a ser respeitado o descanso mínimo diário do trabalhador, exigia que o trabalho fosse executado, pois o que estava em causa era a conclusão das obras a seu cargo, não se compadecendo do cansaço de um trabalhador que no mesmo dia conduziu 22H16, pondo em risco a sua própria vida, dos demais trabalhadores, dos que circulam nas estradas, do veículo e da carga.
Mesmo assim, a arguida exigiu que cumprissem as suas ordens, contrariando as prescrições regulamentares sobre a matéria e violando os tempos de repouso diário merecidos e devidos aos seus trabalhadores.” .
10. Admite-se que não seja uma forma perfeita de descrição factual para imputar a responsabilidade das infrações à arguida a título de negligência. Mas é evidente que não se pode afirmar que a arguida, ao ler aquela decisão, não percebeu a factualidade cuja prática lhe foi imputada de forma a impedir a sua defesa. Da mesma forma temos dificuldade em considerar que os referidos elementos não eram suficientes a ponto de o Tribunal considerar a acusação como manifestamente infundada.
11. Acresce que, tal como foi decidido no douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06.01.2004 (Processo nº 2493/03-2, relator Chambel Mourisco) a matéria relacionada com o elemento subjetivo, principalmente quando a recorrente da decisão administrativa centra a sua impugnação judicial sobre essa questão, pode ser aferida e decidida pelo tribunal na sequência do julgamento onde os factos podem ser apurados através da inquirição das testemunhas e pelo exame crítico das restantes provas.
12. Parece-nos, por isso, que a acusação deveria ter sido recebida com base na referida factualidade descrita na decisão administrativa, a qual, não sendo perfeita, mostra-se suficiente.
13. Como refere João Soares Ribeiro[1], “a decisão judicial, só no caso extremo de absoluto desaproveitamento das diversas peças dos autos, é que deverá concluir pelo seu arquivamento. Achamos, pois, que a decisão judicial não deverá ser de mera confirmação ou anulação da decisão administrativa. Mas, antes, deve procurar sempre ser de plena jurisdição. Ainda que o tribunal entenda que há nulidade dessa decisão, sendo elas sanáveis, deverá saná-las e proceder ao julgamento da infração”.
14. Efetivamente o arguido tem a possibilidade de suscitar a discussão de toda a matéria constante da decisão administrativa no julgamento, pelo que qualquer insuficiência daquela decisão em matéria de fundamentação, seja de facto, seja de direito, perde relevância por efeito da impugnação judicial. Ao realizar um julgamento e apreciar todas as provas, o tribunal irá conhecer de todos os factos relevantes, dar-lhes-á o enquadramento que considerar correto e decidirá o caso, com observância de todas as formalidades da fase judicial, pelo que as garantias de defesa do arguido ficarão, em qualquer caso, salvaguardadas.
15. Assim sendo, e salvo melhor entendimento, não deveria a Mma. Juíza a quo ter considerado nula a decisão administrativa de aplicação da coima à arguida e a acusação em que a mesma se converteu. Ao fazê-lo, violou o disposto no artigo 25º, nº1, do RPCLSS e o artº 311º, nº2, alínea a) e nº3 alínea b) do Código de Processo Penal e consequentemente o disposto nos artigos 39º e segs. do RPCLSS
16. Apela-se por isso a V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, no sentido de que revoguem a douta sentença recorrida, substituindo-a por outra que determine a realização do julgamento (na sequência da impugnação judicial da decisão administrativa), considerando que os factos apurados pela autoridade administrativa no decurso do procedimento contraordenacional – nomeadamente os factos acima descritos – são suscetíveis de integrar os elementos objetivos e subjetivos dos tipos contraordenacionais em questão.
17. Caso, ao contrário do que entendemos, V. Exas. considerem que a decisão administrativa e, por arrastamento, a acusação estão feridas de nulidade, entendemos que a solução também não deve ser o arquivamento definitivo dos autos, como foi decidido com a douta sentença recorrida, com a consequente absolvição da arguida.
18. Decretada a nulidade da decisão administrativa, o juiz não pode absolver o arguido e determinar o arquivamento dos autos, devendo antes ordenar o envio do processo para a entidade administrativa a fim de serem supridas as omissões que estão na origem da nulidade [assim tem sido decidido em vasta jurisprudência, designadamente no Ac. da RL de 27.01.2004 (Processo nº 10583/2003-5, relatora Filomena Lima), no Ac. da RE de 03.12.2009 (Processo nº 2768/08.7TBSTR.E1, relator Carlos Berguete Coelho), no Ac. da RE de 28.10.2008 (Processo nº 1441/08-1, relator João Gomes de Sousa), no Ac. da RE de 22.04.2010 (Processo nº 2826/08.8TBSTR.E1, relator Gilberto Cunha), no Ac. da RE de 25.09.2012 (Processo nº 82/10.7TBORQ.E1, relator João Amaro), no Ac. do STA de 20.06.2007 (Processo nº 0411/07, relator Brandão de Pinho), no Ac. do STA de 30.04.2013 (Processo nº 01418/12, relator Casimiro Gonçalves) e no Ac. do STA de 08.05.2013 (Processo nº 0655/13, relator Francisco Rothes)].
19. Concluindo-se que a decisão administrativa enferma de vícios que se traduzem numa nulidade, os efeitos desta são apenas os constantes do artº 122º do Código de Processo Penal, pelo que, em obediência a este preceito legal, competia ao Tribunal declarar a nulidade da decisão recorrida e determinar o reenvio do processo para a autoridade administrativa proferir nova decisão, suprindo as deficiências indicadas e deste modo respeitar cabalmente o disposto no artº 58° do RGCO.
20. Assim, ao não devolver os autos à ACT, o Tribunal violou o disposto no artº 122° do Código de Processo Penal.
21. Apela-se, por isso, a V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, que, caso não entendam que a decisão administrativa, convertida em acusação, contém uma descrição dos factos suficiente para não ser considerada nula, pelo menos decidam revogar o douto despacho recorrido na parte em que ordenou o arquivamento dos autos, determinando antes a remessa do processo de contraordenação à autoridade administrativa para prolação de nova decisão que respeite os requisitos indicados no artº 58° do RGCO, evitando que se mande a arguida em paz, como se a mesma tivesse sido absolvida ou tivesse beneficiado de uma qualquer causa de extinção da responsabilidade contraordenacional, o que não foi o caso dos autos.
Nestes termos, nos demais de direito aplicáveis e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser concedido provimento ao recurso ora interposto, revogando-se a douta decisão recorrida, substituindo-a por outra nos termos anteriormente referidos.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Admitido o recurso, os autos subiram ao Tribunal da Relação.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta tendo dado por reproduzidas as conclusões apresentadas no recurso, propugnou pela procedência do mesmo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Questão Prévia
Preceitua o artigo 49.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, sob o título “Decisões judiciais que admitem recurso”.
«1-Admite-se o recurso para o Tribunal da Relação da sentença ou do despacho judicial proferido nos termos do artigo 39.º, quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa competente tenha aplicado uma coima superior a 25 UC ou valor equivalente, ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 39.º. 2- Para além dos casos enunciados no número anterior, pode o Tribunal da Relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da decisão quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência. 3- Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infrações ou a vários arguidos e se apenas quanto a algumas das infrações ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobre com esses limites».
No caso dos autos, mostra-se aplicável a alínea c) do n.º 1 do artigo.
Este normativo exige como pressuposto da recorribilidade da decisão judicial de absolvição ou arquivamento, que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a 25 UC, ou valor equivalente ou que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público.
Por força da coima única concretamente aplicada, poderia parecer que a decisão recorrida era, na totalidade, suscetível de recurso, ao abrigo da mencionada alínea.
Contudo, uma interpretação sistemática do preceito, leva-nos a considerar que a referida alínea c), tal como a alínea a) do n.º 1 do artigo 49.º, respeita a coimas parcelares.
Sobre a temática, pode ler-se no Acórdão da Relação do Porto, de 15/10/2012, P. 602/11.0TTGMR.P1, disponível na base de dados da dgsi, e que não obstante se reporte à alínea a) do preceito, a sua fundamentação tem aplicação à alínea c): «o legislador, ao dispor, como dispôs, no n.º 3 do art.49.º da Lei 107/2009, de 14.09, não poderia deixar de saber que, contemplando a decisão condenatória várias infrações, estas não poderiam deixar de ser objeto de cúmulo jurídico e, por consequência, da aplicação de uma coima única encontrada a partir das coimas parcelares correspondentes a cada uma das infrações cometidas, pelo que a citada norma reporta-se ao valor da coima parcelar”.
No caso dos autos, a coima parcelar aplicada pela ACT à contraordenação imputada no processo n.º 311600239 é inferior a 25 UC, dado que o seu montante é de € 816,00.
As demais coimas parcelares aplicadas são, cada uma, no montante de € 2.856,00, mostrando-se, pois, superiores, a 25 UC.
Deste modo, o recurso apenas é admissível quanto às contraordenações em que foram aplicadas coimas parcelares superiores a 25UC.
Porém, porque o artigo 49.º, n.º 3 da Lei nº 107/2009, tem por base o princípio da cindibilidade consagrado no artigo 403.º do Código de Processo Penal, nada impede que, em conferência, se rejeite algumas das pretensões deduzidas no recurso, prosseguindo o recurso quanto às demais.
Assim, rejeita-se o recurso, com referência à contraordenação imputada no processo n.º 311600239, admitindo-se o mesmo com referência às demais contraordenações imputadas pela entidade administrativa.
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III. Objeto do recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 41.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO) e artigos 50.º, n.º 4 e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro.
Em função destas premissas, as questões suscitadas no recurso, podem equacionar-se como sendo as seguintes:
1ª Não verificação da nulidade da decisão administrativa;
2.ª Na eventualidade de se considerar nula tal decisão, apreciar o visado reenvio do processo à ACT.
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IV. Matéria de Facto
Neste âmbito, releva o que consta do anterior relatório, bem como o teor da decisão proferida pela ACT reproduzido no excerto da decisão recorrida que se transcreve mais adiante.
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V. Fundamentação
O tribunal de 1.ª instância considerou a decisão proferida pela ACT nula, por manifestamente infundada e, em consequência, determinou o arquivamento dos autos.
Pode ler-se na fundamentação da sentença: «Com efeito, a decisão administrativa que, no âmbito deste recurso, vale como acusação (vd. artigo 62º do D.L. nº 433/82 de 27 de outubro, artigo 37º do Regime Processual Aplicável às Contraordenações Laborais e de Segurança Social aprovado pela Lei nº 107/2009, de 14 de setembro, e Manuel Ferreira Antunes, Reflexões sobre o Direito Contraordenacional, SPB Editores, Lisboa, 1997, pág. 99), não pode ser omissa quanto à integração de todos os elementos típicos. Não havendo a alegação de factos, não é possível ao Tribunal suplantar a falta de quem tem esse “ónus” e procurar indagá-los, de modo a permitir a imputação ao agente de uma contraordenação. E na verdade, esse “ónus de alegação” é mais uma obrigação legal para a autoridade administrativa, tal como resulta dos já citados artigo 58º, nº 1, alínea b), do D.L. nº 433/82, de 27 de outubro e artigo 25º, nº 1, alínea b), do Regime Processual Aplicável às Contraordenações Laborais e de Segurança Social aprovado pela Lei nº 107/2009, de 14 de setembro, em que se prevê que, como requisitos mínimos, indispensáveis, a decisão condenatória deverá conter “a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas”. Naturalmente, essa descrição dos factos deve conter os elementos objetivos e subjetivos da contraordenação – os factos narrados na decisão devem ser os suficientes para deles se extrair a subsunção nos elementos objetivos da norma típica e o dolo e/ou a negligência. Os requisitos formais que o artigo 58º do RGCO estabelece têm de ser cumpridos exatamente com o mesmo rigor que é exigido aos juízes no cumprimento dos requisitos que os códigos de processo impõem para as sentenças ou despachos. O direito processual é para ser cumprido por todos, não gozando a Administração Pública de qualquer privilégio neste domínio. Ao nível do elemento subjetivo, não é a circunstância de os factos subjetivos apenas poderem ser, normalmente, objeto de prova indireta, que dispensa a sua descrição na decisão administrativa condenatória, nos termos gerais. No caso concreto, é a seguinte a descrição dos factos considerados provados que consta da decisão administrativa: - No dia 19/11/2015, pelas 08h27, a ora infratora tinha a circular na IC1, km 721,3, S.B. Messines, Silves, Comarca de Faro, o veículo pesado de mercadorias, com a matrícula …, conduzido por …, com a categoria profissional de motorista de veículos pesados de mercadorias, atendendo ao MQP da empresa, conforme auto de contraordenação constante de fls. e segs. - O referido veículo foi, na referida data, alvo de fiscalização efetuada pela GNR, tendo o agente fiscalizador verificado que, o condutor não respeitou os períodos máximos de condução, tendo excedido o tempo de condução alargado, sendo que iniciou um período de condução às 08H13 do dia 03/11/2015, tendo conduzido até às 06H25 do dia 04/11/2015, tendo somado um período de condução efetiva de 10H18. - No dia 02/03/2016, pelas 07h52, a ora infratora tinha a circular na A22, km 31, Área de Serviço de Silves, Comarca de Faro, o veículo pesado trator de mercadorias, com a matrícula …, conduzido por …, com a categoria profissional de motorista de veículos pesados de mercadorias, atendendo ao MQP da empresa, conforme auto de contraordenação constante de fls. e segs. - O referido veículo foi, na referida data, alvo de fiscalização efetuada pela GNR, tendo o agente fiscalizador verificado que: - na jornada do dia 22/02/2016 iniciou a jornada de trabalho pelas 08H50, tendo continuado até às 22H59, vindo a iniciar nova jornada no dia 23/02/2016, pelas 00H23, até às 17H41, pelo que o condutor não beneficiou do repouso diário de pelo menos 09H00 consecutivas, tendo o repouso sido de 1H24m. - na jornada do dia 23/02/2016 iniciou a jornada de trabalho pelas 00H23, tendo continuado até às 17H41, vindo a iniciar nova jornada no dia 24/02/2016, pelas 00H16, pelo que o condutor não beneficiou do repouso diário de pelo menos 09H00 consecutivas, tendo o repouso sido de 6H35m. - na jornada do dia 22/02/2016 iniciou a jornada de trabalho pelas 08H50 e terminada no dia 24/02/2016 pelas 16H57, excedeu o período de condução alargado em 12h16, tendo conduzido por 22H16 sem beneficiar de qualquer período de descanso diário. - Os dois condutores fiscalizados trabalham para a empresa há mais de 20 anos, conforme se confirma pela verificação do MQP da empresa, afirmaram nunca terem recebido formação sobre os tempos de condução e de repouso, a que diz respeito o Regulamento (CE) 561/2006, por parte da entidade empregadora. (…) perante o transcrito acervo «factual», salta à vista que a caracterização do elemento subjetivo da infração alegadamente cometida se mostra totalmente ausente da matéria elencada como provada na decisão administrativa (sendo certo que não foram elencados quaisquer factos não provados). Ora, como já tantas vezes referimos, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas atuar sem se conformar com essa realização; ou b) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto. (…) Não basta, por isso, para a integração da negligência a mera existência de um resultado e uma qualquer referência ao dever de conhecer a lei. Ora, na decisão, não se descrevem factos a partir dos quais se possa inferir a imputação subjetiva da ora recorrente. Na verdade, mais adiante, a propósito da «motivação», consignou a autoridade administrativa que: “Ora, a arguida, mesmo tendo conhecimento e sabendo que não estava a ser respeitado o descanso mínimo diário do trabalhador, exigia que o trabalho fosse executado, pois o que estava em causa era a conclusão das obras a seu cargo, não se compadecendo do cansaço de um trabalhador que no mesmo dia conduziu 22H16, pondo em risco a sua própria vida, dos demais trabalhadores, dos que circulam nas estradas, do veículo e da carga. Mesmo assim, a arguida exigiu que cumprissem as suas ordens, contrariando as prescrições regulamentares sobre a matéria e violando os tempos de repouso diário merecidos e devidos aos seus trabalhadores.” Estas considerações não têm nos factos considerados provados qualquer apoio, já que dos mesmos nada consta a este respeito. Com efeito, e mais uma vez o dizemos, deveria a autoridade administrativa ter feito constar da decisão por si elaborada, no segmento referente aos factos que considera provados, os factos a partir dos quais resulta a responsabilidade objetiva e subjetiva da arguida/recorrente. Mesmo quando se considere que a imputação subjetiva resulta de presunção legal, constituindo ónus do infrator a elisão de tal presunção (como parece ser defendido na decisão administrativa em apreço), ainda assim importa mencionar, a propósito dos factos provados que justificam a condenação, a que título são os mesmos imputados ao agente (dolo ou negligência) e de que elementos (de facto) resulta tal conclusão. Por outro lado, não é indiferente que a conduta do infrator preencha o elemento subjetivo do dolo ou da negligência, não sendo correto afirmar que, quando um não exista, necessariamente existirá o outro. O elemento subjetivo, repete-se, carece de factos que o demonstrem, e que têm que estar expressamente consignados na matéria de facto considerada provada, sob pena de não poderem ser adequadamente sindicados – como acontece no caso vertente. Assim, é forçoso concluir que a decisão administrativa padece de nulidade, porquanto viola o disposto no artigo 58º, nº 1 do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de outubro, ao não incluir, nos factos imputados ao agente, a narração das circunstâncias objetivas e subjetivas da sua atuação e ao não contextualizar, com factos concretos, o comportamento imputado à recorrente, assim criando, para além de dificuldades ao exercício da cabal defesa da recorrente, a impossibilidade de uma criteriosa verificação judicial dos factos.»
Analisemos a questão.
A noção de contraordenação laboral mostra-se consagrada no artigo 548.º do Código do Trabalho:
«Constitui contraordenação laboral o facto típico, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito de relação laboral e que seja punível com coima.»
Esta norma é aplicável in casu ,por força da remissão prevista no artigo 12.º da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto,
A especificidade de tal noção incide na circunstância do facto típico, ilícito e censurável ser praticado por um “qualquer sujeito no âmbito de relação laboral” e reportar-se à violação de normas que consagrem direitos ou imponham deveres, por natureza, laborais.
De resto, o conceito pressupõe os elementos que caracterizam genericamente a figura da contraordenação: facto típico (elemento material), culpabilidade (elemento moral) e punibilidade (elemento sancionatório)[2].
Para a situação em apreço nos autos, interessa-nos apreciar o elemento culpa (elemento subjetivo) da contraordenação, com vista a determinar se o tribunal de 1.ª instância errou ao considerar que o mesmo não constava da decisão administrativa e, por decorrência, não constava da acusação.
Conforme explica João Soares Ribeiro[3], no domínio do direito contraordenacional laboral não está em causa uma culpa dirigida à censura ético-pessoal e subjetiva, própria da culpa jurídico-penal, mas apenas a imputação do facto à responsabilidade social do seu autor.
Este conceito de culpa (censura social), emerge da essência do direito de mera ordenação social.
É consabido que o direito de mera ordenação social corresponde a uma censura de natureza social e administrativa distinta da que está subjacente ao direito criminal.
Esta distinção era já defendida pelo Prof. Eduardo Correia[4], daí que não surpreenda que este Ilustre Jurista tenha aproveitado a circunstância de ter exercido funções como Ministro da Justiça (1978/1979), para introduzir em Portugal o direito de mera ordenação social, por via do Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho. «O ilícito de mera ordenação social corresponde a uma censura de natureza social e administrativa cujo fundamento dogmático é a subsidiariedade do Direito Penal e a necessidade de sancionar comportamentos ilícitos mas axiologicamente neutros. Do ponto de vista teleológico, as contraordenações são uma medida de proteção da legalidade, o que justifica a maior flexibilidade na análise dos pressupostos da imputação, designadamente da culpa, que é diferente da culpa penal.»[5].
O tradicional conceito de culpa acolhido no direito penal, radica na consciência e na vontade, atributos característicos do homem, muito embora atualmente já se tenha avançado para a aceitação da responsabilização criminal das pessoas coletivas em certos tipos penais.
Já no âmbito do direito de mera ordenação social a culpa traduz-se num juízo de censura de violação de um dever legal.
E esse elemento subjetivo do tipo contraordenacional tem de ser analisado sob um ponto de vista flexível e adequado às concretas circunstâncias do caso, resultando de factos concretos imputados à arguida que levem à conclusão de que a mesma atuou de forma negligente ou dolosa (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 12/12/2011, P. 874/10.7TTVCT.P1).
Na situação dos autos, consta da decisão administrativa que nos dias, horas e locais identificados nos factos assentes, a recorrida (arguida) tinha a circular veículo pesado de mercadorias, conduzido por trabalhador subordinado, sem que tenham sido observados os períodos legais de descanso diário e de tempo máximo de condução previsto.
Resulta do estipulado nos n.ºs 1 e 2 do artigo 13.º da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto {regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo de utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário], que a empresa é responsável por qualquer infração cometida pelo condutor, responsabilidade esta que apenas será excluída se a empresa demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor pudesse cumprir os regulamentos respeitantes aos transportes rodoviários identificados no preceito.
O elemento subjetivo dos ilícitos contraordenacionais imputados resulta, pois, da omissão do dever de cuidado da empresa na organização do serviço dos condutores por forma a observarem as normas previstas nos regulamentos.
Na concreta descrição dos factos imputados, as circunstâncias narradas imputam uma organização do trabalho do motorista desconforme à legalidade imposta, não por intenção deliberada e consciente, mas por falta do cuidado devido.
Ou seja, a materialidade descrita comporta a acusada omissão do referido dever de cuidado imputável à empresa.
Ora, a negligência consubstancia-se precisamente na falta do cuidado devido, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei (artigo 15.º do Código Penal).
Deste modo, a descrição dos factos comporta o negligente comportamento omissivo imputado.
Por conseguinte, não acompanhamos a 1.ª instância ao decidir que a entidade administrativa violou o artigo 58.º, n.º 1 do Decreto-Lei 433/82, de 27 de outubro, bem como o artigo 25.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 107/2009. As circunstâncias subjetivas da atuação estão contidas na fundamentação factual da decisão da ACT, pelo que a acusação nunca poderia ser considerada manifestamente infundada. Neste sentido, acórdão desta Secção Social, proferido em 13/07/2017, Proc.2411/16.0T8PTM.E1 [Relator: João Luís Nunes; Adjunto: Moisés Silva].
Nesta conformidade, impõe-se concluir pela revogação do despacho recorrido, devendo os autos prosseguir os trâmites legais, com realização da audiência de julgamento e posterior sentença, mostrando-se prejudicada a apreciação da segunda questão suscitada no recurso.
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VI. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso procedente e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, devendo os autos prosseguir os trâmites legais, com realização da audiência de julgamento e posterior sentença.
Sem custas, por não serem devidas.
Évora, 8 de novembro de 2017
Paula do Paço (relatora)
Moisés Silva__________________________________________________
[1] In “Contraordenações Laborais, Regime Jurídico”, 2011, 3ª Edição, pág. 83.
[2] António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, “Notas ao Regime Geral das Contraordenações e coimas”, 2.ª edição, pág. 27.
[3] “Contraordenações laborais-Regime Jurídico anotado no Código do Trabalho”, 2.ª edição, págs. 51 e segs.
[4] “Direito Criminal”, I, 1971, págs. 27 a 35 e 216/7.
[5] Parecer n.º 11/2013 da Procuradoria-Geral da República, publicado no Diário da República, n.º 178, 2,ª série, 16/9/2013 e acessível em www.dgsi.pt (Pareceres PGR)