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CÚMULO JURÍDICO DE PENAS
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário
I - No caso de o tribunal coletivo ser o “foro da última condenação”, será sempre esse o tribunal material e territorialmente competente para a elaboração do competente cúmulo jurídico superveniente.
II - No cômputo da pena única (ou conjunta), por reformulação de um cúmulo jurídico, por conhecimento superveniente de outros crimes, o tribunal deve considerar as penas parcelares aplicadas aos crimes em concurso.
Texto Integral
Processo n.º 208/17.0YREVR (autos de conflito negativo de competência)
I - O arguido A. foi condenado no âmbito do processo comum coletivo n.º 283/14.9T9BJA, que correu termos pelo Juízo Central Cível e Criminal de Beja – Juiz 3, por acórdão de 6 de Fevereiro de 2017 e pela prática em 24-11-2014 de um crime de perturbação do funcionamento de órgão constitucional, p. e p. pelo artigo 334.º, al. a), por referência ao n.º1 do artigo 333.º, ambos do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita ao regime de prova.
II - Já no âmbito do Processo Comum Coletivo n.º 29/13.9GCSRP, que tinha corrido termos no Juízo Central Cível e Criminal de Beja – Juiz 3, o arguido fora condenado, por acórdão proferido em 24-11-2014 e transitado em julgado em 26-12-2014, pela prática, no ano de 2013, de dois crimes de ofensas à integridade física qualificadas, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º1 e 145.º, n.º1, al. a) e 2,com referência ao artigo 132.º, n.º2, al. a), todos do Código Penal, e dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º n.º1 e 155.º, n.º1, al. a), ambos do Código penal, na pena única de 3 anos de prisão, correspondendo às penas parcelares de 2 anos de prisão, 1 ano e 6 meses de prisão, pelos crimes de ofensa à integridade física, e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos crimes de ameaça agravada.
III - Por seu despacho de 3 de Maio de 2017, o Meritíssimo Juiz 3 do Tribunal Central Cível e Criminal de Beja, considerou haver lugar a cúmulo jurídico das penas em concurso, mas declinou a competência do tribunal coletivo, por entender que o limite máximo da pena aplicável ao arguido se situa em 4 anos e 6 meses de prisão, tendo, em consequência, ordenado a remessa dos autos ao Juízo Local criminal de Beja.
IV - Recebidos os autos no Juízo Local Criminal de Beja, o Meritíssimo Juiz, por seu despacho de 21 de Junho de 2017, declinou a sua competência para realização do cúmulo jurídico, dizendo que, tendo os autos sido tramitados na fase de julgamento no Juízo Central Cível e Criminal de Beja – Juiz 3, onde veio a ser proferido acórdão, está salvaguardada a competência material do Juízo Central Criminal para a ulterior tramitação dos autos, incluindo o cúmulo jurídico resultante do concurso superveniente de crimes.
V - Ambas as decisões transitaram em julgado, como se certifica a fls.2.
Determinou-se a instrução do processo com elementos que foram considerados em falta.
Cumprido o disposto no art.º 36.º, n.º 1 do CPP, apenas o Ministério Público junto deste Tribunal da Relação se pronunciou, tendo emitido parecer no sentido de que a competência deve ser deferida ao juízo local criminal de Beja, nos termos conjugados do artigo 471.º, n.º1 e 14.º, n.º1 e 2 do CPP.
FUNDAMENTAÇÃO
Das certidões juntas aos autos resulta a factualidade supra elencada em I a V, com relevância para a decisão a proferir:
Apreciando e decidindo:
Com o presente incidente pretende-se, em síntese, obter decisão que resolva definitivamente a quem compete a realização do cúmulo jurídico que se impõe realizar.
O condenado tem direito a uma pena única, resultante da soma jurídica das penas (parcelares) correspondentes aos crimes por si cometidos, desde que concorram efetivamente entre si.
A realização do cúmulo jurídico de penas visa permitir que, num certo momento, se conheça da responsabilidade do arguido quanto a factos do passado, no sentido em que todos esses factos, caso fossem conhecidos e houvesse contemporaneidade processual, poderiam ter sido apreciados (e sobre eles proferida decisão) em conjunto (e num só processo ou num único momento).
O caso de cúmulo jurídico, por conhecimento superveniente de concurso de crimes, tem lugar quando posteriormente à condenação no processo de que se trata, o da última condenação, se vem a verificar que o agente, anteriormente a tal condenação, praticou outro ou outros crimes.
Como é dominantemente entendido, e resulta do novel AUJ n.º 9/2016, de 28-04-2016, publicado no DR, 1-ª Série, n.º111, de 9 de Junho de 2016, “O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso.”
O trânsito em julgado obstará a que com essa infração ou outras cometidas até esse trânsito, se cumulem infrações que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito, que funcionará assim como barreira excludente, não permitindo o ingresso no círculo dos crimes em concurso, dos crimes cometidos após aquele limite. [1]
Paulo Dá Mesquita, em Concurso de Penas, a págs. 45, defende igualmente que o trânsito em julgado da primeira das condenações é o pressuposto temporal do concurso de penas, o que se compreende, porque só depois do trânsito a condenação adquire a sua função de solene advertência ao arguido. O trânsito em julgado da primeira condenação é o momento determinante em que se fixa a data a partir da qual os crimes não estão em concurso com os anteriores para efeitos de cúmulo jurídico; só se podem cumular juridicamente penas relativas a infrações que estejam em concurso e tenham sido praticadas antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer delas, só sendo cumuláveis penas em concurso, pois o art. 78.º não pode ser interpretado cindido do art. 77.º do Código Penal - fls. 64/7.
Defende ainda que o sistema de cúmulo jurídico das penas deve ser aplicado somente nos casos de concurso de penas e já não nos de sucessão de penas, já que a generalização de tal sistema em todos os casos de pluralidade de penas traduzir-se-ia num perverter do sistema penal no seu todo dando-se carta branca a determinados agentes para a prática de novos crimes - fls. 65.
Em conclusão poderá dizer-se que o momento temporal decisivo para o estabelecimento de relação de concurso (ou a sua exclusão) é o do trânsito em julgado da primeira condenação, sendo esse o momento em que surge, de modo definitivo e seguro, a solene advertência ao arguido, pelo que, o cometimento de qualquer crime após esta solene advertência, quebra o concurso, não havendo já razão para esta pena ser englobada na pena única, tratando-se antes de uma situação de sucessão de crimes.
De facto, o trânsito em julgado de uma sentença condenatória delimita a conexão das condutas a considerar no concurso de crimes, ficando afastados do concurso os cometidos posteriormente.
É esta a jurisprudência que temos seguido.
No caso, as condenações sofridas pelo arguido e supra elencadas espelham a existência de uma relação de concurso de infrações em relação aos crimes apreciados nos processos supra mencionados, sendo que a última condenação ocorreu em 6 de Fevereiro de 2017, no processo comum coletivo n.º 283/14.9T9BJA.
Dispõe o art.º 471º, sob a epígrafe “Conhecimento superveniente do concurso”:
1 - Para o efeito do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 78.º do Código Penal é competente, conforme os casos, o tribunal colectivo ou o tribunal singular. É correspondentemente aplicável a alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, é territorialmente competente o tribunal da última condenação.
Fazendo apenas a interpretação literal do preceito, com extrema facilidade se conclui que a competência há-de ser deferida ao tribunal da última condenação. Da última condenação e não do último trânsito em julgado, reza o preceito legal. E o elemento histórico e teleológico aponta no mesmo sentido.
Como é sabido, são dois, em geral, os fatores interpretativos: o elemento gramatical, ou seja, o texto ou letra da lei e o elemento lógico que, por seu turno, se desdobra em três outros elementos: o elemento histórico, o elemento racional ou teleológico e o elemento sistemático. O ponto de partida e o limite da interpretação é dado pela letra da lei, mas sempre em ligação com o elemento lógico (“espírito da lei”).
O elemento histórico compreende todas as matérias relacionadas com a história do preceito, a evolução do instituto, as fontes da lei (textos legais ou doutrinais) e os trabalhos preparatórios. O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que visou e que pretende realizar. O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que fornecem o complexo normativo do instituto em que se integra a norma a interpretar, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o “lugar sistemático” que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. Sendo estes os factores hermenêuticos em geral, condensados no artigo 9.º do Código Civil, são eles também que hão-de presidir à interpretação em direito penal. O ponto de partida ou marco fundamental deve ser o sentido literal possível na linguagem corrente do texto da lei, devendo o juiz, dentro desse limite, interpretar a norma considerando o significado literal mais próximo, a concepção histórica do legislador, o fim da lei e o contexto normativo sistemático. (vide Ac. do STJ de 14.03.2013, Proc. 287/12.6TCLSB -L1.S1, in www.dgsi.pt.
Quando o legislador fala em “tribunal da última condenação” teve em mente implicar nele o tribunal que, justamente por ser o último a intervir em tempo e na cadeia das condenações, dispõe dos elementos de ponderação mais completos e atualizados.
Contudo, a regra do n.º 2 do artigo 471.º do CPP, atribuindo ao tribunal da última condenação a competência territorial em caso de conhecimento superveniente do concurso de penas, tem pressuposta a competência funcional do mesmo tribunal, que só existe quando este tiver aplicado uma das penas em concurso.
Quanto à fixação da competência territorial, se atentarmos que a efetivação da operação de cúmulo jurídico se traduz na realização de um “novo julgamento” (cf. art.º 472.º, do CPP) faz todo o sentido que o legislador tivesse imposto essa tarefa ao foro da “última condenação”.
A este propósito, refere-se no acórdão do STJ, de 6.01.2010 [proferido no processo n.º 98/04.2, 3ª secção, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira, publicado no sítio www.dgsi.pt.], que “…teve (o legislador) em mente implicar nele o tribunal que, justamente por ser o último a intervir em tempo e na cadeia das condenações, dispõe dos elementos de ponderação mais completos e actualizados, nomeadamente, quanto aos factos (…) e que, portanto, a todas as luzes, é o que está em melhor plano para colher a visão que se quer de panorâmica completa e actual do trajecto de vida do arguido, circunstância que, manifestamente, arreda qualquer interpretação restritiva daquela disposição processual”.
Assim, considerando os fundamentos subjacentes à atribuição da competência territorial ao tribunal da última condenação, só a incompetência material do tribunal singular pode desviar tal regra. E assim acontecerá, sendo o tribunal singular o da última condenação, o cúmulo será elaborado pelo tribunal coletivo se o arguido tiver sido anteriormente condenado em pena que somada à do tribunal singular exceda os cinco anos de prisão. O tribunal competente para elaborar o cúmulo jurídico será então o tribunal coletivo com competência territorial na área do tribunal singular (da última condenação). Mas, no caso de o tribunal coletivo ser o “foro da última condenação”, será sempre esse o tribunal material e territorialmente competente para a elaboração do competente cúmulo jurídico.
Em nome da unidade do sistema jurídico, o tribunal da última condenação, funcionando com composição plural ou como tribunal singular, conforme o caso, é o competente para a realização do cúmulo jurídico superveniente.
Aos juízos Centrais Criminais compete, além do mais, proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal coletivo (artigo 118.º, n.º1 do LOSJ), aqui se incluindo, enquanto tribunal da última condenação, a realização do cúmulo jurídico superveniente de penas por crimes em situação de concurso.
Por outro lado, no cômputo da nova pena única o tribunal deve considerar as penas parcelares aplicadas, sendo que, no caso, a pena única aplicável tem como limite máximo 6 (seis) anos de prisão (2 anos + 1 ano e 6 meses + 6 meses + 6 meses + 1 ano e 6 meses) e, como limite mínimo, a pena de 2 anos de prisão, correspondente à pena parcelar mais elevada – cf. art. 77.º, n.º2 do CP, aplicável por força do disposto no 78.º, n.º1 do mesmo diploma.
Não se parte, pois, da pena única fixada no processo n.º 29/13.9GCSRP, como foi considerado pelo Meritíssimo Juiz do Juízo Central Criminal de Beja.
Por isso, assiste razão ao Meritíssimo Juiz do Juízo Local Criminal de Beja.
DECISÃO
Termos em que, na resolução do conflito negativo de competência, se declara competente para a realização do cúmulo jurídico o processo da última condenação, ou seja o processo comum coletivo n.º 283/14.9T9BJA, do Juízo Central Criminal de Beja Juiz 3.
Cumpra, de imediato, o disposto no n.º 3 do artigo 36.º do Código de Processo Penal.
Dê conhecimento ao Juiz Presidente da Comarca de Beja.
Sem tributação.
(Texto processado informaticamente e integralmente revisto pelo relator)
Évora, 09 de Janeiro de 2018
Fernando Ribeiro Cardoso (Juiz Presidente da Secção Criminal)
__________________________________________________ [1] - Para efeito de aplicação de uma pena única, o limite determinante e intransponível da consideração da pluralidade de crimes é o trânsito em julgado da condenação que primeiramente tiver ocorrido por qualquer dos crimes anteriormente praticados –cf. Acs. do STJ de 02-06-2004, Proc. n.º 1391/04 - 3.ª, CJSTJ, 2004, tomo 2, pág. 217, e de 10-01-2007, Proc. n.º 4051/06 - 3.ª.
Apenas não há que proceder a cúmulo jurídico das penas quando os crimes foram cometidos depois de transitadas em julgado as anteriores condenações (AC. do STJ, 3ª Secção, de 23 de Junho de 1994, proc. nº 46860). Ou seja, as penas dos crimes cometidos depois de uma condenação transitada em julgado não podem cumular-se com as penas dos crimes cometidos anteriormente a essa condenação (v. ac. do STJ de 20 de Junho de 1996 in BMJ, 458, 119).
Como se escreveu no acórdão do STJ de 29-03-2012, proferido no processo n.º 316/07.5GBSTS, de que foi relator o Exmo. Conselheiro Raul Borges, “O trânsito em julgado obstará a que com a infração a que respeita ou outras cometido até esse trânsito, se cumulem infrações que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito, que funcionará assim como barreira excludente, não permitindo o ingresso no círculo dos crimes em concurso, dos crimes cometidos após aquele limite. A primeira decisão transitada será assim o elemento aglutinador de todos os crimes que estejam em relação de concurso, englobando as respectivas penas em cúmulo, demarcando as fronteiras do círculo de condenações objeto de unificação. A partir desta data, em função dessa condenação transitada, deixam de valer discursos desculpabilizantes das condutas posteriores, pois que o(a) arguido(a) tendo respondido e sido condenado(a) em pena de prisão por decisão passada em julgado, não pode invocar ignorância acerca do funcionamento da justiça penal, e porque lhe foi dirigida uma solene advertência, teria de agir em termos conformes com o direito, “cortando” com as anteriores condutas. Persistindo, se se mostrarem preenchidos os demais requisitos, o/a arguido(a) poderá inclusive ser considerado(a) reincidente. Esta data marca o fim de um ciclo e o início de um novo período de consideração de relação de concurso para efeito de fixação de pena única. A partir de então, havendo novos crimes cometidos desde tal data, desde que estejam em relação de concurso, terá de ser elaborado com as novas penas um outro cúmulo e assim sucessivamente. A partir desta barreira inultrapassável afastada fica a unificação, formando-se outras penas autónomas, de execução sucessiva, que poderão integrar outros cúmulos. (...)
Nestes casos de cúmulo por conhecimento superveniente há que ter em consideração o imprescindível requisito do trânsito em julgado, elemento essencial, incontornável e imprescindível, que determina, simultaneamente, o fecho, o encerramento de um ciclo, e o ponto de partida para uma nova fase, para o encetar de um outro/novo agrupamento de infrações, interligadas/conexionadas por um elo de contemporaneidade, e o início de um outro/novo ciclo de atividade delitiva, em que o prevaricador - sucumbindo, na sequência de uma intervenção/solene advertência do sistema de justiça punitivo, que se revelará, na presença da repetição, como ineficaz - não poderá invocar o estatuto de homem fiel ao direito.
Em caso de pluralidade de crimes praticados pelo mesmo arguido é de unificar as penas aplicadas por tais crimes, desde que cometidos antes de transitar a condenação por qualquer deles.
A partir do trânsito em julgado da primeira decisão condenatória, os crimes cometidos depois dessa data deixam de concorrer com os que os precedem, isto é, já não estão em concurso com os cometidos anteriormente à data do trânsito, havendo a separação nítida de uma primeira fase, em que o agente não é censurado, atempadamente, muitas vezes por deficiências do sistema de justiça, ganhando assim, confiança na possibilidade de outras prevaricações com êxito, sem intersecção da acção do sistema, de uma outra que se lhe segue, abrindo-se um ciclo novo, autónomo. “ (sublinhado, negrito e itálico do ora relator)