PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PROCESSO EQUITATIVO
CONTESTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário


I – Sendo formulado pelo lesado, já constituído assistente, o pedido de indemnização cível deve ser apresentado no prazo de 10 dias, previsto no n.º1 do artigo 284.º, com referência ao n.º1 do artigo 77.º, ambos do CPP.

II – Não pode ser rejeitado, por intempestivo, sob pena de violação do direito a um processo equitativo, o pedido de indemnização cível apresentado pelo lesado/assistente no prazo de 20 dias que lhe foi assinalado pelo Ministério Público aquando da notificação da acusação deduzida contra o arguido.

III - A contestação constitui o instrumento mais importante (ainda que não o único) através do qual o arguido exerce os seus direitos de defesa, na fase de julgamento, em face da acusação que lhe tenha sido movida.

IV - Assim, é sobretudo nessa peça processual que o arguido tem ensejo de tomar posição sobre os factos contra si articulados no libelo acusatório, impugnando-os nomeadamente, alegar quaisquer factos que possam ter como efeito afastar ou minorar a sua responsabilidade criminal e indicar os meios de prova com interesse para a sua defesa.

V - Nesta conformidade, o Tribunal de julgamento está, em princípio, vinculado a emitir juízo de prova sobre os factos alegados pelo arguido na contestação, a menos que sejam irrelevantes para a decisão a proferir.

VI - A falta de pronúncia probatória por parte do Tribunal de julgamento sobre factos alegados na contestação, que não são, à partida, irrelevantes para a decisão da causa, e o não conhecimento de questões jurídicas suscitada pela defesa do arguido em conexão com essa alegação factual é de molde a integrar a nulidade do acórdão prevista na al. c) do nº 1 do art. 379.º do CPP, na vertente da omissão de pronúncia.

VII - A referida nulidade é cognoscível em sede de recurso, independentemente de arguição.

Texto Integral


ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório
No Processo Comum nº 222/14.8GCSTR, que correu termos no Juízo Central Criminal de Santarém do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, foi proferido, em 18/4/16, pela Exª Juiz titular dos autos, um despacho do seguinte teor:

«4. Por estarem em tempo, haverem legitimidade e se encontrarem-se preenchidos os demais pressupostos legais, admito liminarmente os pedidos de indemnização cível formulados a fls. 334, 340 e 346 - artigos 71°, 74°, 77°, n° 2 e 3 do Código de Processo Penal.

Cumpra o artigo 78°, n° 1 do Código de Processo Penal».

O pedido de indemnização civil formulado a fls. 346 e seguintes é encabeçado por FP, também constituído assistente, por força de despacho a fls. 184.

Do despacho judicial transcrito o arguido e demandado civil LC interpôs recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

1- O pedido cível apresentado pelo assistente é extemporâneo.

2- O despacho recorrido viola o disposto no Artigo 77° nº 1 do Cód Processo Penal.

3- O ponto 4 do douto despacho recorrido deverá ser corrigido por forma a rejeitar e mandar desentranhar o pedido de indemnização cível formulado pelo assistente FP.

Termos em que, sempre com o douto suprimento de V. Excias, deverá ser dado provimento ao processo recurso como é de JUSTIÇA.

O recurso interposto do despacho, que admitiu o pedido de indemnização civil do assistente, foi admitido com subida nos próprios autos, a final e efeito devolutivo.

O assistente e demandante civil respondeu à motivação do recurso, pugnando pela manutenção do decidido, sem formular conclusões.

No identificado processo, foi proferido, em 11/1/17, acórdão do Tribunal Colectivo, em que se decidiu:

Responsabilidade penal:

A) Condenar o arguido LC pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada nos termos previstos e punidos pelos artigos 145.º, n.º 1, al. c) e 2, 144.º, al. a), b) e c) e 132.º, n.º 2, al. e) e h), todos do código Penal na pena de 4 (quatro) anos de prisão;

B) Suspender a execução da pena de prisão ao arguido LC, ao abrigo do disposto nos artigos 50.º, 53.º e 54.º, todos do Código Penal, por idêntico período à da sua duração, acompanhada de regime de prova e subordinada ao dever do arguido pagar ao Demandante abaixo indicado sob o n.º 1), a quantia em que, vai condenado a pagar no pedido de indemnização civil, devendo fazer prova nos autos desse pagamento;

C) Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 4 UC - artigos 374.º, n.º 4, 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Responsabilidade Civil

1) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante FP parcialmente procedente e, em consequência, condenar o demandado LC a pagar a quantia de € 75 000,00, a título de danos não patrimoniais e a quantia de € 100 000,00, a título de danos patrimoniais ao demandante, acrescida de juros de mora, vencidos desde a notificação do demandado para contestar o pedido cível e vincendos até integral pagamento.

2) Custas da instância cível pelo demandado LC e pelo demandante FP (artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 524.º do Código de Processo Penal).

3) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central EPE contra o demandado LC procedente e, consequentemente, condenar o demandado a pagar ao demandante a quantia de € 1091, 31 acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da notificação do demandado para contestarem o pedido até integral pagamento.

4) Condenar o demandado nas custas desta instância civil.

5) Julgar o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar do Médio Tejo EPE contra o demandado LC procedente e, consequentemente, condenar o demandado a pagar ao demandante a quantia de € 51,00 acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da notificação do demandado para contestarem o pedido até integral pagamento.

6) Condenar o demandado nas custas desta instância civil.

Com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

1. No dia 17 de Abril de 2014, pelas 04 horas e 15 minutos, quando se encontrava no interior das instalações do Bar “K”, sito na Praça …, nesta cidade de Tomar, o assistente FP tomou a decisão de se deslocar à casa de banho daquele Bar.

2. Aí chegado, verificou que já ali se encontrava a testemunha PG e após terem verificado que a porta daquela casa de banho se encontrava fechada e ali terem permanecido durante alguns minutos, bateram à porta.

3. Entretanto, também ali chegou a testemunha DS acompanhado por outra pessoa de identidade não concretamente apurada.

4. Após ali terem permanecido todos à espera, durante alguns minutos, a porta da casa de banho abriu-se e do seu interior saiu o arguido, segurando um copo de vidro na sua mão direita, que disse “O que é que se passa?” ao que o assistente simplesmente retorquiu “Tanto tempo”.

5. Ao mesmo tempo que se dirigiu para o interior da casa de banho na direcção do arguido;

6. Foi então que o arguido encostou a sua mão ao peito do assistente e o empurrou violentamente para trás, contra uma parede;

7. E agarrou o pescoço do assistente, pressionando-o contra a dita parede;

8. Quando o assistente se debateu para se libertar do arguido o copo que este último empunhava na sua mão direita partiu-se contra a umbreira da porta da casa de banho;

9. Foi então que o arguido, com o copo partido na sua mão, desferiu um golpe na face do assistente;

10. E após mais uma vez empurrar o assistente, arremessou o mesmo copo na direcção da sua face, onde o atingiu;

11. O assistente leva então as suas mãos aos olhos e recua, tendo o arguido continuado a agredi-lo, com murros na face e cabeça em número não apurado;

12. Em virtude de todos os golpes, murros e empurrões, o arguido acabou por projectar o assistente para o chão, na pista de dança.

13. Finalmente, acorreram diversas pessoas que conseguiram afastar o arguido e prestar socorro ao assistente.

14. Nessa sequência, o ofendido foi transportado ao Centro Hospitalar Médio Tejo, EPE.-Hospital de Tomar, para receber assistência médica, tendo sido transferido para o Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE-Hospital de São José, devido à gravidade dos ferimentos por si sofridos.

15. Em consequência dos factos anteriormente referidos, o arguido LC provocou no assistente as seguintes lesões:

“ Face: cicatriz linear rosa ténue com 2 cm de comprimento localizada na região frontal, na linha média; cicatriz linear rosada com 1 cm de comprimento, oblíqua, localizada na pálpebra superior direita, aproximadamente a meio, e outra cicatriz linear nacarada com 1 cm de comprimento, também oblíqua e orientada na mesma direcção da anterior, localizada na pálpebra inferior direita.

Olho direito: hiperémia conjuntival do canto interno do olho; pupila em midríase fixa (diâmetro de 0,6 mm), aparentemente não reativa à luz; dismorfia da carúncula palpebral inferior, movimentos oculares e acomodação preservados, sem nistagmo; restante exame oftalmológico remetido para a Perícia de Oftalmologia.

Olho esquerdo: pupila fotorreativa, movimentos oculares e acomodação preservados, sem nistagmo; restante exame oftalmológico remetido para a Perícia de Oftalmologia.”

16. As lesões provocadas pelo arguido no assistente originaram, ao nível dos olhos, além das lesões atrás referidas, aquelas que se encontram mencionadas no exame pericial de oftalmologia-direito penal efectuado, nomeadamente:

“Acuidade visual:
Olho direito: percepção luminosa duvidosa no quadrante inferior;
Olho esquerdo: 10/10 com correcção óptica-0.50x50;

Biomicroscopia:
“Olho direito: cicatriz na pálpebra superior horizontal grosseiramente com forma de “V” com 2,5 cm, que se estende até ao bordo palpebral. sinais de fractura tarsal. Fractura tarsal inferior medial da pálpebra inferior que contribui para a existência de lagoftalmia. Leucoma corneano extenso, ponto na córnea periférica inferior, sinais de conjuntivite crónica ligeira, midríase arreactiva, pseudofaquia.

Olho esquerdo: cicatriz córneo-escleral justalímbica com formação de leucoma das 9-12h, ponto corneano às 11 h. Fáquico, cristalino transparente, iris sem lesões aparentes.”

Tensão ocular de aplanação: 6/14 mmHg;
Fundo ocular:

OD: silicone endocular, descolamento total da retina com retracção sobre a cabeça do nervo óptico.
OE: sem alterações relevantes.”

16. As referidas lesões causaram dores físicas e mal-estar psicológico ao assistente, e foram causa directa e necessária de um período de doença fixável em 126 (cento e vinte seis) dias (afectação total durante 7 (sete) dias de internamento hospitalar e afectação parcial durante os restantes dias), com 126 (cento e vinte e seis) dias de afectação total da capacidade de trabalho geral e com 126 (cento e vinte e seis) dias de afectação da capacidade de trabalho profissional, mantendo-se em situação de incapacidade temporária absoluta para o trabalho após a data da consolidação.

17. Aquelas lesões originaram ainda consequências permanentes, sob o ponto de vista médico-legal para o assistente, a saber:

“- as cicatrizes descritas na face, nomeadamente na região frontal e nas pálpebras superior e inferior direitas, as quais pelas suas reduzidas dimensões e restantes características não desfiguram gravemente o examinando e terão tendência a atenuar com o passar do tempo;

- perda completa da visão do olho direito em consequência das lesões já descritas, bem como conjuntivite crónica, lagoftalmia e desconforto na superfície ocular por secura;

- sequelas nas córneas e esclera do olho esquerdo, com diminuição da acuidade visual sem correcção.”

18. As referidas lesões também “implicam necessidade de uso de óculos de correcção e medicação oftálmica (por exemplo, colírios lubrificantes e outros considerados necessários por médico da especialidade). A perda de visão do olho direito não é passível de recuperação através de tratamento cirúrgico. As sequelas palpebrais poderão ser total ou parcialmente resolvidas cirurgicamente.

19. As sequelas oftálmicas descritas afectam de forma grave a capacidade de trabalho em geral, nomeadamente a continuação da actividade profissional em qualquer ramo das forças armadas. São compatíveis com o exercício da actividade de formação (Ensino Superior-Curso de Gestão de Empresas), implicando no entanto esforços suplementares.”

20. O arguido LC agiu com intenção conseguida de provocar dores físicas e mal-estar psicológico ao assistente FP, de o desfigurar grave e permanentemente e de lhe retirar, por completo, a visão, bem sabendo que a sua descrita conduta era adequada à produção daqueles efeitos, os quais bem sabia que lhe iriam afectar de forma grave a sua capacidade de trabalho e a possibilidade de utilizar os sentidos, bem como lhe iriam provocar doença particularmente dolorosa e permanente.

21. O arguido agiu movido por um motivo somente pelo facto do assistente se ter queixado do facto deste ter demorado muito tempo na casa de banho.

22. Sabia o arguido que o copo de vidro que utilizou para agredir o assistente era um meio particularmente perigoso e que tinha potencialidade para produzir lesões graves e irreversíveis na pessoa do assistente, tendo em atenção as partes do corpo daquele que procurou e conseguiu atingir.

23. Agiu o de forma deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua descrita conduta era censurada, proibida e punida por lei penal.

24. O assistente na sequência das agressões teve e têm grande sofrimento físico e moral.

25. Era uma pessoa sociável, saudável e trabalhadora e deixou de ser após a agressão.

26. Tinha ingressado no exército no dia 12 de Outubro de 2009 e pretendia seguir a carreira militar, para a qual ficou inapto em consequência das agressões.

27. À data da agressão encontrava-se colocado com a patente de soldado no Regimento de Infantaria 15, em Tomar, auferindo mensalmente o montante de € 606,43.

28. Nasceu no dia 23 de Março de 1988, sendo que à data dos factos tinha 26 anos de idade.

29. O assistente foi assistido no Centro Hospitalar do Médio Tejo, EPE cujas despesas foram no montante de € 51,00.

30. O assistente foi assistido no Centro Hospitalar do Médio Tejo, EPE na sequência da agressão sofrida cujas despesas foram no montante de € 51,00.

32. O assistente foi assistido no Centro Hospitalar de Lisboa Central, EPE na sequência da agressão sofrida cujas despesas foram no montante de € 1 091,31.

33. Do relatório social do arguido consta que “O agregado familiar de LC é composto pela companheira de 30 anos, profissional de restauração. Residem numa habitação arrendada no valor de €320. O enquadramento económico do referido agregado é consubstanciado pelo vencimento do arguido que ronda os €1000 e o da companheira de aproximadamente €600. O seu relacionamento com a companheira dura há oito anos, vivendo os mesmos em união de facto há três anos. A companheira encontra-se grávida de 2 meses. O arguido é natural de Tomar. É o 3ºfilho de uma fratria de 5. O arguido relata que o ambiente familiar em que formou a sua personalidade foi pautado por estabilidade emocional e transmissão de valores e normas que o arguido procura adaptar à sua vivência. LC iniciou o seu percurso escolar em idade normativa, tendo como habilitações literárias licenciatura em Engenharia Informática. Iniciou a actividade profissional com 21 anos na empresa EDP, onde realizou um estágio profissional de 6 meses. Posteriormente laborou cerca de três anos na empresa CGI TI Portugal – empresa no ramo da informática até 2013, altura em que regressou a Tomar. Em Dezembro de 2013 iniciou actividade profissional na empresa SOFTINSA – Engenharia de Software avançado Lda., onde tem vínculo de trabalho efectivo. Para além da sua actividade profissional, LC pratica futebol no clube União de Tomar, prática desportiva que tem exercido desde a juventude. Em relação ao presente processo, o arguido demonstra um pensamento crítico relativamente aos acontecimentos descritos nos autos, revelando-se consciente para as repercussões que estes possam trazer para a sua vida familiar e profissional.”

34. O arguido não regista antecedentes criminais.

O mesmo acórdão julgou os seguintes factos não provados:

a) o arguido depois do ofendido estar caído no chão – pista de dança - lhe continuou a dar murros, atingindo-o por todo o corpo, sobretudo na cabeça.

Do acórdão do Tribunal Colectivo o arguido e demandado civil interpôs recurso com a necessária motivação, tendo formulado as seguintes conclusões:

• O prazo de apresentação do pedido cível pelo assistente é um prazo peremptório decorrido o qual ficou precludido o direito a praticar o acto no processo penal.

• Qualquer decisão em contrário viola a lei, concretamente o Artigo 77 nº 1 do Código de Processo Penal.

• O pedido cível apresentado pelo assistente é extemporâneo e como tal deve ser declarado.
Mas e ainda,

• Admitindo ilegalmente o pedido cível do assistente não poderá este, bem como a prova que sobre ele recaiu em julgamento, ter deixado de influenciar a decisão em prejuízo do recorrente do que decorre a nulidade do julgamento e da decisão final.

• Deveria ter sido autorizada a prova requeridas nos pontos B e C da contestação penal por serem relevantes para o apuramento dos factos.

• A sentença recorrida padece da nulidade prevista no Artigo 379º nº 1 alínea a) do Código de Processo Penal.

• As imagens da ocorrência constantes dos autos não foram devidamente analisadas e valoradas, as mesmas imporiam diferente qualificação dos factos.

• As imagens nos autos demonstram, e tal deveria ter sido dado como provado, os factos alegados na contestação penal designadamente nos pontos 2 a 16, 18 a 25 e 28.

• O ofendido contribuiu de forma determinante para a ocorrência em apreciação no julgamento.

• Os comportamentos do arguido não configurariam mais do que o crime de à ofensa à integridade simples, no máximo com a agravação prevista no Artigo 18º do Código Penal.

• A matéria consignada nos pontos 2, 4, 5 a 7, 9 e 11 a 13 e especialmente no pontos 20 a 23 da fundamentação de facto da douta sentença não poderia ter sido considerada provada por falta de prova suficiente e nesse sentido ou prova em contrário.

• Há notório erro de julgamento quanto à matéria provada e de apreciação da prova,

• Há insuficiência de matéria de facto para a imputação ao arguido do crime agravado por que foi condenado.

• A pena aplicada ao arguido sempre seria manifestamente excessiva.

• A sentença recorrida, sem apurar a sua situação económica, condiciona a suspensão da execução da pena a uma condição impossível para o arguido em clara violação do nº 2 do Artigo 51º do Código Penal.

• A sentença recorrida viola entre outros preceitos, e entre eles os já mencionados, o Artigo 71º do Código Penal.

• A sentença recorrida na parte relativa à brutal e impossível condição de suspensão da execução da pena viola o Artigo 51º nº 2 do Código de Processo Penal, e também princípios e direitos consagrados na Constituição da Republica nomeadamente o Artigos 13º e 27º.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Excias, deverá ser dado provimento ao presente recurso como é de JUSTIÇA.

O recurso interposto do acórdão foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo.

O MP respondeu à motivação do recorrente, tendo formulado, por seu turno, as seguintes conclusões:

1. Por Acórdão datado de 11 de Janeiro de 2017, proferido no âmbito dos presentes autos foi o recorrente condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, nos termos previstos e punidos pelos arts.º 145.º, ns.º 1, al. c) e 2, 144.º, als. a), b) e c) e 132.º, n.º 2, als. e) e h), todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, acompanhada de regime de prova e subordinada ao dever do arguido pagar ao demandante FP a quantia em vai condenado a pagar no pedido de indemnização civil, designadamente a quantia de € 75.000,00 a título de danos não patrimoniais e a quantia de € 100.000,00 a título de danos patrimoniais, devendo fazer prova nos autos desse pagamento.

2. Como resulta claramente do disposto dos arts.º 129.º e 130.º do CP, a indemnização de perdas e danos, ainda que emergente de crime, deixou de constituir pois, um efeito penal da condenação (como sucedia no CP de 1886 -art.º 76.º, § 3.) para passar a ser regulada pela lei civil, assumindo, pois, a natureza de uma obrigação civil em sentido técnico, nos termos do art.º 397.º, do Código Civil, com o seu regime específico.

3. Não se confundindo o processo penal com o pedido de indemnização civil, que assume a natureza de uma obrigação civil em sentido técnico, não tendo pois, o efeito penal de condenação, não se verifica qualquer nulidade do julgamento e, consequentemente, da decisão proferida pelo tribunal a quo.

4. O erro de julgamento, consagrado no artigo 412.°, n.° 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

5. O erro de julgamento, situando-se no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto alarga-se à prova produzia em audiência (se documentada), mas com os limites assinalados pelo recorrente em face do ónus de especificação que lhe é imposto pelos nºs 3 e 4 do art.º 412º do CPP.

6. No vertente caso constata-se que o recorrente não deu cumprimento ao ónus de especificação a que alude o mencionado artigo 412.º, nº 3 do CPP, para que o tribunal ad quem possa vir sindicar a matéria de facto fixada na primeira instância.

7. Efectivamente, o recorrente faz alusão às testemunhas alegando que nenhuma delas teve percepção relevante do ocorrido nos sete segundos de confronto entre o arguido e o ofendido, bem como ao depoimento do ofendido que, segundo alega, denotou falta de nitidez e, ainda, ao depoimento prestado pelo arguido (remetendo, sempre, para o teor da sua contestação), por forma a concluir que “da prova dos autos resulta pois que ao arguido não poderá ser imputado crime mais grave do que ofensa à integridade física simples sendo certo que nas circunstâncias nem sequer lhe poderá ser imputado dolo”.

8. Ora, salvo o devido respeito, a alusão às testemunhas e ao assistente desacompanhada da concretização dos respectivos depoimentos e factos que possam estar em contradição com tais elementos não assume a forma legalmente exigida para a concretização dos factos.

9. Pelo que, face à falta de concretização dos factos fixados pelo tribunal a quo e que o recorrente considerou como não provados, ficou coarctada a possibilidade do tribunal ad quem sindicar a matéria de facto que foi fixada pelo tribunal a quo, matéria essa que, assim, se tem que dar por assente.

10. No entanto, sempre se dirá que o tribunal a quo ponderou todas as provas, segundo critérios de objectividade e à luz das regras da experiência comum e da normalidade, no pleno uso do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do CPP.

11. Sendo que, tendo em conta o alegado pelo recorrente na motivação e conclusões do recurso, constata-se, desde logo, que o mesmo ignorou, em absoluto, a explicitação do raciocínio lógico do tribunal a quo contida na motivação do acórdão recorrido, sendo que a alegação do recorrente traduz a sua pessoal e subjectiva valoração da prova produzida.

12. Não existindo razões para afastar o raciocínio lógico do tribunal a quo.

13. De salientar, ainda, que a prova indicada pelo recorrente não impõe decisão diversa da tomada no acórdão recorrido.

14. No crime de ofensa à integridade física na sua versão qualificada, dir-se-á que estamos perante um “tipo de culpa agravada (…) por força da cláusula geral da especial censurabilidade, concretizada de acordo com um elenco de circunstâncias não automático e não taxativo”, isto é, o elenco a que alude o artigo 132.º do CP (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 1ª edição, UCE, 2008, pág. 391).

15. Nesse enquadramento, a lei descreve como circunstância reveladora de especial censurabilidade ou perversidade a prática do facto mediante utilização de meio particularmente perigoso (cf. art. 132, n.º2, alínea h) do Código Penal), isto é, mediante recurso a um instrumento, método ou processo que dificulte significativamente a defesa da vítima (cfr. Jorge Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume I, Coimbra Editora, 1999, pág. 37).

16. A lei define ainda como revelador de especial censurabilidade ou perversidade a circunstância da prática do facto ser determinado por qualquer motivo fútil (cf. art. 132.º, n.º2, alínea e) do CP).

17. No caso dos autos, tendo em conta as características do objecto utilizado – copo de vidro - (potencialmente contundente e cortante, sendo que por esta última faceta é susceptível de causar lesões com sequelas irreversíveis e/ou até de mesmo lesar bens jurídicos de maior amplitude valorativa), o modo como foi utilizado e a zona corporal da vítima sobre a qual incidiu a agressão, impõe-se afirmar a existência de especial censurabilidade ou perversidade no comportamento do agente naquelas concretas situações com o uso de tal objecto, merecedora do severo juízo de censura postulado nos art.º 145º nº 1 a) e 2 e 132.º nº 2 h) do CP (neste sentido vd. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.02.2007 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.02.2015, in www.dgsi.pt.).

18. Tendo resultado igualmente provados factos que permitem concluir que a actuação do recorrente foi determinada por motivo fútil, designadamente que a agressão foi motivada pelo facto do assistente lhe ter chamado a atenção para o tempo que demorou no interior da casa de banho.

19. A determinação da parte da indemnização que se entende dever ser satisfeita pelo arguido, como condição da suspensão da execução da pena de prisão, não tem de ser operada exclusivamente na base das actuais forças do condenado, como que afectando para tal efeito a parcela do seu rendimento conhecida, tida por justa.

20. Pelo contrário. Não deve o Tribunal abstrair-se de uma possível melhoria da situação económica do condenado.

21. De facto, o regime de condicionamento da suspensão da execução da pena deve ainda contar com a possibilidade de o condenado vir a obter os fundos necessários ao pagamento da indemnização, por via alternativa à sua actividade profissional ou laboral, como seja o recurso ao crédito, o apoio de terceiros ou a venda de bens (neste sentido, vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 2.06.2015, in www.dgsi.pt).

22. Pelo que nada há a censurar à pena aplicada.

23. No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito.

24. Pelo que o acórdão recorrido não merece qualquer censura.

Face ao exposto, deve o Acórdão recorrido ser confirmado.

Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA

O assistente e demandante civil FP respondeu também à motivação do recuso interposto da decisão final, pugnando pela manutenção desta, sem firmar conclusões.

A referida motivação foi ainda notificada às demandantes civis Centro Hospitalar do Médio Tejo e Centro Hospitalar de Lisboa Central EPE, que não exerceram o seu direito ao contraditório

A Digna Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer sobre o mérito do recurso interposto do acórdão, defendendo a sua improcedência.

Tal parecer foi notificado aos sujeitos processuais, para se pronunciarem, nada tendo respondido.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II. Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

No presente processo, foram apresentados à cognição deste Tribunal da Relação dois recursos interpostos pelo mesmo arguido, um do acórdão final e o outro de um despacho judicial interlocutório, que admitiu o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente FP.

Dado que o sucesso do recurso interposto do despacho interlocutório seria susceptível, pelo menos na tese do recorrente, de pôr em causa a subsistência do processado, relativo ao pedido indemnizatório deduzido pelo assistente, a sua apreciação ganha prioridade lógica sobre o conhecimento daquele que foi oposto à decisão final.

Contudo, antes de entrarmos na apreciação da pretensão recursiva propriamente dita, cumpre-nos tecer algumas considerações.

Em caso de subida conjunta de recursos interpostos, por um lado, de decisões interlocutórias e, por outro lado, da sentença ou acórdão final, rege o nº 5 do art. 412º do CPP:

Havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse.

Por seu turno, o nº 3 do art. 417º do CPP estatui:

Se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.os 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada. Se a motivação do recurso não contiver as conclusões e não tiver sido formulado o convite a que se refere o n.º 2 do artigo 414.º, o relator convida o recorrente a apresentá-las em 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado.

A motivação do recurso, que impugna o acórdão final, contém a seguinte alusão ao recurso oposto ao despacho que admitiu pedido de indemnização do assistente (fls. 2 da peça processual):

«Na contestação penal oferecida pelo recorrente foi arguida a irregularidade, que nunca chegou a ser apreciada, e também interposto recurso que, nos termos da lei, aguarda apreciação deste Venerando Tribunal, com o que ora se interpõe».

No entanto, as conclusões da mesma motivação, que deixámos transcritas no relatório do presente aresto, não incluem qualquer declaração expressa de vontade da parte do arguido, no sentido de manter o interesse na apreciação do recurso interposto do despacho interlocutório.

Ainda assim, os quatro primeiros pontos das conclusões da motivação do recurso que ataca a decisão final são dedicados a arguir a extemporaneidade do pedido indemnizatório formulado pelo assistente, pretendendo-se a sua declaração como tal e a invalidação do processado.

Ora, no actual estado do processo, o efeito pretendido pelo arguido, no recurso interposto do acórdão, relativamente ao pedido de indemnização formulado pelo assistente, implica necessariamente o conhecimento do recurso oposto ao despacho que admitiu esta peça processual.

Nestas condições, é lícito a esta Relação exercer o seu poder de cognição sobre o recurso interlocutório em presença, mesmo sem se dirigir ao recorrente o convite ao aperfeiçoamento das conclusões previsto no nº 3 do art. 417º do CPP.

O momento processual da dedução do pedido de indemnização civil, no âmbito do processo criminal, é regulado pelo art. 77º do CPP:

1 - Quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido é deduzido na acusação ou, em requerimento articulado, no prazo em que esta deve ser formulada.

2 - O lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ele houver lugar, para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias.

3 - Se não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou se não tiver sido notificado nos termos do número anterior, o lesado pode deduzir o pedido até 20 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de acusação ou, se o não houver, o despacho de pronúncia.

O art. 75º do CPP, a que se faz referência no normativo transcrito, é do seguinte teor:

1 - Logo que, no decurso do inquérito, tomarem conhecimento da existência de eventuais lesados, as autoridades judiciárias e os órgãos de polícia criminal devem informá-los da possibilidade de deduzirem pedido de indemnização civil em processo penal e das formalidades a observar.

2 - Quem tiver sido informado de que pode deduzir pedido de indemnização civil nos termos do número anterior, ou, não o tendo sido, se considere lesado, pode manifestar no processo, até ao encerramento do inquérito, o propósito de o fazer.

Quanto ao início do prazo para o assistente deduzir acusação, importa distinguir se o procedimento depende ou não de acusação particular, valendo, na hipótese afirmativa o disposto nº 1 do art. 285º do CPP:

Findo o inquérito, quando o procedimento depender de acusação particular, o Ministério Público notifica o assistente para que este deduza em 10 dias, querendo, acusação particular.

Nas restantes situações, aplica-se o disposto no nº 1 do art. 284º do CPP:

Até 10 dias após a notificação da acusação do Ministério Público, o assistente pode também deduzir acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles.

Com eventual relevo para a questão que nos ocupa, importa reter os seguintes aspectos do processado:

a) Em 14/5/14, o ofendido FP requereu a sua constituição como assistente, a qual lhe foi deferida por despacho judicial proferido em 19/5/15 (fls. 18, 19 e 184);

b) Por correio registado em 17/4/15, o ofendido FP remeteu a juízo um requerimento em que manifestava «o propósito de deduzir pedido de indemnização cível», ao abrigo do disposto no art. 75º CPP (fls. 181 e verso);

c) Em 23/10/15, o MP deduziu acusação contra o arguido LC, por factos integradores de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145º nº s 1 al. c) e 2 do CP, com referência ao disposto nos arts. 144º als. a), b) e c) e 132º nº 2 als. e), h) e j) ambos do CP, tendo ordenado, em matéria de notificações ao assistente, o seguinte: «Notifique o assistente FP, para deduzir, querendo, pedido de indemnização civil, nos termos do disposto no artigo 77º, nº 2 do Código de Processo Penal» (negritos e sublinhado do original, fls. 308 a 315);

d) O despacho de acusação foi notificado ao assistente pessoalmente por carta simples com prova de depósito, depositada em 2/11/15 (fls. 316 e verso);

e) O mesmo despacho foi notificado ao ilustre mandatário do assistente por carta registada, expedida em 28/10/15 (fls. 317);

f) Por correio registado em 23/11/15, o assistente remeteu a juízo o articulado do seu pedido de indemnização civil (fls. 346 a 363 verso).

Nos termos do nº 10 do art. 113º do CPP, a acusação integra o universo de actos processuais que têm de ser notificados ao assistente pessoalmente e ao seu mandatário ou patrono, cumulativamente, relevando, para o efeito do desencadeamento dos prazos subsequentes a notificação efectuada em último lugar.

Dispõem os nºs 2 e 3 do mesmo artigo que as notificações efectuadas por carta registada e por carta simples com PD se presumem recebidas, respectivamente, no terceiro dia posterior ao seu envio e no quinto dia subsequente ao respectivo depósito em receptáculo postal.

Quanto aos condicionamentos temporais previstos no art. 77º do CPP, importa recordar que o nº 1 deste normativo na redacção inicial do mesmo Código, aprovada pelo DL nº 78/87 de 17/2, fazia já depender do prazo da acusação a apresentação do pedido de indemnização civil, quando proveniente do MP ou do assistente.

O nº 2 do artigo em referência na sua versão inicial previa a dedução do pedido indemnizatório, fora dos casos tratados no número anterior, até 5 dias depois da notificação ao arguido do despacho de pronúncia ou, na falta dele, do despacho que designe dia e hora para a realização da audiência de julgamento.

A reforma da lei processual penal aprovada pela Lei nº 59/98 de 25/8 introduziu como disposição inovadora o nº 2 do art. 75º do CPP que veio possibilitar ao lesado declarar no processo, durante a fase de inquérito, o propósito de vir a formular pedido de indemnização civil, o que passou a conferir-lhe, nos termos da nova redacção do nº 2 do art. 77º, o direito de ser notificado do despacho acusatório, com vista à dedução de tal pretensão, num prazo de 20 dias.

No contexto histórico-normativo em que é criada, a disposição do nº 2 do art. 75º do CPP surge com o claro sentido de um mecanismo processual destinado a proteger o interesse do lesado que não se tenha constituído assistente, o qual, na legislação até então vigente, estava dependente do conhecimento extraprocessual, que pudesse ter da prolação do despacho de pronúncia ou do despacho que designasse dia para julgamento.

Diferentemente, o diploma legal de reforma do processo penal (Lei nº 59/98 de 25/8), que fez constar do articulado do CPP o dispositivo do nº 2 do art. 75º, deixou substancialmente inalterado o regime de dedução do pedido de indemnização pelo lesado constituído assistente ou pelas entidades cuja representação judiciária incumbe ao MP.

Nesta ordem de ideias, não está na disponibilidade do lesado, a quem tenha sido deferida a investidura no estatuto processual de assistente, optar pelo regime para si mais benéfico do nº 2 do art. 77º do CPP, mesmo que tenha emitido atempadamente a declaração a que se refere o nº 2 do art. 75º do CPP.

Consequentemente, a dedução do pedido indemnizatório por parte do lesado/assistente encontra-se sempre condicionado ao prazo dedução da acusação, que é de 10 dias, seguindo-se o procedimento previsto no nº 1 do art. 285º ou no nº 1 do art. 284º do CPP, consoante se proceda ou não por crime particular.

Dado que o crime imputado pela acusação ao arguido assume natureza procedimental pública, é ao formalismo do art. 284º do CPP que teremos de atender.

Assim, a data, em que deverão ser considerados eficazes os procedimentos de notificação do libelo acusatório na pessoa do assistente e do seu ilustre mandatário, é 7/11/15, a qual corresponde ao quinto dia posterior ao do depósito, em receptáculo postal, da carta simples remetida para a residência que indicou.

Contado com referência àquela data, o prazo de 10 dias previsto no nº 1 do art. 284º do CPP, aplicável «ex vi» do nº 1 do art. 77º do CPP, esgota-se em 17/11/15, correspondendo as datas de 18, 19 e 20/11/15 ao período de três dias úteis em que o acto pode ser praticado fora de prazo sob a condição de pagamento de multa, nos termos do art. 107º-A do CPP, pelo que a apresentação do pedido indemnizatório se mostra irremediavelmente intempestiva.

Pelo contrário, considerado o prazo de 20 dias, a que se refere o nº 2 do art. 77º do CPP, verifica-se que o mesmo expira em 27/11/15 e que a peça processual em causa foi atempadamente remetida a juízo.

Aqui chegados, importa averiguar se os termos em que concretamente se processou a notificação da acusação ao assistente e ao seu ilustre mandatário são ou não de molde a legitimar a consideração do prazo mais dilatado de 20 dias, porquanto, de acordo com a interpretação que defendemos do normativo do art. 77º do CPP e que acima deixámos esboçada, o prazo aplicável ao caso concreto seria o de 10 dias.

As cartas remetidas para tanto ao assistente e ao seu ilustre mandatário (fls. 316 e 317) contêm referências a prazos processuais, mas não para o específico efeito de formular o pedido de indemnização civil

Contudo, na parte final do despacho que inclui a acusação, a Digna Magistrada do MP, que o subscreve, emitiu uma ordem no sentido de se notificar o assistente «para deduzir, querendo, pedido de indemnização civil, nos termos do disposto» no art. 77º nº 2 do CPP, consignando-se nas cartas enviadas que as mesmas foram acompanhadas de cópia da acusação.

Nestas condições, a comunicação da peça acusatória ao assistente e ao ilustre advogado incumbido da sua representação processual foi efectuada de forma adequada a transmitir a ideia de que esse acto daria início ao prazo previsto nº 2 do art. 77º do CPP, que é de 20 dias, para que aquele sujeito processual nele formulasse o seu pedido de indemnização civil.

A este respeito, terá interesse ter presente uma orientação jurisprudencial do Tribunal Constitucional.

Como exemplo da referida orientação, podemos citar o Acórdão nº 3/2013 do Tribunal Constitucional (disponível, tal como os a seguir mencionados em www.tribunalconstitucional.pt), datado de 9/1/13 e relatado pela Exmª Conselheira Dra. Maria José Rangel de Mesquita, o qual julgou «inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica e da tutela da confiança consagrados no artigo 2.º da Constituição e das garantias de defesa em processo penal consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 107.º, n.º 6, conjugada com as normas do artigo 411.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4, todas do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que um tribunal superior pode julgar extemporâneo um recurso interposto nos termos de prazo fixado por despacho anterior não recorrido».

O aresto citado é representativo de uma orientação jurisprudencial, que estimamos que se terá consolidado no Tribunal Constitucional e na qual se inserem os Acórdãos nºs 39/2004 e 44/2004, ambos datados de 14/1/04, relatados, respectivamente, pelo Exmº Conselheiro Dr. Paulo Mota Pinto e pela Exmª Conselheira Doutora Maria Fernanda Palma, e nºs 159/2004 de 17/3/04 e 722/2004 de 21/12/04, estes dois relatados pelo Exmº Conselheiro Dr. Benjamim Rodrigues.

No mesmo sentido decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 3/3/04, proferido no processo nº 03P4421, relatado pelo Exmº Conselheiro Dr. Henriques Gaspar e correspondente ao documento SJ200403030044213 de www.dgsi.pt.

A evocada orientação jurisprudencial assenta numa ideia de autonomia decisória do despacho que tenha «fixado», de uma forma ou de outra, o prazo para interpor o recurso.

Uma vez notificado aos sujeitos processuais e não tendo sido ele próprio impugnado por via de recurso, no lapso temporal legalmente previsto, o despacho determinativo do prazo transita em julgado e impõe-se ao próprio Tribunal Superior.

É certo que a situação em presença apresenta diferenças substanciais relativamente às que foram tratadas nos Arestos do TC e do STJ acima identificados, porquanto:

a) Não está em causa a interposição de um recurso, mas sim a dedução de um pedido de indemnização, no âmbito de um processo penal, por danos emergentes da prática de um crime;

b) A questão da vulneração das garantias de defesa não se coloca, na medida em que o sujeito processual interessado é um assistente/demandante civil e não um arguido;

c) A determinação do prazo a que se sujeitou a prática do acto não foi operada por despacho judicial, mas sim pelo MP, na parte final do despacho de acusação.

O nº 7 do art. 32º da CRP reconhece ao ofendido o direito de intervir no processo criminal, mas deixa na disponibilidade do legislador ordinário o essencial da concretização das formas e alcance dessa intervenção.

A definição dos requisitos de admissibilidade de um pedido indemnizatório civil, em processo penal, prende-se seguramente com o direito ao acesso ao direito e aos Tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva, que é consagrado pelo nº 1 do art. 20º da CRP.

O nº 4 do mesmo artigo estatui que todos têm direito a que as causas em que sejam intervenientes sejam julgadas em «prazo razoável» e mediante «processo equitativo».

É certo que as decisões do MP não são passíveis de recurso e não transitam em julgado e, por isso, nunca chegam impor-se aos Tribunais Superiores.

Contudo, importa ter presente que o despacho de acusação é o último acto processual em que o MP exerce os seus poderes enquanto «dominus» do processo, inerentes ao poder de direcção do inquérito, que lhe é conferido pelo art. 263º do CPP.

Nessa fase, do ponto de vista dos sujeitos privados do processo, as decisões do MP revestem uma força vinculativa comparável à das decisões judiciais.

Na fundamentação do Acórdão de 3/3/04 do Supremo Tribunal de Justiça, a que acima fizemos referência, perspectiva-se o conceito «processo equitativo», em termos que se nos afiguram sugestivos (transcrição com diferente tipo de letra):

Entre os princípios estruturantes do processo penal democrático deve salientar-se o princípio do processo equitativo, integrado pelos elementos de densificação enunciados no artigo 6º, § 1º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e também no artigo 14º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos - instrumentos internacionais de que Portugal é Parte - e que comanda toda a formulação das garantias inscritas no artigo 32º da Constituição.

Princípio essencial, fundador e conformador do processo penal (de todos os modelos ou soluções particulares e mais ou menos idiossincráticas dos diversos sistemas processuais democráticos), o princípio do processo equitativo, na dimensão de "justo processo" ("fair trial"; "due process"), é integrado por vários elementos, um dos quais se afirma na confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual; os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz.

O processo equitativo, como "justo processo", supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa. Mas determina também, por correlação ou contraponto, que as autoridades que dirigem o processo, seja o Ministério Público, seja o juiz, não pratiquem actos no exercício dos poderes processuais de ordenação que possam criar a aparência confiante de condições legais do exercício de direitos, com a posterior e não esperada projecção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que depositaram confiança no rigor e na regularidade legal de tais actos.

A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.

Em face do que agora se expôs, a circunstância de o assistente ter sido notificado, por efeito da injunção emitida pelo MP na parte final do despacho de acusação, para formular o pedido de indemnização nos termos do art. 77º nº 2 do CPP, que prevê para o efeito um prazo de 20 dias, faz com que uma ulterior rejeição do pedido por extemporaneidade, com fundamento na aplicabilidade do prazo de 10 dias, previsto nº 1 do mesmo artigo, defraudasse as expectativas de regularidade do acto geradas pela notificação, sendo, por isso, incompatível com o direito do assistente a um processo equitativo.

O circunstancialismo apurado não é de molde a excluir a boa-fé do assistente, pois este reúne os requisitos específicos de aplicação do regime previsto no nº 2 do art. 77º do CPP, a saber a emissão durante o inquérito da declaração a que se refere o nº 2 do art. 75º do CPP, e a aplicabilidade desse regime só é, no caso, afastada, por via da interpretação que fazemos do conjunto do normativo do art. 77º.

A admissão do pedido indemnizatório dentro do prazo de 20 dias do nº 2 do art. 77º do CPP fará o demandante beneficiar de um prazo mais dilatado do que o prescrito por lei, mas não afecta de forma sensível os direitos do demandado, deixando intactas as suas possibilidades defesa, pois, numa ou noutra hipótese, o prazo para contestar o pedido de indemnização civil é sempre de 20 dias, por força do disposto no nº 1 do art. 78º do CPP.

Nestas condições, deverá ter-se por atempadamente apresentado o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente FP, improcedendo o recurso interposto pelo arguido e demandado civil do despacho judicial que o admitiu.

Importa agora conhecer do recurso interposto do acórdão final.

A sindicância da decisão recorrida, que emerge das conclusões do arguido e demandado civil LC, é multiforme e desdobra-se nas seguintes questões:

a) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

b) Impugnação do juízo de enquadramento jurídico criminal dos factos, no sentido de integrarem a prática de um crime de ofensa a integridade física simples;

c) Impugnação da medida da pena;

d) Impugnação do montante da indemnização por danos não patrimoniais;

e) Pedido de não condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão, em que o arguido foi condenado, ao pagamento da indemnização.

Em consequência do insucesso do recurso interposto do despacho interlocutório, considera-se prejudicada a apreciação da arguição da «nulidade» do julgamento e do acórdão, em resultado da invocada intempestividade do pedido de indemnização civil do assistente.

Nas conclusões da motivação do recurso interposto do acórdão final, o recorrente afirma, ainda sem extrair daí qualquer consequência, que deveria ter sido autorizada a prova requerida nos pontos B e C da contestação penal, por ser relevante para o apuramento dos factos.

Na parte final da sua contestação, junta a fls. 435 a 437, o arguido fez inserir um requerimento de prova, composto por três pontos A, B e C, em que peticionava a realização de determinadas diligências de prova.

Sobre esse requerimento probatório recaiu um despacho da Exª Juiz do processo proferido em 25/5/16, que deferiu as diligências de prova peticionadas sob os pontos A e B, mas indeferiu a pretensão formulada sob o ponto C, por ter considerado irrelevante o meio de prova pretendido (fls. 438).

Tal despacho foi notificado à defesa do arguido, por carta registada expedida em 31/5/16 (fls. 439), que dele não recorreu.

Assim, tendo-se o arguido conformado com o indeferimento da diligência probatória peticionada sob o ponto C, não lhe é lícito «reabrir» a questão no âmbito de recurso que interpôs da decisão final.

Tem vindo a constituir jurisprudência constante dos Tribunais da Relação a asserção segundo a qual o recurso sobre a matéria de facto não envolve para o Tribunal «ad quem» a realização de um novo julgamento, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos, mas antes tem por finalidade o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham afectado a decisão recorrida e que o recorrente tenha indicado, e, bem assim, das provas que, no entender deste, impusessem, e não apenas sugerissem ou possibilitassem, uma decisão de conteúdo diferente.

Sinteticamente, o recorrente insurge-se contra ter o Tribunal Colectivo julgado provados os factos descritos nos pontos 2, 4, 5 a 7, 9, 11 a 13 e 20 a 23 da matéria assente e ter dado como não provada a factualidade alegada nos artigos 2 a 16, 18 a 25 e 28 da contestação do arguido, tendo feito basear a sua pretensão na valorização, para efeitos de convicção, das declarações por si prestadas em audiência, que, em seu entender, são confirmadas pelas imagens colhidas pelas câmaras de vigilância existentes no local da ocorrência.

Ora, no acórdão recorrido, o Tribunal Colectivo não emitiu juízo de prova específico sobre os factos alegados na contestação do arguido, nomeadamente, os que este pretende sejam julgados provados, em sede de recurso.

Assim, os factos descritos nos pontos 1 a 23 correspondem, com algumas alterações, aos que foram alegados na acusação pública (fls. 308 a 313), os dos pontos 24 a 32 foram trazidos ao processo nos articulados dos pedidos de indemnização civil do assistente (fls. 346 a 363) e dos demandantes civis Hospitais (fls. 334 a 337, 340 e 341) e os dos pontos 33 e 34 dizem respeito, respectivamente, às condições pessoais do arguido e à sua falta de antecedentes criminais.

O único facto julgado não provado provém também do libelo acusatório.

Para melhor compreensão reproduz-se, de seguida, a totalidade do articulado da contestação do arguido.

Reproduzimos o que se expende no acórdão impugnado para fundamentação do juízo probatório emitido (transcrição com diferente tipo de letra):

«1 Os factos não correram conforme consta da acusação.

2 Conforme se verifica pelas imagens do video identificado com n. o 4, o arguido chegou junto da casa de banho dos homens e aguardou a sua vez de entrar na mesma.

3 Alguns frequentadores aguardaram antes ordeiramente a sua vez de entrarem na casa de banho dos homens, entrando, naturalmente após a saída do utente anterior.

4 O arguido chegou à frente da casa de banho e esperou a saída do utente que o antecedeu na fila.

5 Tendo na mão direita um copo alto com liquido aproximadamente até meio.

6 Quando o utente anterior saiu da casa de banho entrou ele próprio, na sua vez.

7 Durante o cerca de minuto e meio que esteve na casa de banho, o ofendido e um outro individuo importunaram-no insistentemente, provocando-o repetidamente batendo na porta com a mão e a pontapé.

8 Assim que o arguido abriu a porta da casa de banho, que é muito minúscula e não susceptível de comportar dois utilizadores em simultâneo, pretendeu naturalmente sair.

9 Só que ° ofendido, ultrapassando um outro indivíduo que chegara antes, precipitou-se sobre o arguido de forma repentina e empurrando-o de volta para dentro da casa de banho impedindo-lhe a pretendida saída.

10 O arguido que claramente só pretendia sair dali, com a mão esquerda, na direita tem o Copo, o tentou afasta-lo, empurrando-o.

11 Co ofendido resiste, agarram-se mutuamente e envolvem-se em luta de mãos presas.

12 É o ofendido quem, na luta, empurra a mão direita do arguido, que segura o copo, contra a parede à sua esquerda,

13 É o ofendido que, com as suas mãos, por último com a esquerda, empurra o copo que o arguido continua a segurar na mão direita, contra a parede.

14 Sendo nítida nesse momento a projecção de vidros e líquido do copo no momento do embate.

15 Manietado, no meio da luta, desesperado e sem perceber o que está a acontecer o arguido, perturbado, atira com o copo à cara do ofendido, tudo acontecendo num lapso de tempo,

16 Desde o momento em que o arguido sai da casa de banho e o fim do confronto no local mediaram cerca de 7 segundos, até que ambos abandonaram o local.

17 O. arguido nunca poderá ser acusado de crime mais grave do que ofensa à integridade física simples,

18 Como se constata de forma segura pelas imagens o arguido foi surpreendido pela inesperada, incompreensível e violenta arremetida do ofendido contra ele,

19 Apenas quis evitar que o ofendido. que ele não conhecia de lado nenhum, primeiro o empurrasse com ele para dentro da exígua casa de banho, onde só cabia um,

20 E depois tentou abrir caminho para sair daquela absurda e constrangedora situação,

21 Foi com esse objectivo que empurrando tentou afastar o possesso ofendido da sua frente, não tinha outro caminho ou espaço por onde o pudesse fazer.

22 Não golpeou o ofendido com o copo partido,

23 Atirou-lhe com o mesmo num acto repentino, como se diz tudo durou 7 segundos, perturbado e irreflectido, sob a forte tensão e angústia decorrente da absurda situação de violência e condicionamento físico de que estava a ser alvo.

24 Não teve sequer a noção que o copo se partira.

25 Foi o ofendido que com a sua atitude absurda de empurrar o arguido para dentro da casa de banho e depois agarrando-o resistindo a sai-lhe da frente, agarrando-o, não o deixando sair dali para fora, o verdadeiro culpado do ocorrido.

26 O arguido não poderia ter sido acusado de crime mais grave do que ofensa à integridade física simples (Art. 143º Cod. Penal).

27 Mas na verdade, nas circunstancias, nem sequer é aceitável considerar que agiu com dolo.

28 No ambiente real que se verificava de musica alta, barulho, fumo luzes e projectores, o arguido foi importunado quando se encontrava na casa de banho, onde não cabem duas pessoas, abre a porta e o ofendido arremeta inesperadamente para ele, tenta sair e é impedido por este que lhe agarra as mãos, debatem-se durante 7 segundos, não é configurável a existência de dolo.

29 Agiu em legítima defesa,

30 Se algum excesso de legítima defesa possa ter havido,

31 Seguro é que na situação o arguido ou qualquer outra pessoa comum, se teria de encontrar em estado de perturbação e medo».

Seguiremos nesta parte a orientação interpretativa que vimos perfilhando, designadamente, no Acórdão desta Relação de Évora de 6/1/15, proferido no processo nº 8/11.0GFMMN.E1 e subscrito pelo mesmo Relator e Adjunto (disponível em www.dgsi.pt).

Nos termos do art. 315º do CPP, a contestação constitui o instrumento mais importante (ainda que não o único) através do qual o arguido exerce os seus direitos de defesa, na fase de julgamento, em face da acusação que lhe tenha sido movida.

Assim, é sobretudo nessa peça processual que o arguido tem ensejo de tomar posição sobre os factos contra si articulados no libelo acusatório, impugnando-os nomeadamente, alegar quaisquer factos que possam ter como efeito afastar ou minorar a sua responsabilidade criminal e indicar os meios de prova com interesse para a sua defesa.

Nesta conformidade, o Tribunal de julgamento está, em princípio, vinculado a emitir juízo de prova sobre os factos alegados pelo arguido na contestação, a menos que sejam irrelevantes para a decisão a proferir.

O que acabámos de dizer aplica-se apenas às verdadeiras alegações de facto e não às formulações conclusivas, juízos de valor, considerações jurídicas e outros, que, nas peças processuais, surgem frequentemente misturados com a matéria de facto propriamente dita.

De qualquer modo, nem toda a alegação de factos tem de revestir interesse para a justa decisão da causa.

Nesta ordem de ideias, deve o Tribunal abster-se de emitir pronúncia probatória sobre alegações factuais, que constituam a pura negativa de factos da narrativa acusatória, bem como sobre aqueles factos com interesse exclusivamente instrumental para a demonstração de outros, estes com relevo directo para a decisão.

Caso o arguido, em sede de contestação, venha opor a sua própria versão dos factos à narrativa contida na acusação, o Tribunal não deverá formular sobre ela juízo de prova, se a mesma relevar exclusivamente da chamada «impugnação motivada», mas não assim nos casos em que possa assumir relevância autónoma para formação da decisão de direito, em benefício do arguido.

Estão nesta última hipótese as alegações de factos susceptíveis de integrar causas de exclusão da ilicitude da conduta do arguido ou da culpa deste, de fazer com que ele possa ser dispensado de pena, de funcionar como atenuante modificativa das sanções abstractamente aplicáveis ou como atenuante geral.

Pretende o recorrente sejam levados à matéria de facto provada os arts. 2º a 16º, 18º a 25º e 28º da contestação.

Os arts. 2º, 3º, 4º, 5º e 6º da peça processual em análise contêm a alegação de factos, mas estes surgem-nos como manifestamente irrelevantes para a decisão da causa, porquanto são cronologicamente anteriores àqueles por que o arguido responde e não vislumbramos que possam a qualquer título influir na responsabilidade criminal ou civil do arguido, tal como se configurou no acórdão em crise.

Diferentemente, os arts. 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 15º, 16º, 19º, 20º, 21º e 24º do articulado da defesa do arguido consubstanciam uma narrativa factual alternativa à do libelo acusatório, que, na tese da defesa, seria de molde a acarretar algum dos seguintes corolários jurídicos:

- O arguido agiu sem dolo;
- Agiu em legítima defesa;
- Ou, pelo menos, com excesso de legítima defesa.

O art. 14º da peça processual a que nos reportamos contém uma consideração relativa a um meio de prova e os arts. 18º, 23º, 25º e 28º formulações conclusivas ou valorativas e a repetição da alegação de factos já alegados noutras passagens.

O facto alegado no art. 22º é a mera negação de um facto afirmativo alegado na acusação, pelo que não deverá ser objecto de juízo de prova, de acordo com o critério adoptado.

O crime por cuja prática o arguido foi acusado e condenado tem natureza dolosa, pelo que a demonstração de uma versão factual em que o dolo do agente esteja afastado, implicará sempre a atipicidade da conduta, sem prejuízo de eventual consideração do crime censurável a título de negligência, contra o mesmo bem jurídico (art. 148º do CP)

Nos termos do art. 32º do CP, a legítima defesa configura uma causa de justificação das condutas integradoras de tipos criminais.

Por fim, o art. 33º nº 1 e 2 do CP estatui que o excesso de legítima defesa dá origem à não punibilidade da conduta, se for desculpável, ou possibilita a atenuação especial da pena, se o não for.

De todo o modo, mesmo que não fosse idónea produzir os efeitos jurídicos propugnados pela defesa do arguido, a factualidade alegada na contestação poderia ainda assim relevar para a determinação da medida da pena aplicada, nos termos do art. 71º do CP.

O acórdão recorrido não emitiu juízo probatório, afirmativo ou negativo, sobre a matéria de facto alegada nos arts. 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 15º, 16º, 19º, 20º, 21º e 24º da contestação, como pode verificar-se da matéria de facto provada e não provada exposta no relatório do presente acórdão.

Em consonância, o Tribunal «a quo» tão pouco conheceu das questões jurídicas (ausência de dolo, legítima defesa ou excesso desta), suscitadas no articulado da defesa, como corolário da referida alegação factual.

Em matéria de nulidades de sentença, dispõem os nºs 1 e 2 do art. 379º do CPP:

1 - É nula a sentença:

a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º -A e 391.º -F;

b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;

c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

2 — As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.

A falta de pronúncia probatória por parte do Tribunal de julgamento sobre factos alegados na contestação, que não são, à partida, irrelevantes para a decisão da causa, e o não conhecimento de questões jurídicas suscitada pela defesa do arguido em conexão com essa alegação factual é de molde a integrar a nulidade do acórdão prevista na al. c) do nº 1 do art. 379º do CPP, na vertente da omissão de pronúncia.

Nos termos do nº 2 do mesmo artigo, a referida nulidade é cognoscível em sede de recurso, independentemente de arguição.

Sobre os efeitos da declaração de nulidade dispõe o art. 122º do CPP:

1- As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.

2- A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.

3- Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.

A nulidade agora detectada afecta necessariamente a validade do acórdão em que foi praticada e também de todo processado que se lhe seguiu, o qual se resumiu à tramitação do presente recurso.

Mais complexa será a questão de saber se a nulidade da sentença prejudica apenas a validade do acto decisório isoladamente considerado ou, pelo contrário, inquina a própria audiência de julgamento, no termo da qual aquele foi proferido.

Com efeito, existe uma íntima conexão entre a audiência de julgamento e a sentença, podendo dizer-se, com propriedade, que a segunda é o último acto da primeira

Contudo, somos de entender que as nulidades da sentença tipificadas no art. 379º nº 1 do CPP não acarretam necessariamente a invalidação da audiência de julgamento, tudo dependendo das características concretas do vício que tenha dado origem à nulidade.

No caso presente, a nulidade verificada não radica na produção da prova ou na discussão da causa, antes emergindo da falta de pronúncia do Tribunal sobre alegação de determinados pontos de facto, por parte da defesa do arguido, e de questões jurídicas, apoiadas nessa alegação, com incidência restrita ao texto da decisão.

Nesta ordem de ideias, torna-se possível salvaguardar a validade da audiência de julgamento, na medida em que seja possível a prolação pela Exº Colectivo de Juízes, que subscreveu o acórdão agora invalidado, de nova decisão, com a correcção da deficiência detectada.

Consequentemente, com vista ao suprimento da nulidade verificada, importa que aquele Exº Colectivo profira novo acórdão, em que se pronuncie sobre as seguintes questões:

a) Emissão de juízo probatório sobre a matéria de facto alegada nos arts. 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 15º, 16º, 19º, 20º, 21º e 24º da contestação;

b) Ajuizamento das questões jurídicas suscitadas em conexão com essa alegação factual (ausência de dolo legítima defesa, excesso desta), sem prejuízo da consideração de outras figuras jurídico-penais de que possa resultar a exclusão ou atenuação da responsabilidade criminal do arguido.

Caso o entenda com interesse para a decisão, o Tribunal poderá determinar, ao abrigo do disposto no art. 340º do CPP, a produção dos meios de prova necessários à averiguação dos factos sobre os quais lhe incumbe pronunciar-se, reabrindo, para o efeito, a audiência de julgamento.

III - Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

a) Negar provimento ao recurso interposto de um despacho interlocutório, que admitiu o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente;

b) Declarar nulo, nos termos do art. 379º nº 1 al. c) do CPP, o acórdão recorrido e todo processado subsequente;

c) Determinar, após trânsito em julgado, a baixa dos autos à primeira instância, a fim de ser proferida novo acórdão, com suprimento da nulidade detectada, nos termos preconizados supra.

Custas do recurso interlocutório a cargo do recorrente, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça.

Sem custas o recurso interposto do acórdão final.
Notifique.

Évora, 09/01/2018 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Póvoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)