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RESPONSABILIDADE CIVIL
DANO CAUSADO POR COISAS OU ACTIVIDADES
INCÊNDIO
PRESUNÇÃO DE CULPA
CULPA IN VIGILANDO
Sumário
I - Extravasando a configuração factual cuja alteração a Recorrente pretende o objecto do litígio, e não se tratando manifestamente de factos instrumentais ou complementares, mas sendo antes factos essenciais, cujo ónus de oportuna alegação incumbia à autora, sob pena de preclusão, vedado estava ao tribunal de primeira instância e, consequentemente vedado se encontra a esta Relação, sancionar o pretendido aditamento. II - Sendo legalmente inadmissível ter em consideração a indicada factualidade em benefício da pretensão da autora, é absolutamente inútil a apreciação da prova pela mesma indicada, com vista à requerida ampliação da matéria de facto provada, pelo que, atento o preceituado no artigo 130.º do CPC, que proíbe a prática de actos inúteis, deve tal pretensão ser recusada mercê da patente desnecessidade decorrente da impossibilidade de a mesma ser tida em conta na solução do pleito. III - Após a entrada em vigor do novo CPC, decorrido o prazo previsto no artigo 154.º, n.º 4, do CPC, sem que seja arguido o vício da deficiência da gravação, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida sequer nas alegações de recurso, interpretação que não padece de inconstitucionalidade. IV - Não tendo o Tribunal acesso a um depoimento que estriba a impugnação da matéria de facto, entende-se que fica o mesmo impossibilitado, total ou parcialmente, consoante a extensão da imperceptibilidade das declarações em causa, de efectuar a pretendida reapreciação da prova, por carecer dos elementos necessários para tal, e dever a Relação estar nas mesmas condições em que se encontrou a primeira instância. V - O auxiliar não é directamente responsável perante o credor, já que a responsabilidade pelos seus actos se repercute na esfera jurídica do devedor. Assim, no caso vertente, a existir culpa da Ré que auxilia o senhorio, no incumprimento das obrigações para este decorrentes do contrato de arrendamento, a responsabilidade pelos seus actos perante a Autora seria sempre do senhorio, e não daquela Ré. VI - Impendendo sobre o locador a obrigação de assegurar o gozo da coisa para os fins a que se destina [cfr. art.º 1031.º, al. b), do CC], compreende-se que o contrato de arrendamento seja considerado não cumprido se a coisa locada apresentar os vícios ou defeitos enunciados no preceito. VII - Porém, «esse incumprimento só releva para os efeitos previstos no art.º 798.º do CC, fazendo o locador incorrer em responsabilidade contratual, se este tiver actuado com culpa». Assim, só a existência de culpa, provada ou presumida, constitui o senhorio na obrigação de indemnizar. VIII - O ónus da prova da culpa funciona nos seguintes termos: quando os defeitos se verifiquem, pelo menos, no momento da entrega, presume-se a culpa do locador, tendo este o ónus de provar que os desconhecia sem culpa. Porém, se os defeitos surgirem depois da entrega, já o locatário terá o ónus de provar que houve culpa do locador. IX - Pese embora a denúncia de um defeito por banda da autora, se a ré ali se deslocou com um técnico e verificaram que a alegada anomalia - não correr água quente -, não se verificava ou, pelo menos não era aparente, tanto assim que ao ligar o esquentador, através da abertura da respectiva torneira a água corria quente, só pode concluir-se que não poderia haver conhecimento anterior de um defeito que mesmo quando denunciado à ré, nem esta nem o técnico conseguiram comprovar. X - Mesmo no caso de apenas se provarem os defeitos, mas não a culpa, o locador sempre ficaria isento da obrigação de indemnizar os prejuízos causados pelo incumprimento. XI - A responsabilidade pelos danos causados por coisas não é imputada pelo artigo 491.º, n.º 1, do CC ao proprietário, por essa sua qualidade, mas tão somente àquele que, sendo ou não proprietário do bem, tem o dever de o vigiar, ou seja, aquele que tem o dever de precaver quer o surgimento de perigos, quer a sua existência, eliminando-os, sempre que detectados. XII - Soçobram, pois, as conclusões da Autora no sentido de imputar eventual responsabilidade ao senhorio porquanto, habitando a casa que por este lhe foi entregue mercê do contrato de arrendamento, e por tal, estando a mesma à sua guarda bem como os demais bens móveis ali existentes por ser a sua detentora, sobre si impendia o encargo de os vigiar por forma a prevenir ou eliminar a ocorrência de danos decorrentes da respectiva utilização, integrando-se, portanto, na primeira parte da previsão do referido n.º 1 do artigo 493.º do CC.
Texto Integral
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[2]:
I – RELATÓRIO 1. AA intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra BB, CC e Companhia de Seguros DD, S.A., pedindo a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização no valor de 348.900,31€ relativa a danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência de incêndio, acrescida de juros de mora contados desde a citação até efectivo pagamento, bem como em indemnização pelos danos ocorridos no futuro conexos com o sinistro.
Em fundamento alegou, em síntese, que ocorreu um incêndio na fracção autónoma propriedade do primeiro réu e que lhe fora arrendada pela segunda ré, do qual resultou a destruição de bens e as lesões corporais que descreve e cujo ressarcimento peticiona, sendo a terceira ré responsável em virtude de contrato de seguro habitação e os primeiros réus responsáveis pelo pagamento na parte não coberta pelo capital seguro.
2. Regularmente citados, todos os Réus contestaram. 2.1. A ré Companhia de Seguros DD, por excepção, invocou, em suma, a exclusão do sinistro da cobertura do seguro contratado, a falta de alegação dos pressupostos da responsabilidade civil do segurado, a ausência de culpa do segurado e a existência de outra apólice de seguro que abrange os prejuízos causados pelo sinistro, a qual foi accionada e que desconhece se indemnizou a autora pelos danos no imóvel. Impugnou, ainda e na generalidade, os factos alegados e peticionou a intervenção principal provocada da seguradora EE Companhia de Seguros. 2.2. Os réus BB e CC, por excepção, invocaram a ilegitimidade passiva do réu, porque desacompanhado do cônjuge, a ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir em relação à ré, a ilegitimidade passiva da ré, por não ser sujeito da relação material controvertida, bem como a prescrição do direito da autora, pelo decurso do prazo de 3 anos. Mais impugnaram a generalidade dos factos alegados, aduzindo que o incêndio ocorreu devido a conduta da autora, a qual detinha a coisa e a quem incumbia o dever de vigilância.
3. A autora respondeu à matéria da excepção invocada, concluindo pela sua improcedência, deduzindo incidente de intervenção principal provocada do cônjuge do réu BB.
4. Foi admitida a intervenção principal provocada de FF e indeferida a intervenção principal provocada da EE Companhia de Seguros.
5. Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho a convidar a autora a aperfeiçoar a petição inicial, o que esta fez, impugnando os réus os factos aduzidos; foi admitida a ampliação do pedido formulada pela autora, e proferido despacho saneador, julgando-se improcedentes as excepções dilatórias de nulidade, por ineptidão da petição inicial, de ilegitimidade, retirando os réus a alegação da excepção peremptória de prescrição do direito de acção; foi, ainda, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, não tendo sido apresentada reclamação.
6. Realizou-se a audiência final, tendo seguidamente sido proferida sentença que julgou a acção improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu os Réus do pedido.
7. Inconformada, a Autora apresentou o presente recurso de apelação da sentença proferida, pugnando pela sua revogação e a condenação dos réus conforme pedido na petição inicial, finalizando a sua minuta recursória com as seguintes conclusões: «1 – Requer a ora Recorrente a reapreciação da prova, referente ao ponto 18 dos factos provados (parcialmente), bem como das alíneas c), d) e e) dos factos não provados; 2 – Quanto ao ponto 18, por considerar que existe prova nos autos para o efeito, deve ser dado como provado que “A autora utilizou, algumas vezes, o esquentador desde meados de Março de 2007 até ao dia 23 de Junho de 2007” 3 – Quanto à alínea c) dos factos não provados, por existir prova suficiente nos autos para o efeito, deve considerar-se provado que “o gás libertado pelo esquentador acumulou-se no tecto falso que fazia um “L” do corredor onde estava embutido ao esquentador até à kitchenette, gerando uma bolsa de gás”; 4 – Quanto à alínea d) dos factos provados, também se deverá dar como provada “e provocou a explosão” 5 – Também deverá constar do rol de factos provados, o constante da alínea e) dos factos não provados: “a segunda ré, alertada para o deficiente funcionamento do esquentador, não procedeu à sua reparação”. 6 – Para tal deverá ser dada relevância a prova que foi produzida, mas não valorada pelo Tribunal de que se recorre, tais como depoimentos e documentos constantes dos autos, que se identificam. 7 – A instalação de gás da fracção autónoma objecto de arrendamento estava em situação irregular, há 3 anos, conforme resulta do relatório de inspecção junto pelos RR. aos autos e cujo teor não foi valorado. 8 – Tais falhas nunca foram corrigidas. 9 – Para além de que também não recorreram a técnico credenciado pela DGEG, para proceder à montagem do esquentador (que foi adquirido em momento posterior à inspecção referenciada), nem para efectuar a devida inspecção do mesmo aparelho já em funcionamento. 10 – O esquentador foi montado pelo comerciante que o vendeu aos RR. e que não é credenciado pela DGEG. 11 - Também não recorreram os RR. a mecânico de esquentadores credenciado, como era sua obrigação, para rever e reparar o esquentador, na sequência das queixas da arrendatária, quanto à existência de problemas quanto ao aquecimento da água. 12 – Comportamentos estes que distam, a léguas, dos exigíveis, segundo o critério do bom pai de família, aos cidadão médios, zelosos e cumpridores, colocados na mesma situação. 13 – O D.L. n.º 263/89, de 17 de Agosto, e a Portaria n.º 362/2000, de 20 de Junho, consagram regras jurídicas que estabelecem a obrigatoriedade de recurso a técnico credenciado para montar, avaliar, reparar e manusear aparelhos de gás e respectivas instalações. 14 – Não existe qualquer relatório de conformidade da instalação de gás, que ateste a correcção dos vícios. 15 – Não existe qualquer relatório de conformidade de funcionamento do esquentador. 16 – Pelo que não se pode atestar da conformidade do esquentador e da instalação de gás. 17 – Pelo exposto, deve constar dos elenco dos factos provados que “O réu AA requereu a inspecção à instalação de gás, que foi realizada pela Gasinspec, em 29.06.2004, e que concluiu pela existência de defeitos críticos, designadamente: a) Coluna montante no interior do fogo; válvulas de corte aos aparelhos não respeitavam as alturas exigidas; e contador de gás no interior do fogo”. – facto complementar emergente de prova documental 18 - Deve também constar do elenco dos factos provados que “não existe relatório de conformidade da instalação de gás, posterior à data do relatório da Gasinspec, de 29.06.2004, que denunciou a existência de defeitos/vícios da referida instalação”. – facto complementar emergente de prova documental 19 – Também a constar no rol de factos provados: “não existe relatório de conformidade de montagem e funcionamento do esquentador, após a data da sua aquisição, ocorrida em 10 de Julho de 2004”. 20 - Os RR. bem sabiam que deviam ter actuado de forma diferente, tendo em conta que foram notificados pela GASINSPEC para o efeito, e que no próprio manual do esquentador Zeus 11, constam as regras constantes da lei reguladora supramencionada. 21 – Ainda assim, agiram de forma diversa da que lhes era exigível e agiram com culpa. 23 – Também para constar do rol dos factos provados: “a instalação de gás permanecia em desconformidade com os requisitos legalmente exigidos desde 29 Junho de 2004, até ao momento do incêndio, em 23 Junho de 2007”. 24 – Na qualidade de locadores, competia aos ora 1.ºs e 2.ª recorridos assegurar à locatária o gozo da coisa para os fins a que se destinava, cumprindo-lhes também efectuar as obras e reparações necessárias. 25 – Deviam os mesmos ter adoptado medidas idóneas e evitar e remover o perigo criado pela sua própria actuação ou decorrente, por motivos diversos, das coisas que lhes pertencem ou tinham o dever de vigiar. 26 – Os RR. violaram as normas dos artigos 6.º e 7.º do DL n.º 263/89, de 17 de Agosto, bem como não agiram em conformidade com as constantes da Portaria n.º 362/2000, de 20 de Junho. 27 – A presunção de culpa dos locatários não poderia nunca ser transferida para a locatária, tendo em conta que, no caso sub judice, se provou que a ora Recorrente alertou pelo menos por duas vezes (provadas nos pontos 10 e 15), para existência de problemas com o esquentador. 28 – As reparações emergentes dessas reclamações não foram devidamente efectuadas, por técnicos credenciados. 29 – Não se pode assacar qualquer responsabilidade à Recorrente, que agiu de acordo com os padrões do bonus pater familiae. 30 – Incorreram assim na prática de uma acto ilícito, culposo, que foi causa adequada dos danos sofridos pela Recorrente. 31 – Haverá, assim, no caso subjacente, uma responsabilidade principal de natureza obrigacional, emergente da relação que se estabeleceu entre as partes por força, bem como responsabilidade extracontratual ou objectiva pelo dever de vigilância da coisa e pelos danos ocorridos, independentemente de culpa. 32 – Atento o contrato de seguro (norma de exclusão de responsabilidade – clausula 7.1 – a responsabilidade da seguradora apenas estão excluídas as reparações pecuniárias exigíveis ao tomador do seguro (proprietário/inquilino) com fundamento em responsabilidade civil extracontratual. 33 – Estamos, como foi já mencionado, mormente no foro da responsabilidade civil contratual, pelo que deverá a seguradora DD acompanhar os demais RR e ser também responsabilizada pelos danos causados à Recorrente, mediante pagamento de indemnização».
8. Pelos RR. foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
9. Observados os vistos, cumpre decidir.
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II. O objecto do recurso.
Com base nas disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil[3], é pacífico que o objecto do recurso se delimita pelas conclusões das respectivas alegações, evidentemente sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, mas apenas as questões suscitadas, e não tendo que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Assim, vistas as alegações de recurso apresentadas pela Recorrente, as questões a apreciar consistem em saber se deve ser alterada a matéria de facto; se os réus agiram com culpa e violaram regras de segurança; e, em consequência, se existe ou não o seu direito ao ressarcimento pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
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III – Fundamentos III.1. – De facto Foram os seguintes os factos considerados como provados na sentença recorrida:
1- Mostra-se inscrito sob o artº … e descrito sob o nº …/… na Conservatória do Registo Predial de Loulé, freguesia de Quarteira, o prédio urbano constituído em propriedade horizontal onde se insere a fracção autónoma correspondente ao 8º andar, porta …, constituída por habitação com vestíbulo, sala com kitchenette, casa de banho e terraço, com a área de 46,70m2, com arrecadação na cave, cujo direito de propriedade se encontra inscrito a favor dos réus BB e FF (artº9º da p.i.).
2- A autora decidiu vir viver para o Algarve, onde pretendia efectuar o estágio de advocacia, frequentando a Ordem dos Advogados - Delegação de Faro (artº8º da p.i.).
3- Para o efeito, em meados de Março de 2007, a autora contactou com a ré CC para que lhe fosse cedido o gozo e a fruição temporária da fracção autónoma identificada em 1. (artºs 9º e 12º da p.i.).
4- O réu BB havia encarregue a ré CC de zelar pela fracção autónoma e equipamentos ali existentes e pela angariação de inquilinos e recebimento das respectivas contrapartidas (artº 13º da p.i.).
5- A autora acordou verbalmente com a ré CC a cedência temporária da referida fracção autónoma mediante o pagamento de uma contrapartida mensal de €350,00 (artºs 10º e 12º da p.i.).
6- O gozo e a fruição da fracção autónoma por parte da autora tiveram o seu início em meados de Março de 2007 (artº 10º da p.i.).
7- A fracção autónoma foi cedida à autora com mobílias e equipamentos electrodomésticos, nomeadamente frigorífico, fogão de cozinha, esquentador, máquina de lavar roupa e exaustor (artº11º da p.i.).
8- O esquentador existente na fracção autónoma era accionado por pressão hidráulica que actuava directamente numa válvula que abria o gás, o qual era posteriormente ignido por um aparelho piezoeléctrico, provocando o acender da chama que aquecia a água (artº26º da p.i.).
9- Quando passou a utilizar a fracção autónoma a autora apercebeu-se que apesar do esquentador ligado e após abrir a torneira da água quente desta nem sempre corria quente (factos complementares que resultaram da discussão).
10- A autora informou a ré Isabel CC do sucedido pedindo-lhe que procedesse à verificação do aparelho (factos complementares que resultaram da discussão).
11- Em finais de Março de 2007 a ré CC solicitou a um técnico que lhe fizera a venda do aparelho que verificasse as condições de funcionamento do esquentador (artºs 66º e 67º da contestação).
12- Este técnico deslocou-se à fracção autónoma, acompanhado da ré CC, no início de Abril de 2007, ligou o esquentador, abriu a torneira e verificou que corria desta água quente (factos complementares que resultaram da discussão e artºs 66ºe 67º da contestação).
13- A ré CC informou a autora que o esquentador se encontrava a funcionar (factos complementares que resultaram da discussão).
14- Em momento posterior, quando a autora abria a torneira da água, continuou a nem sempre correr água quente (factos complementares que resultaram da discussão).
15- A autora informou a ré CC, em meados de Junho de 2007, que continuava a nem sempre correr água quente, solicitando-lhe que resolvesse a situação (artº18º da p.i.).
16- Esta ré informou a autora que havia solicitado a uma pessoa que verificasse o esquentador, comunicando-lhe que se encontrava a funcionar (artº 23º da p.i.).
17- A ré CC, na presença da autora, abriu as torneiras da água e destas saiu água quente (factos complementares que resultaram da discussão).
18- A autora utilizou o esquentador desde meados de Março de 2007 até ao dia 23.06.2007 (artºs 17º, 18º e 28º da p.i. e artºs 54º, 57º e 63º da contestação).
19- No dia 23.06.2007, após chegar a casa, perto das 23h00 a autora decidiu tomar banho (artº28º da p.i.).
20- A autora encontrava-se na banheira, abriu a torneira da água destinada à água quente, apercebendo-se de um estrondo que não identificou (artº 29ºda p.i.).
21- Saiu da casa de banho para perceber do que se tratava (artº30º da p.i.).
22- Quando se encontrava no corredor existente entre a casa de banho e a sala a autora foi apanhada por uma bola de fogo (artºs 30º e 31º da p.i.).
23- A qual teve origem em gás que se acumulou na conduta do exaustor (artº 12º da p.i. aperfeiçoada).
24- E que, após ignido, levou a uma explosão e a que se formasse um foco de incêndio na zona da cozinha (factos complementares que resultaram da discussão).
25- A autora ainda tentou proteger-se e verificando que a fracção autónoma estava em chamas dirigiu-se para a escada existente no interior do prédio (artºs 32º e 33º da p.i.).
26- No patamar da escada a autora foi socorrida por um vizinho que se apercebeu do cheiro a queimado e decidiu verificar o que se passava (artº 36º da p.i.).
27- A autora encontrava-se sem qualquer roupa e apresentava queimaduras no corpo causadas pelas chamas (artºs 35º e 36º da p.i.).
28- A autora ainda pediu auxílio por telefone aos médicos José… e Cristina … (artº39º da p.i.).
29- E foi levada pelo vizinho para a fracção autónoma deste e colocada na banheira com água fria (artº40º da p.i.).
30- Depois foi transportada para o Hospital Distrital de Faro pelos Bombeiros Voluntários de Loulé acompanhada pelo médico (artº42º da p.i.).
31- Em consequência das chamas que a atingiram a autora sofreu queimaduras de 1º e 2º grau na região cervical e torácica, na face, no pescoço e nos membros superiores, numa área estimada de 27,5% da área corporal total (artº42º, 44º e 46º da p.i.).
32- Foi assistida naquele Hospital onde lhe foram prestados os primeiros cuidados médicos, com entubação orotraqueal para conexão a prótese mecânica ventilatória, por lesão inalatória (factos complementares que resultaram da instrução da causa).
33- Foi depois transportada de helicóptero para o Hospital de São José em Lisboa, com ventilação mecânica e com colocação de cateter venoso central (artºs 43º e 45º da p.i.).
34- Esteve conectada a prótese ventilatória cerca de 2 semanas (factos complementares que resultaram da discussão).
35- Em 02.06.2007, 06.07.2007 e 09.07.2007 foi submetida a desbridamento cirúrgico de áreas queimadas de 3º grau (factos complementares que resultaram da discussão).
36- Em 11.07.2007 foi submetida a enxerto de pele nos ombros e membros superiores sendo a zona dadora a coxa direita (factos complementares que resultaram da discussão).
37- Teve alta da Unidade de Queimados em 30.07.2007 para o serviço de Cirurgia Plástica e Reconstitutiva, de onde saiu em 01.08.2007, encontrando-se cicatrizada (artº51º da p.i. e factos complementares que resultaram da discussão).
38- Após extubação orotraqueal entrou num quadro de psicose pós-traumática (factos complementares que resultaram da discussão).
39- Foi encaminhada para o serviço de Urgência de Psiquiatria do Hospital Curry Cabral, onde teve acompanhamento psiquiátrico e psicológico (factos complementares que resultaram da discussão).
40- Teve alta medicada com indicação de seguimento em Consulta de Psiquiatria e de Queimaduras (factos complementares que resultaram da discussão).
41- Fez tratamentos complementares de fisioterapia e cinesiterapia respiratória face às sequelas da queimadura inalatória (factos complementares que resultaram da discussão).
42- Em 19.09.2008, por apresentar cicatrizes múltiplas nos antebraços, no dorso das mãos e na região pré-esternal, foi submetida a cirurgia-plastias de deslizamento em “Z” e “W” múltiplas, em regime de internamento (artº 54º da p.i. e factos complementares que resultaram da discussão).
43- Em 19.03.2009 foi submetida a intervenção cirúrgica - excisões parciais de cicatrizes e plastias múltiplas em cicatrizes dos antebraços e do dorso da mão esquerda (factos complementares que resultaram da discussão).
44- Em 12.08.2010 procedeu-se a excisão de brida cervical anterior e de outras cicatrizes hipertróficas do bordo radial da mão direita, da face posterior externa do antebraço direito, do cotovelo direito e da face anterior do tronco seguido de múltiplas plastias (factos complementares que resultaram da discussão).
45- Todos os procedimentos cirúrgicos foram efectuados sob anestesia geral (artº 57º.24 da p.i.).
46- Durante seis meses após a cicatrização a autora usou material de pressoterapia das cicatrizes e manteve-se em seguimento em Consulta de Queimaduras até 21.09.2011 (artº 53º da p.i. e factos complementares que resultaram da discussão).
47- Passou a ter consultas e intervenções no mesmo Hospital, tratamentos que se mantiveram até 21.09.2011 (artºs 52º e 57º.23 da p.i. e factos complementares que resultaram da discussão).
48- Em 31.01.2014 era previsível a realização, pela autora, de pelo menos mais 4 intervenções cirúrgicas a nível de plástica, com anestesia geral (factos complementares que resultaram da discussão).
49- A autora ficou com o corpo coberto por 36% de cicatrizes (factos complementares que resultaram da discussão.).
50- O que lhe provocou desgosto, tristeza, sofrimento, angústia, nostalgia e recatamento em casa dos pais, afectando as suas relações sociais e familiares (artºs 57º.11, 57º.14 a 57º.16 da p.i.).
51- A autora manteve acompanhamento clínico e psicológico (artº57º.15 da p.i.).
52- Passou a ser uma pessoa triste, sem alegria, deixou de frequentar a praia, de sair com amigos e de apanhar sol no corpo (artºs 57º.15, 57º.16, 57º.19 e factos complementares que resultaram da discussão).
53- A autora teve necessidade de ser acompanhada por um familiar para se vestir (artº 57.26 da p.i.).
54- A autora sofreu dores fixáveis num quantum doloris no grau 5/7 (factos complementares que resultaram da discussão).
55- Sendo o défice funcional permanente da integridade física- psíquica fixável em 29 pontos, sendo de admitir a existência de dano futuro (factos complementares que resultaram da discussão).
56- Com sequelas compatíveis com a actividade profissional mas que implicam esforços suplementares (factos complementares que resultaram da discussão).
57- O dano estético permanente é fixável no grau 6/7 (factoscomplementares que resultaram da discussão).
58- A repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer é fixável no grau 4/7 (factos complementares que resultaram da discussão).
59- A repercussão permanente na actividade sexual é fixável no grau 2/7 (factos complementares que resultaram da discussão).
60- A autora continua a necessitar de ajudas medicamentosas (cremes protectores) e tratamentos médicos regulares (dermatologia/cirurgia plástica/ psiquiatria) (artº63º da p.i. e factos complementares que resultaram da discussão).
61- O incêndio que lavrou no interior da fracção autónoma identificada em 1. foi dado como extinto pelas 04h20m do dia 24.06.2007 (artºs 37º e 38º da p.i.).
62- Com o calor produzido pelo incêndio derreteram os utensílios de cozinha em alumínio e chapa de ferro (artº 47º da p.i.).
63- A zona de concentração de calor foi a zona da cozinha, com rebaixamento da bancada por baixo do exaustor (artº48º da p.i. e factos complementares que resultaram da discussão).
64- Todo o recheio existente na fracção ficou destruído, incluindo os pertences da autora, nomeadamente roupa, sapatos, livros, apontamentos do curso de direito, equipamento informático, pequenos electrodomésticos, loiças, objectos pessoais, cujo valor não se apurou (artºs 48º, 50º e 58º.01 da p.i.).
65- A autora suportou entre os anos de 2007 e 2013 despesas com tratamentos, consultas e medicamentos no montante de pelo menos €3.891,74 (artº 59º da p.i. e requerimento de fls.393).
66- A autora nasceu em 09.03.1976 (artº 57º.01 d p.i. e documento de fls. 1001/1002, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
67- Entre a terceira ré na qualidade de seguradora e o primeiro réu na qualidade de segurado foi celebrado contrato de seguro multirisco para habitação, titulado pela apólice nº 940 …. (artº64º da p.i. e doc. de fls. 55/86, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
68- Nos termos das condições particulares da apólice o segurado transferiu para a terceira ré os riscos relativos à fracção autónoma identificada em 1. (artº64º da p.i. e doc. de fls.55/86, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
69- Entre a EE- Companhia de Seguros na qualidade de seguradora e a administração do condomínio do prédio identificado em 1. na qualidade de segurado foi celebrado contrato de seguro condomínio, titulado pela apólice nº 031 ….. (artº32º da contestação e doc. de fls. 586/587, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
70- Nos termos das condições particulares da apólice o segurado transferiu para a EE os riscos relativos ao edifício ou fracção do prédio identificado em 1. (artº32º da contestação e doc. de fls.586/587, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
71- A apólice referida em 69. foi accionada e o primeiro réu ressarcido dos estragos causados pelo incêndio na fracção autónoma (artº33º da contestação). E foram considerados não provados os seguintes factos:
a) ao abrir a água quente mantinha-se apenas acesa a chama piloto do esquentador (artº17º da p.i);
b) o termopar (válvula reguladora) do esquentador encontrava-se avariado, permitindo a saída de gás, sem aquecer a água (artº11º da p.i. aperfeiçoada);
c) o gás libertado pelo esquentador acumulou-se no tecto falso que fazia um “L” do corredor onde estava embutido o esquentador até à kitchenette gerando uma bolsa de gás (artº12º da p.i. aperfeiçoada);
d) … e provocou a explosão (artº12º da p.i. aperfeiçoada);
e) a segunda ré alertada para o deficiente funcionamento do esquentador não procedeu à sua reparação (artº 68º da p.i.);
f) no início de Março de 2007 o esquentador tinha sido sujeito a revisão para limpeza de eventuais resíduos de calcário (artº 66º da contestação);
g) o incêndio teve origem nas velas acesas colocadas pela autora na fracção autónoma (artºs 79º e 81º da contestação);
h) com o incêndio ficaram destruídas pastas de trabalho com informação sobre acções e outros trabalhos profissionais em que a autora estava empenhada (artº50º da p.i.);
i) dossiers contendo trabalho de natureza jurídica arderam em conjunto com os outros objectos que se encontravam na fracção autónoma (artº58º.04 da p.i.);
j) os documentos existentes em suporte magnético eram únicos e ficaram destruídos (artº 58º.02 da p.i.);
k) ficaram destruídos trabalhos como:
- apresentação em power point de trabalhos apresentados num curso de formação de formadores;
- trabalhos diversos realizados durante o curso de direito;
- pesquisas feitas em laser para trabalho posterior;
- trabalhos realizados sobre segurança, higiene e saúde no trabalho;
- cópias de trabalhos diversos guardados como ferramentas de trabalho futuro (artº61º da p.i.).
*****
III.2. – O mérito do recurso III.2.1. – Da Impugnação da matéria de facto
Conforme decorre das conclusões do presente recurso, a Autora pretende a reapreciação por este Tribunal da Relação da matéria de facto constante do ponto 18. da factualidade provada e das alíneas c), d), e e), da matéria de facto considerada pela julgadora como não provada, por entender, quanto ao ponto 18. que devia ter ficado provado que «a autora utilizou, algumas vezes, o esquentador, desde meados de Março de 2007 até ao dia 23.06.2007; que aqueles factos «não provados» se encontram provados pelo depoimento das testemunhas que identificou e os corroboraram; existindo ainda matéria que a Recorrente considera «relevante para a descoberta da verdade material», quanto à desconformidade da instalação de gás e equipamento (esquentador), devendo ser incluído na matéria de facto provada o seguinte facto: «a instalação de gás permanecia em desconformidade com os requisitos técnicos legalmente exigidos, desde 29 de Junho de 2004 até ao momento do acidente, em 23 de Junho de 2007».
Tendo a recorrente cumprido os ónus que sobre si impendem, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do CPC, cumpre-nos proceder, tanto quanto nos é possível[4], à reapreciação da prova produzida, tendo presente que a mesma se destina primordialmente a corrigir invocados erros de julgamento que - atento o preceituado no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que rege sobre a modificabilidade da decisão de facto -, se evidenciem a partir dos factos tidos como assentes, da prova produzida ou de um documento superveniente, por forma a imporem decisão diversa. Significa esta formulação legal que não basta que a prova produzida nos autos permita decisão diversa, necessário é que a imponha. Por isso que, se exige ao Recorrente que motive as alegações de recurso, dizendo as razões que determinam, em seu entender, diverso juízo probatório, para que a Relação possa aquilatar se os meios de prova por aquele indicados impõem ou não decisão diversa da recorrida quanto aos concretos pontos de facto impugnados.
Iniciaremos a pretendida reapreciação, pela análise do requerido aditamento, a que aludem as conclusões de recurso 7.ª a 30.ª respeitante à invocada desconformidade da instalação de gás, alegadamente fundadora da responsabilidade dos Réus com base no preceituado no artigo 491.º do Código Civil[5].
Ora, cotejada a indicada matéria de facto com o petitório, quer o articulado inicial quer o aperfeiçoado, verificamos que nenhum dos factos cujo aditamento agora é requerido foi então alegado.
Somos, pois, convocados à questão prévia de saber se, mesmo a verificar-se que tal factualidade resultou da instrução da causa, podia ou não a mesma ter sido considerada pela primeira instância, nos termos propostos pela Autora ou em moldes semelhantes, porque só em caso de resposta afirmativa poderá este Tribunal aditá-la à factualidade provada.
Como é sabido, em face do actual CPC, «a abolição da base instrutória e a opção pela enunciação de temas de prova dá aos tribunais de instância maior liberdade na circunscrição da matéria de facto, já não valendo argumentos de pendor formalista» sendo agora possível ao juiz «optar por uma formulação mais genérica, desde que não seja pura matéria de direito em face do caso concreto, tal como existe uma maior liberdade na consideração de factos que não foram alegados mas que resultaram da discussão da causa, nos termos do art. 5.º, n.º 2, do NCPC».
Assim, «ao contrário do que sucede quanto aos factos essenciais - relativamente aos quais funciona o princípio da auto-responsabilidade das partes -, quanto aos factos instrumentais, o tribunal não está sujeito à alegação das partes, podendo oficiosamente carreá-los para o processo e sujeitá-los a prova»[6], devendo ainda nas decisões dos tribunais «ser tida em conta, não só a alegação factual explícita, como também a implícita»[7].
Acresce que, atento o princípio do inquisitório ínsito no artigo 411.º do CPC, na instrução da causa incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Finalmente, o artigo 607.º, n.º 4, do CPC, impõe-lhe, para além do mais, que na fundamentação da sentença declare quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais elementos que foram decisivos para a sua convicção, tudo tendo em vista a prevalência do fundo sobre a forma.
Consequentemente, com o novo Código de Processo Civil, «atribui-se ao juiz um poder mais interventor, sem que tal signifique, porém, o fim do princípio dispositivo e a sua substituição pelo princípio inquisitório, uma vez que continua a caber às partes a definição do objecto do litígio, através da dedução das suas pretensões e da alegação dos factos que integram a causa de pedir ou suportam a defesa»[8].
Efectuamos este enquadramento para significar que se impõe ao juiz que se pronuncie sobre todos os factos relevantes, quer os que consubstanciam o direito invocado, quer as excepções deduzidas, mas quer na redacção do anterior CPC, quer na actual, às partes sempre coube alegarem os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que baseiam as excepções (artigo 264.º, n.º 1, do anterior CPC e artigo 5.º, n.º 1, do vigente CPC), ou seja, o fundamento do direito invocado ou os factos que impedem, modificam ou extinguem aquele direito, consoante a posição de autor ou réu em que se encontrem.
Cabe, pois, aquilatar o que significa a referida maior amplitude na conformação de facto da acção, decorrente do disposto nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC. Significa seguramente que para além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados, os factos referidos neste preceito, designadamente os complementares, assim se consagrando o que há muito a jurisprudência vinha parcialmente fazendo com as denominadas “respostas explicativas”[9]. Mas, significará também que actualmente pode resultar da instrução da causa uma diferente conformação do objecto do litígio? É o que cabe analisar com mais detalhe.
Dizem os indicados autores, que «a concreta narração dos factos feita pelo autor não se confunde com a causa de pedir. Esta conclusão é determinante no regime de alegação dos factos essenciais e da sua preclusão. Dela se retira que o autor (…) pode alegar factos essenciais fora da petição inicial, contanto que se insiram na causa de pedir – assim concluindo a exposição que deveria ter feito no articulado inicial. (…)
Significa isto que, embora a narração feita no articulado inicial não seja forçosamente definitiva, ela é determinante, pois, através da identificação da causa de pedir que oferece, ela ancora o objecto da instância, apenas permitindo a alegação de novos factos essenciais que respeitem à causa de pedir identificada, embora não exaustivamente descrita. Ao alterar a narração dos factos essenciais a parte deve movimentar-se dentro dos limites da causa de pedir já identificada - mas não devidamente descrita - na articulação inicialmente feita, isto é deve movimentar-se dentro da relação jurídica material, alegando factos a esta pertencentes que já poderia e deveria ter alegado no seu articulado inicial».
Por seu turno, a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a afirmar que «I. A realização da justiça no caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves- mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República. II. A decisão judicial, enquanto prestação do dever de julgar, deve conter-se dentro do perímetro objetivo e subjetivo da pretensão deduzida pelo autor, em função do qual se afere também o exercício do contraditório por parte do réu, não sendo lícito ao tribunal desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo. III. Incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, mas dentro da fronteira da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido, sendo-lhe vedado enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase aquele limite, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada. IV. Não tendo o A. logrado provar os factos que consubstanciam a causa de pedir invocada, provando-se antes uma relação jurídica diversa, firmada entre o autor e um dos réus, de que possa resultar também um efeito prático-jurídico distinto do peticionado, não resta senão julgar a ação improcedente»[10].
Ora, no caso vertente, a relação jurídica material tal qual a autora a apresentou na acção, fundou-se na alegação de factos tendentes a demonstrar a existência de uma avaria no esquentador, que foi denunciada pela Autora/arrendatária aos Réus/senhorios, e que estes não repararam, estando a mesma na origem da explosão/incêndio que ocorreu no arrendado.
E foi com base nesta relação jurídica que os Réus apresentaram a respectiva contestação, onde impugnaram especificadamente a matéria de facto alegada, aduzindo, eles sim, que o acidente ocorreu devido a conduta da autora, a qual detinha a coisa e a quem incumbia o dever de vigilância.
Assim, esta defesa motivada dos Réus leva-nos à questão seguinte: a relativa à oportunidade da admissibilidade da alteração da narração dos factos essenciais. De facto, sendo certo que ocorreu a referida alegação por banda dos Réus, não é menos certo que a invocação da responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância foi feita por aqueles precisamente para imputarem a responsabilidade pelo sinistro à autora. Deste modo, atento o preceituado no artigo 260.º do CPC, instância manteve a sua conformação inicial quer quanto aos sujeitos quer quanto à causa de pedir, já que, na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada, como era o caso, em consequência de confissão feita pelo réu, e aceite pela autora, nos termos previstos no artigo 265.º, n.º 1, do CPC, o que manifestamente não aconteceu.
Ora, «a existência de uma relação material devidamente caracterizada por (outros) factos essenciais alegados é chão desta discussão».
Na verdade, a alteração preconizada pela autora só poderia ocorrer no pressuposto de estarmos perante factos complementares ou concretizadores dos essenciais alegados, em qualquer caso, de factos que não extravasem o objecto do litígio. Porém, por outras palavras, apenas «são complementares ou concretizadores os factos essenciais não alegados pertencentes à relação jurídica material».
Daí que se tenha que concluir que, no caso vertente, o que a autora pretende é transmutar os factos essenciais alegados como fundamento da acção nestes outros factos essenciais que foram alegados, de forma a pretender obter o efeito oposto, e nunca em sentido coincidente ou sobretudo com o cariz que a autora lhes pretende agora dar, já que chegaram aos autos como fundamento da defesa. Concluindo, a autora pretende usar factos que claramente extravasam o objecto do litígio talqualmente o configurou no momento próprio, e essa sua pretensão não é admissível.
Na verdade, se da alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC resulta que no julgamento subsequente à audiência final, poderão ser considerados pelo juiz quaisquer factos essenciais que resultem da discussão da causa, é certo que tal consideração só pode acontecer desde que se integrem no objecto do litígio.
Acresce que, em face do disposto no artigo 413.º do CPC, não obstante o tribunal deva tomar em consideração todas as provas produzidas ainda que não tenham emanado da parte que devia produzi-las, não o pode fazer quando a alegação do facto não foi efectuada pelo interessado certo, no caso, a autora, por via do disposto nos artigos 3.º, n.º 1, do CPC e 342.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, sob pena de violação do princípio do pedido.
Deste modo, extravasando a configuração factual cuja alteração a Recorrente pretende o objecto do litígio, e não se tratando manifestamente de factos instrumentais ou complementares, mas sendo antes factos essenciais, cujo ónus de oportuna alegação incumbia à autora, sob pena de preclusão, vedado estava ao tribunal de primeira instância e, consequentemente vedado se encontra a esta Relação, sancionar o pretendido aditamento.
Consequentemente, sendo legalmente inadmissível ter em consideração a indicada factualidade em benefício da pretensão da autora, é absolutamente inútil a apreciação da prova por si indicada, com vista à requerida ampliação da matéria de facto provada, pelo que, atento o preceituado no artigo 130.º do CPC, que proíbe a prática de actos inúteis, deve tal pretensão ser recusada mercê da patente desnecessidade decorrente da impossibilidade de a mesma ser tida em conta na solução do pleito[11].
Vejamos agora a pretendida reapreciação da prova, referente ao ponto 18 dos factos provados (parcialmente), bem como às alíneas c), d) e e) dos factos não provados.
Quanto ao ponto 18 da matéria de facto provada, do qual consta que “A autora utilizou o esquentador desde meados de Março de 2007 até ao dia 23.06.2007 (artºs 17º, 18º e 28º da P.I. e artºs 54º, 57º e 63º da contestação)”, dissente a Apelante do facto de o Tribunal a quo ter considerado que tal factualidade «resultou admitida pela autora, que nas declarações prestadas, como referimos, não refutou a utilização do esquentador desde o início da ocupação até ao dia 23.06.2007, justificando, porém, a utilização em apenas 3 a 4 dias por semana”, fazendo supor que a utilização do esquentador era efectuada de forma mais regular do que aquela que efectivamente era.
Ora, basta atentar na fundamentação da matéria de facto para verificarmos que a referência da Senhora Juíza a como referimos reporta-se à fundamentação anterior onde havia expresso que «mesmo em audiência, a autora não afastou que se manteve na fracção autónoma a utilizar o esquentador (ainda que tenha explicado que o utilizava quase apenas 3 a 4 dias da semana), saindo por vezes água quente. Declarações que se coadunam com as regras de normalidade, atendendo à época do ano (Março a Junho), pois seria difícil (não impossível) tomar banho de água fria, durante todo aquele período, não sendo expectável o contrário, ou seja, que não tomasse banho». E mais adiante, em seguida àquela primeira transcrição, refere «corroborando essa utilização, a autora descreveu o sucedido nesse dia 23.06.2007, quando se preparava para tomar banho, sendo que o facto de ter sido encontrada sem roupa corrobora tal versão».
Salvo o devido respeito, é inócua a pretensão da Autora no tocante a esta pretendida alteração mediante a qual quase pretender definir em quantos dias é que o esquentador foi utilizado naquele período temporal, já que pretende que se coloque que a Autora utilizou o esquentador “algumas vezes” porque acabava por tomar banho em Lisboa ou em casa de amigas, no fundo circunscrevendo o período em que tinha necessidade de o utilizar. Ora, por um lado, basta pensar que resulta também das próprias declarações da autora, as quais ouvimos atentamente, que a mesma acabou por ficar no Algarve também em alguns fins-de-semana, e, por outro lado porque, efectivamente o que importa é que desde que tomou de arrendamento a fracção autónoma e até ao dia em que ocorreu o acidente em causa nos autos, a autora usou o esquentador.
Como assim, nada há a alterar ao ponto 18 da matéria de facto provada.
Vejamos agora se deve ser considerada provada, como pretende a Apelante, a matéria de facto constante das alíneas c), d), e e) dos factos não provados, e que tem o seguinte teor: «c) O gás libertado pelo esquentador acumulou-se no tecto falso que fazia um “L” do corredor onde estava embutido o esquentador até à kitchenette gerando uma bolsa de gás; d) e provocou a explosão; e) a segunda ré alertada para o deficiente funcionamento do esquentador não procedeu à sua reparação»
Entende a Apelante que «a Mm.ª Juiz a quo aceitou e deu como provado que existiu uma fuga de gás que se acumulou no tubo do exaustor, tendo, após a ignição, ocorrido a explosão e o consequente incêndio, mas entendeu que não foi feita prova suficiente de que esse gás teria provindo do esquentador ou que existisse qualquer deficiência no esquentador: “... a hipótese que adiantou de acumulação de gás ter tido origem no esquentador apenas encontra sustento na versão da autora, com fundamento em avaria do aparelho, a qual não se comprova”. Fls. 1031, último parágrafo. Refere ainda a Douta Sentença que “nunca foi realizado qualquer exame ou peritagem ao esquentador para determinar as respectivas condições de funcionamento … Nem tão pouco foi efectuada a verificação das canalizações …” (Fls. 1029, segundo e terceiro parágrafo) Contudo, nem todos os factos têm de ser provados por peritagem, designadamente, quando existem depoimentos, como do inspector da PJ, para além de outros factos provados nos autos que demonstram que o acidente ocorreu pela desconformidade do esquentador(e não só, como veremos adiante), esquentador esse que teve problemas desde o início do arrendamento».
Ora, para fundamentar a sua pretensão quanto à alteração desta matéria de facto não provada, a Recorrente parte desde logo do pressuposto, não demonstrado, que os factos provados nos pontos 9 a 16 revelam que o esquentador tinha problemas.
Efectivamente, o que ali consta é que o técnico que se deslocou ao local não detectou quaisquer problemas no esquentador, tanto assim que não efectuou no mesmo qualquer reparação, conforme a própria testemunha Jacinto … atestou, porquanto o aparelho encontrava-se a funcionar e das torneiras corria água quente.
E, para confirmar que outras questões técnicas podem estar na origem de nem sempre correr água quente, afastada que na nossa perspectiva se encontra a aventada questão da baixa pressão de água colocada no relatório elaborado pelo Senhor Inspector da Polícia Judiciária, por via do ofício emitido pela entidade competente que atesta estar a pressão de água naquela zona sempre nos limites adequados e não ter havido qualquer queixa de baixa pressão no período em causa, fica, por exemplo, aquela que é identificada pelo Instituto do Consumidor, no documento intitulado “O Gás em Casa - Guia para a Segurança na sua Utilização”[12], onde consta, em linguagem simples, destinada a ser conhecida pelo consumidor, informação destinada a saber sobre a existência de um «dispositivo que fecha a válvula do gás no caso de os produtos da combustão estarem a sair para o ambiente onde o aparelho está instalado. Esta situação acontece quando a chaminé de evacuação dos produtos da combustão não é adequada. Toma-se conhecimento desse facto porque o esquentador funciona durante alguns minutos e depois apaga-se. Se o esquentador se apagar repetidamente, aparentemente sem motivo, é possível que seja esta a razão e deve solicitar-se a assistência de uma entidade montadora.
O dispositivo está colocado na chaminé do esquentador (designada anti-retorno, pois destina-se a desviar vento que entre em sentido descendente na chaminé, evitando que o queimador se apague). Actua por acção da temperatura quando os produtos da combustão que não saem pela chaminé e que estão quentes, passam pelo dispositivo, este fecha a válvula do gás. Esta acção é importante uma vez que se há produtos da combustão a entrar no compartimento onde o aparelho está instalado há também CO». Significa o que vem de dizer-se que, ao invés do que a Recorrente refere, da matéria de facto provada não decorre necessariamente que o facto de nem sempre sair água quente, significasse a existência de uma avaria no esquentador, podendo tal facto ter origem, por exemplo, na situação ora descrita. E, não podemos olvidar que nos encontramos perante um esquentador adquirido em 10.07.2004 (cfr. factura de fls. 974), com ignição vulgarmente designada como inteligente, ou seja, por via da mera abertura da torneira, conforme a própria Autora confirmou nas respectivas declarações de parte. Acresce que, estamos perante aparelho adquirido em estabelecimento comercial e, portanto, em princípio, sujeito a todos os devidos testes de segurança antes da comercialização respectiva.
Portanto, ao contrário do que invoca a Recorrente, o facto de o aparelho não ter sido sujeito a uma peritagem que atestasse a sua avaria, seria relevante porquanto, em face das regras da experiência comum, com menos de 3 anos de utilização - mesmo que não se pense na mesma como de carácter esporádico, conforme referido pela Ré CC nas suas declarações, que o aduziu ao explicar que a casa em questão seria uma habitação destinada a férias -, não é habitual que um aparelho adquirido novo tenha avarias ou, menos ainda, permita uma fuga de gás, daí a dúvida sobre a afirmação peremptoriamente efectuada pelo Senhor Inspector Carlos …, de que a origem do incêndio foi no esquentador, quando o próprio também vem a declarar, mais no final do respectivo depoimento, que assim que viu que a origem do incêndio não era criminosa, o que foi ao local para apurar, não fez qualquer tipo de peritagem ao esquentador, que o próprio não verificou se o mesmo tinha ou não qualquer avaria.
Ficava então a possibilidade da existência de uma fuga de gás também com origem no esquentador.
Acresce que, no mesmo indicado Guia, referindo-se a «como prevenir e reconhecer os perigos referentes aos «riscos de inalação» informa que «a perigosidade do monóxido de carbono resulta do facto de ser inodoro, não se sentindo assim a sua presença. (…) Os gases combustíveis utilizados nos aparelhos são inodoros, mas antes de serem introduzidos nas garrafas ou nas redes de gás, são adicionados de um produto com cheiro (odorizados), pela empresa distribuidora, de forma a que uma fuga possa ser facilmente reconhecida pelo nosso olfacto».
A Autora declarou não ter sentido qualquer cheiro a gás e declarou também que tinha aberto a torneira para tomar banho e esperava que a água chegasse quente à casa de banho quando ouviu um estrondo, vindo apurar o que se passava quando verificou que já estava tudo a arder na zona da Kitchenette e sala. Ora, tendo o próprio Senhor Inspector efectuado declarações que confirmam o que consta descrito no indicado guia, ficamos sem compreender como, não tendo a autora sentido cheiro a gás antes de ir para a casa de banho, se pode explicar, como aventou o Senhor Inspector que houvesse uma fuga de gás com origem no esquentador, e, seguidamente, não conseguimos compreender como, se a mesma existisse, e sendo naturalmente mínima porque não cheirou à Autora, provocaria uma explosão com a dimensão da ocorrida. E mais, não conseguimos compreender como, sendo assim, a zona mais danificada era a do fogão e do exaustor, mantendo-se o esquentador na parede, e com a tampa respectiva colocada, não se encontrando também danificado o armário existente em frente a este. Acresce ainda que, também não conseguimos compreender como, não sendo o gás natural, se acumularia na zona da conduta ou do tecto, ou seja, por que subiria em consequência de fuga de gás, quando o próprio Senhor Inspector referiu que o gás butano tendia a descer sendo que, o gás existente na habitação era butano. Porém, esta explicação pode ter como origem um pensamento inicial de que estávamos perante gás natural. De facto, o Senhor Inspector começou por declarar não ter apurado se o gás era natural ou butano.
Ora, tal qual como declarou o Senhor Inspector, consta também ainda daquele mesmo guia informação sobre os «riscos de incêndio e explosão», afirmando-se que «no caso de fuga de qualquer destes três gases combustíveis, interessa conhecer como se acumulam numa habitação. O gás natural é menos denso (pesado) que o ar, pelo que em caso de fuga sobe, acumulando-se junto ao tecto ou saindo por portas e janelas. O propano e o butano são mais densos que o ar e assim, em caso de fuga, acumulam-se junto ao chão. Caso não sejam evacuados a sua concentração no ar vai aumentando, podendo ser atingidos os respectivos limites de inflamabilidade, susceptíveis de provocar a sua deflagração (a faísca de um interruptor eléctrico é suficiente para a provocar)».
Socorremo-nos deste Guia para significar que se trata de informação mínima mas que, no caso, nos ajuda a colocar algumas dúvidas quanto à validade das afirmações peremptoriamente efectuadas pela referida testemunha, e descritas pela Apelante.
Efectivamente, no relatório inicial vemos que avança com duas possibilidades, sendo que a informação sobre a origem no esquentador parte do relato que a autora lhe efectuou que tinha problemas com o aparelho desde o início de ter ido para a casa. A da baixa ressão de água, já vimos que ficou afastada. De facto, a esse respeito o teor da carta remetida aos autos pela empresa que efectua a distribuição de águas na zona de Vilamoura, que faz (fls. 581) esclarece cabalmente que não existiu qualquer problema na pressão da água“… quer em 23 de Junho de 2007, quer nos dias antecedentes a essa data, não se verificou qualquer reclamação de clientes ou de terceiros em relação à pressão da água, nem ocorreu qualquer anomalia no sistema, e tão pouco se conhece a ocorrência de qualquer outro acidente”.
Restaria, pois, a hipótese da fuga de gás no próprio esquentador, a qual nos suscita as indicadas dúvidas, as quais não são dissipadas quando consta do relatório efectuado pela testemunha que o “incêndio teve origem na zona onde se situa o fogão e o exaustor” (fls. 221 dos autos), explicando a testemunha em audiência de julgamento, que a explosão, seguida de incêndio, teve início da zona do fogão e do exaustor. Contudo, segundo entende o mesmo, a causa da explosão é a fuga de gás do esquentador.
Ora, a explicação colocada em audiência, que justificaria a acumulação de gás proveniente do esquentador na conduta do exaustor e consequentemente que a origem fosse desse lado mas proveniente do gás libertado pelo esquentador. A dada altura o Senhor Inspector afirmou que o esquentador a funcionar bem, ao abrir a torneira de água quente a válvula faria parar a abertura de gás e o piloto que está ligado faria a ignição do gás, e que o desfasamento entre um e outro provocou a explosão de gás.
Porém, como afirmou também o butano e o propano, de facto, são mais pesados que o ar; é suposto descer, mas não, havendo uma conduta que já está quente, esse gás sobe pela conduta e depois, a determinada altura, … apanha o tal T e espalha-se e vai para cima do exaustor que está na cozinha. E acumulou-se no tecto falso, onde está o exaustor, e tem uma bolsa de gás bastante grande …”
Acontece que, estas afirmações da testemunha foram despois mais aprofundadas e esmiuçadas, mas em partes do seu depoimento que, pese embora o grande esforço de compreensão que efectuámos, se mostram imperceptíveis, daí termos afirmado que reapreciaríamos a prova, tanto quanto possível.
Dispõe o artigo 155.º, n.º 4, do CPC que «A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de dez dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada».
Não existindo na lei anterior resposta à questão de saber qual o vício decorrente da inaudibilidade do registo áudio «o artigo 155.º, n.º 4 veio resolver as dúvidas, impondo à parte o ónus de invocar a irregularidade no prazo de 10 dias a contar da data em que tenha sido disponibilizada a gravação (disponibilização que deve ocorrer no prazo de dois dias a contar do acto, nos termos do n.º 3) (…)
Tratando-se de uma nulidade processual, terá de ser arguida autonomamente, sendo submetida a posterior decisão do juiz a quo, não sendo admitida a sua inserção imediata nas alegações de recurso»[13].
Assim, é entendimento que cremos pacífico após a entrada em vigor do novo CPC, que decorrido esse prazo sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida sequer nas alegações de recurso.
«Daí afirmar-se que “a omissão ou deficiência das gravações é, após a entrada em vigor do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, um problema que deve ficar definitivamente resolvido ao nível da primeira instância, quer pela intervenção oficiosa do juiz que preside ao ato quer mediante arguição dos interessados”[6], deixando de ser admissível que a parte interessada na arguição o possa fazer no prazo de interposição do recurso – 30 ou 40 dias -, nas respetivas alegações»[14].
Acresce que, chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade de interpretação semelhante efectuada a respeito dos correspondentes preceitos do Código de Processo Penal, o Tribunal Constitucional, pronunciou-se concluindo que «a norma segundo a qual a nulidade decorrente da falta ou deficiência da documentação da prova deve ser arguida no prazo de dez dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, não padece de inconstitucionalidade»[15].
Ora, conforme se concluiu no já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, «Não tendo este Tribunal acesso a um depoimento que estriba a impugnação da matéria de facto, fica o mesmo impossibilitado de efetuar a reapreciação da prova pretendida pelo apelante. Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.10.2014, Cristina Coelho, 250/09, «Se é certo que, com o NCPC, a Relação se assume como um verdadeiro tribunal de instância, procedendo à reavaliação da prova e expressando a sua própria convicção com total autonomia, não menos certo é que tal reapreciação terá de ser feita com os mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou.»
Pelo exposto, conclui-se não poder este tribunal reapreciar a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto impugnada pelo apelante, por carecer dos elementos necessários para tal, improcedendo a apelação nesta parte».
No caso vertente, não sendo tão gravosa a consequência da imperceptibilidade parcial da gravação das declarações da indicada testemunha, aplicam-se, com as necessárias adaptações aquela consequência, já que este tribunal não tem condições para firmar na parte indicada a respectiva convicção, devendo a Relação estar nas mesmas condições em que se encontrou a primeira instância.
Acresce que, importa referir ainda a este respeito da causa da explosão e incêndio que a carta subscrita pela testemunha Carlos …, à data do incêndio perito da R. DD, constante dos autos a fls. 865 onde consta que «aproveitamos para informar que o sinistro teve origem num esquentador, objecto do recheio da habitação …”, e, bem assim o depoimento prestado pela identificada testemunha, mormente no segmento em que refere que carta foi elaborada de acordo com a peritagem efectuada pela Realperitos, por troca de informação com o perito, e por outros elementos existentes no processo da seguradora, que não sabemos quais foram, não tem a virtualidade de, por si só, fundamentar a alteração da indicada matéria de facto.
Na verdade, basta pensar que a testemunha declarou nunca estive no local. A peritagem foi realizada pela firma, pela empresa Realperitos, quando do relatório desta empresa, junto a fls. 975 e ss. consta «aferimos que o incêndio terá tido origem na zona do fogão/exaustor na Kitchenett, bem como pela análise por nós efectuada tudo indica que terá tido início nessa zona». Acresce que, idêntica origem consta na informação de serviço de fls. 220, elaborada pelo Senhor Inspector da Polícia Judiciária, nos seguintes termos: «o incêndio teve grande concentração de calor, na zona que serve de cozinha, local em que os objectos, como tachos e electrodomésticos foram consumidos pelas chamas e alguns apresentavam-se completamente derretidos, apesar de se tratar de ligas como alumínio e ferro. É nesta zona que as paredes e azulejos caíram, o que se pode justificar pela grande quantidade de calor que se verifica na zona de ignição (…) indicando o ponto de início».
Deve, pois manter-se inalterada a matéria de facto não provada descrita nas alíneas c) e d).
Finalmente, uma referência se impõe a respeito da pretendida alteração à alínea e) da matéria de facto não provada onde consta que a segunda ré alertada para o deficiente funcionamento do esquentador não procedeu à sua reparação.
Insurge-se a Recorrente, dizendo que foi o próprio técnico que ali se deslocou que afirmou não ter feito qualquer reparação. Já vimos que efectivamente tal foi declarado, conforme acima já avançámos. Porém, isso não significa que a matéria em questão deva ser alterada. Na verdade, o que está ali em causa é saber se a Ré CC, alertada, nada fez. Como vimos, fez. Solicitou a intervenção da testemunha Jacinto … para ver o que se passava com o esquentador, a qual não reparou o aparelho precisamente porque o mesmo se encontrava a funcionar, saindo das torneiras água quente. E era este o problema reportado. Não se verificando tal anomalia, nenhuma reparação foi efectuada no esquentador.
Concluindo, improcedem todas as conclusões recursivas respeitantes à impugnação da matéria de facto, não existindo qualquer fundamento que imponha decisão diversa da recorrida que, desta sorte, se mantém.
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III.2.2. – Da responsabilidade civil
Por via da presente acção a Autora pretende que os Réus sejam responsáveis pelo pagamento da indemnização que peticiona, para ressarcir os danos patrimoniais e não patrimoniais que invocou ter sofrido na sequência do incêndio que deflagrou na casa que havia arrendado, pedindo a respectiva condenação nos seguintes termos: «- do Primeiro Réu no pedido, na parte que não estiver coberto pela apólice de seguro que ele, primeiro Réu, contratou com a terceira Ré. - da Segunda Ré, na parte do pedido que, não estando coberto pela apólice do seguro contratado entre o primeiro Réu e terceira Ré, os danos tenham sido causados por acção ou omissão que lhe seja imputável. , da terceira Ré no pedido, na parte que esteja compreendida e abrangida pelo capital seguro pela apólice que ela, terceira Ré, contratou com o primeiro Réu. - Para além de que devem todos os Réus serem condenados a pagar à Autora todos os custos cujas causas sejam conexas com o sinistro de que tratam estes autos, e que se venham a ocorrer no futuro».
Em fundamento da pretensão assim deduzida, a Autora, pese embora não tenha referido na petição inicial qualquer norma legal a este respeito, indicou, nos termos que à data da entrada da acção em juízo preceituava o artigo 467.º, n.º 1, alínea d), do CPC, como razões de direito da sua pretensão as seguintes: «O primeiro Réu pela responsabilidade que lhe advém da obrigação de manter em perfeito estado de conservação os aparelhos que equipavam o apartamento que arrendou à autora e que, como decorre do presente articulado, pelo menos o esquentador que equipava o apartamento não só não estava em condições de funcionamento nem, após alertas da Autora, a situação foi revista de forma a que se tivesse evitado o sinistro de tão graves consequências. A Segunda Ré porque, tendo sido encarregada pelo primeiro Réu para zelar pela manutenção e reparação dos equipamentos instalados no apartamento não o fez de modo a evitar as conhecidas e referidas consequências. A terceira Ré porque, tendo contratado um seguro de responsabilidade civil que abrangia os danos causados por sinistro que ocorressem no apartamento, responde pelos danos que supra se referem, até ao limite do capital seguro, cujo montante a Autora desconhece».
Fundou a Autora, como é cristalino, o peticionado direito a indemnização na responsabilidade civil.
Porém, como não qualificou se estribava a sua pretensão na responsabilidade contratual ou extracontratual, na sentença recorrida, tal qualificação foi enfrentada nos seguintes termos: «É conhecido que a responsabilidade civil pode assumir tanto a modalidade da responsabilidade contratual - quando provém da “falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos” - como a modalidade de responsabilidade extracontratual, também designada por delitual ou aquiliana, quando resulta da “violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos, que embora lícitos, causam prejuízo a outrem”, da violação de deveres de conduta, que são vínculos jurídicos gerais impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos (neste sentido, vide Antunes Varela, in “Das obrigações em geral”, vol. I, 8ª edição, p. 526). Perante a factualidade acima descrita verifica-se que a autora havia acordado a cedência temporária, mediante remuneração, da fracção autónoma identificada em 1. com o réu António Laidley, por intermédio da ré Isabel, a qual havia sido por este encarregue para o efeito. Tal relação fáctica configura um contrato de arrendamento previsto no artº 1022º e ss. do Código Civil, na qual são parte a autora e o réu António, sendo que a ré Isabel actuou em representação deste (havia sido encarregue para o efeito). Porém, na mesma situação pode existir um concurso de responsabilidades, existindo apenas um dano (apenas uma pessoa lesada). Nestes casos, em que existe apenas um dano que simultaneamente viola um contrato e de um dever geral de conduta, originando o preenchimento dos requisitos de aplicação dos requisitos da responsabilidade contratual e extracontratual é que se coloca o problema das chamadas teorias do sistema do cúmulo e do sistema do não cúmulo. Em termos muito sucintos, tais teorias divergem quanto à hipótese de o lesado poder ou não cumular, na mesma acção, o pedido de ressarcimento com fundamento em ambas as responsabilidades. No caso dos autos, parece-nos, salvo melhor opinião, que a autora apenas suscita a responsabilidade contratual, tendo presente que invoca a existência do contrato de arrendamento com o réu e a obrigação de manutenção em bom estado de funcionamento os aparelhos que equipavam a fracção autónoma, aduzindo que a ré Isabel foi encarregue pelo primeiro de zelar pela sua manutenção e reparação. Assim, embora não exista alegação expressa de direito nesse sentido, evidencia-se que a autora enquadra a sua relação com estes réus no âmbito da responsabilidade civil contratual, embora o Tribunal não esteja vinculado à alegação das partes (artº 5º, nº 3, do Código de Processo Civil)».
Pese embora, como dito, a autora não tenha qualificado a responsabilidade civil que assaca aos Réus como contratual ou extracontratual, vem agora dizer na conclusão 33.ª quando se refere à Ré Seguradora que estamos perante responsabilidade contratual, isto para que não funcione a cláusula de exclusão do contrato de seguro, enquanto na conclusão 31.ª a respeito da responsabilidade do Réu BB e da Ré CC diz que haverá uma responsabilidade principal de natureza obrigacional, emergente da relação que se estabeleceu entre as partes por força do contrato de arrendamento, bem como uma responsabilidade extracontratual ou objectiva pelo dever de vigilância da coisa e pelos danos ocorridos, independentemente de culpa.
Sendo certo que em face do disposto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, e por seu turno este Tribunal não está sujeito à qualificação efectuada em primeira instância, o certo é que não podemos desde já deixar de afirmar que concordamos integralmente com a qualificação da pretensão formulada pela Autora em sede de responsabilidade contratual atenta a forma como enunciou na petição inicial a factualidade essencial em que assentou o pedido deduzido, conforme, aliás, já referimos no ponto anterior em fundamento da motivação pela qual indeferimos o aditamento da matéria de facto indicada pela autora com vista a suportar a responsabilidade dos Réus com fundamento no disposto no artigo 493.º do CPC.
Não obstante, não deixaremos de nos referir às várias perspectivas da questão de direito colocadas em sede de recurso.
Começaremos, pois, por lembrar que, no essencial, são coincidentes os pressupostos em que assenta a responsabilidade civil contratual com os fundadores da responsabilidade civil extracontratual, vertidos quanto àquela no artigo 798.º do CC, de acordo com cuja estatuição «[o] devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor», e quanto a esta no artigo 483.º do CC, preceito que consagra os respectivos princípios gerais, dispondo que «[a]quele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Em qualquer caso, em face do disposto no artigo 342.º do CC, atento o pedido formulado e a causa de pedir na presente acção, à autora incumbe a prova dos factos consubstanciadores do direito invocado, enquanto fundamentadores dos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, que tradicionalmente se consideram num elenco de cinco, a saber: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano[16].
Assim, quanto ao facto, na responsabilidade civil extracontratual o mesmo é ilícito quando viola um direito subjectivo de outrem, de natureza absoluta, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, como ocorre quando a norma violada protege interesses particulares, mas sem conceder ao respectivo titular um direito subjectivo, dependendo, então, a indemnização a arbitrar que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada e que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar[17]; enquanto na responsabilidade civil contratual, a ilicitude se consubstancia na inobservância da execução do vínculo contratualmente assumido pelas partes, ou por outras palavras, sempre que por erro ou omissão de quem é parte num contrato se verifique incumprimento do mesmo[18].
Já quanto à imputação do facto ao lesante, a responsabilidade civil pressupõe, em regra, a culpa, que se traduz numa determinada posição ou situação psicológica do agente perante o facto, consistindo, em sentido amplo, na referida imputação do facto ao agente[19], ou ainda num enquadramento normativo, entendido como a omissão da diligência que seria exigível ao agente medida de acordo com o padrão de conduta que a lei impõe[20], sempre apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487.º, n.º 2, do CC).
Na responsabilidade contratual, nas palavras de Vaz Serra[21], a culpa pode ser definida como um comportamento contrário ao cumprimento da obrigação, quando ele é devido à falta de diligência ou a dolo do devedor. (…) Saber quando procedeu o devedor diligentemente, é saber quando tomou o devedor as medidas que devia tomar. Ora, este problema não pode receber uma solução uniforme para as várias obrigações possíveis, pois, conforme os casos, pode o devedor estar obrigado a maior ou menor diligência, a praticar mais ou menos actos, a abster-se mais ou menos da prática deles». Relevante diferença entre um e outro tipo de responsabilidade, também assinalada na sentença recorrida, é a de que «[n]a responsabilidade obrigacional a culpa do devedor presume-se (artº 799º do Código Civil). Em sede extracontratual vale o regime geral, que resulta dos artºs 487º, nº 1 e 342º, nº1 do Código Civil, segundo o qual terá de ser o lesado a provar a culpa do lesante. Em suma, enquanto na primeira forma de responsabilidade o lesado apenas tem de provar o dano, a violação das leges artis (ilicitude) e o respectivo nexo de causalidade, na responsabilidade extracontratual ele terá ainda de provar a culpa do lesante».
Por seu turno, no tocante ao nexo de causalidade entre o facto e o dano, o artigo 563.º do CC, consagrou a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual, na sua formulação positiva, para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, que no plano naturalístico, ele seja condição sem o qual o dano não se teria verificado, e ainda que, em abstracto ou em geral, o facto seja causa adequada do dano; e, na sua formulação negativa, a condição deixa de ser causa do dano sempre que, segundo a sua natureza geral, a mesma era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo, portanto, inadequada para a ocorrência desse dano[22].
Já no que respeita à existência de um dano, este é condição essencial da obrigação de indemnizar: o facto ilícito e culposo tem que causar um prejuízo a alguém, o sofrimento de uma perda nos seus interesses patrimoniais ou não patrimoniais.
Ora, no caso em apreço, não se questiona a existência de um evento danoso, com consequências quer em bens pertencentes à Autora, quer sobretudo, de forma gravíssima, diga-se, na pessoa da Autora, que claramente sofreu danos de natureza patrimonial e não patrimonial. Igualmente não existe dissenso quanto ao nexo de causalidade entre o incêndio que deflagrou na fracção arrendada e os extensos danos sofridos pela Autora. Aquilo em que as partes discordam é na possibilidade da sua imputação aos Réus.
Vejamos.
Resulta da materialidade assente em 4. que o Réu BB havia encarregado a Ré CC de zelar pela fracção autónoma e equipamentos ali existentes e pela angariação de inquilinos e recebimento das respectivas contrapartidas, sendo que a apreciação da questão colocada pela Autora quanto à responsabilidade civil dos Réus será analisada por referência à actuação/omissão desta Ré.
Porém, em face do disposto no artigo 800.º, n.º 1, do CC, o devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.
A justificação para esta solução já anteriormente sustentada na doutrina ter sido levada a letra de lei, decorre dos mesmos princípios que justificam a responsabilidade do comitente pelos danos que o comissário causar, nos termos do artigo 500.º do CC. Assim, «o devedor que se aproveita de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento para o seu cumprimento»[23].
«Isto quer dizer que, se o facto não for imputável ao auxiliar, se ele não tiver culpa, não é o devedor responsável, a não ser que tenha culpa directa»[24]. Por seu turno, e inversamente diremos nós, significa igualmente que o auxiliar não é directamente responsável perante o credor, já que a responsabilidade pelos seus actos se repercute na esfera jurídica do devedor. Assim, no caso vertente, a existir culpa da Ré CC no incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de arrendamento para o senhorio, a responsabilidade pelos seus actos perante a Autora seria sempre dos Réus senhorios, e não daquela Ré.
Ora, para aquilatarmos se existe responsabilidade civil do locador decorrente do incumprimento do contrato de arrendamento, conforme se assinalou na sentença recorrida, «deve atender-se às específicas obrigações que possui, nomeadamente de entregar ao locatário a coisa locada e de assegurar-lhe o gozo desta para os fins a que a coisa se destina (artº1031º do Código Civil), devendo, de resto e além do mais, efectuar as obras e reparações necessárias, as chamadas obras de conservação ordinária, quer do local arrendado propriamente dito, quer das respectivas partes integrantes ou acessórias e correspondentes equipamentos, como sejam as instalações de água e energia (vide o Acórdão do STJ de 09.10.2003, acessível in www.dgsi.pt. (…). Não há, assim, obrigação do locador de ressarcir todos e quaisquer danos que sobrevenham ao facto ilícito, mas tão só os que ele tenha na realidade ocasionado: ou seja, o nexo de causalidade (adequada) entre o facto e o dano desempenha a função de pressuposto da responsabilidade civil e, ainda, a de circunscrever a obrigação de indemnizar».
No caso vertente, dúvidas não existem de que se verifica a existência de um facto controlável pela vontade, consubstanciado na celebração verbal de um contrato de arrendamento[25], nos termos do qual o Réu BB, agindo através da Ré CC, acordou com a autora ceder-lhe mediante a correspondente contrapartida monetária equivalente ao valor da renda, a fracção autónoma pertencente ao casal, identificada em 1., para que esta a utilizasse. Mais se comprovou que as partes acordaram que essa cedência englobava não só o uso e a fruição da fracção autónoma em causa, mas também do mobiliário e equipamentos electrodomésticos ali existentes, nos quais se incluía frigorífico, fogão de cozinha, esquentador, máquina de lavar roupa e exaustor.
Assim, em face do disposto nos artigos 1022.º, 1023.º e 1024.º celebrado o contrato de arrendamento entre as partes, cada uma delas se constituiu nas obrigações previstas nos artigos 1031.º quanto ao locador e 1038.º quanto ao locatário, avultando quanto àquele a obrigação de entrega da coisa, e de assegurar o gozo desta para os fins a que se destina.
No caso vertente, tal entrega foi efectuada, não estando em causa que o gozo do imóvel e seus pertences, mormente os acima identificados, passou a ser assegurado pelos senhorios, ora réus, à arrendatária, ora autora.
Acontece que, a arrendatária, ora Recorrente, intentou a presente acção invocando que apesar de «alegadamente todos os equipamentos estarem em perfeito estado de conservação, nomeadamente o esquentador, alguns dias, que a Autora não consegue precisar quantos, mas antes de 23 de Junho de 2007, a Autora ficou com a sensação de que o esquentador não estava em perfeito estado de funcionamento, pois que, ao abrir a água quente o esquentador nem sempre funcionava, mantinha apenas a chama piloto, razão pela qual já havia sido objecto de intervenção recente relativamente à data de 23 de Junho de 2007, por iniciativa da segunda Ré, alertada pela Autora, que já havia comunicado à Ré CC que o esquentador algumas vezes não arrancava quando a Autora abria torneiras de água quente».
Significa esta alegação que a Autora invocou um vício da coisa locada, no caso, um defeito/avaria do esquentador.
Ora a este respeito rege o artigo 1032.º do CC, de acordo com cuja estatuição «Quando a coisa locada apresentar vício que lhe não permita realizar cabalmente o fim a que é destinada, ou carecer de qualidades necessárias a esse fim ou asseguradas pelo locador, considera-se o contrato não cumprido: a) Se o defeito datar, pelo menos, do momento da entrega e o locador não provar que o desconhecia sem culpa; b) Se o defeito surgir posteriormente à entrega, por culpa do locador».
Entendeu a Senhora Juíza que não existia ilicitude porque «há que ter presente que não se apura a apontada falha ou vício no esquentador que equipava a fracção autónoma cedida», concluindo, em consequência «não se apurar conduta ilícita do réu pela qual possa ser responsabilizado pelos danos causados e cujo ressarcimento se peticiona. Sendo, de igual modo, de ilibar de qualquer responsabilidade a ré Isabel, na medida em que actua como sua representante (artigo 800º do Código Civil)».
Efectivamente, não se provou que o esquentador padecesse da avaria que a Autora indicara no artigo 11.º da petição inicial aperfeiçoada e igualmente não se provou que ao abrir a torneira de água quente se mantinha apenas acesa a chama piloto do esquentador, conforme a Autora alegara no artigo 17.º da petição inicial.
Não obstante, provaram-se os factos constantes dos pontos 9. a 17. cujo teor seguidamente se respiga, e que, em face do indicado normativo, merecem uma mais aprofundada análise.
Analisando este primeiro conjunto de factos, à luz do indicado preceito, e «[i]mpendendo sobre o locador a obrigação de assegurar o gozo da coisa para os fins a que se destina [cfr. art.º 1031.º, al. b), do CC], compreende-se que o contrato seja considerado não cumprido se a coisa locada apresentar os vícios ou defeitos enunciados no preceito»[26].
Porém, «esse incumprimento só releva para os efeitos previstos no art.º 798.º do CC, fazendo o locador incorrer em responsabilidade contratual, se este tiver actuado com culpa».
Assim, só a existência de culpa, provada ou presumida, constitui o senhorio na obrigação de indemnizar. E como se distribui o ónus de prova da culpa?
«Quando os defeitos se verifiquem, pelo menos, no momento da entrega, presume-se a culpa do locador, tendo este o ónus de provar que os desconhecia sem culpa. Porém, se os defeitos surgirem depois da entrega, já o locatário terá o ónus de provar que houve culpa do locador».
Vejamos, pois, a primeira das indicadas hipóteses, pese embora não tenha sido alegado que o esquentador funcionava deficientemente à data da entrega propriamente dita da fracção, mas considerando que foi denunciado pela arrendatária ora autora poucos dias após a celebração do contrato.
Em face da materialidade provada, e mesmo supondo, por hipótese, que existiria um deficiente funcionamento à data da entrega, pensamos que se mostra ilidida aquela presunção de culpa.
Efectivamente, decorre da já indicada factualidade que quando passou a utilizar a fracção autónoma a autora apercebeu-se que apesar do esquentador ligado e após abrir a torneira da água quente desta nem sempre corria quente, tendo informado a ré CC do sucedido pedindo-lhe que procedesse à verificação do aparelho.
Em finais de Março de 2007, a ré Isabel solicitou a um técnico que lhe fizera a venda do aparelho que verificasse as condições de funcionamento do esquentador, sendo que este técnico deslocou-se à fracção autónoma, acompanhado da ré CC, no início de Abril de 2007, ligou o esquentador, abriu a torneira e verificou que corria desta água quente, tendo a ré CC informado a autora que o esquentador se encontrava a funcionar.
Ou seja, pese embora a denúncia de um defeito por banda da autora, se a ré ali se deslocou com um técnico e verificaram que a alegada anomalia - não correr água quente -, não se verificava ou, pelo menos não era aparente, tanto assim que ao ligar o esquentador, através da abertura da respectiva torneira a água corria quente, só pode concluir-se que não poderia haver conhecimento anterior de um defeito que mesmo quando denunciado à ré CC, nem esta nem o técnico conseguiram comprovar.
Ademais, importa recordar os factos instrumentais que constam da motivação supra, mormente que o esquentador tinha sido adquirido em estado novo menos de três anos antes, e, era um esquentador vulgarmente conhecido como inteligente, nada inculcando que fosse sequer razoável a um homem médio colocado na posição dos réus, presumir que o mesmo tivesse qualquer defeito. Efectivamente, se nem o defeito denunciado se evidenciou aquando da tentativa da sua resolução, não há nenhum fundamento que nos possa indicar qualquer razoabilidade na ideia de que o senhorio conhecia um defeito oculto do esquentador e, por isso, se pudesse presumir a sua culpa. Portanto, não há como não concluir que o senhorio provou que desconhecia, sem culpa, que existisse algum defeito.
Vejamos agora se, quanto ao segundo conjunto de factos, ocorridos já claramente após o momento inicial da entrega, a Autora conseguiu demonstrar que o defeito surgiu posteriormente por culpa do senhorio.
Efectivamente, provou-se também que, em momento posterior, quando a autora abria a torneira da água, continuou a nem sempre correr água quente, tendo a autora informado a ré Isabel, em meados de Junho de 2007, que continuava a nem sempre correr água quente, solicitando-lhe que resolvesse a situação, tendo esta informado a autora que havia solicitado a uma pessoa que verificasse o esquentador, comunicando-lhe que se encontrava a funcionar e tendo a ré Isabel, na presença da autora, aberto as torneiras da água e destas saído água quente.
Em face desta materialidade, naturalmente que só pode concluir-se desta feita que a arrendatária não demonstrou sequer que existia efectiva anomalia do aparelho - que se encontrava a funcionar aparentemente de forma normal, tanto assim que nem careceu de qualquer reparação -, e, portanto, que tivesse havido qualquer culpa do senhorio.
Acresce que, mesmo «no caso de apenas se provarem os defeitos, mas não a culpa, parece resultar desta disposição que o contrato se deve considerar cumprido, quando, na verdade, seria tecnicamente mais correcto reconhecer que o incumprimento contratual existia, embora sem as normais consequências: o locador ficaria, portanto, isento da obrigação de indemnizar os prejuízos causados pelo incumprimento (daí a epígrafe do art.º 1033.º do CC)».
Nestes termos, e também por estas razões para além das aduzidas na sentença recorrida, sempre improcederia o invocado direito a indemnização com base na responsabilidade contratual.
Como já referimos, a autora não alegou oportunamente factualidade enquadrável na responsabilidade extracontratual. Porém, ainda assim, a Senhora juíza também apreciou esta vertente, para concluir que «Em face da factualidade dada como provada, temos que ocorreu uma acumulação de gás, que, ignido, levou a uma explosão seguida de um foco de incêndio. Nada mais se apurou, concretamente qual a causa dessa acumulação de gás na origem da explosão e que fez deflagrar o incêndio. Donde, não pode ser assacada ao réu BB a prática de qualquer acto ilícito, dado que não se apura a violação de qualquer regra, mormente que o esquentador não estivesse a funcionar e que tenha sido a causa da acumulação do gás que conduziu ao incêndio. Será, assim, de todo irrelevante apurar se o técnico que a ré solicitou para proceder à verificação do aparelho era credenciado».
Nada mais se nos afigura referir a este respeito, considerando, pelas razões já expostas, que a Autora não demonstrou nem a ilicitude nem a culpa do senhorio.
Finalmente, a sentença recorrida ainda cogitou sobre a aplicabilidade à situação vertente do artigo 493.º, n.º 1, do CC, para aquilatar se neste caso se verifica presunção de culpa da ré que esta não tenha conseguido ilidir, concluindo de igual modo negativamente, depois de sopesar que «Não sofre dúvida que nos encontramos perante coisa móvel perigosa pois, como é do conhecimento comum, o gás é um produto altamente inflamável e potencialmente perigoso, por si mesmo, quer para a saúde, quer para a vida das pessoas. Sabe-se, precisamente, no caso que foi devido a acumulação de gás no tubo de exaustão que ocorreu a explosão e posterior foco de incêndio na cozinha. O incêndio alastrou a toda a fracção autónoma, consumindo na quase totalidade o seu recheio, causando, ainda, lesões corporais na autora. Porém, como referimos, não se conseguiu determinar a causa dessa acumulação de gás, se teve origem no esquentador ou no fogão, e, em caso afirmativo, se devido a deficiente funcionamento ou deficiente/negligente utilização dos aparelhos, ou mesmo se devido a outra falha estrutural (da instalação de gás, respectiva tubagem...). Note-se que, pese embora exista a presunção de culpa, não nos encontramos perante uma responsabilidade objectiva, pelo risco, motivo pelo qual era essencial determinar qual a causa da acumulação de gás. Não desconhecemos, como vimos, que pese embora a autora fosse arrendatária do imóvel onde deflagrou o incêndio, era ao proprietário (locador) que incumbiria assegurar o gozo da coisa locada para os fins a que se destinava, mormente dos respectivos equipamentos em boas condições de funcionamento- artº1031º, al.b) do Código Civil. Porém, a autora, enquanto detentora da fracção autónoma e de todos os equipamentos, tinha o dever de vigilância e, diremos, caso se apercebesse do seu deficiente funcionamento, o dever da sua não utilização. Donde, não podemos afastar que é a autora, enquanto detentora dos equipamentos que utilizam gás (esquentador e fogão), a responsável pelos danos causados por estes (na medida em que não se apura o seu deficiente funcionamento)».
Concordamos novamente com o entendimento vertido na sentença recorrida, aliás estribado em doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[27], ali invocada e que aqui nos escusamos novamente de reproduzir, tanto mais que a mesma é conforme àquela que este mesmo colectivo já teve oportunidade de referir em Acórdão proferido no passado dia 23 de Fevereiro[28], nos seguintes termos: «conforme o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a salientar[29], nos casos previstos no artigo 493.º, n.º 1, do CC, estamos ainda perante uma responsabilidade delitual e não de índole objectiva. «Mas nota-se já aqui a inversão do ónus da prova no que toca à culpa; o encarregado da vigilância, que pode ser ou não o proprietário, responde pelos danos que a coisa causar, excepto se conseguir provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam verificado ainda que não houvesse culpa sua».
Trata-se do domínio da chamada “nova responsabilidade civil” onde «e mais de perto relacionado com a problemática que aqui nos ocupa, surge-nos a violação dos “deveres de tráfego” que ocorre quando alguém controle uma fonte de perigo, cabendo-lhe adoptar as medidas necessárias a prevenir o dano; o conteúdo dos “deveres de tráfego” é multifacetado, nele cabendo uma pluralidade de situações, podendo dizer-se que abrange os casos em que alguém “crie ou controle uma fonte de perigo, cabendo-lhe então as medidas necessárias para prevenir ou evitar danos”. Neste âmbito se insere, entre nós, a responsabilidade a que alude o artigo 493º nº 1».
Mais recentemente[30], o enquadramento deste preceito legal foi assim explicitado: «o art. 493º, nº 1, do CC, regula uma situação de responsabilidade extracontratual, em que a culpa se presume, a qual não se confunde com outras que envolvam responsabilidade objectiva, submetidas a tipificação legal, em que a obrigação de indemnizar é independente da existência de culpa do agente, apenas se admitindo o seu afastamento em casos de força maior (v.g. arts. 505º e 509º, nº 2, do CC).
Naquela situação, admite-se a exclusão da responsabilidade, mediante a prova de factos que traduzam ou a ausência de culpa, na modalidade de imprevidência, inconsideração ou negligência, ou uma situação de inevitabilidade em que os danos se produziriam mesmo sem qualquer culpa do proprietário da coisa de que naturalisticamente decorrem os danos para terceiros.
A responsabilidade não cabe ao proprietário, enquanto tal, mas apenas àquele que, sendo ou não proprietário do bem, tinha o dever de o vigiar. Mais rigorosamente, recai sobre aquele que detiver o poder de facto sobre a coisa, no pressuposto de que, como referia Vaz Serra, “quem tem a coisa à sua guarda deve tomar as medidas necessárias a evitar o dano” e que “as coisas abandonadas a si mesmas podem constituir um perigo para terceiros” de modo que “o guarda delas deve, por isso, adoptar aquelas medidas; por outro lado, está em melhor situação do que o prejudicado para fazer a prova relativa à culpa, visto que tinha a coisa à sua disposição e deve saber, como ninguém, se realmente foi cauteloso na guarda” (Trabalhos Preparatórios, BMJ 85º, pág. 365).
Rui Ataíde refere que não é o perigo inerente à coisa que fundamenta a regra especial de responsabilidade, antes “o dever de controlo correspectivo do poder de determinação sobre as coisas que ocupam um certo campo física e espacialmente delimitado”. (…) (Responsabilidade Civil por Violação de Deveres do Tráfego, pág. 369). Mais adiante conclui que, “relativamente ao modo como influem nas fontes de perigo, os deveres de controlo tanto podem ter carácter preventivo, visando precaver o nascimento de perigos, como supressivo, eliminando-os, sempre que detectados pelo exame das coisas ou puramente gestionários, no sentido em que se proponham manter perigos inamovíveis dentro de limiares razoáveis de segurança” (pág. 712).
Segundo Menezes Leitão, a solução consagrada no nº 1 do art. 493º do CC pressupõe, “em face da perigosidade imanente de certas coisas ou de animais, o surgimento de um dever de segurança do tráfego, que impõe automaticamente a sua custódia em relação ao detentor” (Direito das Obrigações, vol. I, pág. 289)».
Ora, conforme se referiu no mais recente dos citados acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, no seguimento dos ensinamentos da doutrina quanto ao artigo 493.º, n.º 1, do CC, a responsabilidade pelos danos causados por coisas não é imputada pelo preceito em questão ao proprietário, por essa sua qualidade, mas tão-somente àquele que, sendo ou não proprietário do bem, tem o dever de o vigiar, ou seja, aquele que tem o dever de precaver quer o surgimento de perigos, quer a sua existência, eliminando-os, sempre que detectados.
Como é bom de ver, da ideia expressa por Vaz Serra ressalta que se pretendeu fazer impender sobre aquele que tem a guarda da coisa e, por tal, está em melhor situação do que o prejudicado para fazer a prova relativa à ausência de culpa na ocorrência do evento danos, isto porque, tendo a coisa à sua disposição se presume que é ele quem sabe, melhor que ninguém, se realmente foi ou não cauteloso na sua guarda.
Soçobram, pois, as conclusões da Autora no sentido de imputar eventual responsabilidade ao senhorio porquanto, habitando a casa que por este lhe foi entregue mercê do contrato de arrendamento, e por tal, estando a mesma à sua guarda bem como os demais bens móveis ali existentes por ser a sua detentora, sobre si impendia o encargo de os vigiar por forma a prevenir ou eliminar a ocorrência de danos decorrentes da respectiva utilização, integrando-se, portanto, na primeira parte da previsão do referido n.º 1 do artigo 493.º do CC.
Portanto, a presunção decorrente deste preceito a funcionar seria contra a autora e não, como a mesma pareceu compreender, a seu favor.
Por tudo o exposto, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do recurso interposto pela Autora.
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III.2.3. - Síntese conclusiva
I - Extravasando a configuração factual cuja alteração a Recorrente pretende o objecto do litígio, e não se tratando manifestamente de factos instrumentais ou complementares, mas sendo antes factos essenciais, cujo ónus de oportuna alegação incumbia à autora, sob pena de preclusão, vedado estava ao tribunal de primeira instância e, consequentemente vedado se encontra a esta Relação, sancionar o pretendido aditamento.
II - Sendo legalmente inadmissível ter em consideração a indicada factualidade em benefício da pretensão da autora, é absolutamente inútil a apreciação da prova pela mesma indicada, com vista à requerida ampliação da matéria de facto provada, pelo que, atento o preceituado no artigo 130.º do CPC, que proíbe a prática de actos inúteis, deve tal pretensão ser recusada mercê da patente desnecessidade decorrente da impossibilidade de a mesma ser tida em conta na solução do pleito.
III - Após a entrada em vigor do novo CPC, decorrido o prazo previsto no artigo 154.º, n.º 4, do CPC, sem que seja arguido o vício da deficiência da gravação, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida sequer nas alegações de recurso, interpretação que não padece de inconstitucionalidade.
IV - Não tendo o Tribunal acesso a um depoimento que estriba a impugnação da matéria de facto, entende-se que fica o mesmo impossibilitado, total ou parcialmente, consoante a extensão da imperceptibilidade das declarações em causa, de efectuar a pretendida reapreciação da prova, por carecer dos elementos necessários para tal, e dever a Relação estar nas mesmas condições em que se encontrou a primeira instância.
V - O auxiliar não é directamente responsável perante o credor, já que a responsabilidade pelos seus actos se repercute na esfera jurídica do devedor. Assim, no caso vertente, a existir culpa da Ré que auxilia o senhorio, no incumprimento das obrigações para este decorrentes do contrato de arrendamento, a responsabilidade pelos seus actos perante a Autora seria sempre do senhorio, e não daquela Ré.
VI - Impendendo sobre o locador a obrigação de assegurar o gozo da coisa para os fins a que se destina [cfr. art.º 1031.º, al. b), do CC], compreende-se que o contrato de arrendamento seja considerado não cumprido se a coisa locada apresentar os vícios ou defeitos enunciados no preceito.
VII - Porém, «esse incumprimento só releva para os efeitos previstos no art.º 798.º do CC, fazendo o locador incorrer em responsabilidade contratual, se este tiver actuado com culpa». Assim, só a existência de culpa, provada ou presumida, constitui o senhorio na obrigação de indemnizar.
VIII - O ónus da prova da culpa funciona nos seguintes termos: quando os defeitos se verifiquem, pelo menos, no momento da entrega, presume-se a culpa do locador, tendo este o ónus de provar que os desconhecia sem culpa. Porém, se os defeitos surgirem depois da entrega, já o locatário terá o ónus de provar que houve culpa do locador.
IX - Pese embora a denúncia de um defeito por banda da autora, se a ré ali se deslocou com um técnico e verificaram que a alegada anomalia - não correr água quente -, não se verificava ou, pelo menos não era aparente, tanto assim que ao ligar o esquentador, através da abertura da respectiva torneira a água corria quente, só pode concluir-se que não poderia haver conhecimento anterior de um defeito que mesmo quando denunciado à ré, nem esta nem o técnico conseguiram comprovar.
X - Mesmo no caso de apenas se provarem os defeitos, mas não a culpa, o locador sempre ficaria isento da obrigação de indemnizar os prejuízos causados pelo incumprimento.
XI - A responsabilidade pelos danos causados por coisas não é imputada pelo artigo 491.º, n.º 1, do CC ao proprietário, por essa sua qualidade, mas tão somente àquele que, sendo ou não proprietário do bem, tem o dever de o vigiar, ou seja, aquele que tem o dever de precaver quer o surgimento de perigos, quer a sua existência, eliminando-os, sempre que detectados.
XII - Soçobram, pois, as conclusões da Autora no sentido de imputar eventual responsabilidade ao senhorio porquanto, habitando a casa que por este lhe foi entregue mercê do contrato de arrendamento, e por tal, estando a mesma à sua guarda bem como os demais bens móveis ali existentes por ser a sua detentora, sobre si impendia o encargo de os vigiar por forma a prevenir ou eliminar a ocorrência de danos decorrentes da respectiva utilização, integrando-se, portanto, na primeira parte da previsão do referido n.º 1 do artigo 493.º do CC.
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IV - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Sem custas, em virtude do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa do respectivo pagamento, concedido à Autora, que as suportaria em face do disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
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Évora, 11 de Janeiro de 2018
Albertina Pedroso [31]
Tomé Ramião
Francisco Xavier
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[1] Juízo Central Cível de Faro, Juiz 3.
[2] Relatora: Albertina Pedroso;
1.º Adjunto: Tomé Ramião;
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
[3] Doravante abreviadamente designado CPC, sendo aplicável aos termos do presente recurso o texto decorrente do Código de Processo Civil na redacção aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, por estar em causa decisão recorrida posterior a 1 de Setembro de 2013 – cfr. artigos 5.º, 7.º, n.º 1 e 8.º deste diploma.
[4] Limitação que oportunamente melhor especificaremos.
[5] Doravante abreviadamente designado CC.
[6] Cfr. Ac. STJ de 10-09-2015, Revista n.º 819/11.7TBPRD.P1.S1 - 2.ª Secção.
[7] Cfr. Ac. STJ de 04-06-2015, Revista n.º 177/04.6TBRMZ.E1.S1 - 2.ª Secção.
[8] Cfr. Ac. STJ de 10-09-2015, Revista n.º 819/11.7TBPRD.P1.S1 - 2.ª Secção.
[9] Cfr. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, Almedina 2014, na nota de rodapé 27 na pág. 40, de cujas págs. 39 e ss. se retiram as menções doravante citadas.
[10] Cfr. Ac. STJ de 19.01.2017, proferido no processo n.º 873/10.9T2AVR.P1.S1.
[11] Cfr. neste sentido, o recente Ac. STJ de 13.07.2017, proferido no processo n.º 442/15.7T8PVZ.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Disponibilizado na internet pelo Instituto do Consumidor com o objectivo declarado de «fazer uma abordagem dos aspectos de segurança mais significativos na utilização/combustão do gás natural, gás butano e gás propano e dos aparelhos que os utilizam: fogões, esquentadores e aparelhos de aquecimento».
[13] Cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina 2017, 4.ª edição, pág 167.
[14] Cfr. por todos o recente Ac. TRL de 30.05.2017, processo n.º 298/13.4TBSCR.L1-7, citando extensamente o Ac. TRP de 17.12.2014 e indicando no mesmo sentido outros Acórdãos que ali identifica, explicando ainda os fundamentos e vantagens desta alteração legislativa.
[15] Cfr. Acórdão n.º 118/2017 de 15.03.2017, Processo n.º 636/2016, Relator: Teles Pereira, disponível em JusNet 1474/2017.
[16] No entender do Professor Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 5.ª edição, pág. 478, entendimento que é maioritariamente seguido. Já o Professor Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Coimbra - 1995, pág. 55, reduz esses mesmos pressupostos a dois: acto ilícito e prejuízo reparável.
[17] Cfr. Antunes Varela, obra citada, págs. 486 a 497.
[18] Cfr. nestes termos, Ac. TRC de 19-02-2012, proferido no processo n.º 298/10.6TBAGN.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[19] No dizer de Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, pág. 346. Note-se que esta imputação do facto ao agente, para além do dolo em qualquer uma das suas modalidades, pode ainda resultar, no âmbito da denominada mera culpa, de negligência consciência - quando o agente prevê a produção de um facto ilícito como possível, mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação, e só, por isso, não toma as providências necessárias para o evitar -, ou mesmo de negligência inconsciente, que ocorre quando o agente não chega sequer a conceber a possibilidade de o facto se verificar, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida – cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, págs. 394 e 395.
[20] Vd. Meneses Leitão, Direito das Obrigações, I, 8ª edição, 2009, pág. 313; Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, AAFDL, 1990, pág. 309.
[21] In Culpa do Devedor ou do Agente, n.º 2, Bol. n.º 68, citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, pág. 54.
[22] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pág. 651 e ss..
[23] Cfr. Vaz Serra, in Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos representantes legais ou dos substitutos, n.º 2, Bol. n.º 72, referido por Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pág. 57.
[24] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, págs. 57 e 58.
[25] Pese embora à data já se encontrasse em vigor a Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, de acordo com cujo artigo 1069.º que rege sobre a forma do contrato, exigisse a respectiva celebração por escrito desde que tenha duração superior a seis meses, como as partes nada referiram a respeito do acordo quanto à duração do contrato e o mesmo não teve tal duração, pressupõe-se que não estava sujeito à referida formalidade, já que a mesma não era então exigida nos contratos de arrendamento para habitação não permanente ou para fim especial transitório – cfr. ainda o artigo 1095.º, n.º 3 do CC e, para mais desenvolvimentos quanto à solução consagrada no artigo 1069.º, a posição expressa pela ora Relatora, em co-autoria com Laurinda Gemas e João Caldeira Jorge, in Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 3.ª edição, Quid Juris 2009, págs. 304 a 308.
[26] Cfr. Autores e obra citados na nota anterior, pág. 186, de onde se extraem também as citações que seguem.
[27] Em concreto o Acórdão de 10.12.2013, disponível em www.dgsi.pt.
[28] No processo n.º 1844/15.4T8FAR.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[29] Cfr. Acórdão STJ de 28-06-2012, proferido no processo n.º 8379/04.9TBOER.L1, disponível em www.dgsi.pt.
[30] Cfr. Acórdão do STJ, de 10-03-2016, proferido no processo n.º 7838/10.9TBCSC.S1, e disponível em www.dgsi.pt.
[31] Texto elaborado, revisto e assinado electronicamente pela Relatora.