CONTRATO DE SEGURO
LITISCONSÓRCIO
INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
Sumário

O incidente de intervenção principal é o adequado para chamar à lide, como associada do R. médico, a seguradora para quem aquele transferiu a responsabilidade civil pelos danos emergentes de sinistros ocorridos em consequência de actos, omissões e erros profissionais cometidos em diagnósticos, prescrições ou aplicações terapêuticas e no decurso de tratamentos ou intervenções cirúrgicas.

Texto Integral



Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.
AA, divorciada, residente na …, … Aljezur, intentou acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB (R), médico cirurgião, a exercer funções no Hospital … S.A. (Hospital …), com domicílio profissional em …, Portimão, e HOSPITAL …, S.A. (R), Sociedade Comercial, pessoa colectiva n.º …, matriculada sob o mesmo n.º na Conservatória do Registo Comercial de Portimão, com sede em …, Portimão.
Pede a condenação dos RR a pagar-lhe € 74.578,21 (setenta e quatro mil quinhentos e setenta e oito euros e vinte e um cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa legal desde a data da prática dos factos, como indemnização pelos danos causados na sequência de intervenção cirúrgica realizada pelo primeiro R, sendo o Hospital … propriedade e/ou explorado pela co-R, Sociedade Comercial, …, S.A.
Invoca a responsabilidade contratual da R Hospital S.A., em nome e por conta e no interesse de quem o R BB actuou e extracontratual, pela actuação ilícita do R BB, que, à data, exercia no Hospital …, propriedade do Hospital S.A., a actividade de cirurgia geral e omitiu os seus deveres de informação e esclarecimento à A (doente), praticando ainda actos contrários às legis artis da boa prática médica, sendo evidente a omissão e prática indevida de actos médicos.
O R BB veio requerer a intervenção provocada de DD, Companhia de Seguros, S.A., com morada no Edifício …, Lisboa, alegando que - por contrato de seguro celebrado com a DD (anterior EE), com sede no Edifício, Lisboa - transferiu para esta a responsabilidade civil em que possa incorrer, em consequência de actos, omissões e erros profissionais cometidos em diagnósticos, prescrições ou aplicações terapêuticas e no decurso de tratamentos ou intervenções cirúrgicas.
Alega ainda que tal contrato está titulado pela apólice n.º 0084…0 da identificada seguradora, em vigor no momento em que ocorreram os factos constantes da petição inicial e por efeitos do aludido contrato de seguro, a DD responde pelos prejuízos que a A reclama na acção, por todos se incluírem no âmbito da respectiva cobertura, pelo que tem interesse em que a mencionada companhia de seguros seja chamada a intervir nos autos, nos termos do disposto no art.º 316.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Em 23.03.2017, aquando do saneamento do processo, foi proferida a seguinte decisão:
“Das excepções e incidentes_
Da legitimidade das partes/Da Intervenção principal provocada_
Em sede de contestação, o réu BB suscitou o incidente de intervenção principal provocada.
Cumpre proferir despacho liminar – artigo 315º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Não se encontra excepcionada pela parte a sua ilegitimidade processual. No entanto requer se admita a intervir, a título principal, a companhia de seguros para a qual transmitiu a sua responsabilidade civil em consequência de actos, omissões e erros profissionais cometidos no exercício da profissão de médico.
Nos termos do disposto no artigo 30º do Código de Processo Civil ”O autor é parte legitima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer”.
O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção.
O interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advém.
A lei indica, ainda, um critério resultante do n.º 3 do preceito em referência: não existindo indicação da lei em contrário são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal qual é configurada pelo autor.
No caso concreto, encontra-se alegada a existência de uma relação contratual entre as partes e a falta de cumprimento do contrato por parte dos RR..
Em nenhum momento da alegação levada a efeito na petição inicial, que define e delimita o objecto do litígio, se faz qualquer referência a outrem que não sejam os RR..
Por via dessa relação contratual a atenta a forma como é delimitado processualmente o objecto do litigio por parte da A., os RR. detêm legitimidade passiva na acção instaurada por aquela com quem contratou.
Não se verifica, pois, uma situação de ilegitimidade processual, susceptível de conduzir à absolvição da instância (ou à sanação – em caso de preterição de litisconsórcio passivo – através do incidente de intervenção).
O réu acima identificado, não obstante a conhecida falta de ilegitimidade passiva, suscita a intervenção da seguradora, a título principal, o que faz ao abrigo do disposto no artigo 316º do Código de Processo Civil.
Este preceito textua:
“Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária”
Ainda, o n.º 3, alínea a): “O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este: a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida”.
Existe litisconsórcio necessário nos casos em que a lei ou o negócio jurídico exigirem a intervenção dos vários interessados na relação controvertida – artigo 33º, n.º 1, do CPC.
Existe litisconsórcio voluntário se a relação material controvertida respeitar a várias pessoas – artigo 32º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
Ora, no âmbito do celebrado contrato a inteira responsabilidade (se vier a ser apurada) só pode ser assacada aos réus (únicos que com a autora celebraram contrato).
O exposto a significar que a responsabilidade de pagamento para com a autora é dos já réus na acção (ou, pelo menos de um deles).
Não se trata aqui de qualquer situação de litisconsórcio necessário ou voluntário com a Companhia de Seguros (contra a qual o réu em questão terá, eventualmente, acção de regresso), única que permitiria o deferimento da intervenção principal provocada.
Pelo exposto, o Tribunal julga as partes legítimas e indefere liminarmente a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros DD.
Custas incidentais a cargo do réu, com taxa de justiça fixada em 2 Ucs.”
Inconformado com tal decisão, o R BB veio interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
I. No douto Despacho recorrido não se admitiu a intervenção principal da Companhia de Seguros DD, S.A., por se entender, em síntese, que estaria em causa um mero direito de regresso e não perante uma situação em que uma parte chama um “litisconsorte voluntário ou necessário”;
II. Com o devido respeito, não podemos concordar com o douto Despacho recorrido, nesta parte em que não admitiu a intervenção principal da referida seguradora, pois a questão em apreço não se restringe a um direito de regresso do ora Recorrente;
III. Nos artigos 163.º e seguintes da sua contestação o Recorrente alegou ter celebrado um contrato de seguro com a DD (anterior EE), nos termos do qual transferiu para esta a responsabilidade civil em que possa incorrer em consequência de actos, omissões e erros profissionais cometidos em diagnósticos, prescrições ou aplicações terapêuticas e no decurso de tratamentos ou intervenções cirúrgicas;
IV. Assim e por efeitos do aludido contrato de seguro, a DD responde pelos prejuízos que a A. reclama na acção, por todos se incluírem no âmbito da respectiva cobertura;
V. Na linha do decidido no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 814/13.1TJVNF-A.G1, de 19-11-2015, disponível em www.dgsi.pt, em que também estava em causa o chamamento de seguradora verificam-se, ao caso, os requisitos para a intervenção principal da referida Seguradora;
VI. O terceiro lesado tem sempre a possibilidade de demandar o lesante e a sua seguradora em litisconsórcio voluntário nos termos do artigo 32.º do CPC (ou apenas o civilmente responsável ou somente a seguradora, nos casos em que isso é possível), resultando, assim, inequívoco que também o segurado demandado tem o direito a fazer intervir a sua seguradora como ré, ao seu lado, através de intervenção principal provocada para ser condenada no pedido;
VII. A utilidade e o fim social do contrato de seguro apenas através desta solução se conseguem atingir porque a seguradora que assume a transferência da obrigação de pagar o montante do ressarcimento pelo ilícito extracontratual passa a ter a responsabilidade transferida numa cadeia em que além de ter a mesma responsabilidade do lesante é o devedor final até ao limite do montante seguro, pelo qual se pretende que responda de imediato, logo que apurada a responsabilidade;
VIII. Isso mesmo assim sucede no caso em apreço, em que se verifica, tão só, uma situação de litisconsórcio voluntário previsto no artigo 32 nº 2 do C.P.C., no qual se prescreve que “se a lei ou o negócio permitir que o direito seja exercido por um só ou que a obrigação comum seja exigida de um só dos interessados, basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade”;
IX. Na verdade, a existência de contratos de seguro de responsabilidade civil facultativo não pode deixar de consubstanciar uma relação jurídica entre o Réu e a terceira Seguradora que, apesar de autónoma, é dependente da responsabilidade civil do Réu, existindo um inquestionável litisconsórcio voluntário, que lhe permite provocar a intervenção desse terceiro;
X. Ora, face a esta transferência da obrigação de indemnizar da esfera jurídica do segurado para a da seguradora, é manifesto que a seguradora tem um interesse igual ao do réu, tal como exigido pela alínea a) do n.º 3 do artigo 316.º;
XI. Ou seja, uma vez que, por força da celebração do contrato de seguro e mediante o pagamento do prémio, a seguradora se obrigou a suportar as consequências da eventual ocorrência do sinistro que determinasse responsabilidade civil do seu segurado, esta passa a ocupar uma posição equivalente à do segurado, a partir do momento em que o sinistro ocorre, uma vez que é sobre ela que irá recair a obrigação de indemnizar;
XII. A referida seguradora tem, assim, um interesse idêntico ao do ora Recorrente, contrariamente ao decidido no douto Despacho recorrido.
XIII. Acresce que, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 5.º e 547.º do CPC, o Juiz não está vinculado ao enquadramento jurídico feito pelas partes e deve adoptar decisões que assegurem um processo equitativo, o que conduz a que, no caso dos autos, deveria ter decidido aceitar a intervenção provocada acessória, já que é esse o entendimento que perfilha.
XIV. Em face do exposto o douto Despacho recorrido enferma, assim, de erros de julgamento, tendo violado, além do mais, o disposto nos artigos. 316.º e 317.º do CPC, bem como os artigos 5.º e 547.º, ambos do CPC.
XV. Consequentemente deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se a sua substituição por outra que admita o incidente de intervenção da Companhia de Seguros DD, SA.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Os factos com relevância para a decisão do recurso são os que constam deste relatório.

2 – Objecto do recurso.
Questão (única) a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC:
Saber se deve ser admitida a intervenção principal provocada da companhia de seguros do R BB com a qual contratou um seguro, pelo qual transferiu para aquela a responsabilidade civil em que possa incorrer, em consequência de actos, omissões e erros profissionais cometidos em diagnósticos, prescrições ou aplicações terapêuticas e no decurso de tratamentos ou intervenções cirúrgicas, ou seja, saber se o incidente de intervenção principal é o adequado para chamar à lide, como associada do R médico, a seguradora para quem aquele transferiu a responsabilidade civil pelos danos emergentes de sinistros ocorridos.


3 - Análise do recurso.

Vem o presente recurso interposto da decisão que indeferiu liminarmente a intervenção principal provocada da companhia de seguros DD, por entender que a responsabilidade de pagamento pedido na acção é dos já RR na acção e não se trata de qualquer situação de litisconsórcio necessário ou voluntário com a companhia de seguros, contra a qual o R em questão terá, eventualmente, acção de regresso.
Discordamos desta posição, entendendo que a intervenção sempre seria de admitir, podendo apenas surgir dúvidas sobre se seria intervenção principal ou acessória, pois o R/recorrente tem interesse em que a mencionada companhia de seguros seja chamada a intervir, nos termos do disposto no art.º 316.º e seguintes do Código de Processo Civil e não qualificou a intervenção como principal ou acessória.
Senão vejamos:
O incidente de intervenção principal permite a modificação subjectiva da instância, por iniciativa das partes, e é admissível quando qualquer dos litigantes pretenda fazer intervir na causa um terceiro, como seu associado ou como associado da parte contrária, isto é, quando pretenda chamar um litisconsorte voluntário ou necessário.
Nos termos do art.º 316º do Código de Processo Civil:
1 - Ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
2 - Nos casos de litisconsórcio voluntário, pode o autor provocar a intervenção de algum litisconsorte do réu que não haja demandado inicialmente ou de terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido nos termos do artigo 39.º.
3 - O chamamento pode ainda ser deduzido por iniciativa do réu quando este:
a) Mostre interesse atendível em chamar a intervir outros litisconsortes voluntários, sujeitos passivos da relação material controvertida;
b) Pretenda provocar a intervenção de possíveis contitulares do direito invocado pelo autor.
Nos termos do art.º 317.º do mesmo compêndio legal, tratando-se de obrigação solidária e sendo a prestação exigida na totalidade a um dos devedores, pode o chamamento ter ainda como fim a condenação na satisfação do direito de regresso que lhe possa vir a assistir.
Por seu turno, dispõe o art.º 311,º, ainda do mesmo diploma, que “estando pendente causa entre duas ou mais pessoas, pode nela intervir como parte principal aquele que, em relação ao seu objecto, tiver um interesse igual ao do autor ou do réu, nos termos dos artigos 32.º, 33.º, e 34.”. (o art.º 32.º prevê o litisconsórcio voluntário)
Ora, a intervenção sempre seria de admitir ao abrigo do disposto no n.º 3, alínea a) deste artigo, já que o R mostra interesse em que a companhia de seguros esteja na acção, na medida em que também responde pelas consequências da sua actuação.
Ao objectivo normalmente prosseguido com a intervenção litisconsorcial provocada passiva – operar uma defesa conjunta no confronto do credor, opondo-lhe os meios de defesa que forem pertinentes – acresce o interesse do R em acautelar eventual direito de regresso.
A intervenção tem que ser admitida pois, se o recorrente transferiu para a companhia seguradora a sua responsabilidade civil por danos causados no exercício da sua profissão, parece-nos indiscutível que a seguradora tem interesse em intervir na presente demanda, ao lado do R, pois poderá vir a responder por este, até ao limite do capital seguro, caso a sua responsabilidade venha a ser apurada e, por isso, tem interesse na apreciação da situação jurídica e só desta forma a sentença constituirá caso julgado quanto a ela.
A questão que se coloca é a de saber a que título deve intervir.
Existe uma polémica doutrinal e jurisprudencial quanto a esta questão da legitimidade nas situações de existência de contrato de seguro facultativo, surgindo decisões que consideram que a intervenção deve ser principal e outros que deve ser acessória.
Trata-se de saber se numa acção de responsabilidade civil extracontratual, a seguradora, com a qual o réu celebrou um contrato de seguro (não obrigatório), pode ser considerada titular da mesma relação jurídica invocada pela autora ou de relação jurídica com ela conexa a ponto de se poder aceitar que a seguradora seja admitida a intervir como parte principal, defendendo um interesse igual ao da ré; ou se, pelo contrário, poderá intervir na causa, mas apenas como parte acessória, auxiliando a ré na sua defesa”. Acórdão da Relação de Lisboa de 27.11.2008, proferido no processo n.º 8398/08-2 e disponível em www.dgsi.pt.
Assim, para uma das posições, o contrato de seguro celebrado entre a lesante e a respectiva seguradora apenas confere a esta um interesse processual secundário, podendo a mesma intervir na própria acção de responsabilidade civil na qual o lesante é réu, mas apenas por via do incidente de intervenção acessória.
Para esta corrente, não sendo a seguradora contitular da relação material controvertida, mas sim sujeito passivo de uma relação jurídica (contrato de seguro) que é conexa com a relação material controvertida, inexiste interesse litisconsorcial necessário ou voluntário entre o réu/lesante e a sua seguradora, não podendo esta ser demandada como parte principal, nem poderá ser admitido o incidente de intervenção principal provocada previsto no artigo 316.º do CPC, por forma a desencadear uma situação de litisconsórcio sucessivo, apenas se justificando a intervenção acessória da seguradora, à luz do artigo 321.º do CPC, como auxiliar do réu/lesante, com vista a uma futura acção de regresso contra a mesma, e por forma a ser indemnizada pelos prejuízos que venha a sofrer com a perda da demanda.
Contrariamente, para a outra posição o segurado demandado ou o lesado tem o direito a fazer intervir, a título principal e não a título secundário, a sua seguradora como ré, através de intervenção principal provocada pois tendo o segurado-lesante celebrado um contrato no qual a seguradora se obrigou a garantir a um terceiro beneficiário até determinada quantia, o cumprimento das obrigações daquele, a prestação a exigir pelo beneficiário é só uma, podendo a mesma ser exigida, por força do contrato, tanto ao segurado como à seguradora, pelo que o terceiro lesado sempre teria possibilidade de demandar o alegado lesante e a sua seguradora, em litisconsórcio voluntário, nos termos do artigo 32.º do CPC.
Quid juris?
Como refere Salvador da Costa (in Incidentes da Instância – página 117-118), “o que verdadeiramente parece distinguir a intervenção principal provocada da intervenção acessória provocada é a real posição do interveniente relativamente à relação jurídica invocada pelo autor na petição inicial, pois se o chamamento daquele se basear na relação jurídica invocada pelo autor na p.i. estaremos perante o incidente de intervenção principal provocada, ao passo que se o chamamento se estribar numa relação jurídica conexa com aquela já se tratará do incidente de intervenção acessória provocada.”
Atendendo à natureza do contrato de seguro como contrato a favor de terceiro, nos termos do art.º 444.º do Código Civil (neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 16.01.1970, BMJ n.º 193, página 359 e de 30.03.1989, BMJ n.º 385, página 563 e Acórdãos da Relação de Lisboa de 07.11.2006, proferido no processo n.º 7576/2206-7, e da Relação do Porto de 06.07.2009, proferido no processo n.º 721/08.0TVPRT-A.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. Na doutrina, Vaz Serra, RLJ, ano 99.º, página 56, nota 1, Diogo Leite de Campos, Contrato a Favor de Terceiro, 1991, páginas 13 a 16, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 6.ª edição, páginas 372 e seguintes; José Vasques, Contrato de Seguro, páginas 258/259), seguimos a posição de que o segurado demandado ou o lesado tem o direito a fazer intervir, a título principal, pois tudo se resume à mesma relação jurídica invocada pelo demandante – no mesmo sentido, vide os Acórdãos da Relação de Guimarães de 19.11.2015, proferido no processo n.º 814/13.1TJVNF-A.G1 e de 09.07.2015, proferido no processo n.º 4077/14.3TBBRG-A.G1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Com efeito, o contrato de seguro obriga a seguradora a suportar o risco, como contrapartida do recebimento do prémio.
Desta forma, pode afirmar-se que, por força do contrato, nas relações internas, a seguradora coloca-se na posição de quem é obrigada a indemnizar.
Como se refere no Acórdão da RG de 09.07.2015 acima citado, que seguimos de perto: “… é necessário atentar na especificidade do caso, que se prende com a responsabilidade civil da ré/recorrente pelos danos causados no exercício da sua actividade da prestação de serviços de saúde, responsabilidade que está transferida para a chamada por via do alegado contrato de seguro, o que desde logo reclama que se convoquem as normas da Lei do Contrato de Seguro aprovada pelo DL 72/2008.
O Decreto-Lei 279/200, de 06.10, aprovou o regime jurídico das unidades privadas de saúde que têm por objecto a prestação de serviços de saúde e disponham, remetendo o início da sua vigência para a data da publicação da Portaria que aprove os respectivos requisitos técnicos (artigo 27º).
Ao abrigo dos artigos 5º, 9º, 25º e 27º desse diploma legal foi publicada a Portaria 290/2912, de 14.09, que em matéria de organização e funcionamento dessas unidades de saúde estabelece no artigo 5º que «as unidades privadas que prossigam atividades no âmbito da prestação de serviços de saúde e que disponham de internamento devem contratar e manter em vigor um seguro de responsabilidade civil e profissional que cubra os riscos inerentes à respetiva atividade e à atividade dos seus profissionais». Não nos parece que esse instrumento infra-legislativo contrarie o artigo 112º nº5 da Constituição da República – “nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos”, ou extravase sequer o âmbito da execução autorizada, porque embora o seguro de responsabilidade civil e profissional não seja propriamente um requisito técnico (v.g. de higiene, segurança e saúde pública) está no entanto directamente conexionado com as condições de aprovação do funcionamento dos estabelecimentos de saúde, visando salvaguardar os interesses dos utentes/lesados.
Nesta linha de raciocínio, faz algum sentido a tese da obrigatoriedade do seguro que é defendida pela recorrente. E porque o contrato de seguro celebrado com a Cª. de Seguros começou a vigorar a 01.05.2013 e os factos atinentes ao sinistro ocorreram desde 22 de Junho desse ano, é inquestionável que tem aplicação o regime da Lei do Contrato de Seguro aprovado pelo DL 72/2008, de 16.04 (cfr. artº 2º), que nas disposições especiais relativas ao seguro obrigatório, prevê o direito do lesado de exigir o pagamento da indemnização directamente ao segurador (artigo 146º, nº1), isoladamente ou em litisconsórcio voluntário com o tomador do seguro. A considerar-se facultativo o seguro, o artigo 140º, nºs 2 e 3, da LCS, prevê o direito do lesado demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado, caso essa possibilidade esteja prevista no contrato de seguro ou se no decurso das iniciais negociações, o segurado seja informado da existência do contrato de seguro. Mas se a seguradora não tiver sido demandada pela não verificação de qualquer uma dessas essas circunstâncias, a sua intervenção pode ser provocada pelo segurado, porque não o nº1 do artigo 140º o admite (neste sentido, Abrantes Geraldes, in O Novo Regime do Contrato de Seguro, Antigas e Novas Questões).
Porque o seguro se destinou a transferir para a seguradora a responsabilidade civil da ré/recorrente causada a terceiros com a prestação de cuidados de saúde na unidade hospitalar, é de admitir a chamada da seguradora como litisconsorte voluntária. Isto é, o contrato de seguro tem as feições de um contrato a favor de terceiro (artigo 444º, nº2, do Código Civil) – nesse sentido Ac. do STJ de 16.01.1970, BMJ Nº. 193, PÁG. 359, e de 30.03.1989, BMJ Nº. 385, PÁG. 563.- pelo que o réu/recorrente tem o direito de suscitar a intervenção principal da seguradora, pois são ambos solidariamente responsáveis nos termos do artigo 497º do Código Civil (cfr. ac. do TRG de 6.010.2011). Conforme também decidiu o acórdão do TRP de 14.06.2010 “a intervenção principal respeita às situações em que está exclusivamente em causa a própria relação jurídica invocada pelo autor ou em que os terceiros sejam garantes da obrigação a que a causa principal se reporte, abrangendo todos os casos em que a obrigação comporte pluralidade de devedores, sob condição de o réu ter algum interesse atendível em os chamar a intervir na causa, quer com vista à defesa conjunta, quer para acautelar o eventual direito de regresso ou de sub-rogação que lhe assista.”
Ou seja, perante o lesado, segurado e seguradora são solidariamente responsáveis (art.º 497.º do Código Civil), pelo que o segurado não fica desonerado perante o terceiro-lesado por virtude da existência de um contrato de seguro, pelo que o incidente de intervenção principal provocada é o incidente adequado para o réu assegurar a presença na causa da seguradora ou seguradoras para a qual ou para as quais havia transferido a responsabilidade civil decorrente da sua actividade profissional.
Em face do que ficou dito impõe-se, pois, a revogação do despacho proferido.

Sumário:
O incidente de intervenção principal é o adequado para chamar à lide, como associada do R médico, a seguradora para quem aquele transferiu a responsabilidade civil pelos danos emergentes de sinistros ocorridos em consequência de actos, omissões e erros profissionais cometidos em diagnósticos, prescrições ou aplicações terapêuticas e no decurso de tratamentos ou intervenções cirúrgicas.

4 – Dispositivo.
Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto e, revogando a decisão recorrida, admite-se o incidente de intervenção principal da chamada Companhia de Seguros DD, S.A.
Custas pela parte vencida a final.

Évora, 11.01.2018
Elisabete Valente
Ana Margarida Leite
Bernardo Domingos