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PENSÃO POR ACIDENTE DE TRABALHO
IRRENUNCIABILIDADE
INALIENABILIDADE
IMPENHORABILIDADE DE PENSÕES
PENSÃO DE ALIMENTOS
CONFLITO DE DIREITOS
Sumário
I – A reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho visa, em última instância, salvaguardar a dignidade do sinistrado, pelo que se compreende, e se justifica, que a pensão por acidente de trabalho tenha uma função reparadora e, simultaneamente, alimentar, assim se procurando assegurar ao sinistrado (ou beneficiários legais) um rendimento que lhe garanta um mínimo de sobrevivência condigna. II – Para além desse direito a um mínimo de sobrevivência condigna por parte do sinistrado haverá também que ponderar que este é, igualmente, sujeito de deveres, entre os quais avulta o de contribuir para o sustento dos filhos menores. III – Constatando-se que o sinistrado/recorrente não tem pago a pensão de alimentos devida aos filhos menores, verifica-se uma colisão de dois direitos: por um lado, o direito do sinistrado à manutenção de um mínimo de dignidade e, por outro, o direito dos filhos menores à educação e manutenção. IV – Em tal situação, violaria o direito à educação e manutenção dos filhos menores do sinistrado – sendo, pois, de afastar a interpretação do artigo 78.º da LAT no sentido da absoluta inadmissibilidade legal de dedução no valor da remição parcial da pensão a receber por aquele das pensões de alimentos por ele devidas aos filhos menores – quando se constata que a pensão sobrante (não objecto de remição) que ele recebe é superior à pensão social do regime não contributivo. (Sumário do relator)
Texto Integral
Proc. n.º 442/13.1T2SNS-A.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora: I. Relatório
No âmbito do Proc. n.º 442/13.1T2SNS, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo do Trabalho de Setúbal – J1, em que é sinistrado BB e entidade responsável Companhia de Seguros CC, S.A., por decisão de 17-10-2016 foi, no que ora importa, condenada a seguradora a pagar àquele a pensão anual e vitalícia de € 4.177,12: todavia, no mesmo despacho foi autorizada a remição parcial da pensão no valor de € 997,12, ficando a pensão sobrante fixada em € 3.180,00.
O capital de remição quanto àquele valor da pensão de € 997,12 foi então calculado em € 15.968,88.
Em 02-03-2017 o Ministério Público, tendo-lhe sido aberta “vista” apresentou a seguinte promoção: «É do meu conhecimento profissional que se encontra pendente no Juízo de Família e Menores J2 um processo de incumprimento das responsabilidades parentais com o número 10193/15.7T8STB-B em que é requerido o aqui sinistrado. Assim, e informando que o mesmo requereu a remição parcial do capital, tendo a receber a quantia de € 15.968,88, solicite informação sobre se interessa a penhora / arresto da referida quantia a favor dos menores.».
O sinistrado veio então opor-se a que incidisse qualquer penhora sobre o capital de remição, por entender que este é absolutamente impenhorável.
No seguimento, em 21-03-2017 foi pela exma. julgadora a quo proferido o seguintedespacho: «Na sequência do despacho da Digna Magistrada do Ministério Público de fls. 287, veio o sinistrado requerer que seja declarada a absoluta impenhorabilidade do valor do capital de remição a entregar ao sinistrado e ordenado o agendamento da data para a respectiva entrega. Indo os autos com vista, a Digna Magistrada do Ministério Público pugnou pelo indeferimento da pretensão do sinistrado ou, caso assim não se entenda que se determine que, ninguém e não ser o próprio sinistrado pode receber o capital de remissão parcial da pensão a que o mesmo têm direito. Apreciando e decidindo: Para além dos casos que são enumerados no art. 736.º do Código de Processo Civil, são ainda absolutamente impenhoráveis, por força do estatuído no corpo do artigo, os “bens isentos de penhora por disposição especial” De acordo com o art. 738.º do Código de Processo Civil, são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado. Finamente, o art. 78.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, determina que os créditos provenientes dos direitos às prestações estabelecidas pela lei de acidentes de trabalho são impenhoráveis. Como refere MENEZES LEITÃo [in “A reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho”, em Instituto do Direito do Trabalho, Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2000, págs. Vol. I, págs. 568 e 569.] “…a reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho não tem um carácter estritamente reparatório, sendo a sua função antes de carácter alimentar. As suas características são como as que de uma obrigação de alimentos fundada numa situação de necessidade o que, só por si explica o seu carácter limitado (cf. o artigo 2004 do Código Civil)”. Ora, o que aqui está em causa é saber se o disposto no 78.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro obsta, em absoluto, a que, no âmbito do processo civil, seja atingido pela penhora o crédito às prestações emergentes de acidente de trabalho (aqui, em particular, para satisfação coerciva da obrigação de alimentos devida a menores). Esta questão, salvo o devido respeito por opinião diversa, merece resposta negativa, face à interpretação que deve ser feita do art. 78.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, à luz do disposto no art. 69.º da Constituição da República Portuguesa e dos preceitos do Código de Processo Civil que disciplinam a penhora em matéria de dívidas de alimentos. Na realidade, apenas se afigura ser conforme à Constituição da República Portuguesa uma interpretação que limite a impenhorabilidade dos créditos emergentes de acidentes de trabalho que, mantendo intocável o valor razoavelmente necessário para a subsistência condigna do sinistrado, garanta que os seus filhos ainda menores o pagamento da pensão alimentícia a que o seu pai se obrigou. Ciente de que normas como a que está em causa não seriam conformes à Constituição da República Portuguesa, o art. 12.º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, prescrevia, em nosso entender bem, que não eram invocáveis em processo civil as disposições constantes de legislação especial que estabelecessem a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão com o disposto, então, no art. 824.º do Código de Processo Civil. Embora [] o actual Código de Processo Civil não contenha norma idêntica à que resultava do art. 12.º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, é nosso entendimento que o que não pode ser penhorado em processo civil são apenas 2/3 das pensões pagas por acidente de trabalho, de acordo com o constante do n.º 1 do art. 738.º do mesmo código. Este entendimento, encontra justificação acrescida na circunstância de a penhora em causa se destinar a satisfazer obrigação de alimentos do executado para com os filhos, porquanto, tratando-se de um crédito de alimentos, dada a natureza e fins da obrigação alimentícia, nem mesmo a regra da impenhorabilidade parcial se mantém por força do 933.º, n.º 1, e do n.º 4 do art. 738.º, do Código de Processo Civil. Isto não obsta, note-se, que mesmo no âmbito de execução especial por alimentos, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, não se haja que proceder de modo a que, em consequência da penhora, o executado fique com um rendimento disponível suficiente para lhe assegurar a sua auto-subsistência. Assim, não estando em causa a subsistência do sinistrado, garantida pelo pagamento do remanescente da pensão anual e vitalícia, não há que reconhecer, pois, a impenhorabilidade de parte do valor a que o mesmo tem direito na sequência da remissão parcial. De referir que, entendimento contrário ao que perfilhamos levaria, necessariamente, por força do tipo de mandato conferido nos presentes autos, não fosse admitido o pagamento do capital de remissão a pessoa diversa do sinistrado, ou seja aos beneficiários da procuração irrevogável junta aos autos. Com efeito, sendo aquela procuração passada também no interesse dos mandatários do sinistrado, a admitir-se a impenhorabilidade, irrenunciabilidade e inalienabilidade em absoluto dos créditos emergentes de acidente de trabalho, não poderia o Tribunal autorizar a entrega do capital em causa nos autos, sob pena de, ao fazê-lo violar o disposto no art. 78.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro. Nestes termos, indefere-se o requerido pelo sinistrado, devendo os autos aguardar a informação pedida à Secção de Família e Menores desta Comarca. Notifique»
Entretanto, a Secção de Família e Menores da Comarca de Setúbal informou interessar aos autos que ali correm (Proc. n.º 10193/15.7T8STB-B) «a dedução do respetivo capital, no valor em dívida de € 3.600 (…), bem como a dedução mensal de € 255 relativamente ao capital restante com a limitação referida no art. 738º, 4 CPC».
Em 18-04 2017 foi pela exma. julgadora a quo proferido o seguinte despacho: «Na sequência da promoção que antecede, autorizo a dedução no capital de remissão calculado em €15.968,88 (quinze mil novecentos e sessenta e oito euros e oitenta e oito cêntimos das quantias que o sinistrado BB, é devedor aos filhos menores a título de alimentos: Assim sendo, notifique a Companhia de Seguros CCl, S.A. para transferir para a conta com o IBAN …, titulada por … da quantia de €3.600 (três mil e seiscentos euros), já vencida nos autos de processo n.º 10193/15.7T8STB-B. Mais, deverá a seguradora responsável proceder mensalmente à transferência da quantia de €255 (duzentos e cinquenta e cinco euros) para a mesma conta até ao limite do valor do capital de remissão. Notifique e dê conhecimento ao processo n.º 10193/15.7T8STB-B do Juízo de Família e Menores de Setúbal (Juiz 1)».
Inconformado com o referido despacho veio em o sinistrado BB interpor recurso, tendo a rematar as alegações, formulado as seguintes conclusões: «I. O presente recurso tem como objeto o despacho datado de 18-04-2017 e que determinou que nenhum valor do capital de remição fosse entregue ao sinistrado, antes que tal capital de remição fosse afeto a: a) Pagar €:3.600,00 (três mil e seiscentos euros) a …, a título de pensões de alimentos vencidas; e, b) Garantir o pagamento das pensões alimentícias vincendas, no montante mensal de €: 255, que a Seguradora responsável pela reparação do acidente de trabalho, deveria transferir também para a conta da referida …. II. Nenhuma decisão anteriormente proferida foi lesiva dos interesses do sinistrado, por não quantificar qualquer prejuízo efetiva, daí só interpor recurso do despacho que agora está em causa e que foi proferido em 18-04-2017. III. Os procedimentos do tribunal a quo, no que concerne aos valores a deduzir da pensão fixada na sequência de acidente de trabalho, foram efetuados sempre à revelia do sinistrado e sem sequer o notificar. IV. O ora recorrente tem fracos recursos financeiros, e a penhora/retenção do capital de remição colocará em causa a sua subsistência e a sua dignidade, até porque parte do valor em causa estava previsto ser afeto à criação do seu emprego, em alternativa à sua profissão habitual e que em função do acidente de trabalho ficou impossibilitado de desenvolver. V. Surpreendentemente, na ótica do tribunal a quo, o crédito proveniente das prestações de alimentos dos filhos do recorrente, seria um crédito com maior dignidade e necessidade de proteção superior ao que decorre do direito fundamental ao recebimento da justa reparação pelo acidente de trabalho! VI. O tribunal a quo violou o artigo 78.º da Lei 98/2009 e o art. 1.º, art. 59.º, n.º 1 al. f) e ainda o art. 63.º, n.º 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa e ainda o art. 736.º alínea a) do Código Processo Civil, ao interpretar o conjunto destes normativos no sentido de entender que o capital de remição pode ser penhorado e retido na sua totalidade. VII. Ademais, a decisão proferida criou uma figura jurídica inexistente no nosso ordenamento jurídico, próxima da consignação de rendimentos, quando, ao arrepio de qualquer norma legal, determinou que fosse a Seguradora a “fiel depositária” do capital de remição para assim o ir entregando em prestações mensais de €: 255, ao credor de alimentos. VIII. Acresce, ainda, que, não sendo o procedimento em causa (quer no Juízo de Família e Menores, quer nestes autos), uma ação executiva, não poderia o Juízo do Trabalho ter tomado a iniciativa de realizar medidas correspondentes a atos de penhora (epitetados de “dedução”), sob pena de violação das regras de competência, assim se produzindo uma decisão nula (artigo 96.º, n.º 1, 550.º e 933.º e ss, do CPC, por referência aos artigos 24.º, n.º 3, 81.º, n.º 2, alínea g), 123.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto). IX. Impõe-se, pois e salvo mais erudito entendimento, que o douto despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que reconheça a impenhorabilidade do valor do capital de remição, determinado a sua entrega ao sinistrado. X. Ou, quando assim se não entenda e embora não concedendo, se reconheça a falta de fundamento legal para o decidido no segundo trecho da decisão impugnada (“(….) Mais, deverá a seguradora responsável proceder mensalmente à transferência da quantia de €255 (duzentos e cinquenta e cinco euros) para a mesma conta até ao limite do valor do capital de remição.), determinando-se a entrega ao ora recorrente do remanescente do capital de remição depois de deduzido de €: 3.600,00 (correspondente às pensões de alimentos em dívida). Nestes termos e nos melhores de direito e sempre com o douto suprimento de V. Excias, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, revogando-se o douto despacho recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que, sem mais, determine a entrega ao sinistrado da totalidade do capital de remição, para que assim, com rigor, se faça a mais lídima JUSTIÇA!!!».
Contra-alegou o Ministério Público, a pugnar pela improcedência do recurso, assim concluindo: «1 - Para garantia de alimentos devidos a menores podem ser penhorados dois terços da parte líquida de (…) seguro, indemnização por acidente (…) ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do sinistrado (art. 738.º, n.º 1 do CPC) com o limite que decorre do n,º 4 do mesmo artigo. 2 – Sendo a pensão sobrante no valor de € 3.180,00, está garantida ao sinistrado uma prestação mensal de € 227,14. 3 – A pensão social do regime contributivo está fixada em € 203,35, de acordo com a Portaria 98/2017 de 7 de Março. 4 – Ao determinar à seguradora, conforme solicitado pelo Juízo de Família e Menores o pagamento das quantias vencidas e vincendas a título de pensão de alimentos, o Tribunal a quo limitou-se a cumprir a decisão de outro tribunal, pelo que não violou qualquer norma relativa à competência. 5 – Tão pouco foram violados os art.s 59.º, n.º 1 al. f) e 63.º, n.º 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa. Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso interposto por Sérgio Augusto Alves Pedro mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos, com o que se fará JUSTÇA!».
O recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, a subir de imediato, em separado, sendo o efeito meramente devolutivo.
Neste tribunal, a Exma. Procuradora-Geral adjunta emitiu douto parecer, que não foi objecto de resposta, no qual se pronunciou pela procedência parcial do recurso, no que respeita à dedução mensal de € 255,00 no capital de remição, para pagamento das prestações vincendas de alimentos.
Preparando a deliberação, foi elaborado projecto de acórdão.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II. Objecto do recurso e factos
Sabido como é que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 3 e artigo 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, ex vi dos artigos 1.º, n.º 2, alínea a) e 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho), no caso são as seguintes as questões essenciais a decidir, tendo em conta a precedência lógica que apresentam:
1. saber se o juízo do trabalho tem competência para ordenar a dedução no capital de remição a receber pelo sinistrado das importâncias referentes à pensão de alimentos fixadas a favor dos filhos menores daquele e por ele não pagas;
2. saber se o capital da remição parcial da pensão do sinistrado poderia ser objecto da referida dedução.
Com vista à decisão a proferir, importa atender à matéria de facto que resulta do relatório supra, e que por uma razão de economia processual aqui se dá por reproduzida.
De tal matéria resulta, no essencial, que:
i. por despacho proferido nos autos de incumprimento do acordo de regulação das responsabilidades parentais, a correr termos no juízo de família e menores de Setúbal, foi determinada a dedução no capital de remição de que o sinistrado/recorrente é credor, do valor de € 3.600,00 correspondente prestações de alimentos vencidas e no valor de € 225,00 mensais por conta das prestações vincendas;
ii. por ofício datado de 22-03-2017 aquele tribunal comunicou aos presentes autos “interessar” que se procedesse à dedução no capital de remição devido ao sinistrado das importâncias referidas;
iii. por despacho de 18-04-2017 foi determinado nos presentes autos que se procedesse no capital de remição a essa dedução nos termos referidos, ou seja, de € 3.600,00 correspondente a prestações de alimentos vencidas (entre Dezembro de 2015 e Março de 2017) e no valor mensal de € 225,00 por conta das prestações vincendas.
Para além destes factos, importa ainda acrescentar os seguintes, que resultam dos documentos juntos aos autos, maxime da respectiva certidão:
- o sinistrado BB é pai dos menores …, … e… , nascidos, respectivamente, em 17-10-2010, 12-08-2006 e 25-10-2012;
- por sentença de 08-03-2016 foi fixado o exercício das responsabilidades parentais, tendo o progenitor, aqui sinistrado/recorrente, ficado obrigado a pagar, mensalmente, até ao dia 8 de cada mês, a pensão de alimentos de € 75,00 a favor de cada um dos filhos, num total de € 225,00;
- o sinistrado recorrente nunca pagou as pensões de alimentos fixadas a favor dos filhos, estando em dívida as prestações vencidas desde Dezembro de 2015, data da entrada em juízo da acção de regulação das responsabilidades parentais;
- no âmbito do “requerimento de protecção jurídica” que apresentou em 28-04-2017 junto da segurança social, o sinistrado/recorrente indicou os mencionados filhos menores como fazendo parte do seu agregado familiar.
III. Fundamentação de direito 1. Da competência do juízo do trabalho
De acordo com orecorrente, não estando em causa um acção executiva, não poderia o juízo do trabalho «(…) realizar medidas correspondentes a atos de penhora (epitetados de “dedução”), sob pena de violação das regras de competência, assim se produzindo uma decisão nula (artigo 96.º, n.º 1, 550.º e 933.º e ss, do CPC, por referência aos artigos 24.º, n.º 3, 81.º, n.º 2, alínea g), 123.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto)».
Se bem se extrai, com tal alegação o que o recorrente sustenta é, ao fim e ao resto, a incompetência, em razão da matéria, do juízo do trabalho para a dedução das importâncias no capital de remição a receber pelo sinistrado.
Afigura-se que com tal invocação o recorrente incorre num evidente equívoco: é que quem ordenou a dedução das importâncias no capital de remição foi o juízo de família e menores, onde se verifica a dívida em causa, tendo-se o juízo do trabalho limitado a cumprir o que por aquele lhe foi ordenado; digamos que, tal como decorre do disposto no artigo 172.º e segts do Código de Processo Civil, o juízo do trabalho se limitou a praticar um acto processual que lhe foi solicitado pelo juízo de família e menores, sendo para tal conclusão irrelevante que no âmbito dos presentes autos se tenham solicitado informações sobre se interessava ou não a dedução das importâncias em causa no capital de remição a receber pelo sinistrado.
De resto, o próprio Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro, prevê, no seu artigo 48.º, n.º 1, alínea c), que quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, caso receba rendas, pensões ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nesses prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários; esclarece-se no n.º 2 do mesmo artigo que as quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e que são directamente entregues a quem deve recebê-las.
E nos termos do artigo 41.º do mesmo compêndio legal, em caso de incumprimento das responsabilidades parentais pode o tribunal onde corre o processo requerer a outro tribunal as diligências necessárias ao cumprimento coercivo do acordo (artigo 41.º)
Por isso, como assertivamente escreveu o Ministério Público nas contra-alegações, «[a]o determinar à seguradora, conforme solicitado pelo Juízo de Família e Menores o pagamento das quantias vencidas e vincendas a título de pensão de alimentos, o Tribunal a quo limitou-se a cumprir a decisão de outro tribunal, pelo que não violou qualquer norma relativa à competência».
Improcedem, consequentemente, nesta parte as conclusões das alegações de recurso.
2. Quanto saber se o capital da remição parcial da pensão do sinistrado poderia ser objecto da dedução de importâncias em dívida pelo sinistrado referente a pensão de alimentos
A decisão recorrida respondeu afirmativamente a tal questão, por considerar, muito em resumo, que na concreta situação o valor do capital da remição a entregar ao sinistrado não goza de absoluta impenhorabilidade.
Para tanto ponderou, tal como resulta da transcrição da referida decisão, que face a princípios constitucionais, designadamente o de protecção das crianças, ínsito no artigo 69.º da lei fundamental, haveria que garantir o pagamento da pensão de alimentos a que o sinistrado se encontra obrigado.
Escreveu-se, a propósito, na decisão: «apenas se afigura ser conforme à Constituição da República Portuguesa uma interpretação que limite a impenhorabilidade dos créditos emergentes de acidentes de trabalho que, mantendo intocável o valor razoavelmente necessário para a subsistência condigna do sinistrado, garanta que os seus filhos ainda menores o pagamento da pensão alimentícia a que o seu pai se obrigou».
O recorrente rebela-se contra tal entendimento, argumentando, ao fim e ao resto, que por força do estatuído no artigo 78.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (LAT), o crédito correspondente ao capital de remição parcial da pensão goza de absoluta impenhorabilidade.
Analisemos a questão.
De acordo com o estatuído no artigo 735.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda.
Por sua vez, de acordo com a alínea a) do artigo 736.º do mesmo compêndio legal, são absolutamente impenhoráveis, além dos bens isentos de penhora por disposição especial, as coisas ou direitos inalienáveis.
Entre essa “disposição especial”, importa aqui atender ao artigo 78.º da LAT, que prescreve que «[o]s créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam de garantias consignadas no Código do Trabalho».
Contudo, nos termos do n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado; mas se o crédito exequendo for por alimentos é apenas impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo (n.º 4 do mesmo artigo).
Em face da letra do artigo 78.º da LAT, no confronto com o Código de Processo Civil, maxime com os referidos artigos 736.º, alínea a) e 738.º,tem-se questionado se a impenhorabilidade nele prevista é absoluta ou relativa.
No âmbito do pretérito regime processual civil, cujo artigo 824.º tinha um conteúdo próximo do artigo 738.º do regime adjectivo actual, a face ao disposto no artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro – que determinava que «não são invocáveis em processo civil as disposições constantes de legislação especial que estabeleçam a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante, em colisão do disposto no art. 824.º do CPC» – vinha-se entendendo, ao que se conhece de forma se não uniforme ao menos largamente maioritária, que em processo civil não pode ser penhorado apenas 2/3 das pensões pagas por acidente de trabalho, sendo o restante 1/3 penhorável (cfr., por todos, o acórdão da Relação de Coimbra de 24-01-2012, Proc. n.º 159-I/1993.C1, disponível em www.dgsi.pt).
Porém, face à revogação do anterior Código de Processo Civil, que continha o referido artigo 12.º do Decreto-Lei 329-A/95, coloca-se novamente a questão de saber se a impenhorabilidade prevista no artigo 78.º da LAT é absoluta (no sentido de total), ou relativa (no sentido de parcial).
O recorrente entende ser absoluta, ancorando-se, além do mais, no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-02-2017 (Proc. n.º 1501/15.1T8GRD-A.C1, disponível em www.dgsi.pt), em que foi relatora a aqui 1.ª adjunta.
Efectivamente, no referido acórdão concluiu-se que à luz do disposto no artigo 736.º do Código de Processo Civil – que prevê que são absolutamente impenhoráveis os bens isentos de penhora por disposição especial – deve entender-se por absoluta a impenhorabilidade prevista no artigo 78.º da LAT.
O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 676/16, de 13-12-2016 (Proc. n.º 430/16, com publicação sumária no DR., 2.ª Série, n.º 38, de 22-02-2017) não julgou inconstitucional a norma no sentido da absoluta impenhorabilidade e impossibilidade de apreensão para a massa insolvente dos créditos de indemnizações atribuídos ao insolvente em virtude de acidente de trabalho.
Do entendimento que considera absoluta a impenhorabilidade prevista no artigo 78.º da LAT parece dissentir Rui Pinto, quando em anotação ao artigo 738.º do Código de Processo Civil conclui (Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, pág. 525) que face ao mesmo e ao artigo 78.º da LAT, «mantém-se o status quo de eficácia normativa instituído em 1 de Janeiro de 1998 quanto aos limites à penhora de indemnização por acidente de trabalho. Trata-se de um rendimento que pretende assegurar a subsistência do trabalhador, sujeito ao regime de penhorabilidade parcial constante do presente artigo, mesmo que seja irregular ou único».
Seja como seja, isto é, ainda que se admita que face à redacção do artigo 736.º do Código de Processo Civil o artigo 78.º da LAT consagra uma impenhorabilidade absoluta, temos por adquirido que a pretensão do recorrente não pode obter acolhimento.
Expliquemos porquê.
Importa desde logo ponderar que, como faz notar Pedro Romano Martinez (Direito do Trabalho, 3.ª Edição, Almedina, págs. 838-839), «[a] indemnização em sede de acidentes de trabalho apresenta duas vertentes: a primeira que respeita à recuperação física e psíquica do sinistrado e a segunda que corresponde ao pagamento de uma quantia pecuniária em função da morte ou da incapacidade de trabalho. (…) Denota-se uma clara preocupação do legislador de, a todo o custo, indemnizar o trabalhador, pondo cobro aos danos por ele sofridos; em especial, repondo a sua capacidade de trabalho, seja mediante tratamentos, ou pela via da compensação pecuniária»; ou, como se afirma na instância recorrida, citando Menezes Leitão, «(…) a reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho não tem um carácter estritamente reparatório, sendo a sua função antes de carácter alimentar. As suas características são como as que de uma obrigação de alimentos fundada numa situação de necessidade o que, só por si explica o seu carácter limitado (cf. o artigo 2004 do Código Civil)».
Ou seja, a reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho visa, em última instância, salvaguardar a dignidade do sinistrado (cfr. artigos 1.º e 59.º, n.º 1, alínea f) da CRP): daí se compreende, e se justifica, que a pensão por acidente de trabalho tenha uma função reparadora e, simultaneamente, alimentar, assim se procurando assegurar ao sinistrado (ou beneficiários legais) um rendimento que lhe garanta um mínimo de sobrevivência condigna.
Para além desse direito a mínimo de sobrevivência condigna por parte do sinistrado haverá também que ponderar que este é, igualmente, sujeito de deveres: entre tais deveres avulta, no caso em presença, o dever de contribuir para o sustento dos filhos menores (cfr. artigos 1877.º e segts. e 2003.º e segts do Código Civil).
Não pode olvidar-se que nos termos do artigo 36.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos: como fazem notar Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, págs. 565-566), «[q]uanto ao direito e dever de manutenção, ele envolve especialmente o dever de prover ao sustento dos filhos, dentro da capacidade económica dos pais, até que eles estejam em condições (ou tenham obrigação) de o fazer. Daí o fundamento da obrigação de alimentos por parte do progenitor que não viva com os filhos. O dever de educação e manutenção dos filhos, além de um dever ético-social, é um dever jurídico, nos termos estabelecidos na lei civil (arts. 1877º e ss e em convenções internacionais (cfr. Protocolo nº 7 à CEDH, art. 5º)».
Ora, no caso em apreciação, como resulta supra, o sinistrado/recorrente não tem pago a pensão de alimentos devida aos filhos menores, e daí a dedução das importâncias devidas a tal título no valor da remição da pensão.
Estamos, pois, perante a colisão de dois direitos: por um lado, o direito do sinistrado à manutenção de um mínimo de dignidade e, por outro, o direito dos filhos menores à educação e manutenção.
Pois bem: no confronto entre tais direitos verifica-se que, como é salientado pelo Ministério Público nas contra-alegações, a pensão do sinistrado não objecto de remição atinge valor superior ao da pensão social do regime não contributivo, tal como previsto no n.º 4 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, o que significa que não obstante a dedução no valor da remição da pensão das importâncias em divida pelo sinistrado a título de pensão de alimentos, ainda assim ele mantém o mínimo de sobrevivência condigna fixado pelo legislador.
Como se escreveu no referido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 676/16, «[c]onsiderando a jurisprudência do Tribunal a respeito da parcial penhorabilidade de vencimentos, pensões e de outras prestações periódicas de natureza similar, quando em causa possa estar o direito do executado à perceção de um quantum mínimo suscetível de assegurar uma existência condigna (v.g. no Acórdão n.º 657/2006), deve concluir-se que a afetação dos direitos dos credores não viola a Constituição, desde que se contenha na medida necessária e suficiente para assegurar um mínimo de sobrevivência condigna ao devedor (aqui ao sinistrado devedor)».
Assim, em jeito de síntese, violaria o direito à educação e manutenção dos filhos menores do sinistrado – sendo, pois, de afastar a interpretação do artigo 78.º da LAT no sentido da absoluta inadmissibilidade legal de dedução no valor da remição parcial da pensão a receber por aquele das pensões de alimentos por ele devidas aos filhos menores – quando se constata que a pensão sobrante (não objecto de remição) que ele recebe é superior à pensão social do regime não contributivo.
Impõe-se, por consequência, julgar improcedente, também nesta parte, as conclusões das alegações de recurso, bem como este.
O sinistrado/recorrente argumenta ainda que «a decisão proferida criou uma figura jurídica inexistente no nosso ordenamento jurídico, próxima da consignação de rendimentos, quando, ao arrepio de qualquer norma legal, determinou que fosse a Seguradora a “fiel depositária” do capital de remição para assim o ir entregando em prestações mensais de €: 255, ao credor de alimentos».
Em relação a tal argumentação importa apenas referir, mais uma vez, que o juízo do trabalho se limitou a cumprir o ordenado pelo juízo de família e menores, não cabendo, por isso, no âmbito da presente acção a análise de tal questão.
Sem embargo, sempre se acrescenta que estando em causa o incumprimento do acordo de regulação das responsabilidades parentais, não poderá deixar de se ter em conta o regime próprio para obtenção de alimentos (vide, por exemplo, o já referido n.º 2 do artigo 48.º do RGPTC).
Uma última nota apenas para referir que se afigura contraditório e, por isso, censurável do ponto de vista ético-jurídico, que o sinistrado, ao mesmo tempo que, de acordo com os elementos constantes dos autos, não paga as pensões de alimentos devidas aos filhos menores e pretende obstar que o valor a elas referentes seja deduzido no capital de remição a receber, apresente um requerimento à segurança social para protecção jurídica em que menciona os mesmos menores como fazendo parte do seu agregado familiar, o que leva a intuir que contribui para o sustento deles (menores) e, assim, que estes assumem relevância no apuramento da sua situação económica para efeitos do benefício social em causa.
3. Vencido no recurso, o sinistrado/recorrente deverá suportar o pagamento das custas respectivas.
Deverá, todavia, atender-se ao benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.IV. Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto por BB, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.Évora, 18 de Janeiro de 2018 João Luís Nunes (relator) Paula do Paço (subscrevo o acórdão, porque o que nele se conclui não conflitua com o decidido no acórdão da Relação de Coimbra, proferido no P. 1501/15.1T8GRD-A.C1, que relatei, e que é mencionado, pois os interesses conflituantes nos dois casos são distintos) Moisés Pereira da Silva _________________________________________________
[1] Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) Paula do Paço, (2) Moisés Silva.